Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1878/19.0T8VIS-D.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ALBERTO RUÇO
Descritores: CAUÇÃO
SUA REDUÇÃO
Data do Acordão: 09/07/2021
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE VISEU – J. L. CÍVEL DE VISEU – JUIZ 3
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTº 368º, Nº 3 DO NCPC.
Sumário: Tendo sido prestada caução pela Requerida, ao abrigo do disposto no n.º 3 do artigo 368.º do Código de Processo Civil, a caução pode ser reduzida se o montante do crédito inicialmente reconhecido tiver sido reduzido na sequência do contraditório – artigo 373.º do Código de Processo Civil – subsequente da Requerida.
Decisão Texto Integral:



I. Relatório

a) O presente recurso vem interposto do despacho que a seguir se reproduz no essencial, o qual indeferiu o pedido da ora Recorrente no sentido de reduzir o montante de uma caução prestada em dinheiro a favor da Recorrida, de 800.000,00 euros para 298.000,00 euros, com fundamento no facto de ter sido este último o montante que corresponde à sentença de 08 de Julho de 2019, que reduziu o arresto decretado para a mencionada quantia 298.000,00 euros.

O despacho tem o seguinte teor:

«(…) Mas esse não é o caso dos autos em que, como vimos, a caução foi prestada na sequência de acordo entre as partes, como substituição do arresto dum bem de elevado valor.

Tal acordo veio a ser homologado pela sentença de fls. 13, que transitou em julgado e fixou o valor da caução em conformidade com a vontade das partes.

É nosso entendimento que, em casos como este, se encontra esgotado o poder jurisdicional do Tribunal, sendo inadmissível qualquer incidente de redução da caução.

A mesma só poderá, assim, ser devolvida quando se encontrar integralmente satisfeita a obrigação que garante ou se julgar que a mesma obrigação não existe ou se extinguiu por outro modo.

Termos em que, pelo exposto, indefiro o pedido de devolução do excedente da caução (…)».

b) É desta decisão, como se disse, que vem interposto o recurso, sendo as conclusões as seguintes:

«I. Por sentença de 22 de Julho de 2017 foi ordenado o arresto dos bens da ora Recorrente, sem audiência prévia nos termos do n.º 1 do artigo 393.º do Código de Processo Civil.

II. A C..., notificada nos termos do artigo 366.º, n.º 6, veio, nos termos do artigo 372.º, n.º 1, alínea b), ex vi artigo 376.º todos do Código de Processo Civil, deduzir oposição ao arresto decretado.

III. Nos termos do n.º 3 do artigo 368.º e 913.º, ambos do Código do Processo Civil, em 09 de Fevereiro de 2018, de forma espontânea, a Recorrente requereu a substituição do arresto decretado por caução prestada por depósito em dinheiro, correspondente ao valor da providência cautelar, acrescido das despesas prováveis da Agente de Execução, no montante total de €747.367,23 (setecentos e quarenta e sete mil, trezentos e sessenta e sete euros e vinte e três cêntimos).

IV. Em 15 de Fevereiro de 2018 foi a Recorrida notificada para, nos termos do artigo 368.º n.º 3 do Código de Processo Civil, se pronunciar quanto à caução prestada.

V. Vieram então, Recorrente e Recorrida, por requerimento conjunto, acordar que o valor da caução espontaneamente prestada deveria ser aumentado para o valor de 800.000,00€ (oitocentos mil euros), tendo a Recorrida desde logo manifestado, para efeitos do artigo 368.º, n.º 3 do Código de Processo Civil, que nada tinha a opor à substituição do arresto pela caução, considerando a mesma idónea.

VI. Em 26 de Fevereiro de 2018 foi decidido pelo Tribunal a quo julgar validamente prestada a caução e, em consequência, determinar a substituição do arresto decretado pelo depósito/caução efetuado, ordenando o levantamento do arresto sobre os bens já efectuado.

VII. No requerimento conjunto as partes acordaram quanto ao reforço da caução prestada e não quanto à prestação da caução pela Recorrente, a qual estava já realizada de forma espontânea.

VIII. A Recorrida, tendo em consideração o reforço da caução, acordado e espontaneamente realizado pela Recorrente, pronunciou-se desde logo, nos termos dos artigos 368.º, n.º 3 e 913.º n.º 2 do Código e Processo Civil, tal como notificada para o efeito, julgando a caução prestada idónea e adequada.

IX. A caução não foi prestada na sequência de acordo das partes, não existindo qualquer transação nos autos homologada por sentença, nos termos do artigo 290.º do Código de Processo Civil.

X. O despacho que admitiu a prestação de caução apenas deu cumprimento ao artigo 368.º, n.º 3 do Código de Processo Civil, não configurando uma homologação por sentença de um acordo nos termos do artigo 290.º do Código de Processo Civil, que pusesse fim a uma qualquer causa.

XI. Antes de ser proferida decisão nos termos do artigo 372.º, n. º 3 do Código de Processo Civil, o arresto decretado foi substituído por caução, pelo que a decisão sobre a manutenção, redução ou revogação da providência de arresto incide agora sobre a caução prestada e não sobre o objecto da providência substituída, i.e., os bens indicados pela Recorrida.

XII. O incidente de prestação de caução não termina com a decisão do Tribunal de julgar validamente prestada a caução, pois a manutenção, redução ou revogação da mesma está sempre dependente da decisão a proferir nos termos do artigo 372.º, n. º 3 do Código de Processo Civil.

XIII. Na oposição à providência substituída a C... alegou factos e produziu prova que determinaram, no apenso A, por sentença de 08 de Julho de 2019, “a redução do arresto decretado para a quantia de €298.000,00 (duzentos e noventa e oito mil euros), com as legais consequências”.

XIV. Subsequentemente, tendo sido o arresto substituído pela caução, tem esta de ser reduzida para o valor de € 298.000,00 (duzentos e noventa e oito mil euros).

XV. A substituição do arresto pela caução não consubstancia, nos presentes autos, qualquer acordo quanto ao reconhecimento dos créditos da Requerente, aqui Recorrida, mas unicamente que o montante da caução era idóneo a prevenir a lesão invocada, tendo-se vindo a verificar, nos termos do artigo 372.º, n. º 3 do Código de Processo Civil, pela prova produzida pela C..., que tinha de ser o crédito indiciariamente reconhecido reduzido para a quantia de € 298.000,00 (duzentos e noventa e oito mil euros).

XVI. Pela conjugação dos artigos 393.º n.º1, 372.º, n.º1 alínea b) e n.º 3, 368.º n.º 3 com os artigos 391.º n.º 2 e 393.º n.º 2, todos do Código de Processo Civil, impunha-se que, transitada em julgado a sentença de 08 de Julho de 2019, proferida nos autos de providência cautelar que constitui apenso A, que determinou a redução do arresto decretado para a quantia de €298.000,00 (duzentos e noventa e oito mil euros), consequentemente, a requerimento da ora Recorrente e sem necessidade de contraditório, fosse ordenada a devolução do montante que exceda tal valor.

XVII. Prestada a caução, pode esta ser alterada, quer pelo seu reforço ou substituição, quer pela sua redução.

XVIII. Tendo em consideração a redução, no Apenso A, do valor do crédito indiciariamente reconhecido, após julgamento de oposição pendente à data da prestação de caução, para € 298.000,00 (duzentos e noventa e oito mil euros), tinha que ser o arresto, agora substituído por caução, reduzido nos exactos termos.

XIX. O contraditório, na sequência do decretamento do arresto, tem por finalidade a apresentação de outros factos que não foram anteriormente tidos em conta, susceptíveis de afastar os fundamentos da providência ou determinar a sua redução.

XX. A redução do arresto, na sequência da oposição, funda-se na consideração de que o crédito do requerente é menor ou o valor dos bens arrestados é maior do que aqueles que foram pressupostos aquando do decretamento da medida.

XXI. Proferida a sentença, fica imediatamente esgotado o poder jurisdicional do juiz quanto à matéria da causa, embora deva continuar a exercer no processo o seu poder jurisdicional para resolver as questões e incidentes que surjam posteriormente e não exerçam influência na sentença ou despacho que emitiu.

XXII. O despacho de redução da caução prestada e consequente devolução à Recorrente do valor que exceda a quantia de € 298.000,00 (duzentos e noventa e oito mil euros), na sequência da sentença decretada nos termos do artigo 372.º, n.º 3, não exerce influência no despacho que julgou validamente prestada a caução pela ora Recorrente.

XXIII. No despacho ora recorrido, ao não determinar a devolução à Recorrente do valor da caução prestada, que exceda a quantia de 298.000,00€ (duzentos e noventa e oito mil euros), o Tribunal a quo viola o estatuído nos artigos 372.º n.º 3 e 393.º n.º 2, ex vi 393.º n.º 1, 372.º, n.º 1 alínea b), 368.º n.º 3, todos do Código de Processo Civil.

XXIV. A decisão proferida, além de violar os preceitos invocados, viola toda a ratio que subjaz à existência de providências cautelares, nomeadamente ao arresto, que é a de acautelar um direito indiciariamente reconhecido.

XXV. A possibilidade de oposição ao procedimento cautelar tem de ter por consequência a possibilidade de, em resultado da procedência da oposição, o arresto ser levantado. Ou, em caso de a oposição ao arresto ser apenas parcialmente procedente, por o crédito indiciariamente reconhecido ser de valor inferior ao alegado pelo requerente, o arresto ser reduzido quanto ao seu objecto.

XXVI. A não se considerar assim, nenhum efeito produziria a procedência da oposição à providência, pois, fosse qual fosse o seu desfecho, a providência cautelarmente decretada sempre se manteria, nos seus exactos termos, até ao trânsito em julgado da decisão a proferir na acção principal de que o procedimento cautelar é dependente.

XXVII. Isto vale quer existam bens arrestados, quer o arresto tenha sido substituído por caução, sendo até mais evidente a potencial desconformidade entre a garantia e o crédito indiciariamente reconhecido nos casos de caução, pois não há que avaliar os bens.

XXVIII. Não há que falar em esgotamento do poder jurisdicional no momento em que, inicialmente, se fixa a caução. Este raciocínio, levado ao limite, levaria a que o Tribunal também não pudesse levantar ou reduzir o arresto, pois o mesmo também foi determinado por uma decisão judicial. Além disso, com a interpretação de esgotamento do poder jurisdicional contida no despacho em crise, no caso de a oposição ao arresto ter sido totalmente procedente (determinando-se que, indiciariamente, nada é devido ao requerente), chegar-se-ia à conclusão de que, sem o acordo do requerente, também não poderia a caução ser devolvida, o que seria inaceitável.

Termos em que deverá ser julgado procedente o presente recurso de apelação, sendo, em consequência, revogada a decisão proferida em primeira instância e ordenada devolução da caução prestada à Recorrente, no montante que exceda os €298.000,00 (duzentos e noventa e oito mil euros)».

c) Contra-alegou a Recorrida e concluiu deste modo:

...

34.ª Não se justifica, assim, nem tem cabimento, a pretensão da Recorrente vertida nas correspondentes Conclusões, quando pretende atribuir efeitos nos autos de prestação voluntária de caução (Apenso B), à decisão que, no apenso de arresto (Apenso A), veio a reduzir o valor inicialmente decretado de € 747.367,23, para € 298.000,00, de molde a reduzir para este montante uma garantia que a Recorrente se dispôs voluntariamente a dar, num processo que constitui um outro apenso, no âmbito do qual acordou livremente com a contraparte e comunicou ao Tribunal, terem fixado a garantia no montante de € 800.000,00, que nem sequer coincide com o valor inicial do arresto ordenado;

35.ª Nem pode aceitar-se a alegação, contraditória nos seus próprios termos, que pese embora reconheça que, Proferida a sentença, fica imediatamente esgotado o poder jurisdicional do juiz quanto à matéria da causa, pretende convencer que o mesmo juiz deva continuar a exercer no processo o seu poder jurisdicional para resolver as questões e incidentes que surjam posteriormente e não exerçam influência na sentença ou despacho que emitiu, para daí querer extrapolar, abusivamente, que o despacho de redução da caução prestada e consequente devolução à Recorrente do valor que exceda a quantia de € 298.000,00 (duzentos e noventa e oito mil euros), na sequência da sentença decretada nos termos do artigo 372.º, n.º 3, não exerce influência no despacho que julgou validamente prestada a caução pela ora Recorrente. É evidente que assim não é!;

36.ª Carece, igualmente, de fundamento, a alegação segundo a qual no despacho ora recorrido, ao não determinar a devolução à Recorrente do valor da caução prestada, que exceda a quantia de 298.000,00€ (duzentos e noventa e oito mil euros), o Tribunal a quo viola o estatuído nos artigos 372.º, n.º 3 e 393.º, n.º 2, ex vi 393.º, n.º 1, 372.º, n.º 1 alínea b), 368.º, n.º 3, todos do Código de Processo Civil; ou a alegação de que A decisão proferida, além de violar os preceitos invocados, viola toda a ratio que subjaz à existência de providências cautelares, nomeadamente ao arresto, que é a de acautelar um direito indiciariamente reconhecido;

37.ª Com efeito, os citados nº 1, alínea a) e nº 3, ambos do Artigo 372º do CPC, não se aplicam à situação em causa no presente recurso, apenas estatuem que, no caso de o Requerido no arresto deduzir Oposição, o juiz decide da manutenção, redução ou revogação da providência anteriormente decretada. Nada estipulam ou referem - nem tal faria sentido - sobre garantia oferecida em substituição do arresto, num determinado montante, por ato voluntário de uma das partes em benefício da outra, por acordo firmado por escrito entre ambas e levado ao conhecimento do Tribunal, que julgou validamente prestada tal garantia, pelo valor convencionado;

38.ª Quanto aos invocados Artigos 393.º, n.º 2, ex vi 393.º, n.º 1, do CPC, não são também aplicáveis, no caso concreto: versam os termos subsequentes ao requerimento inicial de arresto e não o caso de garantia dada em substituição do arresto, num determinado montante, por ato voluntário de uma das partes em benefício da outra, na sequência de acordo firmado por escrito entre ambas e levado ao conhecimento do Tribunal, que julgou validamente prestada tal garantia, pelo valor convencionado entre as partes;

39.ª No que concerne ao n.º 3 do Artigo 368.º do CPC, cumpre enfatizar que está em linha com a posição assumida na decisão impugnada – que, aliás, menciona o preceito em questão - ao prever que a providência decretada pode ser substituída por caução adequada, a pedido do Requerido, desde que, ouvido o Requerente, a caução oferecida se mostre suficiente para prevenir a lesão ou repará-la integralmente. Como já se expendeu à saciedade: no caso que nos ocupa, as partes entenderam adequada a caução oferecida pela aqui Recorrente, por depósito em numerário de € 800.000,00, por esta quantia se revelar suficiente para garantir o montante peticionado nos autos principais e levaram o acordo firmado por escrito ao conhecimento do Tribunal, que julgou validamente prestada tal garantia, pelo valor convencionado entre as partes, tendo essa decisão transitado em julgado;

40.ª Nem se diga que a tese propugnada na decisão recorrida retiraria efeito útil à procedência da Oposição ao arresto, pois tal raciocínio distorce, intencionalmente, o que se discute no recurso: o que sucede, in casu, é que a redução, por via judicial, do montante do arresto, não pode revogar ou alterar o acordo celebrado entre as partes, maxime por vontade da parte que ofereceu a garantia, posteriormente levado ao conhecimento do Tribunal, mediante o qual foi livremente fixado o valor da caução - não do arresto - por ambas, considerada adequada;

41.ª Tanto mais porque, tendo tido oportunidade para fazê-lo quando apresentou o requerimento comum com a contraparte, a 23-02-2018, que espelha o acordo alcançado sobre o valor da caução, a Recorrente nada referiu nem fez constar sobre, eventualmente, condicionar o montante dado espontaneamente de garantia, na importância de € 800.000,00, ao montante arrestado – que, aliás, era inferior ao montante caucionado, nem sequer coincidindo com esta quantia - assim como nada referiu ou fez constar sobre poder vir a reduzir a caução caso viesse a ser reduzido o valor do arresto ou vir a solicitar, como agora pretende, o reembolso do remanescente;

42.ª A autonomia privada traduz-se, na sua essência, no princípio da liberdade contratual, previsto na lei civil, abrangendo quer a possibilidade de celebrar ou não celebrar determinado contrato (liberdade de celebração), quer a possibilidade de fixação do conteúdo do contrato (liberdade de estipulação). É consabido que O princípio da autonomia privada enforma todo o Direito Privado, com especial incidência no Direito das Obrigações. A generalidade das regras jurídicas estabelecidas tende assim a assumir natureza supletiva, apenas se aplicando quando não forem afastadas pela vontade das partes;

43.ª Admitir, nesta sede, os efeitos pretendidos pela Recorrente, seria, além do mais, contrário aos princípios da liberdade contratual, da boa fé e do pacta sunt servanda, configurando um verdadeiro abuso de direito;

44.ª E atento o estipulado no nº 3 do Artigo 623º do CC apenas compete ao Tribunal apreciar a idoneidade da caução quando não haja acordo dos interessados;

45.ª Posto termo ao incidente de prestação de caução, através de sentença transitada em julgado, a decisão passou a ter força vinculativa no processo e fora dele, não podendo contrariar-se a autoridade de caso julgado. A certeza do direito e a segurança das relações jurídicas impõem o cumprimento deste princípio;

46.ª Em suma: o despacho recorrido não violou as normas invocadas pela Recorrente, nem preteriu quaisquer outros preceitos ou princípios jurídicos, pelo não merece reparo nem censura.

47.ª Pelo exposto, deve ser negado provimento ao recurso interposto, confirmando-se integralmente a decisão sub judice, com as legais consequências.

4. INSTRUÇÃO DO RECURSO

68. (…)

5. PEDIDO:

Termos em que deve ser negado provimento ao recurso interposto pela Recorrente, com a consequente manutenção da decisão judicial recorrida e todas as legais consequências.

II. Objeto do recurso.

O âmbito objetivo dos recursos é balizado pelas conclusões apresentadas pelos recorrentes (artigos 639.º, n.º 1, e 635.º, n.º 4, ambos do Código de Processo Civil), sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso.

De acordo com a sequência lógica das matérias, cumpre começar pelas questões processuais, se as houver, prosseguindo depois com as questões relativas à matéria de facto e eventual repercussão destas na análise de exceções processuais e, por fim, com as atinentes ao mérito da causa.

A questão que este recurso coloca é a seguinte:

Tendo sido fixada a caução por depósito e por acordo entre as partes, logo a seguir à decisão que decretou a providência cautelar, poderá o montante da caução ser reduzido, mais tarde, se for proferida nova decisão, gerada pelo exercício do contraditório subsequente, onde é fixado o valor do crédito acautelado em montante inferior ao inicialmente estabelecido na primeira decisão?

III. Fundamentação

1. Matéria de facto

Os factos a considerar são de natureza processual e são os que constam do relatório e alegações.

2. Apreciação da questão objeto do recurso

A resposta à questão colocada pelo recurso é positiva, pelas seguintes razões:

a) O Código Civil prevê a prestação de caução nos artigos 623.º a 626.º e o Código de Processo Civil regula a sua prestação no processo especial dos artigos 906.º a 915.º.

Nas palavras de Almeida Costa, «Em regra, a prestação de caução destina-se a prevenir o cumprimento de obrigações que possam vir a ser assumidas por quem exerça uma certa função ou esteja adstrito à entrega de bens ou valores alheios. Mas a prestação de caução pode ainda ter cabimento noutras situações: assim, por exemplo, como requisito do exercício de um direito, ou para afastar um direito da outra parte» - Direito das Obrigações, 4.ª Edição. Coimbra Editora,1984, pág. 612.

No caso dos autos, a caução foi prestada por iniciativa da Requerida e teve como fundamento legal o disposto no n.º 3 do artigo 368.º do Código de Processo Civil, onde se determina que «A providência decretada pode ser substituída por caução adequada, a pedido do requerido, sempre que a caução oferecida, ouvido o requerente, se mostre suficiente para prevenir a lesão ou repará-la integralmente».

O Código Civil prevê no artigo 626.º a insuficiência ou impropriedade posterior da caução prestada, determinando nestes casos, salvo se a causa da insuficiência ou impropriedade for imputável ao credor, que a caução possa ser, a requerimento do credor, «…reforçada ou que seja prestada outra forma de caução».

Não se prevê no Código Civil, nem na lei processual, a redução da caução prestada com fundamento em causa superveniente.

Porém, esta omissão de previsão não significa proibição, porquanto uma proibição carece de ser expressa.

Com efeito, se existirem fundamentos materiais que justifiquem a redução da caução, o devedor tem direito a ver a caução reduzida e a omissão não pode ser obstáculo à redução, porquanto, como dispõe o n.º 2 do artigo 2.º do Código de Processo Civil, «A todo o direito, exceto quando a lei determine o contrário, corresponde a ação adequada a fazê-lo reconhecer em juízo, a prevenir ou reparar a violação dele…».

Este princípio de acesso à justiça vale para todos os direitos, desde os mais complexos e expressivos monetariamente, só por si geradores de um processo, como vale para os mais simples que se esgotam numa pretensão acidental.

Ora, um fundamento material para a admissibilidade da redução do valor da caução resulta do princípio da igualdade, ou seja, se em virtude da alteração das circunstâncias factuais ou outras se justifica o agravamento da caução a favor do credor, ou a sua substituição, então uma alteração das circunstâncias de sinal oposto também justifica a redução do valor da caução a favor do devedor.

Sendo admitida a redução da caução, nem por isso se torna necessário criar uma tramitação processual «ad hoc», pois pode aplicar-se por analogia o disposto no n.º 3 do artigo 912.º do Código de Processo Civil, onde se prevê a redução da garantia, quando prestada através da apreensão de bens móveis ou direitos não hipotecáveis, aos seus justos limites, ou seja, o juiz depois de ouvir o credor e realizar as diligências indispensáveis decide.

Em alternativa, que se afigura excessiva dada a simplicidade da pretensão, o tribunal sempre poderá seguir as normas gerais dos incidentes da instância, constantes dos artigos 292.º a 295.º do Código de Processo Civil, dispondo o artigo 292.º que «Em quaisquer incidentas inseridos na tramitação de uma causa observa-se, na falta de regulamentação especial, o que vai disposto neste capítulo».

b) Além do princípio da igualdade, verifica-se que em diversos institutos substantivos e fases processuais, a lei procura estabelecer uma correspondência entre a situação factual real, isto é, histórica, e o direito aplicável, caso a situação factual tenha sofrido alteração.

Assim, no âmbito dos contratos o artigo 437.º do Código Civil prevê, no seu n.º 1, que «Se as circunstâncias em que as partes fundaram a decisão de contratar tiverem sofrido uma alteração anormal, tem a parte lesada direito à resolução do contrato, ou à modificação dele segundo juízos de equidade, desde que a exigência das obrigações por ela assumidas afete gravemente os princípios da boa fé e não esteja coberta pelos riscos próprios do contrato».

No campo das garantias, a lei prevê a redução da hipoteca legal 720.º Código Civil.

Mesmo no campo da interpretação da vontade contratual, a lei manda atender à vontade real, histórica, do declarante, quando esta é conhecida do declaratário – artigo 236.º, n.º 2 do Código Civil.

No campo processual procura-se que a sentença que decida o caso tome em consideração a situação histórica atual, existente na fase processual imediatamente anterior à decisão, ou seja, no momento em que é encerrada a discussão – artigo 611.º (atendibilidade dos factos jurídicos supervenientes) do Código de Processo Civil.

Aplicando este princípio ao caso dos autos, o montante da caução deve corresponder ao valor do direito do credor definido na data mais recente.

Assim, se o montante do crédito sofrer alguma redução a caução deve refletir essa alteração.

c) Por outro lado, todas as decisões proferidas no âmbito de uma providência cautelar devem, em regra, ser conformadas pelos princípios que regem estas providências no âmbito das quais a presente caução se insere.

Por isso, se a caução é prestada no âmbito de uma providência cautelar, logicamente deve estar ao serviço desta e ser influenciada pelos mesmos vetores.

Ora, um dos princípios das providências cautelares reside na provisoriedade da decisão.

A decisão inicial pode ser alterada após o exercício do contraditório subsequente ao decretamento da providência, como vem previsto no artigo 372.º, n.º 3 do Código de Processo Civil: «No caso a que se refere a alínea b) do n.º 1, o juiz decide da manutenção, redução ou revogação da providência anteriormente decretada, cabendo recurso desta decisão, e, se for o caso, da manutenção ou revogação da inversão do contencioso; qualquer das decisões constitui complemento e parte integrante da inicialmente proferida».

E pode ser alterada também em sede de recurso da providência.

Como o montante da caução deve corresponder ao valor do direito do credor, então se este último sofrer alguma redução em virtude do exercício do contraditório do devedor ou do recurso interposto, o valor da caução deve refletir essa alteração.

Daí que não se possa aplicar aqui a regra constante do n.º 1, do artigo 613.º do Código de Processo Civil, segundo a qual «Proferida a sentença, fica imediatamente esgotado o poder jurisdicional do juiz quanto à matéria da causa».

Como referiu o Prof. Alberto dos Reis, esta regra resulta de duas razões, uma doutrinal, segundo a qual cumprido o dever de proferir a decisão por parte do juiz, estava cumprido tal dever em definitivo; outra de ordem pragmática, no sentido do juiz não poder dar o «dito por não dito», criando a desordem e incerteza no processo (Código de Processo Civil Anotado, Vol. V, Coimbra Editora, pág. 127).

Ora, no caso isto não ocorre, pois o pedido de redução é formulado com fundamento numa situação factual nova, superveniente.

d) Quanto à alegada circunstância da caução ter sido objeto de transação.

Como a Recorrente refere, a caução não foi prestada na sequência de acordo das partes, nem existiu qualquer transação homologada por sentença, nos termos do artigo 290.º do Código de Processo Civil.

Com efeito, verifica-se que a caução foi prestada espontaneamente pela Requerida ao abrigo do disposto no n.º 3 do artigo 368.º do Código de Processo Civil no montante de €747.367,23 (setecentos e quarenta e sete mil, trezentos e sessenta e sete euros e vinte e três cêntimos).

Depois, por acordo entre as partes, o montante foi fixado em (€800.000,00 (oitocentos mil euros) e o tribunal face a este acordo fixou a caução neste último montante.

Este acordo não é uma transação em sentido próprio, porquanto não incide sobre os direitos esgrimidos na ação.

Com efeito, a transação é definida no art.º 1248.º, n.º 1, do Código Civil como o contrato «... pelo qual as partes previnem ou terminam um litígio mediante recíprocas concessões».

Este acordo não foi mais que a superação expedita de uma fase do processo que seria transposta em qualquer caso por decisão do tribunal, caso não existisse acordo. Quanto ao valor da caução.

Por conseguinte, a vontade das partes e a autonomia da vontade que a Recorrida enfatiza não têm neste caso especial relevância e não constituem obstáculo à redução do valor da caução.

Seja como for, como acima se disse, não existiu nos autos uma transação, mas uma simples concordância das partes quanto ao reforço da caução já prestada.

e) Também não ocorre qualquer obstáculo emergente de um eventual caso julgado.

O conceito de caso julgado não tem aplicação às providências cautelares porque, como referiu Lebre de Freitas, «…estas constituem antecipação provisória de medidas da esfera da acção executiva, em que não se produz caso julgado (é o caso do arresto), ou da definição do direito substantivo pela sentença declarativa (é o caso das intimações). O caso julgado assenta na definição do direito e é da sua essência a preclusão de toda a discussão sobre a sua existência, o que pressupõe o elemento da definitividade. Isso explica que o CPC proíba a repetição da providência, independentemente do conceito de caso julgado» - «Repetição de Providência e Caso Julgado…». Revista da Ordem dos Advogados, Ano 57, I, pág. 481.

Muito embora a prestação da caução não se confunda com a providência, também é certo que a caução está numa relação de proporcionalidade em relação a esta, pois substitui-a, como se prevê no já mencionado n.º 3 do artigo 368.º do Código de Processo Civil.

Aliás, como a decisão inicial, tomada sem audição do requerido, pode e deve ser substituída, após o contraditório subsequente deste, por nova e diversa decisão, que passa a incorporar a inicialmente tomada, tudo se passando como se de uma única decisão se tratasse – n.º 3 do artigo 372.º do Código de Processo Civil –, então resulta claro que não se pode falar de caso julgado, na medida em que temos uma só decisão e não duas e a redução da caução constitui apenas uma adequação desta garantia já prestada à decisão única só completamente formada (embora provisória) em momento posterior.

f) Como resulta do acabado de referir, se não fosse possível reduzir o valor da caução num caso como o dos autos, a procedência dos argumentos trazidos aos autos pelo requerido, no exercício do contraditório, não teria qualquer relevância, o que se afiguraria incompreensível.

Com efeito, apesar da redução do montante do crédito inicialmente reconhecido a garantia continuava a refletir, contraditoriamente, o crédito inicialmente reconhecido e já insubsistente.

2 – Considerando o exposto cumpre concluir que assiste à Requerida, ora recorrente, o direito a obter a redução da caução, adequando-a ao montante do crédito reconhecido após o contraditório por parte da Requerida.

3 – A Recorrente pede que se fixe neste tribunal da Relação o montante da caução em 298.000,00 euros e que se ordene a devolução da caução prestada no montante que exceda os 298.000,00 euros.

Não procede para já este pedido na medida em que poderão existir razões que impeçam a fixação da caução neste exato valor de 298.000,00 euros, como será, entre outras razões, o eventual vencimento de juros ou o tempo previsível da duração da demanda, pelo que antes de decidir em que medida deve ser reduzida a caução, cumpre ponderar estas circunstâncias e neste aspeto só o tribunal de 1.ª instância pode realizar esta ponderação.

Procede o recurso no sentido da revogação da decisão recorrida, com vista ao prosseguimento do pedido de redução da caução.

IV. Decisão

Considerando o exposto, julga-se o recurso procedente e revoga-se a decisão recorrida e determina-se a continuação do incidente com vista a decidir sobre o pedido de redução da caução.

Custas pela Recorrida.


Coimbra, 7 de setembro de 2021