Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | JTRC | ||
Relator: | JORGE JACOB, POR VENCIMENTO | ||
Descritores: | PRINCÍPIO IN DUBIO PRO REO CONVICÇÃO DO JULGADOR CERTEZA DÚVIDA RAZOÁVEL COMPETÊNCIA CAUTELAR DOS ÓRGÃOS DE POLÍCIA CRIMINAL DECLARAÇÕES AO ÓRGÃO DE POLÍCIA CRIMINAL PROIBIÇÃO DE PROVA | ||
Data do Acordão: | 02/22/2023 | ||
Votação: | MAIORIA COM * VOT VENC | ||
Tribunal Recurso: | TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE CASTELO BRANCO - JUÍZO LOCAL CRIMINAL DE CASTELO BRANCO - JUIZ 2 | ||
Texto Integral: | N | ||
Meio Processual: | RECURSO | ||
Decisão: | NEGADO PROVIMENTO | ||
Legislação Nacional: | ARTIGOS 58.º, N.º 1, AL. D), N.º 6 E N.º 7, 129.º E 249.º DO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL | ||
Sumário: | I – A dúvida relevante para o estabelecimento de um non liquet probatório nada tem a ver com a possibilidade de formulação de uma distinta hipótese de desenvolvimento dos factos naturalísticos julgados provados.
II – A vertente negativa da convicção do julgador é constituída por uma dúvida metódica que reconhece a impossibilidade de concluir com segurança pela verificação de determinado facto quando, na apreciação crítica da prova, o julgador não encontra alicerces para afirmar o facto como provado, quando ocorre total ausência de prova, quando os meios de prova que apontam no sentido da verificação do facto não se apresentam como convincentes, ou ainda porque as premissas que permitiriam considerar como provado um concreto facto admitem coerentemente ter como verificados factos alternativos com igual grau de probabilidade, tudo gerando a impossibilidade ôntica de verificação do facto que, podendo ser verdadeiro, não está comprovado. III – A certeza que leva à afirmação do facto não é uma certeza de carácter absoluto, contra todas as possibilidades, mas uma certeza lógica e racional, assente na prova, fundada num equilibrado sentido da vida e na normalidade das situações. IV – É no equilíbrio entre o juízo de certeza respaldado na prova e a inconsistência de factos que não possam ser subtraídos à «dúvida razoável» do tribunal que é moldada a decisão penal em matéria de facto. V – Não dispondo o tribunal superior da oralidade e imediação relativamente à prova o juízo de non liquet que formule, ao arrepio da decisão de primeira instância, só é admissível se, manifestamente, a prova produzida não comportar outra alternativa, não podendo interferir com a opção do tribunal recorrido se esta for uma solução verosímil, racionalmente explicitada, e com lastro na prova produzida. VI – A competência cautelar dos órgãos de polícia criminal, do artigo 249.º do C.P.P., é uma actividade cautelar avulsa, não traduz uma actividade de inquérito, nem tem natureza processual, destina-se tão só à protecção e salvaguarda dos meios de prova de infracção de que tomaram conhecimento e está em total harmonia com o estabelecido no artigo 58.º, n.º 1, al. d), do C.P.P. VII – A limitação estabelecida no n.º 6 do art. 58.º do C.P.P., implicando que as declarações prestadas pela pessoa visada não podem ser utilizadas como prova, aplica-se exclusivamente às declarações prestadas após o momento em que se tornou claro que a pessoa em causa deveria ser constituída arguida, conclusão esta reforçada pelo disposto no n.º 7, já que as provas recolhidas em momento anterior, em que o arguido ainda não tinha nem devia ter o estatuto de arguido, estão validadas pela imposição de recolha cautelar de prova a que se reporta o artigo 249.º. VIII – Nos termos desta norma é atendível, em sede de decisão, o relato feito pelo OPC em audiência narrando todas as afirmações feitas perante si pelo arguido até ao momento em que se torne evidente que o arguido terá que ser constituído como tal, o que só sucederá após este assumir a autoria do facto ou, não a assumindo, fizer afirmações que apontem já para a sua constituição como arguido. IX – O relato feito pelo OPC em audiência, dando conta das afirmações do arguido, não traduz um conhecimento directo dos factos constitutivos do crime, mas na parte em que reproduz o que ouviu dizer ao arguido o seu depoimento é directo, por ter resultado da sua directa percepção e apreensão. | ||
Decisão Texto Integral: | Acordam em conferência no Tribunal da Relação de Coimbra: I – RELATÓRIO: … o arguido AA … foi condenado, como autor de um crime contra a preservação da fauna e das espécies cinegéticas, p. e p. pelo art. 30.º, n.º 1, e 6.º, n.º 1, al. c), da Lei 173/99, de 21/09 (Lei da Caça – LC), com referência aos art. 78.º e 90.º do DL 202/2004, de 18/08 (Regulamento da Lei de Bases Gerais da Caça - RLC) …
Inconformado, recorre o arguido retirando da motivação do recurso as seguintes conclusões: … II – O tribunal recorrido fez uma incorreta apreciação da prova produzida em sede de audiência de julgamento. … VI – Tendo o recorrente no seu depoimento, declarado de forma precisa que não foi ele quem colocou a armadilha, o tribunal recorrido, ao não valorar como verdadeiro o seu depoimento, incorreu numa incorrecta apreciação do depoimento do recorrente. VII – O tribunal a quo baseou unicamente a sua decisão no depoimento da testemunha apresentada pela acusação pública, militar da GNR. VIII – O qual "relatou que no local e à data dos factos, o arguido admitiu que aquela armadilha era dele e foi por si colocada". … XII – Perante a discrepância nos depoimentos … caberia ao tribunal a quo, munir-se de outras provas que confirmassem a versão da acusação nos termos do artigo 32.º, n.º 5, da Constituição da República Portuguesa [CR], violando assim o princípio in dubio pro reo, consagrado também constitucionalmente no n.º 2 do mesmo diploma. … XIV – Norma violada, artigo 32°, n.º 2, da CR. O M.P. respondeu, pugnando pela improcedência do recurso … Nesta instância, o Exmº Procurador-Geral Adjunto pronunciou-se também pela improcedência do recurso. …
… no caso vertente as questões a conhecer se cingem ao seguinte: - Verificação da ocorrência de erro de julgamento no âmbito da impugnação ampla da matéria de facto; - Necessidade de ponderação do princípio in dubio pro reo; - Verificação do preenchimento do tipo legal de crime imputado ao arguido.
II – FUNDAMENTAÇÃO: O tribunal a quo considerou provados os seguintes factos: 1. Em data não concretamente apurada, mas anterior a 29 de novembro de 2020, o arguido AA, armou uma armadilha de ferro com corrente, espigão e cordel azul, na quinta denominada por ..., em ..., destinada a capturar os animais que por ali passassem, como raposas. 2. Nas referidas circunstâncias de tempo, modo e lugar, foi apanhada na referida armadilha de ferro, próximo das 14 horas, do dia 29.11.2020, uma raposa macho da espécie Vulpes vulpes … … 6. O arguido é reformado da GNR. … 12. No certificado de registo criminal do arguido consta uma condenação, no âmbito do processo comum, n.º 20/19...., pela prática de um crime de ameaça, por factos praticados em 09.2019, por decisão de 22.06.2021, transitada em julgado em 07.09.2021, na pena de 60 dias de multa, à taxa diária de € 7,00, já extinta. … A matéria de facto foi motivada nos seguintes termos: … Louvou o tribunal a sua convicção no depoimento da testemunha BB, militar da GNR que, à data dos factos, se deslocou ao local. Esta testemunha apresentou um depoimento espontâneo, seguro, objectivo e imparcial, designadamente quando relatou que, no local e à data dos factos, o arguido admitiu que aquela armadilha era dele e foi por si colocada. A testemunha relatou o que viu e ouviu de forma circunstanciada, de forma segura, sem revelar hesitações e mantendo a mesma versão dos factos ao longo das várias perguntas que lhe foram dirigidas pelas diferentes instâncias. … As declarações do arguido apresentaram-se titubeantes e incoerentes. O arguido confirmou que, à data dos factos, esteve no local, no entanto, justificou o facto de se ter ausentado porque os militares da GNR lhe deram essa indicação e lhe disseram que iria ter problemas, acrescentou, ainda, o arguido que apenas se limitou a obedecer às ordens que lhe deram. Ora, não pode o tribunal esquecer que estamos perante um agente que é reformado da GNR, como tal, não se afigura minimamente credível, nem lógico, que tenha sido alertado para eventuais problemas com a justiça mas, no entanto, utilizando como desculpa o facto de “ser pessoa obediente”, ter ido embora, não querendo saber do assunto, quando, segundo o próprio, nada tinha que ver com a armadilha. Por outro lado, ressaltou ao tribunal a grande preocupação e constante referência que o arguido fez ao facto dos seus animais serem atacados por cães vadios. Esta preocupação coincide com o relato que a testemunha BB fez, no sentido de que o arguido admitiu que utilizou a armadilha por causa dos cães vadios. Acresce que a testemunha BB, para conseguir individualizar a armadinha, indicou ao arguido que a mesma tinha um baraço azul pendurado, e foi nesta sequência que o arguido admitiu a prática dos factos. Quanto ao depoimento das testemunhas CC e DD, embora se tenha revelado sincero, pouco acrescentou na descoberta da verdade, uma vez que se limitaram a afirmar conclusões e juízos de valor … … Apreciando e decidindo: Aligeirando considerações relativamente ao modo como vem impugnada a matéria de facto assente, nomeadamente, no que concerne aos factos nºs 1, 3, 4 e 5 … No entanto, fundamentalmente, o recorrente pretende contrapor e fazer prevalecer as declarações que prestou em audiência sobre o testemunho prestado pelo militar da GNR na mesma ocasião … constituindo apenas e tão-só um ataque ao modo como o tribunal recorrido formou a sua convicção, valorizando o depoimento da testemunha e considerando desprovidas de crédito as declarações do arguido. Está em causa a afirmação do princípio da livre convicção, com assento no art. 127º do CPP, tendo a convicção evidenciada pelo tribunal resultado da contraposição às declarações do arguido de um depoimento de agente da autoridade vinculado por um especial dever de depor com verdade, não apenas por força das suas funções, mas também por depor como testemunha, sujeita a prévio compromisso de honra. De resto, nada no depoimento da testemunha permite questionar a veracidade das afirmações que produziu e que o tribunal a quo, julgando com base na oralidade/imediação, considerou credíveis e fundamentadas, juízo que já não conseguiu formular relativamente às declarações do arguido, que para além de não estar adstrito a um dever de declarar com verdade, também não logrou convencer o tribunal da veracidade e coerência do que declarou. Acresce que nenhum argumento de vulto é avançado pelo recorrente, de cuja ponderação deva resultar uma qualquer dúvida sobre a razoabilidade do raciocínio desenvolvido pelo julgador na motivação de facto que permita questionar o provado. Isto dito, não se vislumbram, por esta via, razões que imponham a alteração da matéria de facto tal como esta se teve como assente em primeira instância, sendo certo que a sua alteração pelo tribunal ad quem reclamaria a procedência de uma argumentação que necessariamente impusesse uma diversa compreensão dos factos, sendo insuficiente que meramente permitisse admitir uma versão diversa.
Numa outra linha de argumentação, pretende o recorrente prevalecer-se do princípio in dubio por reo, mas sem razão. A dúvida relevante para o estabelecimento de um non liquet probatório nada tem a ver com a mera possibilidade de formulação de uma distinta hipótese de desenvolvimento dos factos naturalísticos que dão corpo ao provado. Este princípio, a que o recorrente faz apelo, afirmando-se na dupla perspectiva de princípio fundamental do processo penal e de princípio relativo à prova, constitui a antítese da certeza judiciária, sendo a convicção do julgador balizada por estes dois polos de cargas opostas. A vertente negativa é constituída por uma dúvida metódica que reconhece a impossibilidade de concluir com segurança pela verificação de um determinado facto, devendo afirmar-se no conjunto da prova produzida e por apelo à razoabilidade decorrente da experiência comum. É aquela dúvida que se forma no espírito do julgador quando este, na apreciação crítica da prova, não encontra alicerces para firmar um facto como provado; dúvida que poderá sobrevir por total ausência de produção de prova (quando a prova directa não confirma o facto e não é de admitir o funcionamento de prova indirecta), por os meios de prova que apontam no sentido da verificação do facto (positivo ou negativo) não se apresentarem como convincentes, ou ainda porque as premissas que permitiriam considerar como provado um concreto facto admitem coerentemente ter como verificados factos alternativos com igual grau de probabilidade. Todas estas situações geram uma impossibilidade ôntica de verificação do facto, que até poderá ser verdadeiro, mas que não estará comprovado. Assim se sedimenta a dúvida razoável e se desencadeia o funcionamento do princípio in dubio pro reo. Esta dúvida … afirma-se como contraponto da comprovação fáctica da certeza judiciária. Também aqui não se trata de uma certeza marcada por um carácter absoluto, contra todas as possibilidades, mas de uma certeza lógica e racional, assente na prova, fundada num equilibrado sentido da vida e na normalidade das situações. Assim, se uma vez produzida e analisada a prova subsistir uma dúvida razoável sobre a veracidade do facto, o non liquet daí resultante será necessariamente valorado a favor do arguido. Se, pelo contrário, for alcançada uma certeza judiciária, o facto deve ser firmado como provado. É neste equilíbrio entre o juízo de certeza respaldado na prova e a inconsistência de factos que apesar da prova produzida não possam ser subtraídos à «dúvida razoável» do tribunal que é moldada a decisão penal em matéria de facto. Em sede de recurso, em que o tribunal superior não dispõe da oralidade/imediação relativamente à prova, o juízo de non liquet ao arrepio da decisão de primeira instância só será de admitir se manifestamente a prova produzida não comportar outra alternativa, revelando-se absolutamente inadmissível firmar o facto como provado. O que o tribunal de recurso não pode é interferir com a opção do tribunal recorrido assente numa solução verosímil, racionalmente explicitada e com lastro na prova produzida. Ora, no caso vertente não se vê que o tribunal recorrido tenha atingido uma situação de dúvida, resolvendo-a em desfavor do recorrente. A decisão sobre a matéria de facto foi motivada por referência às provas que fundamentaram a convicção do tribunal através duma valoração critica racionalmente desenvolvida que respeitou as regras da experiência comum e as circunstâncias do caso não permitem afirmar a verificação de várias soluções em termos de facto que encontrem apoio na prova produzida e que se apresentem como igualmente verosímeis. Vale tudo isto por dizer que não se vislumbra atropelo do princípio in dubio pro reo ou do imperativo constitucional donde aquele decorre.
Questão que relevantemente se pode suscitar … é a da validade e suficiência da prova produzida, isto, na medida em que o tribunal a quo se sustentou fundamentalmente no depoimento do OPC que constatou a existência de uma armadilha de caça e que relatou em audiência o que lhe foi dito pelo arguido quando, encontrando-se no local em que estava a armadilha coligindo cautelarmente a informação possível, se deparou com ele e o abordou. O depoimento do OPC compagina-se com a previsão do art. 249º do CPP que, sob a epígrafe «Providências cautelares quanto aos meios de prova», dispõe … 1 - Compete aos órgãos de polícia criminal, mesmo antes de receberem ordem da autoridade judiciária competente para procederem a investigações, praticar os actos cautelares necessários e urgentes para assegurar os meios de prova. 2 - Compete-lhes, nomeadamente, nos termos do número anterior: a) Proceder a exames dos vestígios do crime, em especial às diligências previstas no n.º 2 do artigo 171.º, e no artigo 173.º, assegurando a integridade dos animais e a manutenção do estado das coisas, dos objetos e dos lugares; b) Colher informações das pessoas que facilitem a descoberta dos agentes do crime e a sua reconstituição; c) Proceder a apreensões no decurso de revistas ou buscas ou em caso de urgência ou perigo na demora, bem como adotar as medidas cautelares necessárias à conservação da integridade dos animais e à conservação ou manutenção das coisas e dos objetos apreendidos. 3 - Mesmo após a intervenção da autoridade judiciária, cabe aos órgãos de polícia criminal assegurar novos meios de prova de que tiverem conhecimento, sem prejuízo de deverem dar deles notícia imediata àquela autoridade. Esta competência cautelar dos órgãos de policia criminal, cujo escopo é a protecção e salvaguarda dos meios de prova de infracção de que tenham tomado conhecimento, não traduz uma actividade de inquérito nem tem natureza processual, antes se afirmando como actividade cautelar avulsa visando a conservação da prova , que de outro modo poderia perder-se. O regime previsto neste art. 249º encontra perfeita articulação com o regime de constituição de arguido previsto no art. 58º. Segundo o nº 1, al. d) deste último artigo, (…) é obrigatória a constituição de arguido logo que: d) For levantado auto de notícia que dê uma pessoa como agente de um crime e aquele lhe for comunicado, salvo se a notícia for manifestamente infundada, sendo a omissão ou violação das formalidades previstas para a constituição de arguido sancionada no nº 6, implicando que as declarações prestadas pela pessoa visada não possam ser utilizadas como prova. A limitação aplica-se exclusivamente às declarações prestadas após o momento em que se tornou claro que a pessoa em causa deverá ser constituída arguida, tanto assim que a lei acautelou as situações em que a constituição de arguido não seja validada, dispondo expressamente no nº 7 que a não validação da constituição de arguido pela autoridade judiciária não prejudica as provas anteriormente obtidas. Se é certo que o âmbito de abrangência desta norma não resulta inteiramente claro da letra da lei, a interpretação mais consentânea com a harmonia do sistema é a de que abrange exclusivamente as provas adquiridas no hiato compreendido entre o momento em que deve operar a constituição de arguido e aquele outro em que é recusada a ratificação ; porque as provas recolhidas em momento anterior, em que o arguido ainda não tinha nem devia ter o estatuto de arguido, estão validadas pela imposição de recolha cautelar de prova a que se reporta o art. 249º.
Saindo deste estrito âmbito de análise para entrar no domínio da apreciação da validade e relevância do relato feito em audiência por OPC narrando as afirmações feitas perante si pelo arguido antes de ter esse estatuto e antes ainda de ser previsível que o viria a ter, não é de sufragar … a inatendibilidade de tais declarações. A prova recolhida pelo OPC com vista à identificação dos suspeitos do facto criminoso … está a coberto da previsão do art. 249º do CPP. Se o arguido, no decurso das diligências investigatórias, assume a autoria do facto, até esse momento estaremos exclusivamente no domínio da recolha cautelar de prova. Dito de outro modo, em abstracto, no confronto da linha do tempo com as afirmações produzidas pelo arguido, ainda que autoincriminatórias, serão válidas todas as afirmações produzidas até ao momento em que se torne evidente que o arguido terá que ser constituído como tal, o que só sucederá após este assumir a autoria do facto ou, não a assumindo, fizer afirmações que pela sua relevância apontem já para a sua constituição como arguido. Consequentemente, a conversa mantida pelo arguido (quando ainda o não era) com o agente de autoridade, no caso concreto, não está abrangida pela proibição decorrente do art. 356º, nº 7, do CPP. Anote-se, por outro lado, que nem sequer está em causa aquilo que na jurisprudência americana ficou conhecido como violação dos Miranda Warnings, situação que se dirige essencialmente a declarações prestadas por indivíduos que têm um estatuto, pelo menos, de suspeito, e que prestam declarações ou produzem afirmações perante entidades policiais no decurso da investigação, numa fase pré-acusatória, sem serem advertidos das consequências em que incorrem. Aliás, levar o sentido da proibição da valoração das declarações do arguido (rectius, das afirmações do arguido; não estão em causa declarações em sentido técnico-jurídico) ao ponto de proibir a valoração de afirmações por ele feitas antes de ter esse estatuto e de ser previsível que o virá a ter, implicaria, por coerência do sistema, que nem sequer pudessem ser utilizadas como meio de prova afirmações incriminatórias surpreendias em intercepção telefónica numa fase inicial de investigação, antes da constituição de arguido.
Há que convir, no entanto, que o relato feito pelo OPC em audiência dando conta das afirmações do arguido não traduz um conhecimento directo dos factos constitutivos do crime, mas apenas um relato do que lhe foi dito por aquele. Residirá aqui o obstáculo à valoração do seu depoimento, por força do regime previsto no art. 129º do CPP? Não, seguramente, no caso dos autos, em que a pessoa que proferiu as declarações relatadas pelo OPC se encontra em juízo, donde resulta intocado aquele regime, garantida que está a imediação e a cross-examination. Uma análise mais detalhada da situação permite afirmar que o que está em causa neste relato da testemunha não é exclusivamente um depoimento indirecto, por não serem enquadráveis como tal os depoimentos que constatam factos e reacções presenciados pela testemunha. Se uma testemunha reproduz em audiência o que ouviu dizer a pessoa determinada, nessa parte o seu depoimento é directo, por ter resultado da sua directa percepção e apreensão. Assim, no caso dos autos, o depoimento é directo na parte em que traduz a constatação de um facto, constituído pela afirmação do arguido. Já será indirecto quanto ao relato ouvido pela testemunha relativamente a factos que não presenciou. Contudo, estando presente em audiência a pessoa que produziu esse relato, no caso, o arguido, o depoimento indirecto é susceptível de valoração no âmbito da livre convicção do tribunal, nos termos previstos no art. 127º do CPP / . De resto, como se nota no texto do Ac. do Tribunal Constitucional nº 440/99, de 8 de Julho, por referência aos arts. 128º e 129º do CPP, «Destes preceitos legais decorre que, embora o testemunho directo seja a regra, o depoimento indirecto não é, em absoluto, proibido. Não existe, de facto, entre nós, uma proibição absoluta do testemunho de ouvir dizer (hearsay evidence rule). O princípio hearsay is no evidence (ouvir dizer não constitui prova) sofre, assim, limitações. E, com isso - tal como se mostrou no acórdão nº 213/94 (publicado no Diário da República, II série, de 23 de Agosto de 1994), para cuja fundamentação aqui se remete, o processo penal continua a assegurar todas as garantias de defesa. Continua a ser a due process of law»; e em desenvolvimento desta argumentação, veio o TC a concluir que «(…) o artigo 129º, nº 1 (conjugado com o artigo 128º, nº 1) do Código de Processo Penal, interpretado no sentido de que o tribunal pode valorar livremente os depoimentos indirectos de testemunhas, que relatem conversas tidas com um co-arguido que, chamado a depor, se recusa a fazê-lo no exercício do seu direito ao silêncio, não atinge, de forma intolerável, desproporcionada ou manifestamente opressiva, o direito de defesa do arguido. Não o atinge, ao menos na dimensão em que essa norma foi aplicada no caso. Por isso, não havendo um encurtamento inadmissível do direito de defesa do arguido, tal norma não é inconstitucional».
Posto isto, a única questão que poderá ainda prevalecer é a de saber se a prova produzida é suficiente para a conclusão que o tribunal a quo dela retirou … Como dado objectivo, temos o depoimento de um agente da autoridade que o tribunal a quo, que dispôs da oralidade/imediação na apreciação da prova, considerou isento e credível. Desse depoimento resulta, em síntese: - Encontrou uma armadilha de caça onde tinha sido capturada uma raposa; - No decurso das diligências de recolha e conservação de prova a que procedeu deparou-se com o arguido nas imediações; - Este, ao ser-lhe mencionado que a armadilha tinha um baraço azul pendurado, disse-lhe que a armadilha era sua, justificando tê-la utilizado por causa dos cães vadios. A par deste depoimento, o tribunal valorou as declarações do arguido que, negando os factos e o teor das afirmações que teria feito ante a testemunha, revelou, no entanto, grande preocupação e fez constantes referências ao facto de os seus animais serem atacados por cães vadios, coincidentemente com o relato da testemunha reportado ao que o arguido lhe havia dito. O tribunal valorou estas declarações e depoimento nas suas coincidências, como nas suas divergências, aceitando a veracidade do relato da testemunha por se oferecer como credível e coerente. Partiu assim do válido pressuposto de que o arguido efectivamente disse à testemunha que a armadilha era sua e que a colocou por causa dos cães vadios. Sendo assim, a pergunta que subsequentemente haverá que colocar é simples: por que razão negou o arguido em audiência as afirmações produzidas ante a testemunha, faltando à verdade pelo menos no que tange à conversa que com a testemunha manteve? E por que razão simultaneamente insiste e revela preocupação com os ataques dos cães vadios aos seus animais? A tudo isto, somou o tribunal o carácter titubeante e incoerente das declarações do arguido e retirou, obviamente por presunção judicial assente em factos instrumentais, o juízo de certeza relativamente à colocação da armadilha pelo arguido. Não há, neste processo de decisão, qualquer erro evidente na avaliação da prova, assim como a prova produzida não evidencia insuficiência para a decisão de facto que veio a ser assumida pelo tribunal recorrido. … III – DISPOSITIVO: Nos termos apontados, acordam nesta Secção Criminal do Tribunal da Relação de Coimbra em negar provimento ao recurso. Condena-se o recorrente na taxa de justiça de 3 UC. * Coimbra, 22 de Fevereiro de 2023 (texto processado e revisto pelo relator e assinado electronicamente) (Jorge Miranda Jacob – relator por vencimento) (Pilar Oliveira - 1ª adjunta) (Pedro Lima - 2º adjunto, vencido nos termos da declaração que se segue) * Para estabelecer os factos como praticados pelo recorrente, o tribunal recorrido sustentou-se em exclusivo no depoimento testemunhal de um agente do órgão de polícia criminal, cuja substância é o que aquele lhe teria verbalmente transmitido logo após ter pela sua parte descoberto a armadilha de caça: ter-lhe-ia manifestado que fora quem a colocara. Ora, mesmo assumindo que não era o recorrente até ao momento dessa declaração suspeito, e certamente não arguido, quando menos a mesma teria por si só tornado claro que como tal deveria ter sido constituído (art. 59.º/1, e 58.º/2, do CPP), com a inerente comunicação dos pertinentes direitos e deveres [e já para não dizer que em face da detecção da armadilha com uma raposa capturada e de tais declarações, devesse era ter sido detido em flagrante delito (art. 255.º/1/a, e 256/1, do CPP), também nesse caso sendo obrigatória aquela constituição de arguido (art. 58.º/1/c, do CPP)]. O recorrente não foi então constituído arguido, mas se o tivesse sido, como devia, as declarações que ao agente do OPC prestasse não poderiam ter sido reproduzidas ou lidas em audiência senão a sua própria solicitação (art. 357.º/1/a, do CPP), única hipótese de o tribunal as valorar; acrescendo, em inteira congruência, que sobre o conteúdo delas não poderia ser inquirido o dito agente do OPC como testemunha (art. 357.º/3 e 356.º/7, do CPP), isto é, também não podendo esse depoimento ser valorado. Seja como for, a não constituição de arguido quando devida implica que fique vedada a utilização como prova das declarações que a pessoa visada tenha prestado (art. 58.º/6, do CPP). Valorar tais dados à margem das ditas condições e limites configura uma autêntica proibição de prova, como tal um limite claro à liberdade de apreciação e formação de convicção que o art. 127.º do CPP assinala ao julgador, e creio que as coisas não podem ser diversas apenas por, de jeito indevido, o recorrente (sendo os factos de 29/11/2020) só depois (e mesmo muito mais tarde, a 11/02/2022, previamente a uma formal tomada de declarações perante OPC e nessa qualidade) ter enfim vindo a ser constituído arguido – o que de resto deixaria na mão do OPC a possibilidade de por esta via, de omitir a constituição de arguido, assegurar afinal que a jusante se lograsse contornar aquelas condições e limites. Ainda a este respeito, também me não convenço de que apelar à competência do OPC para tomar as providências cautelares aptas a assegurar a preservação da prova consinta encarar os termos do problema com diferença significativa, designadamente (e sem quebra alguma do muito respeito devido e efectivamente nutrido), parecendo-me inviável, até sob o ponto de vista linguístico, abranger no comando de “colher informações das pessoas que facilitem a descoberta dos agentes do crime e a sua reconstituição” (art. 249.º(1/b, do CPP), a tomada de declarações orais de alguém que de imediato é encarado como suspeito (aliás, nesses termos foi até abordado pelo OPC com questões sobre se os cães o incomodavam e se tinha posto armadilhas para capturá-los, como tudo se colhe do auto de notícia!), e de jeito que faria do conteúdo de tais declarações informais a prova preservada… Por fim, embora este tivesse sido o ponto de partida da abordagem que no projecto vencido segui, o depoimento do agente do OPC que o tribunal valorou é, na parte relevante, um testemunho indirecto: a sua substância é o que o arguido lhe teria dito no sentido de ter sido quem colocara a armadilha. Ora, a admissibilidade excepcional do depoimento indirecto, nos termos e condições do art. 129.º, do CPP, não pode abranger, segundo julgo ser pacífico, declarações mediatizadas de outras pessoas que não testemunhas (designadamente de assistentes, de partes civis e, sobretudo, de arguidos). Também por aqui se me afigura inviável (proibida) a valoração dessa parte do depoimento, que directo é apenas quanto às condições da detecção e apreensão da armadilha com a raposa, e considero que isso não muda por em audiência o recorrente ter podido (rectior: ter-se visto na contingência de ter de) contraditar tal testemunho. Já encerrando, como dou por seguro que na parte relevante para a imputação dos factos ao recorrente o depoimento da testemunha em causa não podia ser valorado, e nenhuma outra prova foi produzida que consentisse estabelecê-la, concluiria pela procedência da impugnação da decisão da matéria de facto no que a eles respeita, daí fluindo a final a absolvição.
Pedro Lima
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