Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
13/17.3YRCBR
Nº Convencional: JTRC
Relator: JORGE FRANÇA
Descritores: ESCUSA DE JUIZ
RELAÇÃO DE AFINIDADE
Data do Acordão: 01/25/2017
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: VISEU (JUÍZO CENTRAL CRIMINAL DE VISEU - JUIZ 3
Texto Integral: S
Meio Processual: ESCUSA DE JUIZ
Decisão: INDEFERIDA
Legislação Nacional: ARTIGO 43º, DO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL
Sumário: I - Só em situações limite, tendo na sua génese motivo sério e grave adequado a gerar desconfiança sobre a imparcialidade de juiz, é justificada a escusa de intervenção daquele em processo judicial.

II - A relação de afinidade (cunhados) - provinda de elo parental (irmãos) existente entre o advogado do assistente/demandante civil e a esposa do juiz -, sem mais, não determina a concessão do pedido de escusa.

Decisão Texto Integral:


ACORDAM NA SECÇÃO CRIMINAL DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE COIMBRA

            O Ex.mo Juiz de Direito. Sr. Dr. A... , em exercício de funções no Juízo Central Criminal da Comarca de Viseu (Juiz 3) vem requerer pedido de escusa, para intervir nos autos de processo comum colectivo nº 155/15.0JAAVR, que lhe foi distribuído.

            Fundamenta o seu pedido na invocada circunstância de ser cunhado do Ex.mo Sr. Dr. B... (que é irmão da sua esposa), advogado constituído nos autos pela assistente e pelo demandante cível.

            Pretende, com este requerimento evitar a suspeição sobre a sua pessoa, muito embora afirme, de forma clara, que «tal relação familiar, muito embora não impeditiva da realização de um julgamento justo e imparcial, pode suscitar dúvidas ou suspeitas sobre a imparcialidade do julgador, que o requerente pretende evitar».

           

Sobre a matéria do pedido de escusa regula o artigo 43º, do Código de Processo Penal, que diz o seguinte:

1. A intervenção de um juiz no processo pode ser recusada quando correr o risco de ser considerada suspeita, por existir motivo sério e grave, adequado a gerar desconfiança sobre a sua imparcialidade.

(…)

«4. O juiz não pode declarar-se voluntariamente suspeito, mas pode pedir ao tribunal competente que o escuse de intervir quando se verificarem as condições dos n.ºs 1 e 2.»

Como se escreveu no ac. da Relação do Porto de 23.05.07, processo 0712825:

“ O incidente processual de escusa de juiz… previsto no art. 43º do CPP, assenta em princípios e direitos fundamentais das pessoas, próprios de um Estado de direito democrático, visando assegurar a imparcialidade dos tribunais, o que exige independência e garantia de imparcialidade dos juízes…

As regras da independência e imparcialidade são inerentes ao direito de acesso aos tribunais (art. 20 nº 1 da CRP), constituindo ainda, no processo criminal português, atenta a sua estrutura acusatória (art. 32 nº 5 da CRP), uma dimensão importante do princípio das garantias de defesa (art. 32 nº 1 da CRP… e mesmo do princípio do juiz natural (art. 32 nº 9 da CRP).
            Pretende-se «assegurar a confiança geral na objectividade da jurisdição. É que, quando a imparcialidade do juiz ou a confiança do público nessa imparcialidade é justificadamente posta em causa, o juiz não está em condições de “administrar a justiça”. (…) Importa, pois, que o juiz que julga o faça com independência. E importa, bem assim, que o seu julgamento surja aos olhos do público como um julgamento objectivo e imparcial. É que a confiança da comunidade nas decisões dos seus magistrados é essencial para que os tribunais ao “administrar a justiça”, actuem, de facto, “em nome do povo” (cf. art. 205º nº 1 da Constituição)».

É “o dever de imparcialidade” que determina o pedido de escusa do juiz, imparcialidade essa que impõe o exercício de facto das suas funções com “total transparência (…). Não basta ser é preciso parecer. Assim o exige o princípio da confiança dos cidadãos na justiça”.
            Para sustentar a escusa ou recusa do juiz, atento o disposto no citado art. 43 nº 1 e 4 do CPP, é necessário verificar:

- se a intervenção do juiz no processo em causa corre “o risco de ser considerada suspeita”;

- e, se essa suspeita ocorre “por existir motivo, sério e grave, adequado a gerar desconfiança sobre a sua imparcialidade”.


            Mas, se é certo que a lei não define o que se deve entender por «motivo sério e grave adequado a gerar desconfiança sobre a imparcialidade» do juiz, cuja recusa ou escusa é requerida ou pedida respectivamente, a verdade é que, para tanto, deverão ser indicados factos objectivos susceptíveis de preencher tais requisitos.

Em nome da transparência da administração da justiça e tendo presente a natureza do processo equitativo, ainda “será a partir do [bom] senso e da experiência” comum “que tais circunstâncias deverão ser ajuizadas” caso a caso.

Como diz Ireneu Barreto, comentando o art. 6 nº 1 da CEDH, «a imparcialidade do juiz pode ser vista de dois modos, numa aproximação subjectiva ou objectiva. Na perspectiva subjectiva, importa conhecer o que o juiz pensava no seu foro íntimo em determinada circunstância; esta imparcialidade presume-se até prova em contrário. Mas esta garantia é insuficiente; necessita-se de uma imparcialidade objectiva que dissipe todas as dúvidas ou reservas, porquanto, mesmo as aparências podem ter importância de acordo com o adágio do direito inglês Justice must notonlybedone; it must alsobeseen to bedone. Deve ser recusado todo o juiz de quem se possa temer uma falta de imparcialidade, para preservar a confiança que, numa sociedade democrática, os tribunais devem oferecer aos cidadãos».
            Por isso, bem se compreende que só seja lícito recorrer aos mecanismos processuais das recusas e escusas em “
situações limite” em que se verifiquem os respectivos pressupostos.

Este pensamento jurisprudencial tem correspondência no Supremo Tribunal de Justiça que, no ac. de 14.06.2006, processo nº 06P1286, in http:/www.dgsi.pt/jstj.nsf/, se afirma:


           
I - No incidente de escusa de juiz não relevam as meras impressões individuais, ainda que fundadas em situações ou incidentes que tenham ocorrido entre o peticionante da escusa e um interveniente ou sujeito processual, num processo ou fora dele, desde que não sejam de molde a fazer perigar, objectivamente, por forma séria e grave, a confiança pública na administração da justiça e, particularmente, a imparcialidade do tribunal. De outro modo, poder-se-ia estar a dar caução, com o pedido de escusa, a situações que podiam relevar de motivos mesquinhos ou de formas hábeis para um qualquer juiz se libertar de um qualquer processo por razões de complexidade, de incomodidade ou de maior perturbação da sua sensibilidade.

II - O motivo de escusa apresentado tem de ser sério e grave, objectivamente considerado, isto é, do ponto de vista do cidadão médio, que olha a justiça como uma instituição que tem de merecer confiança.

III - A regra do juiz natural ou legal, com assento na Constituição - art. 32.º, n.º 9, só em casos excepcionais pode ser derrogada, e isso para dar satisfação adequada a outros princípios constitucionais, como o da imparcialidade, contido no n.º 1 do mesmonormativo. Mas, para isso, é preciso que essa imparcialidade esteja realmente mesmo em causa, em termos de um risco sério e grave, encarado da forma sobredita.

Deste breve excurso jurisprudencial, podemos resumir os contornos essenciais da questão - escusa do juiz - a um único objectivo ou finalidade qual seja a de garantir a imparcialidade do juiz.

Beneficiando o Juiz da presunção da sua imparcialidade, só em situações limite por motivo sério e grave, adequado a gerar desconfiança sobre a sua imparcialidade, conforme é exigência legal, deve o mesmo ser escusado de intervir num processo.

  No caso concreto «a gravidade e a seriedade do motivo» deverão ser apreciadas e valoradas, nos termos em que a situação ou factos que a definem, são colocados pelo Ex.mo Juiz requerente.

E tais factos relevantes são apenas os já trás referidos.

Entre o Ex.mo Juiz e o referido ilustre advogado existe uma relação de afinidade, dado o parentesco existente entre este último e a esposa do primeiro, que são irmãos.

Sem descurar os laços de amizade e convívio que, com certeza, haverá entre ambos, dadas essas relações familiares, estamos perante duas pessoas diferentes, com responsabilidades profissionais diferentes, que, no exercício das respectivas funções processuais têm atribuições muito distintas.

Mas, essencialmente, o Sr. juiz não aponta qualquer ligação pessoal, de conhecimento, amizade, convívio ou outro, com o assistente ou com a demandante civil, de onde se possa concluir que a sua independência funcional ou a sua imparcialidade possam ser vistas por terceiros como estando em causa.

Cremos que no presente caso estão reunidas todas as condições para que o Sr. Juiz exerça o seu munus de uma forma independente e imparcial, tanto mais que as decisões a tomar em julgamento não serão singulares, apenas suas, mas colectivas, resultantes da intervenção do tribunal colectivo.

Mau seria que em situações da natureza da presente fossem desde logo criadas suspeitas sobre a imparcialidade do Juiz.

Pelo exposto, acorda-se nesta Relação em indeferir o pedido de escusa formulado pelo Ex.mo Juiz, Sr. Dr. A... , mantendo-se o mesmo como titular do processo em causa. 

Incidente sem tributação.

Coimbra, 25 de Janeiro de 2017

(Jorge França - relator)

(Alcina da Costa Ribeiro - adjunta)