Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
16/12.4T2ILH.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: MARIA INÊS MOURA
Descritores: CONTRATO DE ARRENDAMENTO
USUFRUTUÁRIO
CADUCIDADE
ABUSO DE DIREITO
DEVER DE INFORMAR
INDEMNIZAÇÃO
Data do Acordão: 10/23/2012
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: ILHAVO
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTS.227, 334, 1032, 1033, 1034 CC
Sumário: 1.- Não actuam com abuso de direito os Autores, proprietários do imóvel, que, invocando a caducidade do contrato de arrendamento pelo facto de haver falecido a usufrutuária do prédio e senhoria, pedem a condenação da Ré ( arrendatária) a entregar-lhe o locado.

2. No artº 1034 nº 1 alínea b) do C.Civil integra-se o caso em que o locador se apresenta como proprietário da coisa quando, na verdade, não tem essa qualidade, sendo apenas usufrutuário

3. Ao remeter para o regime do artº 1032 e 1033 do C.Civil, é considerado o contrato não cumprido (desde que verificados os restantes pressupostos) pela violação do dever de informação imposto pelo principio da boa fé na negociação contratual, nos termos do artº 227 do C.Civil.

4. Eventual obrigação de indemnizar só pode surgir na esfera jurídica do sujeito contratante, constituindo dívida da herança, por sua morte e não na dos proprietários do imóvel locado.

Decisão Texto Integral: Acordam na 2ª secção do Tribunal da Relação de Coimbra

I. Relatório

JM (…) e esposa ML (…), RA (…)e marido AF (…), RM (…)e esposa MH (…), MO (…) e marido AM (…) e ML (…) e marido JA (…), vêm intentar a presente acção de despejo com a forma de processo sumário contra EM (…), pedindo que seja declarada a caducidade do contrato de arrendamento que identificam e condenada a Ré a entregar o locado livre e devoluto, bem como a pagar aos Autores uma indemnização pelo atraso na entrega do imóvel, correspondente ao dobro da renda por cada mês de atraso.

Alegam, em síntese, para fundamentar o seu pedido que são proprietários do prédio em questão que lhes foi deixado em legado pela anterior proprietária falecida a 12/10/1975, que atribuiu o usufruto do imóvel à sua irmã, tendo esta vindo a celebrar contrato de arrendamento com a R. em 1976. A usufrutuária faleceu a 13/05/2011, extinguindo-se por isso o usufruto, e caducando o arrendamento. Os Autores reclamaram o imóvel da Ré, que não o entregou e nada disse, devendo por isso pagar uma indemnização correspondente ao valor da renda em dobro, até à entrega do imóvel.

Devidamente citada a Ré veio contestar e deduzir pedido reconvencional contra os Autores. Refere que desconhece se a anterior senhoria era usufrutuária, tendo-lhe sido omitida tal qualidade quando da celebração do contrato de arrendamento, sendo os recibos emitidos por ela e pelo marido. Diz que o imóvel se encontra em muito mau estado, tendo sido por si solicitado à senhoria a realização de obras que não foram feitas. A Ré tem direito a ser indemnizada por desconhecer que a senhoria era mera usufrutuária, sendo agora surpreendida pelo despejo, em valor não inferior a € 6.000,00.

Os Autores vêm responder, dizendo que a R. sabia que a senhoria era mera usufrutuária, que tal facto se encontrava registado e que nunca foi pedida a realização de quaisquer obras, nem à senhoria, nem aos Autores. Impugnam os danos invocados.

O pedido reconvencional apresentado pela R. foi liminarmente admitido.

Foi proferido despacho saneador onde se apreciou a validade e regularidade da lide.

Foi entendido que o processo continha todos os elementos necessários ao conhecimento do mérito da acção, tendo sido proferida sentença, nos termos do artº 510 nº 1 b) do C.Civil, no sentido da procedência dos pedidos dos Autores, declarando a caducidade do contrato de arrendamento e a condenação da Ré a restituir o imóvel aos Autores, bem como a pagar a quantia de € 138,40 por mês a título de indemnização pelo atraso na entrega do mesmo, tendo sido julgado improcedente o pedido reconvencional.

Não se conformando com a sentença proferida vem a Ré, interpor recurso de apelação de tal decisão, apresentando as seguintes conclusões:

1. Os Autores, ao terem conhecimento das condições do contrato de arrendamento celebrado entre a usufrutuária M (…) e a Ré, isto é, que aquela detinha apenas os poderes de uso e fruição sobre o imóvel, não obstante se intitular de proprietária, e ao terem sempre criado a expectativa na Ré, que aquela usufrutuária era a proprietária do imóvel, quando intentam a presente acção, fazem-no com claro abuso de direito, nos termos e para os efeitos do artº 334 do Código Civil, pelo que não deve ser declarada a caducidade do contrato de arrendamento trazido à colação nestes autos.

2. Ainda que se viesse a entender que a pretensão dos AA. devia ser atendida, sempre os mesmos deviam pagar uma indemnização à Ré, pelo menos de € 6.000,00, nos termos e para os efeitos dos artº 1032 e 1034 nº 1 alínea b) do Código Civil, porquanto a mesma, que é pessoa de condição modestíssima, e sempre cumpriu escrupulosamente o contrato de arrendamento celebrado, sempre confiou nos senhorios e nos AA., quando estes lhe criaram a expectativa de ter celebrado um contrato de arrendamento válido, e com a verdadeira proprietária do imóvel, o que trará para a Ré prejuízos incomensuráveis.

Os Autores vieram apresentar contra-alegações pugnado pela improcedência do recurso e pela manutenção da decisão da 1ª instância, referindo em síntese que a Recorrente vem agora invocar factos novos nas suas conclusões, que não alegou na contestação..

II. Questões a decidir

Tendo em conta o objecto do recurso delimitado pelo recorrente nas suas conclusões (artº 684 nº 3 e 685 A nº 1 do C.P.C.), salvo questões de conhecimento oficioso- artº 660 nº 2 in fine, as questões a decidir são essencialmente duas:

- do abuso de direito por parte dos Autores;

- da obrigação de indemnizar a Ré nos termos do artº 1032 e 1034 nº 1 b) do C.Civil.

III. Fundamentos de Facto

Tendo em conta o disposto no artº 713 nº 6 do C.P.C. e não tendo sido impugnada a matéria de facto, nem havendo lugar a qualquer alteração, remete-se para os termos da decisão da 1ª instância, que considerou provados os seguintes factos:

1. O prédio urbano composto por duas casas para habitação, 1º- casa de rés-do-chão e primeiro andar destinada a habitação, com frente para a Avenida José Estevão, com a área coberta de 184 m2 e descoberta de 151 m2, a que corresponde o artigo matricial 1210, 2º- casa de cave e rés-do-chão destinada a habitação, com frente para a Avenida da Bela Vista, com área coberta de 70 m2, a que corresponde o artº P 5103, sito na Rua José Estevão, nº 174, no lugar da Costa Nova do Prado, freguesia da Gafanha da Encarnação, concelho de Ílhavo, descrito na Conservatória do Registo Predial de Ílhavo, sob o nº 3830, encontra-se inscrito a favor dos autores, na proporção de 1/5 cada.

2. Em 29 de Fevereiro de 1968, A (…) outorgou no Cartório Notarial de Águeda um testamento mediante o qual deixou como legado aos autores o prédio identificado em 1), e constituiu usufruto sobre o mesmo prédio a favor de M (…).

3. No dia 1 de Fevereiro de 1976, M (…) e A (…) celebraram um acordo, reduzido a escrito, mediante o qual a primeira declarou, na qualidade de proprietária, ceder ao segundo para habitação o 1º andar do prédio identificado em 1), mediante o pagamento da renda mensal de Esc. 1.500$00. (é referido 1.500,00€ no que se trata de um manifesto lapso).

4. A aquisição do direito de usufruto a favor de M (…) foi registada em 2 de Janeiro de 1980.

5. A renda ascende actualmente a € 68,40.

6. M (…) faleceu no dia 13 de Maio de 2011.

7. Em 31 de Maio de 2011, os Autores enviaram uma carta à Ré, que esta recebeu em 1 de Junho de 2011, informando-a da morte daquela, com cópia da respectiva certidão de óbito e, bem assim, com cópia do testamento que os havia instituído legatários do prédio em causa e informaram a Ré de que o referido contrato de arrendamento caducou na data do óbito da M (…), dado que esta o havia celebrado na qualidade de usufrutuária e de que deveria entregar o locado aos Autores, livre de pessoas e bens, decorridos que fossem seis meses a contar do óbito da usufrutuário, ou seja no dia 14 de Novembro de 2011.

IV. Razões de Direito

- Do abuso de direito por parte dos Autores

Estando o âmbito do recurso limitado nas conclusões do Recorrente, nos termos do disposto nos artº 684 nº 3 do C.P.C. e conforme tem vindo a ser jurisprudência unânime, não importará nesta sede discutir a bondade da decisão no que se refere à extinção do contrato de arrendamento, nem à condenação da Ré a indemnizar os Autores pelo atraso na entrega do locado.

Importa sim saber, se os Autores ao reclamarem da Ré a entrega do locado, pelo facto de ter falecido a usufrutária, senhoria, extinguindo-se por isso o usufruto, estão a agir em abuso de direito, conforme refere a Ré.

É certo que esta é uma questão nova que não foi anteriormente suscitada pela Ré, nomeadamente em sede de contestação. De qualquer forma, sendo de conhecimento oficioso, a sua apreciação impõe-se ao tribunal, nos termos do disposto no artº 660 nº 2 do C.P.C.

O instituto do abuso de direito tem a sua previsão no artº 334 do C.Civil que estabelece que é ilegítimo o exercício de um direito, quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico do direito.

Está aqui em causa o exercício anormal do direito em termos reprovados pela lei, ou seja, respeitando a estrutura formal do direito, mas violando a sua afectação substancial, funcional ou teleológica.

Pressuposto do abuso de direito, na invocada modalidade do venire contra factum proprium é, sempre, uma situação objectiva de confiança – uma conduta de alguém que possa ser entendida como posição vinculante em relação à situação futura - e o investimento na confiança pela contraparte e boa fé desta, vd. neste sentido Ac. STJ de 11/3/99, in. CJ VII, 1º tomo, pág.154.

Razões de lealdade e confiança são inerentes ao princípio da boa fé, que se impõe quer na negociação dos contratos, quer na sua execução, conforme dispõem, respectivamente o artº 227 e 762 nº 2 do C.Civil. Pressuposto do abuso de direito, na modalidade de venire contra factum proprium, invocada, é então a criação de uma situação objectiva de confiança- uma conduta de alguém que lhe irá ser vinculativa no futuro, apresentando-se o exercício do direito como contraditório em face de conduta anterior.

Ora, os factos provados, não nos permitem, de forma alguma concluir que os Autores excedem os limites impostos pela boa fé, ao pretender reivindicar da Ré o imóvel de que são proprietários, por morte da usufrutuária que com ela havia celebrado o contrato de arrendamento em questão.

Na verdade, a Ré fundamenta a violação do princípio da boa fé por parte dos Autores, no facto dos mesmos, alegadamente, saberem que a Ré ali vivia há muitos anos e saberem que a senhoria se intitulava, perante a Ré, proprietária do imóvel. Ora, estes factos que apontam para o conhecimento da situação por parte dos AA., não só não resultaram minimamente apurados, como nem sequer foram sequer alegados pela Ré na sua contestação. Nunca a Ré vem dizer no decurso do processo, senão agora, que os Autores sabiam que a senhoria se arrogava como proprietária do imóvel perante a Ré e que tomaram conhecimento das condições em que foi celebrado o contrato de arrendamento.

Assim sendo, já se vê que tais factos não podem agora ser considerados pelo tribunal, por não terem sido alegados e consequentemente nem se ter posto a necessidade de virem a ser objecto de prova, com vista à sua comprovação.

Não temos assim quaisquer elementos que nos permitam dizer que os Autores criaram na Ré a expectativa de que a senhoria era a proprietária do imóvel locado e não usufrutuária, de forma a que o exercício do direito agora pretendido se assuma como contraditório face a toda a sua conduta anterior, em violação de expectativas criadas.

Conclui-se por isso que, em face dos factos apurados, não pode dizer-se como pretende a Ré, que os Autores estão a agir em abuso de direito.

- Da obrigação de indemnizar a Ré nos termos do artº 1032 e 1034 nº 1 b) do C.Civil

Formula a Ré pedido reconvencional, para o caso de vir a ser determinada a extinção do contrato de arrendamento, no sentido dos Autores lhe pagarem quantia não inferior a € 6.000,00 a título de indemnização pelos prejuízos causados, ao abrigo do disposto nos artº 1032 e 1034 b) do C.Civil.

O artº 1034 do C.Civil, com a epígrafe “Ilegitimidade do locador ou deficiência do seu direito”, vem remeter para a aplicação dos dois artigos anteriores, designadamente, conforme previsão da alínea b), “se o seu direito não for de propriedade ou estiver sujeito a algum ónus ou limitação que exceda os limites normais inerentes a este direito.”

Esta norma vem regular as situações em que ocorram vícios ligados ao direito do locador, equiparando-os aos vícios materiais que têm a sua previsão no artº 1032 e que a existirem, leva a considerar-se o contrato não cumprido, desde que verificados os restantes requisitos aí previstos.

Tal como é referido in. Arrendamento Urbano, Laurinda Gemas, Albertina Pedroso e Jorge Caldeira, 3ª ed., pág. 189, em anotação ao artº 1034, a alínea b) respeita aos casos em que o locador se apresenta como proprietário da coisa quando, na verdade, não tem essa qualidade (mas apenas por exemplo, a de locatário ou usufrutuário). Neste caso, não é tecnicamente correcto dizer-se que o contrato não foi cumprido, já que, em bom rigor, o que se verifica, é que não é observado o dever de informação imposto pelo dever geral de boa fé na negociação contratual, nos termos do artº 227 do C.Civil.

Cumpriria assim apreciar se estariam verificados os pressupostos previstos, quer no artº 1032, quer no artº 1034, para que se pudesse considerar o contrato não cumprido, bem como as exclusões do artº 1033 que enumera os casos em que não há falta culposa no incumprimento do contrato, para de seguida se averiguar se a locatária teria o direito a ser indemnizada, conforme o pretendido.

Considera-se, no entanto, tal como bem referiu a decisão sob recurso, que a apreciação destas questões fica prejudicada, pelo factos dos Autores não terem sido parte no contrato de arrendamento, nem terem sido demandados na qualidade de herdeiros (que nem se sabe se são) da senhoria usufrutuária.

É que, a haver obrigação de indemnizar, com base no facto da senhoria não ter informado a Ré da sua qualidade de usufrutuária, esta obrigação surge, naturalmente, e enquanto resultante do incumprimento do contrato ou da violação da obrigação de informação na sua negociação, na esfera jurídica da própria senhoria contratante.

Na verdade, não se tratando de qualquer obrigação inerente aos proprietários do imóvel locado, mas antes uma obrigação contratual ou pré-contratual, que pode determinar, nos termos legais, que se considere o contrato não cumprido, já se vê que tais consequências só podem surgir na esfera jurídica do sujeito contratante.

Tendo a senhoria contratante falecido, pelas obrigações resultantes do incumprimento do contrato é responsável a herança, conforme dispõe o artº 2068 do C.Civil, já que é a herança que responde pelo pagamento das dívidas do falecido.

Nesta medida, não tendo os Autores tido intervenção no contrato, nem tendo sido invocado nos autos que os mesmos são herdeiros da senhoria, por forma a responderem, nos termos gerais pelas forças da herança, em representação daquela, nenhuma responsabilidade lhes pode ser assacada a este respeito.

Conclui-se assim que os Autores não estão obrigados a indemnizar a Ré, nos termos do artº 1032 e 1034 nº 1 b) do C.Civil.

V. Sumário:

1. No artº 1034 nº 1 alínea b) do C.Civil integra-se o caso em que o locador se apresenta como proprietário da coisa quando, na verdade, não tem essa qualidade, sendo apenas usufrutuário

2. Ao remeter para o regime do artº 1032 e 1033 do C.Civil, é considerado o contrato não cumprido (desde que verificados os restantes pressupostos) pela violação do dever de informação imposto pelo principio da boa fé na negociação contratual, nos termos do artº 227 do C.Civil.

3. Eventual obrigação de indemnizar só pode surgir na esfera jurídica do sujeito contratante, constituindo dívida da herança, por sua morte e não na dos proprietários do imóvel locado.

VI. Decisão:

Em face do exposto, julga-se improcedente o recurso de apelação interposto pela Ré EM..., mantendo-se a decisão recorrida.

Custas pela Recorrente.

Notifique.

                                                           *

Maria Inês Moura (relatora)

Luís Cravo (1º adjunto)

Maria José Guerra (2º adjunto)