Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
304/06.9TAAVR-A .C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ABÍLIO RAMALHO
Descritores: ACESSO AO DIREITO
ABERTURA DE INSTRUÇÃO
REQUERIMENTO
REQUISITOS
Data do Acordão: 09/29/2010
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DO BAIXO-VOUGA
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: REVOGADADA
Legislação Nacional: 20º DA CRP; 286º E 287º DO CPP
Sumário: 1.0 requerimento de abertura de instrução está enquadrado no direito ao juiz, no direito a ver o seu caso apreciado jurisdicionalmente.
2.Tal direito não pode ser configurado como um direito formal, mas sim como tutela efectiva do seu direito, conforme é claro no artigo 20º da CRP e repetidamente afirmado pela jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem.

3. Se o assistente no seu requerimento para abertura da instrução delimita suficientemente a sua pretensão, se indica as razões de facto e de direito da sua discordância, e os actos de instrução que, no mínimo, deseja ver realizados, tal requerimento não deve ser rejeitado.

Decisão Texto Integral:


Tribunal da Relação de Coimbra
4ª Secção
18
Recurso n.º 304/06.9TAAVR-A.C1
(Comarca de Baixo Vouga)
I – RELATÓRIO

1 – J, assistente processual, (melhor id.º nos autos), inconformado com a decisão judicial exarada – por Ex.mo(a) Juiz(a) de Instrução Criminal – na peça certificada a fls. 23/29 do presente processo incidental, que, por inadmissibilidade, lhe rejeitou o requerimento de abertura de instrução oportunamente formulado, na sequência de despacho de arquivamento processual produzido por Ex.mo magistrado do Ministério Público no termo do inquérito realizado em decorrência de participação criminal contra L e M, por pretenso cometimento de infracções criminais de furto qualificado e falsificação de documentos, dela interpôs o recurso ora analisando, de cuja motivação (ínsita na peça junta a fls. 31/37) extraiu o seguinte quadro-conclusivo (cujo teor se reproduz):
«1. O presente recurso vem interposto de douto despacho proferido no processo à margem referido e que decidiu que: “...afigura-se-nos que tal requerimento é nulo (cf Artigo 283º nº 3, als. b) e c), aplicável ex vi art. 287º, nº 2, ambos do cód. proc. penal) sendo que a falta de objecto adveniente dessa nulidade implica, como vimos, a inexequibilidade da instrução, por falta de objecto.";
2. Salvo o devido respeito, que muito é, não assiste razão ao referido despacho, uma vez que as referidas normas não foram violadas no requerimento de abertura de instrução apresentado pelo Assistente J;
3. Crê-se que o referido RAI tem, de facto tais elementos, dando assim integral cumprimento às alegadamente violadas, e já referidas, normas do CPP;
4. Pois se, como bem refere o referido despacho, há uma crítica do inquérito, que se prolonga até ao artigo 39.º do RAI, a partir do artigo 40.º até ao artigo 90.º, sob a epígrafe: "Assim, nos termos do artigo 287º 2 in fine do CPP", dá-se integral cumprimento às exigências deste artigo e do artigo 283.º/3 b) e c);
5. Diversamente do referido no despacho recorrido, deu-se integral cumprimento ao artigo 283.º/3 c), aplicável ex vi artigo 287.º/2 do CPP, isto é, foram referidas as disposições legais aplicáveis, pelo que, ao ter decidido que o Assistente não deu cumprimento ao artigo 283.º/3 c), aplicável ex vi artigo 287.º/2 do CPP, o douto despacho recorrido violou ambas as normas, pois conferiu-lhes um sentido que não é compaginável quer com as normas, quer com a sua aplicação ao texto do RAI;
6. Também diversamente do referido no despacho recorrido, deu-se cumprimento ao artigo 283.º/3 b), aplicável ex vi artigo 287.º/2 do CPP, isto é, descreveram-se factos, de natureza subjectiva e objectiva, que fundamentam a validade do requerimento de abertura de instrução apresentado, pelo que, salvo melhor e mais sábia opinião, dos referidos artigos 40.º a 90.º do requerimento de abertura de instrução resultam, de forma tão ordenada e completa quanto ao Assistente é permitido saber, os factos que fundamentam, pelo menos, a pronúncia das Arguidas, motivo pelo qual, por maioria de razão, também a instrução requerida devia ter sido aberta;
7. Ao ter decidido que o Assistente não deu cumprimento ao artigo 283.º/3 b), aplicável ex vi artigo 287.º/2 do CPP, o douto despacho recorrido violou ambas as normas, pois conferiu-lhes um sentido que não é compaginável quer com as normas, quer com a sua aplicação ao texto do RAI;
8. Deve, pois, o despacho recorrido ser substituído por outro que considere cumpridas as referidas normas e válido o RAI apresentado.»
2 – O Ministério Público, em 1.ª instância e nesta Relação, defendeu o acerto e a manutenção do decidido, (vide respectivas peças processuais – de resposta e parecer –, a fls. 42/72 e 79/80).
3 – Observadas as pertinentes formalidades legais, nada obsta à apreciação do mérito recursivo.

II – FUNDAMENTAÇÃO

II.A


Como supra se enunciou, emerge da economia recursória, máxime do segmento conclusivo da referente motivação – delimitador do âmbito do atinente inconformismo –, a demanda pelo id.º assistente à Relação da verificação/análise do acerto jurídico do sindicado acto decisório, de consideração da nulidade do RAI por si oportunamente apresentado, condicionante da referente/operada rejeição.

II.B


Para tanto, importa reter quer o segmento do RAI alegadamente consubstanciador da pertinente descrição factual e típico-criminal – arts. 40.º a 90.º, (vd. conclusões 4.ª e 6.ª) –, bem como a essencialidade do sindicado despacho, (cujos teores igualmente se reproduzem):

§ 1.º - RAI:


«40.º
Em Janeiro de 1999, as Arguidas, sem nada dizerem à restante família, retiraram a sua tia, MA, do Lar …. de Idosos, Lda., em Aveiro,
41.º
Levaram-na para a casa que aquela possuía em Aveiro e onde sempre viveu.
42.º
A Arguida M, contra a vontade da tia, "instalou-se" na casa desta, aí ficando a residir.
43.º
Por sua vez, a Arguida L frequentava assiduamente a referida casa, designadamente aos fins-de-semana.
44.º
Esta situação prolongou-se até à entrada da tia para o Hospital de Coimbra, em finais do ano 2000, em virtude de um problema renal, onde acabou por falecer, em 6 de… de 2000.
45.º
MA faleceu sem herdeiros legitimários.
46.º
Havia indicado como seus universais herdeiros, em partes iguais, os seus cinco sobrinhos, de entre os quais o Queixoso, A, MD e as Arguidas L e M.
47.º
No dia do funeral, a Arguida L intitulou-se "dona" das contas bancárias da tia,
48.º
Sendo que, como tal, só dividiria o dinheiro pelos primos "se quisesse",
49.º
O irmão do Queixoso e também herdeiro A, suspeitando que as Arguidas podiam tentar levantar o dinheiro que a tia tinha depositado em diversos bancos,
50.º
Entregou certidão de óbito em todos os bancos onde a falecida tinha contas bancárias abertas.
51.º
Sucede que, ao entregá-la no BPI de Aveiro, o gerente do banco dirigiu-se àquele para indagar qual era a sua relação com a Arguida L,
52.º
Ao saber da sua relação familiar, alertou-o para a existência de levantamentos de quantias avultadas, que estranhava terem sido feitos pela falecida.
53.º
Tudo isto fez com que o Queixoso e o seu irmão, A, requeressem extractos das contas das falecidas,
54.º
Tendo, desta forma, encontrado o registo do levantamento de 3 cheques, cada um deles no valor de 10.000.000$00 (ora 49.879,79 €),
55.º
O que perfaz um total de 149.639,37 €.
56.º
A falecida MA nunca entregou tais cheques às Arguidas.
57.º
As Arguidas, aproveitando-se da sua estadia na casa da tia MA apropriaram-se de um cheque em branco assinado pela falecida, que esta tinha por hábito ter em sua casa, para qualquer eventualidade,
58.º
Na posse deste, preencheram-no pelo referido valor, sacando-o da conta n.º 037…, titulada pela tia MA
59.º
Apropriaram-se ainda de dois outros cheques, também pertencentes à falecida, nos quais as Arguidas apuseram uma falsificação da assinatura da falecida MA
60.º
Nenhum dos cheques foi preenchido pela falecida,
61.º
Dois deles não terão, sequer, sido assinados por aquela.
62.º
As Arguidas apropriaram-se, assim, de forma ilegítima, da quantia titulada nos cheques,
63.º
Imitando a assinatura da falecida em, pelo menos, dois deles, para dessa forma obter um beneficio ilegítimo.
64.º
Contra a vontade da falecida,
65.º
Que sempre pretendeu e afirmou que a sua herança seria dividida pelos seus sobrinhos, em partes iguais.
Acresce que,
66.º
Aquando da elaboração da relação de bens o Queixoso, bem como outros familiares da falecida, deram por falta de diversos objectos pertencentes àquela, nomeadamente uma jarra de ouro cravada a diamantes e um anel de diamantes, que a falecida usava frequentemente.
67.º
A falecida MA, em Janeiro de 1999, logo aquando da ocupação da sua casa pela Arguida L, pediu-lhe que fosse buscar a chave do correio que se encontrava na mesinha de cabeceira,
68.º
Local onde a falecida também guardava o referido anel de diamantes,
69.º
A partir dessa data não mais a falecida foi vista com o anel,
70.º
Isto porque a Arguida L, em comunhão de esforços e intenções com a Arguida M, se apropriou do referido anel.
71.º
O anel foi, depois dessa data, visto por diversas pessoas na posse da Arguida L
Além do referido,
72.º
A referida jarra esteve durante largos anos guardada nos cofres do Banco de Fomento, em Aveiro,
73.º
Contudo, a partir do momento em que o Banco de Fomento foi integrado pelo BPI, aquele deixou de ter cofres,
74.º
Pelo que a jarra passou a ficar guardada no cofre existente na casa da falecida,
75.º
Facto conhecido das Arguidas.
76.º
Aquando da abertura do cofre, após o falecimento da tia, o cofre encontrava-se vazio.
77.º
A Arguida M, ao ser questionada, pelo irmão do Queixoso, A, sobre o paradeiro da jarra, respondeu que a tia a havia oferecido a uma senhora amiga.
78.º
Por sua vez, quando D a interrogou sobre a mesma questão, a Arguida L disse-lhe que a tia a havia oferecido a um médico do Porto.
79.º
A jarra tinha sido comprada pelo marido da falecida na… ,
80.º
Tinha cerca de 20 a 25 centímetros de altura,
81.º
Havia sido avaliada em cerca de 100.000.000$00 (ora 498.797,90 €) pelo Banco de Fomento.
82.º
As Arguidas apropriaram-se, assim, ainda antes da morte de MA, ou seja, durante o período em que "se instalaram" na sua casa, dos referidos objectos de forma ilícita,
83.º
Sem o consentimento daquela e bem sabendo que aqueles objectos não lhes pertenciam,
84.º
Prejudicando, dessa forma, os restantes herdeiros, entre os quais o Queixoso.
85.º
As Arguidas actuaram sempre livre e conscientemente, querendo apropriar-se de coisa alheia e obter para si benefícios ilegítimos, o que conseguiram, bem sabendo que as suas condutas eram proibidas por lei.
86.º
Tinham, também, as Arguidas perfeito conhecimento de que ao preencherem os cheques da forma supra descrita abalavam e punham em perigo a credibilidade e fé pública que tais documentos merecem, bem como a segurança e confiança no tráfico jurídico.
87.º
Procurando e conseguindo assim um beneficio patrimonial ilegítimo e ao qual sabiam não ter direito.
88.º
Actuaram ainda e sempre em comunhão de esforços e intentos, com a consciência de que praticavam ilícitos criminalmente puníveis.
89.º
Procurando, em última análise, subtrair bens à herança que caberia a todos os herdeiros.
90.º
Cometeram as Arguidas, assim, em co-autoria material, na forma consumada e em concurso real:
– Dois crimes de furto qualificado, p. e p. pelos artigos 26.º, 204.º/2 a) e 202.º b) do CP;
– Três crimes de falsificação de documento, p. e p. pelos artigos 26.º, 256.º/1 a) e /3 do CP, na redacção vigente à data dos factos, e pelos artigos 26.º, 256.º/1 b) e c) e /3, na redacção conferida àquele Código pela Lei n.º 59/2007, de 4/9.»

§ 2.º - DESPACHO RECORRIDO:

«Da rejeição parcial do R.A.I de fls. 409 e ss. por inadmissibilidade legal:
Como resulta do RAI em análise, por via da presente instrução o assistente J pretende obter a pronúncia das arguidas L e M pela prática como co-autoras materiais de dois crimes de furto qualificado e três crimes de falsificação de documento.
Ora, como é sabido e decorre, aliás, do art. 287.º, n.º 2, do cód. proc. penal, o requerimento para abertura de instrução, apresentado pelo assistente em caso de arquivamento pelo Ministério Público, deve equivaler, em tudo, a uma acusação, condicionando e delimitando a actividade de investigação do juiz de instrução e, consequentemente, o objecto da decisão instrutória, nos exactos termos em que a acusação formal, seja pública, seja particular, o faz.
E assim é de tal modo que na instrução apenas poderão ser considerados os factos descritos no requerimento para a sua abertura (ressalvada a hipótese a que se refere o art. 303.º, do cód. proc. penal, de alteração não substancial dos factos descritos nesse requerimento), sob pena de nulidade, como resulta, claramente do disposto no art. 309.º, nº 1, do cód. proc. penal.
Daí que, não constando do mesmo uma descrição clara e ordenada de todos os factos necessários a integração de todos os pressupostos legais de algum crime, se torne inviável a realização desta fase processual por falta de delimitação do seu objecto, sendo manifesto que ninguém poderá vir a ser pronunciado com base apenas em alegações genéricas, inconclusivas ou omissas de factos susceptíveis de fazer integrar, na totalidade, os elementos objectivos e subjectivos do crime pelo qual se pretende essa pronuncia.
E isto acontece, como já dissemos, porque o artigo 308.º, n.º 1, do cód. proc. penal, prescreve que finda a instrução o juiz profere despacho de pronúncia quando tiverem sido reunidos nos autos indícios suficientes de se terem verificado os pressupostos de que depende a aplicação de uma pena ou medida de segurança ao arguido – ou seja, é necessário recolher-se os indícios da prática de um crime de acordo com o que e considerado como tal pelo art. 1.º, n.º 1, al. a), do cód. proc, penal –, sendo que não podem ser considerados, nessa decisão, factos que eventualmente resultem da instrução, mas que não tenham sido alegados no requerimento para a sua abertura, pois tal implicaria alteração substancial que viciaria de nulidade tal decisão instrutória, nos termos do art. 309.º, do cód. proc. penal.
Ora, devendo o despacho de pronúncia quedar-se pela apreciação do conteúdo do requerimento de abertura de instrução, torna-se óbvio que as omissões deste podem comprometer irremediavelmente a pronúncia dos arguidos.
E se assim é, não faz sentido proceder-se a uma instrução visando levar o arguido a julgamento sabendo-se antecipadamente que a decisão instrutória não poderá ser proferida nesse sentido.
Até porque importa notar que a instrução, nos termos em que a lei vigente a regula, tem natureza judicial e não investigatória, destinando-se à comprovação judicial da decisão tomada pelo Ministério Público de deduzir, ou não, acusação (art. 286.º, n.º 1, do cód. proc, penal) e não a constituir um complemento da investigação prévio à fase de julgamento.
A estrita vinculação temática do tribunal aos factos alegados no requerimento para abertura de instrução, enquanto limitação da actividade instrutória, relaciona-se, assim, com a natureza judicial desta fase processual, sendo uma consequência do princípio da estrutura acusatória do processo penal e constituindo uma garantia de defesa consagrada no art. 32.º, n.º 5, da Constituição da República Portuguesa.
Não pode, portanto, pretender-se, através da instrução, alcançar os objectivos próprios do inquérito, sendo outros os meios processuais adequados a esse efeito (veja-se, nomeadamente, as possibilidades permitidas pelos artigos 279.º, 277.º, n.º 2, do cód. proc. penal).
A admitir-se entendimento diverso, "(...) estar-se-ia a transferir para o juiz o exercício da acção penal, contra todos os princípios constitucionais e legais em vigor e a transformar a natureza da instrução que passaria de contraditória a inquisitória".
Já no que concerne as consequências da inobservância do preceituado no art. 287.º, n.º 2, do cód. proc. penal, importa desde logo atender que este mesmo normativo remete para a aplicação do disposto no art. 283.º, n.º 3 al. b) e c) do mesmo diploma legal.
Pelo que, além de inviabilizar, objectivamente, a possibilidade de realização da instrução (art. 309.º, do cód. proc. penal), a deficiência de conteúdo (e não de mera forma) do requerimento implica a sua nulidade – por não conter a cabal narração de factos que fundamentem a aplicação a um concreto arguido de uma pena ou medida de segurança, como o impõe o citado art. 283.º, n.º 3 als, a) e b), do cód. proc. penal, tornando assim legalmente inadmissível a abertura da instrução e, obrigando, consequentemente, à rejeição daquele nos termos do art. 287.º, n.º 3, do cód. proc. penal, onde se dispõe que "o requerimento (para abertura de instrução) só pode ser rejeitado por extemporâneo, por incompetência do juiz ou por inadmissibilidade legal da instrução".
Acresce a isto, por outro lado, que as eventuais deficiências do requerimento não podem ser supridas por iniciativa do Tribunal, designadamente mediante decisão que convidasse a assistente para o efeito.
Tudo porque uma decisão que convidasse a requerente a apresentar novo requerimento para abertura da instrução – não deixando de consubstanciar o exercício pelo juiz de instrução de uma faculdade inquisitória e de exercício de acção penal que no actual quadro legal processual penal não lhe assiste – contrariaria o princípio da estrutura acusatória do processo penal consagrada do referido art. 32.º, n.º 5, da Constituição da República Portuguesa.
[…]
Anote-se, ainda neste âmbito, que a inadmissibilidade de renovação do requerimento para abertura de instrução não implica uma limitação desproporcionada do direito da assistente a deduzir acusação através do requerimento de abertura de instrução (quando para tal tenha legitimidade), como referido no Acórdão do Tribunal Constitucional de 30.01.2001, "(…) na medida em que tal facto lhe é exclusivamente imputável, para além de constituir – na sua possível concretização – uma considerável afectação das garantias de defesa do arguido", Acresce que "(…) do ponto de vista da relevância constitucional merece maior tutela a garantia de efectivação do direito de defesa (na medida em que protege o indivíduo contra possíveis abusos do poder de punir), do que garantias decorrentes da posição processual do assistente em casos de não pronúncia do arguido, isto é, em que o Ministério Público não descobriu indícios suficientes para fundar uma acusação e, por isso, decidiu arquivar o inquérito".
Esclarecendo, definitivamente as divergências jurisprudenciais que se vinham verificando a este respeito, veio o Supremo Tribunal de Justiça fixar jurisprudência por Acórdão de 12.05.2005 (Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça n.º 7/2005, publicado no DR - I S-A de 04.11.2005) nos termos seguintes:
"Não há lugar a convite ao assistente para aperfeiçoar o requerimento para abertura de instrução, apresentado nos termos do artigo 287.º, n.º 2, do cód. proc. penal, quando for omisso relativamente à narração sintética dos factos que fundamentam a aplicação de uma pena ao arguido".
Ora, dito isto e tendo em mente os elementos objectivos e subjectivos que integram os crimes pelo quais o assistente pretende ver as arguidas pronunciadas no caso dos autos, logo se vislumbra, segundo cremos, que o RAI deduzido por aquela terá, necessariamente, de ser rejeitado in totum.
Isto porque não contém a descrição concatenada de factos concretos e especificados (não bastando remissões genéricas), para que, uma vez «validados» pela prova indiciária recolhida ou a recolher, se pudesse dar como integrada a sua prática pelas arguidas.
Ao limitar-se, no essencial, à mera crítica do inquérito, omite o RAI a alegação de elementos factuais reportáveis aos tipos-de-ilicito objectivos.
Face ao exposto, estamos em crer que o RAI apresentado pelo assistente não obedece ao que se estatui no art. 287.º, n.º 2, do cód. proc. penal, pois é manifesto que, contrariamente a exigido art. 283.º, n.º 3, al. b) e c) do mesmo diploma legal, não contém a descrição clara e ordenada – à semelhança do que é exigido para a acusação, seja pública, seja particular – de todos os factos susceptíveis de responsabilizar criminalmente as arguidas pelos crimes que lhes imputa. Dele não consta, como tal, a narração de todos os factos necessários para fundamentar a aplicação às mesmas de uma pena ou medida de segurança pelos aludidos crimes.
Por tudo isto, afigura-se-nos que tal requerimento é nulo (cf. art. 283.º, n.º 3, als. b) e c), aplicável ex vi art. 287.º, n.º 2, ambos do cód. proc. penal) sendo que a falta de objecto adveniente dessa nulidade implica, como vimos, a inexequibilidade da instrução, por falta de objecto.
Deve pois ser nesta parte rejeitado, nos termos do art. 287.º, nº 3, do cód. proc. penal, por inadmissibilidade legal da instrução.
Decisão:
Face ao exposto, decido rejeitar parcialmente, por legalmente inadmissível, o requerimento para abertura de instrução apresentado pelo assistente J
[…]»

II.C



Apreciando:
1 – A instrução, como fase prévia a um eventual julgamento, é uma fase preliminar, uma fase de investigação tendo em vista o reconstituir histórico dos factos para apurar da necessidade da sua sujeição a julgamento.
No caso dos autos, onde o Ministério Público decidiu não deduzir acusação, é reconhecido ao assistente a possibilidade de introduzir os factos em julgamento através do Juiz de Instrução, o que só se pode configurar como um direito com dignidade constitucional.
De facto, o artigo 20.º da Constituição da República Portuguesa estatui de forma clara que a todos é assegurado o acesso ao direito e aos tribunais para a defesa dos seus direitos Artigo 20.º (Acesso ao direito e tutela jurisdicional efectiva)
1 - A todos é assegurado o acesso ao direito e aos tribunais para defesa dos seus direitos e interesses legalmente protegidos.
[…].
O mesmo é afirmado pelo artigo 6.º da Convenção para a Protecção dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais (vulgo, Convenção Europeia dos Direitos do Homem) Artigo 6.º (Direito a um processo equitativo)
1. Qualquer pessoa tem direito a que a sua causa seja examinada, equitativa e publicamente, num prazo razoável por um tribunal independente e imparcial […].
Assim, o requerimento de abertura de instrução está enquadrado no direito ao juiz, no direito a ver o seu caso apreciado jurisdicionalmente. É uma manifestação do vulgarmente designado direito à tutela jurisdicional efectiva.
É necessário ter presente que a instrução visa fazer o controle jurisdicional da posição do Ministério Público de não deduzir acusação, sendo líquida a importância de tal controle para a defesa dos interesses do cidadão-ofendido.
Este direito, no entanto, não pode ser configurado como um direito formal, sim efectivo, como bem se salienta na epígrafe do referido normativo constitucional e é repisado pela jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem.
E não apenas de quem é arguido, também de quem reúna legitimidade para se constituir assistente e que possa, no processo penal, deduzir as suas pretensões civis Vd. T.E.D.H. – processo Moreira Azevedo..
Assim, uma interpretação do artigo 287.º do Código de Processo Penal demasiado rígida e formalista poderá pôr em causa esse direito à tutela jurisdicional e constituir-se como uma recusa substancial do direito ao juiz.
Ora, o assistente delimita muito bem a sua pretensão. Como alega – e se observa da transcrição supra materializada –, realiza, de forma cabal, entre os pontos 40.º e 90.º as limitadas exigências contidas no artigo 287.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, indicando as razões de facto e de direito da sua discordância; indicando os actos de instrução que, no mínimo, deseja ver realizados.
A posição do tribunal recorrido parece dar guarida a um mero formalismo desajustado porque não permitido por uma leitura substancial do n.º 2 do artigo 287.º do CPP, se entendermos, como entendemos, que os elementos materiais são suficientemente elucidativos.
É que esses, para além de serem o primeiro passo lógico essencial à caracterização de uma determinada situação de facto, fazem sobressair aquele elemento psicológico, dando indicações preciosas quer quanto à sua existência, quer quanto à sua ausência.
Acresce que não está o Juiz de Instrução impedido de fazer uso do artigo 303.º, n.º 1, do C. P. Penal, mesmo a entender-se que aquele elemento deficientemente caracterizado consista numa alteração não substancial dos factos contidos no requerimento para abertura da instrução.
Admitindo-se o carácter impreciso e de equilíbrio difícil entre as previsões dos artigos 286.º e 303.º do Código de Processo Penal, certo é que não pode o requerimento de abertura de instrução ser visto como uma peça a analisar de forma excessivamente rigorosa esquecendo o cariz preliminar e de “comprovação judicial” da instrução, sob pena de se inviabilizar o direito do assistente ao “direito à tutela jurisdicional efectiva”.
Entendemos, portanto, que o recurso merece provimento.

III – DISPOSITIVO

Destarte, delibera-se:
A concessão de provimento ao recurso e, consequentemente, a revogação do despacho recorrido, que deverá, oportunamente, ser substituído por outro que, recebendo o RAI, providencie pela realização das diligências probatórias requeridas pelo id.º assistente e/ou outras que o Ex.mo JIC entenda adequadas.
***
Sem tributação.
***

(Consigna-se, nos termos do art. 94.º, n.º 2, do C. P. Penal, que o antecedente acórdão foi elaborado e integralmente revisto pelo relator, primeiro signatário).

***

Coimbra,

Os Juízes-desembargadores:

.........................................................................
(Abílio Ramalho, relator)

.........................................................................
(Luís Ramos)