Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
630/09.5TACNT.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: MARIA PILAR OLIVEIRA
Descritores: ABERTURA DA INSTRUÇÃO
REQUERIMENTO
Data do Acordão: 05/23/2012
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DE CANTANHEDE - 1º JUÍZO
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ART.º 287º, DO C. PROC. PENAL
Sumário: O dolo, como elemento subjectivo - enquanto vontade de realizar um tipo legal, conhecendo o agente todas as suas circunstâncias fácticas objectivas - constitutivo do tipo legal, será, então, em definitivo, um dos elementos que o artigo 283º, n.º 3, do C. Proc. Penal, impõe que seja incluído na acusação e, por consequência, também no requerimento para abertura da instrução do assistente, cfr. art.º 287º, n.º 2, do mesmo Código.

E, se fosse ultrapassada a fase processual em que tal requerimento podia ter sido rejeitado, por falta de alegação de factos do tipo subjectivo, na fase de instrução, restaria ponderar a possibilidade de accionar os mecanismos do artigo 303º, do mesmo diploma.

Mas um obstáculo intransponível logo se ergueria a possível comunicação da alteração dos factos, sendo certo que o regime de alteração, seja substancial ou não, sempre pressupõe que os factos que inicialmente constam do mesmo constituam crime.

Não constituindo esses factos crime por falta de descrição de algum dos seus elementos constitutivos, jamais a mesma pode ser suprida, tendo-se por não admissível a ideia de um “dolus in re ipsa”, ou seja, a presunção do dolo resultante da simples materialidade de uma infracção.

Decisão Texto Integral: I. Relatório

No processo em fase de instrução 630/09.5TACNT do 1º Juízo do Tribunal Judicial de Cantanhede, em que A... apresentou queixa porque teria sido alvo de ameaças e tentativa de internamento compulsivo, tendo sido constituídos arguidos B..., C..., D..., E... e F..., findo o inquérito, o Ministério Público proferiu despacho ordenando o arquivamento dos autos nos termos do artigo 277º, nº 2 do Código de Processo Penal.

A... constituiu-se assistente e requereu a realização de instrução, pretendendo a pronúncia dos arguidos F..., C... e D... a quem imputa a prática de um crime de sequestro na forma tentada p. e p. pelo artigo 158º, nº 2, alínea c) do Código Penal e de um crime de difamação p. e p. pelo artigo 180º do Código Penal.

Por despacho proferido em 8 de Julho de 2011 a Mmª Juiz de Instrução rejeitou o requerimento de instrução por inadmissibilidade legal.  

Inconformada com o teor de tal despacho, dele recorreu a assistente, extraindo da respectiva motivação do recurso as seguintes conclusões:

1. Não é exacto que, com vista a obter a pronúncia do arguido pela prática do crime de sequestro previsto e punido pelo artigo 158°, nº 2 do Código Penal em, concurso efectivo com um crime de difamação previsto e punido pelo artigo 180° do mesmo diploma, a assistente se tenha limitado a alegar a matéria dos números 36° a 63° do seu requerimento de abertura de instrução.

2. Os números 19 a 29, 33 a 38, 48 a 51, 63, 64 e 65 do requerimento de Abertura de Instrução, atrás transcritos, contêm todos os factos que definem o tipo legal do crime de sequestro e o tipo legal do crime de difamação.

3. Designadamente, estão alegados todos os elementos subjectivos dos referidos crimes.

4. Ao rejeitar o requerimento de abertura de instrução deduzida pela assistente, o Senhor Juiz Recorrido violou as normas dos artigos 287° e 308° do Código de Processo Penal e 158°, nº 2, alínea c) e 180°, nº 1, ambos do Código Penal.

5. A correcta interpretação das mencionadas normas impõe a admissão do requerimento de abertura de instrução, ao contrário do que decide o douto despacho recorrido.

Termos em que o presente recurso deverá ser julgado procedente, revogando-se o douto despacho recorrido e proferindo-se acórdão que julgue admissível o requerimento de abertura de instrução deduzido pela assistente, aqui recorrente, com o que se fará JUSTIÇA.

Notificado, o Ministério Público respondeu ao recurso, concluindo o seguinte:


1.ª

Vem a assistente recorrer do douto despacho de fls. 496 e seguintes, que decidiu rejeitar, por legalmente inadmissível, o requerimento de abertura de instrução por ela apresentado.

2.ª

Nos termos do artigo 188.°, n.º 1, do Código Penal, o procedimento criminal pelo crime de difamação, previsto e punido pelo artigo 180.°, n.º 1, do Código Penal, depende de acusação particular, o que significa que, como decorre dos artigos 48.° e 50.°, n.º 1, do Código de Processo Penal, para que o procedimento prossiga é necessário que o ofendido, para além de se queixar, se constitua assistente e, findo o inquérito, deduza acusação particular.

3.ª

Assim, e face à sua natureza de crime particular, a sujeição do arguido a julgamento pelo crime de difamação depende única e exclusivamente (salvo se o arguido requerer abertura de instrução, caso em que, naturalmente, dependerá também de despacho de pronúncia) da iniciativa processual do assistente, traduzida na dedução de acusação particular.

4.a

A falta de notificação do ofendido para se constituir como assistente (no termos dos artigos 246.°, n.º 4, e 68.°, n.º 2, do Código de Processo Penal) ou, findo o inquérito, para deduzir acusação particular (nos termos do artigo 285.°, n.º 1, do Código de Processo Penal), configura uma nulidade dependente de arguição pelo interessado, nos termos do artigo 120.°, n.º 1, e n.º 2, al. d), do Código do Processo Penal, que, sendo tempestivamente arguida e judicialmente reconhecida, implica invalidade do acto e do processado posterior que com ela contender, bem como a repetição do acto nulo (ou seja, a realização das notificações em falta) e do processado subsequente.

5.a

Pelo que, a preterição de tais formalidades não obsta à constituição como assistente, nem à dedução de acusação particular - implicando, sim, que as nulidades sejam arguidas pelo interessado, de modo a ser corrigido o processado, não se podendo suprir a falta desta através da abertura de instrução com vista à pronúncia dos arguidos por crime de natureza particular.

6.a

Assim, estando a sujeição dos arguidos a julgamento pelo crime de difamação dependente apenas do impulso processual da assistente, concretamente da dedução de acusação particular, não podia o requerimento de abertura de instrução ser admitido.

7.ª

Nos termos dos artigos 287.°, n.º 2, in fine, do Código de Processo Penal, e 283.°, al. b), do mesmo diploma, o requerimento de abertura de instrução deverá conter - sob pena de nulidade, a qual implica a rejeição do respectivo requerimento, nos termos do artigo 287.°, n.º 3, do Código de Processo Penal - "a narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou medida de segurança (. . .)".

8.ª

Compulsado o requerimento de abertura de instrução apresentado pela assistente, concretamente a factualidade nela descrita, constata-se que a mesma não imputa aos arguidos factos consubstanciadores do elemento subjectivo do crime de sequestro, pois que dos factos descritos não resulta que os arguidos representaram que, com a conduta descrita, privavam a assistente da sua liberdade, muito menos que quiseram esse resultado (antes aludindo-se a outra intenção, como seja a de que a assistente não se defendesse da acção que contra ela foi proposta), tiveram esse resultado como uma consequência necessária da sua conduta, ou previram e conformaram-se com esse resultado.

9.a

Ademais, na dita factualidade também não são descritos factos no sentido que sabiam e queriam determinar outrem à prática do facto criminoso, não obstante a assistente pretender - tanto quanto se retira das suas alegações de recurso - imputar o crime de sequestro aos arguidos a título de autoria mediata.

10.a

Sendo assim, e porque a matéria de facto constante do requerimento de abertura de instrução é insuficiente no que toca ao preenchimento do crime de sequestro por que a assistente pretende ver os arguidos pronunciados, cremos que andou bem o Tribunal a quo ao rejeitar o requerimento de abertura de instrução.

Termos em que deverá ser negado provimento ao recurso, mantendo-se a douta decisão recorrida.

            Notificados os arguidos, apenas a arguida C... respondeu ao recurso pugnando pela manutenção do despacho recorrido.

O Mmº Juiz a quo admitiu o recurso interposto não se pronunciando nos termos do artigo 414º, nº 4 do Código de Processo Penal.

Nesta Relação a Exmª Procuradora-Geral Adjunta emitiu o seguinte parecer:

No parecer que nos cumpre emitir deixamos exarado que sufragamos a resposta da Magistrada do Ministério Público na 1ª Instância - cfr. fls. 533/541 ­no sentido de não ser merecedora de reparo a decisão recorrida.

Assim, em abono da tese expendida, limitamo-nos a citar os ensinamentos jurisprudenciais, sobre a matéria, colhidos nos Acórdãos do STJ, nomeadamente no Acórdão de 07.05.2008, proc. 07P4551, disponível in www.dgsi.pt.cujo sumário se transcreve:

I - No caso de ter sido proferido despacho de arquivamento, o requerimento de abertura de instrução determinará o objecto desta, definindo o âmbito e os limites da investigação a cargo do juiz de instrução, bem como os da decisão de pronúncia.

11- Atento o paralelismo que se estabelece entre a acusação e o requerimento para abertura de instrução deduzido pelo assistente na sequência de um despacho de arquivamento, sendo que tal requerimento contém substancialmente uma acusação, deverá o mesmo conter a narração dos factos e indicar as provas a produzir ou a requerer, tal como para a acusação o impõe o art. 283.°, n.º 3, als. b) e d) do CPP.

III - Na verdade, consubstanciando o requerimento de abertura de instrução uma manifestação de discordância em relação a um despacho de arquivamento, e sendo o essencial da fase de instrução o controlo da acusação - quer tenha sido deduzida pelo MP quer pelo assistente r: a submissão à comprovação judicial só faz sentido com a apresentação de uma narrativa de factos cuja prática é imputada ao arguido, pois a confirmação, o reconhecer-se como bom o requerimento (ou a acusação), terá de passar necessariamente pela aferição de factos concretos da vida real.

 IV - A exigência de rigor na delimitação do objecto do processo - note-se que a exigência feita ao assistente na elaboração do requerimento para abertura de instrução é a mesma que é feita ao MP no momento em que acusa -, sendo uma concretização das garantias de defesa, não consubstancia uma limitação injustificada ou infundada do direito de acesso aos tribunais, pois tal direito não é incompatível com a consagração de ónus ou de deveres processuais que visam uma adequada e harmoniosa tramitação do processo.

Ora, verificando-se que no caso em apreço, que não foi deduzida acusação pelo MP e que, assim, se torna necessário que o requerimento de abertura de instrução traduza, com rigor, toda a materialidade fáctica e jurídica concretamente imputada pela assistente aos arguidos, na medida em que tal requerimento consubstancia uma verdadeira acusação e que apenas sobre ela se poderão realizar as diligências instrutórias requeridas para a sua comprovação, temos como certo que o mesmo requerimento se mostra deveras insuficiente quanto às apontadas exigências legais.

Na nossa perspectiva mostra-se correcta a decisão de rejeitar a instrução. Com efeito, a omissão dos elementos de facto, a inobservância dos requisitos de uma acusação, em que no fundo e estruturalmente se deve converter o requerimento, conduzindo à não formulação e delimitação do thema probandum, fazem com que a suposta acusação, pura e simplesmente, falte, não exista, ficando a instrução sem objecto.

Por outro lado, é entendimento deste STJ, conforme acórdão de fixação de jurisprudência n.º 7/2005, de 12-05-2005 (Proc. n.º 430/2004 - 3.°), publicado no DR n.º 212, Série I·A, de 04-11-2005, que não há lugar a convite ao assistente para aperfeiçoar o requerimento de abertura de instrução, apresentado nos termos do art. 287.°, n.º 2, do CPP, quando este for omisso relativamente à narração sintética dos factos que fundamentam a aplicação de uma pena ao arguido.

Donde, é nosso parecer que não poderia o despacho da MMa JIC, ser outro que o de rejeição da requerida abertura de instrução.

Entende-se em conformidade que o recurso deve ser julgado improcedente.

Cumprido o disposto no artigo 417º, nº 2 do Código de Processo Penal, não foi exercido o direito de resposta.

Efectuado o exame preliminar e corridos os vistos legais foi realizada conferência, cumprindo apreciar e decidir.


***

II. Fundamentos da Decisão Recorrida

            A decisão objecto do presente recurso é do seguinte teor:

Da rejeição do RAI por inadmissibilidade legal:

A assistente A..., melhor ido nos autos, requereu a abertura de instrução, ao abrigo do disposto no art. 287.°, n.º 1 al. b) do CPP, visando, obter a pronúncia dos arguidos pela prática de um crime de sequestro, previsto e punido pelo artigo 158.°, n.º 2, alínea c) do Código Penal, em concurso efectivo com o crime de difamação, previsto e punido pelo artigo 180.° do Código Penal.

No seu RAI, porém e com vista a este desiderato, limitou-se a alegar a seguinte factualidade com pertinência para integração dos aludidos ilícitos:

"36.°

... argumentando contra a verdade dos factos seus conhecidos, convenceram a médica Dra. B... de que a Requerente se encontrava descompensada, agressiva, causando distúrbios, danificando objectos e recusando tratamento ...

63.°

Os arguidos agiram voluntária e conscientemente, em comunhão de esforços e de intenções, bem sabendo que a queixosa não carecia de internamento compulsivo, nem de tratamento psiquiátrico."

Ora, como é consabido e decorre, aliás, do art. 287.°, n.º 2 do CPP, o requerimento para abertura de instrução, apresentado pelo assistente em caso de arquivamento pelo Ministério Público, deve equivaler, em tudo, a uma acusação, condicionando e delimitando a actividade de investigação do juiz de instrução e, consequentemente, o objecto da decisão instrutória 1, nos exactos termos em que a acusação formal, seja pública, seja particular, o faz.

E assim é de tal modo que na instrução apenas poderão ser considerados os factos descritos no requerimento para a sua abertura (ressalvada a hipótese a que se refere o art. 303° do Cód. Proc. Penal de alteração não substancial dos factos descritos nesse requerimento), sob pena de nulidade da decisão instrutória, como resulta, claramente do disposto no art. 309°, nº 1 do Cód. Proc. Penal.

Daí que, não constando do mesmo uma descrição clara e ordenada de todos os factos necessários a integração de todos os pressupostos legais de algum crime se torne inviável a realização desta fase processual por falta de delimitação do seu objecto, sendo manifesto que ninguém poderá vir a ser pronunciado com base apenas em alegações genéricas, inconclusivas ou omissas de factos susceptíveis de fazer integrar, na totalidade, os elementos objectivos e subjectivos do crime pelo qual se pretende essa pronuncia.

E devendo o despacho de pronúncia quedar-se pela apreciação do conteúdo do requerimento de abertura de instrução, torna-se óbvio que as omissões deste podem comprometer irremediavelmente a pronúncia dos arguidos, não fazendo qualquer "sentido proceder-se a uma instrução visando levar o arguido a julgamento sabendo-se antecipadamente que a decisão instrutória não poderá ser proferida nesse sentido:".

Esta estrita vinculação temática do Tribunal aos factos alegados no requerimento para abertura de instrução, enquanto limitação da actividade instrutória, relaciona-se, assim, com a natureza judicial desta fase processual, sendo uma consequência do princípio da estrutura acusatória do processo penal e constituindo uma garantia de defesa consagrada no art. 32°, nº 5 da Constituição da República Portuguesa.

Acresce a isto, por outro lado, que as eventuais deficiências do requerimento não podem ser supridas por iniciativa do Tribunal, designadamente mediante decisão que convidasse o assistente para o efeito.

A admitir-se entendimento diverso, "( ... ) estar-se-ia a transferir para o juiz o exercício da acção penal, contra todos os princípios constitucionais e legais em vigor e a transformar a natureza da instrução que passaria de contraditória a inquisitória'".

Em boa verdade, uma decisão neste sentido - consubstanciando o exercício, pelo juiz de instrução, de uma faculdade inquisitória e de exercício de acção penal que, no actual quadro legal, não lhe assiste - contrariaria o princípio da estrutura acusatória do processo penal consagrada do referido art. 32°, nº 5 da Constituição da República Portuguesa.

Quanto a este ponto em particular, é pertinente chamar à colação o que expenderam os Profs. Gomes Canotilho e Vital Moreira, na Constituição da República Anotada, 3a ed., pág. 206: a estrutura acusatória do processo penal implica, além do mais, a proibição de acumulações orgânicas a montante do processo, ou seja, que o juiz de instrução seja também o órgão de acusação. De onde resulta que o juiz de instrução não pode intrometer-se na delimitação do objecto do processo - fixado pela acusação ou pelo RAI do assistente - no sentido de o alterar ou completar, directamente ou por convite ao aperfeiçoamento feito ao assistente requerente da abertura da instrução.

Anote-se, ainda neste âmbito, que a inadmissibilidade de renovação do requerimento para abertura de instrução não implica uma limitação desproporcionada do direito da assistente a deduzir acusação através desse requerimento - como referido no Acórdão do Tribunal Constitucional de 30.01.20014 -, "( ... ) na medida em que tal facto lhe é exclusivamente imputável, para além de constituir - na sua possível concretização - uma considerável afectação das garantias de defesa do arguido".

Ainda segundo este aresto: "( ... ) do ponto de vista da relevância constitucional merece maior tutela a garantia de efectivação do direito de defesa (na medida em que protege o indivíduo contra possíveis abusos do poder de punir), do que garantias decorrentes da posição processual do assistente em casos de não pronúncia do arguido, isto é, em que o Ministério Público não descobriu indícios suficientes para fundar uma acusação e, por isso, decidiu arquivar o inquérito",

Esclarecendo, definitivamente as divergências jurisprudenciais que se vinham verificando a este respeito", veio o Supremo Tribunal de Justiça fixar jurisprudência por Acórdão de 12.05.2005 (Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça n.º 7/2005, publicado no DR- I S-A de 04.11.2005) nos termos seguintes:

"Não há lugar a convite ao assistente para aperfeiçoar o requerimento para abertura de instrução, apresentado nos termos do artigo 287°, n. °2, do Cód. Proc. Penal, quando for omisso relativamente à narração sintética dos factos que fundamentam a aplicação de uma pena ao arguido".

Já no que concerne as consequências da inobservância do preceituado no art. 287°, nO 2 do Cód. Proc. Penal, importa desde logo atender que este mesmo normativo remete para a aplicação do disposto no art. 283.°, n.º 3 al. b) e c) do mesmo diploma legal.

Pelo que, além de inviabilizar, objectivamente, a possibilidade de realização da instrução (art. 309° do Cód. Proc. Penal), a deficiência de conteúdo (e não de mera forma) do requerimento - por não conter a narração de factos que fundamentem a aplicação a um concreto arguido de uma pena ou medida de segurança, como o impõe o citado art. 283°, nº 3 als. a) e b) do Cód. Prec. Penal -, implica a sua nulidade, tornando assim legalmente inadmissível a abertura da instrução e obrigando, consequentemente, à rejeição daquele nos termos do art. 287.°, n.º 3 do CPP, onde se dispõe que "o requerimento (para abertura de instrução) só pode ser rejeitado por extemporâneo, por incompetência do juiz ou por inadmissibilidade legal da instrução".

Ora, dito isto e tendo em mente os elementos objectivos e subjectivos que integram os crimes pelos quais a assistente pretende ver os arguidos pronunciados no caso dos autos, logo se vislumbra, segundo cremos, que o RAI deduzido terá, necessariamente, que ser rejeitado in totum.

Tudo porque, como bem se vê, não obedece ao que se estatui no art. 287º, nº 2 do CPP, sendo manifesto que, contrariamente a exigido art. 283°, nº 3, al. b) e c) do mesmo diploma legal, não contém a descrição clara, ordenada e suficiente - à semelhança do que é exigido para a acusação, seja pública, seja particular - dos factos necessários a dar como para dar como preenchidos todos os elementos típicos objectivos e subjectivos do ilícito penal em causa e, como tal, a dar como integrada a sua prática, pelo arguido.

Desde logo não são descritos quaisquer factos susceptíveis de integrar, quer o elemento objectivo, quer subjectivo do crime de sequestro.

No que respeita ao crime de difamação, não foram aduzidos quaisquer elementos que permitam dar como integrado o respectivo tipo subjectivo - ou seja o dolo dos arguidos - pois em nenhum trecho desse requerimento se refere que estes tenham agido com consciência e intenção da praticar o respectivo tipo objectivo, nada se referindo no que toca à intenção de ofensa da honra e consideração da visada, apenas se dizendo que "os arguidos agiram voluntária e conscientemente, em comunhão de esforços e de intenções, bem sabendo que a queixosa não carecia de internamento compulsivo, nem de tratamento psiquiátrico. "

E sendo este o caso, acontece que mesmo que se dessem como suficientemente indicados os factos alegados, continuaria a não se lograr a pronúncia dos arguidos.

Não se aduza, contra o que vai dito, o argumento de que os elementos de facto concernentes ao tipo subjectivo do ilícito em questão se retiram da análise dos factos objectivos praticados. É que, embora essa asserção seja correcta ao nível da prova de tais elementos de facto - porquanto tratando-se de factos de ordem subjectiva, (do mundo dos pensamentos e das representações mentais do agente: os seus conhecimentos e intenções) são insusceptíveis de prova directa, havendo que retirar a convicção da sua verificação da análise dos factos objectivos praticados à luz das regras da experiência comum - tal não significa que os mesmos não tenham de ser devidamente alegados, sob pena, como vimos de não poderem ser considerados na instrução.

Face ao exposto, estamos em crer que RAI apresentado pela assistente não obedece ao que se estatui no art. 287°, nº 2 do CPP, pois é manifesto que, contrariamente a exigido art. 283°, nº 3, al. b) e c) do mesmo diploma legal, não contém a descrição clara e ordenada - à semelhança do que é exigido para a acusação, seja pública, seja particular - de todos os factos susceptíveis de responsabilizar criminalmente os arguidos por nenhum dos crimes que lhe são imputados, abstractamente, pela assistente.

Dele não consta, como tal, a narração de todos os factos necessários para fundamentar a aplicação aos arguidos de uma pena ou medida de segurança pelos aludidos crimes.

Por tudo isto, afigura-se-nos que tal requerimento é nulo (cf.art. 283°, nº 3, als. b) e c), aplicável ex vi art. 287.°, n.º 2, ambos dos CPP) sendo que a falta de objecto adveniente dessa nulidade implica, como vimos, a inexequibilidade da instrução, por falta de objecto.

Deve pois ser totalmente rejeitado, nos termos do art. 287°, nº 3 do Cód. Proc. Penal, por inadmissibilidade legal da instrução.

 

Decisão:

Face ao exposto, decido rejeitar, por legalmente inadmissível, o requerimento para abertura de instrução apresentado pela assistente.

Sem custas, por não estar legalmente prevista a tributação, não configurando a apresentação do requerimento qualquer incidente, nem podendo considerar-se ocorrência anómala.


***

            III. Apreciação do Recurso

            Como é sabido o objecto do recurso é delimitado pelas conclusões da respectiva motivação (artigos 403º, nº 1 e 412º, nº 1 do Código de Processo Penal) e, vistas essas conclusões, suscita-se a questão de saber se o requerimento de instrução do assistente obedece aos requisitos do artigo 287º, nº 2 do Código de Processo Penal, devendo ser recebido.

            Com efeito verificamos pelo teor do despacho recorrido que o requerimento de instrução da assistente foi rejeitado, em suma, com o fundamento de não conter descrição suficiente dos elementos subjectivos dos tipos de crime imputados.

A recorrente por seu turno sustenta a perfeição do requerimento de instrução.

            Apreciando:

Vejamos em primeiro lugar o quadro normativo em que deve mover-se a apreciação da questão suscitada.

Porque no requerimento de instrução a recorrente imputa o cometimento de um crime de difamação deve ser esclarecido previamente que, de acordo com a previsão do artigo 287º, nº 1, alínea b) do Código de Processo Penal, o assistente apenas pode requerer instrução em relação a crimes que não sejam de natureza particular. Quanto a esses, incumbe-lhe deduzir acusação findo o inquérito nos termos dos artigos 284º e 285º do Código de Processo Penal, no pressuposto de que previamente haja apresentado queixa (cfr. artigo 50º do Código de Processo Penal) da qual não se encontra também rasto nos autos.

Nessa parte sempre o requerimento de instrução mereceria rejeição, embora por fundamento diferente do que consta da decisão recorrida.

O artigo 287º, nº 2 do Código de Processo Penal preceitua, relativamente ao requerimento de instrução, que “o requerimento não está sujeito a formalidades especiais, mas deve conter, em súmula, as razões de facto e de direito, de discordância relativamente … à não acusação … e dos factos que …se espera provar, sendo ainda aplicável ao requerimento do assistente o disposto no artigo 283º nº 3, alíneas b) e c).

Este último artigo e a sua alínea b) preceitua que “a acusação contém sob pena de nulidade a narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, incluindo se possível, o lugar, o tempo e a motivação da sua prática.

Lembre-se que a instrução tem como escopo definido no artigo 286º, nº 1 do Código de Processo Penal «a comprovação judicial da decisão de deduzir acusação ou de arquivar o inquérito em ordem a submeter ou não a causa a julgamento.»

A exigência legal de que o requerimento de instrução contenha a narração dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, refere-se aos elementos objectivos e também subjectivos do crime imputado, posto que não existe crime/responsabilidade penal sem que todos eles se encontrem preenchidos. A exigência da descrição dos factos no requerimento de instrução do assistente radica na circunstância de este, partindo de um despacho de arquivamento do inquérito, dever fixar o objecto do processo, dentro do qual se moverá a actividade do juiz de instrução a quem é vedado alterar os factos alegados, fora das excepções previstas no artigo 303º, nº 1 do Código de Processo Penal. Mas, por outro lado e de capital importância, o requerimento de instrução é a base factual dentro da qual se moverá o contraditório, o exercício do direito de defesa (cfr. Prof. Germano Marques, Curso de Processo Penal III, pag. 141).

Em última análise o que está em causa é a garantia constitucional de defesa do arguido com o princípio, também constitucional, do contraditório que é inerente àquele e cuja efectividade implica uma definição clara e precisa do objecto do processo (cfr. artigo 32º, nº 1 e nº 5 da CRP). O disposto no artigo 287º, nº 2 do Código de Processo Penal é, portanto, uma decorrência necessária da própria constituição.

Porque assim é, tem sido entendido que o requerimento de instrução do assistente que não descreva cabalmente os factos imputados, deve ser objecto de rejeição por inadmissibilidade legal desta, nos termos conjugados dos artigos 287º, nº 2 e nº 3 e 283º, nº 3, b) do Código de Processo Penal, não podendo o juiz de instrução intrometer-se de qualquer modo na delimitação do objecto do processo no sentido de o alterar ou completar, directamente ou por convite ao assistente requerente da instrução (cfr. o acórdão do STJ de fixação de jurisprudência nº 7/2005).

No caso, o requerimento de instrução/acusação da assistente foi rejeitado com o fundamento de os factos narrados não constituírem crime por omissão do respectivo elemento subjectivo. Sustenta, no entanto, a recorrente que esses elementos constam dessa peça processual nos artigos 19 a 29, 33 a 33 a 38, 48 a 51 e 63 a 65 que são do seguinte teor:


19º

Informados dessa situação, conluiados entre si, os arguidos decidiram envidar esforços para conseguirem o internamento compulsivo da requerente, alegando insanidade mental desta.

20º

Tinham como objectivo acabar com o protesto da Requerente, desmoralizá-la e vexá-la publicamente.

21º

E impedi-la de se defender em acção judicial de que a providencia cautelar atrás referida foi preliminar, para a qual já tinham mandatado advogado.

22º

A qual viria a ser instaurada escassos dias depois, mais concretamente em 7 de Dezembro de 2009, com um pedido de € 343.896,65 (…).

23º

Na concretização do plano entre todos gizado, no referido dia 11 de Novembro de 2009, a arguida contactou a Dra. B... que, na data a que os factos se referem exercia as funções de Autoridade de Saúde do Concelho de Cantanhede.

24º

A quem comunicou que a queixosa sua mãe sofria de depressão, se recusava a ser submetida a tratamento, se tornara agressiva com as filhas e o marido e estava a causar distúrbios.

25º

Para melhor alcançar os seus desígnios, a arguida fingiu-se muito ansiosa e preocupada com a mãe.

26º

E logrou convencer a Dra. B... da sinceridade das suas alegadas preocupações.

27º

Solicitada pela referida médica a indicar o contacto de alguns familiares com algum ascendente sobre a queixosa, de modo a poder evitar-se a intervenção da força pública, a arguida recusou qualquer informação.

28º

Já que o seu objectivo e o dos demais arguidos era mesmo o da pública humilhação da queixosa.

29º

E, por outro lado, qualquer outro familiar, para além dos arguidos e dos seus cônjuges, não deixaria de desmistificar o ardil congeminado pelos arguidos, esclarecendo que a requerente se encontrava de boa saúde mental.

(…)


33º

Os arguidos tinham perfeito conhecimento de que a ofendida se encontrava curada.

34º

Sabiam que a requerente estava a ser acompanhada no Serviço de Psicologia, recebendo o apoio de que necessitava para manter a integridade psíquica, apesar das condições familiares adversas.

35º

Sabiam também que a Requerente comparecia voluntariamente a todas as consultas mensais de psicologia, mostrando-se motivada e colaborante (…).

36º

Apesar disso, argumentando contra a verdade dos factos seus conhecidos, convenceram a médica Dra. B... de que a requerente se encontrava descompensada, agressiva, causando distúrbios, danificando objectos e recusando tratamento.

37º

A arguida convenceu mesmo a referida médica de que estava ansiosa e preocupada com a mãe.

38º

O que é completamente falso.

(…)


48º

Em face das informações falsas prestadas pela arguida e do estado de ansiedade e preocupação acerca do estado de saúde da mãe que esta falsamente exibia.

49º

A Dra. B... determinou a condução da queixosa, pela autoridade judicial à urgência do Hospital da Universidade de Coimbra “a fim de ser submetida a avaliação psiquiátrica, no sentido de eventual tratamento e/ou internamento compulsivo” (…).

50º

No cumprimento do mandado da Autoridade de Saúde do Concelho de Cantanhede, os agentes da GNR de Cantanhede dirigiram-se ao … , onde diligenciaram deter a queixosa, chegando a introduzi-la pela força, dentro do veículo em que se transportavam.

51º

O que fizeram apesar de se lhes ter afigurado que a queixosa se encontrava lúcida e não aparentava encontrar-se descompensada.

(…)


63º

Os arguidos agiram voluntária e conscientemente, em comunhão de esforços e intenções, bem sabendo que a queixosa não carecia de internamento compulsivo, nem de tratamento psiquiátrico.

64º

Bem sabendo também que a sua conduta (deles arguidos) não era permitida por lei.

65º

Actuando movidos pelo desejo de humilharem publicamente a queixosa, de a desmoralizarem, de a impedirem de se manifestar livremente e ainda com o objectivo de alcançarem proveito económico relevante, à custa da queixosa, impedindo-a de se defender em acção cível que contra ela intentaram.

            Registe-se novamente que são precisamente os elementos subjectivos do crime, com referência ao momento intelectual (conhecimento do carácter ilícito da conduta) e ao momento volitivo (vontade de realização do tipo objectivo de ilícito) que permitem estabelecer o tipo subjectivo de ilícito imputável ao agente através do enquadramento da respectiva conduta como dolosa ou negligente e dentro destas categorias, nas vertentes do dolo directo, necessário ou eventual e da negligência simples ou grosseira. Como refere Figueiredo Dias, em Direito Penal, Parte Geral, Tomo I, 2ª ed., pág. 379 “…também estes elementos cumprem a função de individualizar uma espécie de delito, de tal forma que, quando eles faltam, o tipo de ilícito daquela espécie de delito não se encontra verificado”.

Assim, os elementos objectivos, que constituem a materialidade do crime, traduzem a conduta, a acção, enquanto modificação do mundo exterior apreensível pelos sentidos e os elementos subjectivos traduzem a atitude interior do agente na sua relação com o facto material.

Num crime doloso – só esse está aqui em causa – da acusação há-de constar necessariamente, pela sua relevância para a possibilidade de imputação do crime ao agente, que o arguido agiu livre (afastamento das causas de exclusão da culpa - o arguido pôde determinar a sua acção), deliberada (elemento volitivo ou emocional do dolo - o agente quis o facto criminoso) e conscientemente (imputabilidade – o arguido é imputável), bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei (elemento intelectual do dolo, traduzido no conhecimento dos elementos objectivos do tipo).

Ora, por muito que a recorrente esgrima em sentido contrário, é incontornável que não contemplou na narração dos factos a totalidade destes elementos. Quanto ao elemento volitivo não se basta com a alegação isolada de uma actuação deliberada, mas antes com a descrição do que efectivamente foi querido pelo agente e que coincida com os elementos objectivos do crime imputado.

Ora a tipicidade objectiva do crime de sequestro imputado traduz-se na acção de deter, prender, manter presa ou detida outra pessoa ou de qualquer forma privá-la da liberdade e, no caso ainda, que tal seja feito com o pretexto de que a vítima sofria de anomalia psíquica. Acção que nos termos do artigo 26º do Código Penal pode ser levada a cabo por intermédio de outrem.

Se assim é, o dolo de sequestro exige que o agente actue querendo privar outrem da liberdade, independentemente de poderem coexistir outras motivações, sendo no entanto esta que ao nível subjectivo perfectibiliza a imputação criminal.

Ora, nem nos artigos citados pelo recorrente nem noutros do requerimento de instrução se encontra descrito que os arguidos actuaram determinando outros à detenção da queixosa com o propósito de a privaram da liberdade (dolo directo – ou factualização que integrasse outra forma de dolo) antes se referindo à intenção de humilhar, desmoralizar, de se manifestar livremente (em referência a forma de protesto encetada pela queixosa) de obter proveito económico, de se defender em acção judicial.

Sem essa indicação não se mostra perfectibilizada a imputação criminosa e, sendo assim, jamais poderia ser proferido despacho de recebimento do requerimento de instrução.

Como mencionam Leal-Henriques e Simas Santos no Código de Processo Penal, 2.ª edição, tomo II, pág. 140, em anotação ao artigo 283.º “No que se reporta à elaboração da acusação interessa também chamar a atenção para a necessidade de se conferir o máximo cuidado à sua feitura, não apenas no aspecto de explanação geral, como sobretudo na vertente da descrição fáctica, que deve ser suficientemente pormenorizada e precisa, até porque, como se sabe, está legalmente vedada uma alteração substancial dos factos transportados para a acusação (…).

O dolo como elemento subjectivo - enquanto vontade de realizar um tipo legal conhecendo o agente todas as suas circunstâncias fácticas objectivas – constitutivo do tipo legal, será, então, em definitivo, um dos elementos que o artigo 283º, nº 3 do Código de Processo Penal impõe que seja incluído na acusação (por consequência também no requerimento de instrução do assistente).

E se fosse ultrapassada a fase processual em que o requerimento de instrução/acusação podia ter sido rejeitado por falta de alegação de factos do tipo subjectivo, na fase de instrução restaria ponderar a possibilidade de accionar os mecanismos do artigo 303º do mesmo diploma. Mas um obstáculo intransponível logo se ergueria a possível comunicação da alteração dos factos.

É que o regime de alteração, seja substancial ou não, sempre pressupõe que os factos que inicialmente constam da acusação/requerimento de instrução ou pronúncia constituam crime. Não constituindo esses factos crime por falta de descrição de algum dos seus elementos constitutivos, jamais a mesma pode ser suprida.  

Entendemos, pois, que não é admissível a ideia de um “dolus in re ipsa”, ou seja a presunção do dolo resultante da simples materialidade de uma infracção. E sendo assim, importa manter também no que respeita ao imputado crime de sequestro a decisão recorrida.


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            IV. Decisão

Pelo exposto, acordam em negar provimento ao recurso interposto pela assistente, mantendo a decisão recorrida.

Pelo seu decaimento vai a recorrente condenada em custas, fixando-se a taxa de justiça devida em quatro unidades de conta.


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Maria Pilar Pereira de Oliveira (Relatora)
José Eduardo Fernandes Martins