Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
618/12.9TBTNV.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: VIRGÍLIO MATEUS
Descritores: INSOLVÊNCIA
EXONERAÇÃO DO PASSIVO RESTANTE
FUNDAMENTAÇÃO
Data do Acordão: 02/19/2013
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TORRES NOVAS 1º J
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: ANULADA
Legislação Nacional: ARTS.238 CIRE, 712 Nº4 CPC
Sumário: Faltando a especificação dos factos provados na sentença que indeferiu o pedido de exoneração do passivo restante, ao abrigo do disposto no artigo 238º do CIRE, o Tribunal da Relação pode e deve anular, mesmo oficiosamente, a decisão proferida na 1ª instância.
Decisão Texto Integral: ACORDAM NESTA RELAÇÃO O SEGUINTE:

I – Relatório:
O insolvente P (…) veio deduzir o incidente de exoneração do passivo na oposição que apresentou no presente processo de insolvência.
Por sua vez, vieram os credores (…) opor-se a essa exoneração do passivo pelas razões que indicaram nos seus requerimentos.
Foi proferida decisão, indeferindo liminarmente o pedido de exoneração do passivo, com base no disposto no artigo 238º, nº1, alíneas d) e g), do CIRE.
Inconformado, recorre o insolvente, apresentando a sua alegação conclusões que, devido à sua desmesurada extensão, se resumem a isto: não se verificam as situações previstas nas al. a) e g) do nº 1 do artigo 238º e deve ser revogada a decisão de indeferimento.
O (…) contra-alegou, dizendo apenas que o recurso deve improceder.
Tudo visto.

II- Fundamentos:
O direito aplica-se aos factos.
A peça em que foi proferida a decisão recorrida não contém a discriminação de quaisquer factos provados nos quais tenha baseado a sua decisão de indeferimento.
Essa peça, por vezes designada como despacho, pode considerar-se uma sentença, em virtude do disposto na 2ª parte do artigo 156º/2 do CPC, segundo o qual «diz-se sentença o acto pelo o qual o juiz decide a causa principal ou algum incidente que apresente a estrutura de uma causa».
A apontada deficiência constitui questão prévia à apreciação das questões suscitadas nas alegações do recurso, questão essa que é de conhecimento oficioso e que prejudica a apreciação das questões suscitadas.
Ora, conforme decorre do disposto no artigo 659.º, n.º 2, do CPC, o Juiz, na elaboração da sentença, deve discriminar os factos considerados provados e só depois aplicar as normas jurídicas correspondentes ao caso concreto, para concluir proferindo a decisão final.
Esta exigência legal assenta na necessidade de fundamentação das decisões judiciais, por força do artigo 158.º do CPC (que aliás se refere às “decisões sobre qualquer pedido controvertido” e não apenas à sentença qua tale), e decorre do que estabelece o artigo 205.º da Constituição da República Portuguesa.
Tal imposição legal abrange necessariamente os factos em que o Juiz estriba a respectiva decisão, porquanto é sobre este acervo factual que o mesmo determinará qual o direito aplicável ao caso em apreço.
Por isso, a falta de especificação dos fundamentos de facto que justificam a decisão encontra-se prevista na alínea b) do n.º 1 do artigo 668.º do CPC, como um dos casos de nulidade da sentença, com o regime de arguição previsto no n.º 3 do referido preceito legal, ou seja, neste caso, o recurso podia ter como fundamento esta nulidade, a qual podia ser suprida nos termos do n.º 4 do citado artigo.
Na verdade, “esta causa de nulidade verifica-se quando o tribunal julga procedente ou improcedente um pedido (e, por isso, não comete, nesse âmbito, qualquer omissão de pronúncia), mas não especifica quais os fundamentos de facto ou de direito que foram relevantes para essa decisão. Nesta hipótese, o tribunal viola o dever de motivação ou fundamentação das decisões judiciais”. Porém, “o dever de fundamentação restringe-se às decisões proferidas sobre um pedido controvertido ou sobre uma dúvida suscitada no processo (…) e apenas a ausência de qualquer fundamentação conduz à nulidade da decisão (…); a fundamentação insuficiente ou deficiente não constitui causa de nulidade da decisão, embora justifique a sua impugnação mediante recurso, se este for admissível” ([1]).
No caso em apreço esta nulidade não foi arguida pelas partes nem foi objecto de recurso. Porém, tal não obsta a que a respectiva existência seja conhecida oficiosamente quando haja controversão de factos julgados ou a julgar, para que se apreciar a aplicabilidade dos critérios substantivos constantes da norma ou normas jurídicas elegíveis.
Nestas circunstâncias, prevê o artigo 712.º, n.º 4, do CPC, que a Relação possa anular, mesmo oficiosamente, a decisão proferida na primeira instância, quando repute deficiente a decisão sobre pontos concretos da matéria de facto, ou quando considere indispensável a ampliação desta.
Assim, se a lei concede tal poder nos casos em que a decisão sobre a matéria de facto é meramente deficiente ou escassa para decisão de todos os pontos controvertidos da questão de direito, por maioria de razão também o concede quando se verifique uma total ausência da fixação da matéria de facto na sentença ([2]).
Efectivamente, atento o poder censório conferido ao Tribunal da Relação, só face à indicação discriminada dos factos provados é que este tribunal poderá efectivamente entrar na apreciação do recurso interposto da sentença do tribunal a quo, pois só de posse desses elementos poderá averiguar cabalmente se existiu ou não uma correcta subsunção do direito aos factos e, evidentemente; ponderar se o juiz violou ou não alguma norma legal quanto aos factos que podia valorar; verificar se o juiz atendeu a todos os relevantes para a decisão da causa, ou se omitiu factos que devia ter considerado, etc.
Note-se que o acórdão do STJ de 6.7.2011 (Pº 7295/08 – Fernandes do Vale) decidiu que os factos fundamento do indeferimento liminar são factos impeditivos, cabendo aos credores ou ao administrador da insolvência ou ao MP em representação daqueles a sua alegação e prova, pelo que não tendo sido alegados não havia lugar ao indeferimento liminar com base na al. d) do nº 1 do artigo 238º do CIRE.
Com interesse, sobre a matéria, vide também os acórdãos do STJ de 21.10.2010 (Pº 3850/09.TBVLG-D.P1.S1 – Oliveira Vasconcelos) e de 19.4.2012 (Pº 434/11.5TJCBR-D.C1.S1) (este revogou o acórdão desta Relação de 9.1.2012), bem como os acórdãos desta Relação de Coimbra de 25.1.2011, Pº 767/10.8T2AVR-B.C1, relator José Eusébio Almeida, e os de 29.05.2012 no Pº 303/10.6T2AVR-C.C1 e de 2012-09-18 na apelação 904/11.5TBLSA.C1 (2ª secção), estes dois últimos cujos relator e adjuntos são os mesmos que no presente acórdão.
Daí que, não se encontrando discriminada a factualidade tida por assente pelo Tribunal de 1ª instância na sentença sob recurso, não possa a Relação exercer esse poder censório e decidir as questões que lhe foram colocadas.
Nestes termos, configurando a omissão total da especificação da matéria de facto uma mais grave violação da fundamentação de facto do que a sua deficiência, impõe-se oficiosamente anular a sentença recorrida, nos termos do artigo 712.º, n.º 4, do CPC, devendo ser proferida nova sentença, com fixação dos factos provados, em obediência ao preceituado no artigo 659.º do CPC.
Consequentemente, fica prejudicado o conhecimento das questões suscitadas no presente recurso.  

Sumário:
Faltando a especificação dos factos provados na sentença que indeferiu o pedido de exoneração do passivo restante ao abrigo do disposto no artigo 238º do CIRE, o Tribunal da Relação pode e deve anular, mesmo oficiosamente, a decisão proferida na 1ª instância.

III – Decisão:
Pelo exposto, acorda-se em anular a sentença recorrida e determinar que a 1.ª instância proceda à fixação da matéria de facto provada e subsequente subsunção ao direito, ficando prejudicado o conhecimento do objecto do recurso.
Sem custas.


Virgílio Mateus ( Relator )
Carvalho Martins
Carlos Moreira


[1] Cfr. Teixeira de Sousa, in Estudos sobre o Processo Civil, pág. 221.
[2] Cfr. neste sentido, Lopes do Rego, in Comentários ao Código de Processo Civil, vol. I, pág. 611, por referência à jurisprudência aí citada, e os Acs. TRL de 27-10-2009, processo 3084/08.0YXLSB-A.L1-1; STJ de 29-04-1998, processo n.º 98B209, ambos disponíveis em www.dgsi.pt; e de 01-10-2002, Revista n.º 2214/02 - 1.ª Secção, disponível em www.stj.pt Sumários de Acórdãos, estes últimos reportando-se à anulação de acórdão da Relação.