Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
2186/14.8TJCBR.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: MOREIRA DO CARMO
Descritores: TÍTULO EXECUTIVO
DOCUMENTO PARTICULAR
CONTRATO DE MÚTUO
NOVO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL
APLICAÇÃO DA LEI NO TEMPO
INCONSTITUCIONALIDADE
Data do Acordão: 04/28/2015
Votação: UNANIMIDADE COM * DEC VOT
Tribunal Recurso: COMARCA DE COIMBRA - COIMBRA - INST. CENTRAL - SECÇÃO DE EXECUÇÃO - J2
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: LEI Nº 41/2013 DE 26/6, ART.703 CPXC, DL Nº 287/93 DE 20/8
Sumário: 1. A norma do art. 703º do NCPC, articulada com o art. 6º, nº 3, da Lei 41/2013, de 26.6, na parte que elimina os documentos particulares, não é de aplicar aos documentos constitutivos de obrigações, assinados pelo devedor antes de 31.8.2013, e que à data da sua elaboração dispunham de exequibilidade.
2. Tal norma, aplicada a tais títulos, integra uma inconstitucionalidade, por violar a segurança jurídica, a garantia de efectivação dos direitos e confiança, integradores do princípio do Estado de Direito Democrático – art. 2º da CRP;

3. O documento de contrato de mútuo concedido pela Caixa Geral de Depósitos, nos termos do artigo 9º, nº 4, do DL 287/93, de 20 de Agosto, constitui título executivo.

Decisão Texto Integral:

I – Relatório

1. Caixa Geral de Depósitos, SA, com sede em Lisboa, intentou execução para pagamento de quantia certa contra E (…) e F (…)  , residentes em Souselas, pedindo o pagamento da quantia de 24.038,41 €. Sustentou tal pedido em contrato de mútuo subscrito pela executada, e pelo executado, enquanto fiador, em 13.10.2006. O documento que titula o empréstimo é título executivo, à sombra do art. 703º, d), do NCPC, e art. 9º, nº 4, do DL 287/93, de 20.8.  

Juntou, uma cópia do contrato de mútuo com fiança.

*

Foi proferido despacho que indeferiu liminarmente a presente acção executiva, por se ter considerado que o documento apresentado pela exequente não se mostra revestido de força executiva, nos termos do art. 726º, nº 2, a), do NCPC.

*

2. A exequente interpôs recurso, tendo formulado as seguintes conclusões:

A. A decisão recorrida incorreu em erro de julgamento ao ter indeferido liminarmente a acção executiva instaurada por entender que “o documento particular apresentado pela exequente não se mostra revestido de força executiva – cfr. artºs 726, nº 2, al. a) do Novo Código de Processo Civil”.

B. A recorrente deu à execução, como título executivo, documento particular que importa a constituição e o reconhecimento de obrigações, ou seja, documento não exarado ou autenticado por notário ou por outras entidades profissionais com competência para tal, integrando-se assim na previsão da alínea d) do nº 1 do artigo 703º do CPC.

C. Salvo o devido respeito, o entendimento sufragado pelo Tribunal a quo do artigo 703º conjugada com o 726º n.º 2 a) do NCPC, segundo o qual os credores que viram reconhecido o seu crédito mediante documentos particulares, constituídos em data anterior à entrada em vigor do novo CPC, e que eram então dotados de exequibilidade, com a entrada em vigor do novo CPC, viram aqueles documentos perder a sua exequibilidade é inconstitucional por violação do princípio da segurança jurídica e violação do princípio constitucional da confiança que integra o princípio do Estado de Direito Democrático, previstos no artigo 2.º da Constituição da República Portuguesa.

D. O princípio da protecção da confiança, ínsito no artigo 2º da Constituição da República Portuguesa, “censura normas dotadas de eficácia retroactiva, autêntica e inautêntica, que, sacrificando, interesses legalmente protegidos (e direitos fundamentais), não sejam previsíveis e sejam portadoras de uma oneração excessiva que frustre legítimas expectativas dos seus titulares na continuidade dos regimes onde se sustentou a constituição desses direitos e interesses” (v. Ac. do TRL de 26/03/2014, proc. nº 766/13.8TTALM.L1-4, em www.dgsi.pt).

E. Pelo que, a actuação do Estado deve ter presente e objectivar-se para que haja um mínimo de certeza no direito das pessoas e nas expectativas que lhe são juridicamente criadas, logo, a norma que elimina os documentos particulares do elenco dos títulos executivos viola de forma onerosa as expectativas criadas (v. a este respeito, Maria João Galvão Teles, “A reforma do Código de Processo Civil: A supressão dos documentos particulares do elenco dos títulos executivos”, Julgar on line, 2013).

F. Com efeito, “uma nova lei não pode frustrar de forma intolerável ou arbitrária as expectativas dos cidadãos que haviam sido criadas por uma anterior tutela conferida pelo direito, sob pena de ser considerada inconstitucional por violação do princípio constitucional da confiança que integra o princípio do Estado de Direito Democrático” (v. Ac. do TRE de 27/02/2014, proc. nº 374/13.3TUEVR.E1, em www.dgsi.pt).

G. No mesmo sentido o Ac. do TRL de 26/03/2014, proc. nº 766/13.8TTALM.L1-4, em www.dgsi.pt, segundo o qual : “Os credores que viram reconhecido o seu crédito mediante documentos particulares, constituídos em data anterior à entrada em vigor do novo CPC, e que eram então dotados de exequibilidade, ganharam a legítima expectativa da tutela desses créditos, tutela essa conferida pelo CPC de 1961, daí que a aplicação retroactiva do disposto no art. 703º do CPC constitui uma consequência jurídica demasiado violenta e inadmissível no Estado de Direito Democrático, geradora de uma insegurança jurídica inaceitável, desrespeitando em absoluto as expectativas legítimas e juridicamente criadas” (

H. Deste modo, a eliminação dos documentos particulares do elenco dos títulos executivos constitui uma clara alteração no ordenamento jurídico que não era previsível, uma vez que, quando a recorrente celebrou o contrato dado à execução, o documento particular era dotado de exequibilidade, não estando por isso a recorrente a contar com a alteração da ordem jurídica, através da qual o documento particular perderia a sua exequibilidade.

Acresce que,

I. Ponderadas as razões de interesse público de retirada dos documentos particulares do elenco dos títulos executivos com as legítimas expectativas individuais geradas pelo ordenamento jurídico, prevalecem os interesses particulares, conforme entendimento sufragado pelo Tribunal da Relação de Évora de 27/02/2014: É que pesando as desvantagens dos meios em relação às vantagens do fim, diremos que o sacrifício das expectativas jurídicas criadas é demasiado oneroso para justificar os fins pretendidos com a alteração da ordem jurídica. Uma alteração da ordem jurídica que sacrifique legítimas expectativas de particulares juridicamente criadas só faz sentido e só pode ser admitida quando valores mais elevados de razões da maior importância para a sociedade, justificando-se, então, o sacrifício de alguns em prol do colectivo”.

J. Sem prejuízo do que vem dito, o documento dado à execução pela recorrente estaria dotado de uma “situação de privilégio” por força do artigo 9º, n.º 4 do DL nº 287/93, que ao contrário do que entende o doutro Tribunal a quo, ainda se encontra em vigor.

K. Com efeito, “o legislador manteve inalterada a qualidade de título executivo dos documentos particulares que constituam título executivo por disposição especial de lei. São os chamados títulos executivos judiciais impróprios, particulares e administrativos” (v. Ac. do TRL de 26/06/2014, proc. nº 833/14.0TBVFX.L1).

L. Aliás, o artigo 4º da Lei n.º 41/2013, de 26 de Junho, que determina os diplomas revogados com a entrada em vigor do novo CPC, não faz qualquer alusão ao DL n.º 287/93.

M. Consequentemente, o artigo 9º, n.º 4 do DL nº 287/93 “não foi objecto de revogação expressa, nem tácita, nomeadamente pelo art. 4º da Lei nº 41/2013, de 26.06, sendo certo que se trata de disposição legal especial face à lei geral processual civil” (v. Ac. do TRL de 26/06/2014, proc. nº 833/14.0TBVFX.L1).

N. Deste modo, os documentos particulares celebrados pela recorrente ao abrigo do DL n.º 287/93, como é o caso dos autos, revestem-se “de força executiva, sem necessidade de outras formalidades”, cabendo assim na previsão do artigo 703º, n.º 1, al. d) do CPC.

O. Pelo exposto, a recorrente encontra-se munida de título executivo, pelo que a decisão recorrida não pode manter-se, devendo ser substituída por outra que determine o prosseguimento da execução.

Nestes termos e nos melhores de Direito, o Recorrente está convicto de que Vossas Excelências, apreciando a matéria em questão, subsumindo-a nos comandos legais aplicáveis, tudo no mais alto e ponderado critério, ser concedido provimento ao recurso, revogando-se a decisão recorrida.

Assim se fazendo JUSTIÇA !

3. Inexistem contra-alegações.

II – Factos Provados

Os factos provados são os que dimanam do relatório supra.

III – Do Direito

1. Uma vez que o âmbito objectivo dos recursos é delimitado pelas conclusões apresentadas pelos recorrentes (arts. 639º, nº 1, e 635º, nº 4, do NCPC), apreciaremos, apenas, as questões que ali foram enunciadas.

Nesta conformidade, a única questão a resolver é a seguinte.

- Existência de título executivo.

2. Dispõe o art. 703º do NCPC que:

1 — À execução apenas podem servir de base:

(…)

c) Os títulos de crédito, ainda que meros quirógrafos, desde que, neste caso, os factos constitutivos da relação subjacente constem do próprio documento ou sejam alegados no requerimento executivo;

d) Os documentos a que, por disposição especial, seja atribuída força executiva.

O despacho recorrido baseou-se em dois argumentos: o de que não era inconstitucional a norma resultante dos arts. 703º do NCPC e 6º, nº 3, da Lei nº 41/2013 de 26.6 (que aprovou tal diploma), na interpretação de que aquele art. 703º se aplica a documentos particulares emitidos em data anterior à da entrada em vigor do NCPC e então exequíveis por força do art. 46º, nº 1, c), do CPC de 1961; o de que o contrato de mútuo subscrito pela executada, e pelo executado, enquanto fiador, em 13.10.2006, não era título executivo, à sombra do art. 703º, d), do NCPC, e art. 9º, nº 4, do DL 287/93, de 20.8. 

2.1. Sobre o 1º fundamento, escreveu-se no despacho sob recurso que:

“A exequente “CGD, SA” pretende obter pagamento coercivo da quantia de 24.038,41 euros relativamente aos dois executados E (…) e F (…), com base num documento particular, através do qual esses dois executados se reconhecem devedores das quantias mutuadas, obrigando-se a proceder ao respectivo pagamento pelo modo e condições aí estipuladas.

Da leitura da al. c), do artº. 703, nº. 1, podemos retirar que deixou de poder servir de fundamento à execução um conjunto largo de documentos particulares, a saber: as garantias bancárias, “os contratos de concessão de crédito ou com os documentos subscritos pelo devedor para reconhecimento da obrigação de pagamento ao credor de determinada quantia ou dos quais resulte a constituição da obrigação de pagamento de determinada quantia” 2V. Paulo Faria e Ana Luísa Loureiro, in “Primeiras Notas ao NCPC”, 2014, Vol. II, Almedina, p. 190.

Por isso, as execuções apresentadas a partir de 1 de Setembro de 2013 – cfr. artºs. 6, nº. 3, e 8, da Lei 41/2013, de 26 de Junho – só podem ter como fundamento os documentos referidos no artº. 703 do NCPC, já que todos os documentos particulares, com excepção dos referidos na al. c) – onde não se inclui o título dado à execução -, perderam a sua força executiva.

Segundo Lebre de Freitas 3In “Os Paradigmas da Acção Executiva”, estudo publicado in ROA 2001, II, págs. 543 e ss., o nosso ordenamento jurídico, antes do NCPC, era um dos mais generosos na concessão de exequibilidade a títulos não judiciais.

O NCPC pretendeu, com essa restrição do leque de documentos particulares que podem ser exequíveis, atribuir uma maior segurança jurídica à acção executiva e visou evitar oposições à execução unicamente para a discussão do documento particular e da relação subjacente.

Na exposição de motivos da Proposta de Lei 113/XII 4Disponibilizado no portal citius, podemos ler que: “Considerando-se que, neste momento, funciona adequadamente o procedimento de injunção, entende-se que os pretensos créditos suportados em meros documentos particulares devem passar pelo crivo da injunção, com a dupla vantagem de logo assegurar o contraditório e de, caso não haja oposição do requerido, tornar mais segura a subsequente execução, instaurada com base no título assim formado. Como é evidente, se houver oposição do requerido, isto implicará a conversão do procedimento de injunção numa ação declarativa, que culminará numa sentença, nos termos gerais. Deste modo, relativamente ao regime que tem vigorado, opta-se por retirar exequibilidade aos documentos particulares, qualquer que seja a obrigação que titulem. Ressalvam-se os títulos de crédito, dotados de segurança e fiabilidade no comércio jurídico em termos de justificar a possibilidade de o respetivo credor poder aceder logo à via executiva. Ainda dentro dos títulos de crédito, consagra-se a sua exequibilidade como meros quirógrafos, desde que sejam alegados no requerimento executivo os factos constitutivos da relação subjacente.”.

Assim sendo, com a entrada em vigor do NCPC em 1 de Setembro de 2013 os documentos particulares constitutivos de obrigações e assinados pelo devedor anteriormente a 1 de Setembro de 2013 – que até essa data e pela lei vigente à data da sua constituição gozavam de força executiva –, perdem a sua exequibilidade.

Não desconhecemos que essa eliminação (dos documentos particulares da categoria de títulos executivos) foi considerada inconstitucional, inicialmente, por Maria João Galvão Teles 5In “A Reforma do Código de Processo Civil: A supressão dos documentos particulares do elenco dos títulos executivos”, Julgar on line – 2013, pág. 4., tendo sido acompanhada por alguma jurisprudência 6Acórdãos do TRE de 27.02.2014, relatado por Paula Caroço, e de 10.04.2014, relatado por Mata Ribeiro, e do TRL de 26.03.2014, relatado por Paula Santos, disponíveis in www.dgsi.pt.

Na mesma linha Elisabeth Fernandez 7Cfr. “Um Novo Código de Processo Civil?, Em busca das diferenças”, Vida Económica 2014, págs. 157 e 158  defendeu que um documento particular assinado antes do dia 1 de Setembro de 2013 mantém a sua força executiva independentemente do momento em que vier a ser instaurada a acção executiva, caso contrário verifica-se a inconstitucionalidade do artº. 6, nº. 3, da Lei 41/2013, por restrição retroactiva do direito à tutela judicial efectiva.

Em sentido oposto, podemos consultar Miguel Teixeira de Sousa 8In “blogippc.blogspot.pt”, de 25.03.2014 que defende o seguinte: “não se trata de retroactividade, mas tão só de aplicação imediata do NCPC aos títulos executivos que se formaram na vigência do Antigo Código de Processo Civil. Para que se pudesse falar de retroactividade era necessário que o art. 6º, nº 3, da Lei 41/2013, tivesse retirado carácter executivo a títulos que tinham produzido a sua eficácia no passado, isto é, teria sido necessário que o preceito tivesse atingido execuções baseadas em títulos que deixaram de o ser de acordo com o NCPC. Não é, evidentemente, isto que resulta do art. 6º, nº 3, Lei 41/2013: o que decorre deste preceito é uma aplicação imediata para o futuro do novo elenco dos títulos executivos, deixando intocados todos os efeitos que os agora ex-títulos produziram no passado. A seguir-se a concepção de retroactividade utilizada no acórdão, haveria que qualificar como retroactiva toda a lei que afectasse qualquer situação duradoura que transitasse do domínio da lei antiga para a lei nova (como, por exemplo, uma nova lei sobre o regime do arrendamento que fosse aplicável aos contratos subsistentes à sua entrada em vigor)”.

Logo de seguida, em 26.03.2014, José Lebre de Freitas 9In “blogipps.blogspot.pt”, em resposta à publicação do prof. Teixeira de Sousa refere:

“Sempre se considerou que a exequibilidade é definida pela lei em vigor à data da execução – e bem: não se trata da produção de efeitos dum acto jurídico, mas da opção do legislador sobre a suficiência de documento que permita prescindir da acção declarativa (ou, como bem nota o Prof. Teixeira de Sousa, da injunção). Também quando se alarga o elenco dos títulos é a nova lei – e sempre se considerou ser – de aplicação imediata (a não confundir com retroactividade)”.

Por fim, a eventual inconstitucionalidade da aplicação para o futuro do elenco dos títulos executivos constantes do art. 703º do NCPC e a consequente exclusão daqueles que o eram em face do art. 46º, do anterior CPC, e que deixaram de o ser a partir de 1 de Setembro de 2013, para que seja conforme ao princípio da protecção da confiança, inerente ao Estado de direito (art. 2º) da CRP), é respondida por Baptista Machado da seguinte forma: “a lei nova só tem de respeitar direitos e não simples expectativas”.

As novas normas que dispõem sobre a força executiva dos documentos particulares “apenas regulam o modo de realização judicial de um direito, sem afectarem o direito litigado ou importarem uma diferente valoração jurídica dos factos que lhe deram origem 10Cfr. citações de Paulo Faria e Ana Luísa Loureiro, in “Primeiras Notas ao Novo Código de Processo Civil”, 2014, Vol. II, Almedina, pág. 191, notas 467 e 468.”.

Na jurisprudência, seguimos o acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra relatado pela Exmª. Srª. Desembargadora Maria João Areias … 11Proferido em 7-10-2014 no âmbito do Processo nº. 61/14.5TBSBG.C1, que a propósito do mesmo tema conclui que: “Ora, não nos parece que o interesse público da segurança jurídica que esteve na base da supressão dos documentos particulares (para além do interesse do devedor a não ser executado senão com base na existência de um título que dê garantias bastantes da constituição da dívida) deva ceder perante o interesse daqueles que terão optado pela formalização de acordos com base em documentos particulares confiando na sua susceptibilidade de servirem de base a uma execução 12Sendo que, o novo regime apenas implica que o credor que detinha um título executivo tenha de recorrer a um procedimento de injunção ou à propositura de uma acção declarativa para obter um título que seja válido face às novas exigências. Também Rui Pinto parece apontar nesse sentido, ao propor que o melhor será, a montante, o credor se precaver promovendo a autenticação por termo, do documento particular, ou se tal não for possível, a jusante, obter injunção ou sentença de condenação – “Manual de Execução e Despejo”, Coimbra Editora, pág. 184.

Como referem Paulo Ramos de Faria e Ana Loureiro, “a vontade das partes pode ser coincidente com o efeito que a lei reconhece ao seu acto; mas não é esta vontade que a lei tutela. Sendo coincidente, podem as partes admitir que este efeito perdure, enquanto perdurar a sua relação contratual; mas não podem justificadamente contar com uma tutela legal desta simples expectativa 13“Primeiras Notas (…)”, pág. 191, dando como ex., que o credor que aceita um cheque pode ter em conta a sua tutela penal, mas se o cheque não obtiver pagamento por falta de provisão da conta sacada, não pode, obviamente, invocar esta simples expectativa para perseguir criminalmente o devedor, se uma lei nova vier entretanto descriminalizar a emissão do cheque sem provisão.”.

Em resumo, não enveredamos, pois, pela tese da inconstitucionalidade sobre a aplicação da nova lei aos documentos que perderam a sua força executiva, considerando que as execuções instauradas posteriormente a 1 de Setembro de 2013 não poderão basear-se em documento particular constituído em data anterior e a que fosse atribuída exequibilidade pelo regime vigente à data da sua constituição” – fim de transcrição.
Na decisão recorrida seguiu-se, praticamente na íntegra, o citado acórdão desta Relação de 7.10.2014 (relatado pela actual 2ª adjunta). E deu-se conhecimento das posições divergentes existentes na jurisprudência e na doutrina sobre a aludida temática. Que igualmente se evidenciam nas alegações de recurso da recorrente CGD (vide respectivas conclusões A. a I.).
Podemos adicionar ao debate os Acds. da Rel. de Lisboa, de 19.6.2014, Proc.138/14.7TCFUN, da Rel. Guimarães, de 17.12.2014, Proc.31/14.3TBMDR, e da Rel. Porto, de 27.1.2015, Proc.6620/13.6YYPRT-A, que defendem a posição seguida pela decisão recorrida, essencialmente com a mesma argumentação, e os Acds. da Rel. Lisboa, de 17.12.2014, Proc.23/14.2TBVFX, e da Rel. Évora de 12.3.2015, Proc.321/14.5T8ENT, que defendem a posição oposta da inconstitucionalidade, todos disponíveis em www.dgsi.pt.
A fundamentação jurídica em que se baseiam estas duas referidas correntes, jurisprudencial e doutrinal, está exposta e ressumbra dos autos. Impressiona-nos a argumentação jurídica que defende a aludida inconstitucionalidade, pelo que a ela aderimos.     
Entretanto, a nossa posição saiu reforçada pelo Ac. nº 847/2014, do Tribunal Constitucional, de 3.12.2014, em www.dgsi.pt, que decidiu “Julgar inconstitucional a norma resultante dos arts. 703º do CPC e 6º, n.º 3, da Lei n.º 41/2013 de 26 de Julho, na interpretação de que aquele art. 703º se aplica a documentos particulares emitidos em data anterior à da entrada em vigor do novo CPC e então exequíveis por força do art. 46º, n.º 1, alínea c), do CPC de 1961”, assim considerando materialmente inconstitucional o citado art. 703º, em conjugação com o art. 6º, nº 3, da Lei nº 41/2013, de 26.6, por violação do princípio da confiança, na parte em que retirou exequibilidade a documentos particulares que tinham força executiva à luz da lei vigente na data em que foram elaborados.

Entendemos, por isso, ao contrário do defendido no despacho recorrido, ser inconstitucional, ao abrigo de ambas as normas citadas - 703º do NCPC e 6º, nº 3, da Lei nº 41/2013, de 26.6 – desconsiderar a exequibilidade dos documentos particulares nascida e existente antes da entrada em vigor do NCPC e na altura dotados de tal exequibilidade.  

2.2. Ainda que não fosse por este fundamento, importaria revogar a decisão recorrida com base noutra argumentação.

Na realidade, sobre o 2º fundamento, supra referido, escreveu-se no despacho sob recurso que:

“Posto isso, resta-nos apenas analisar se a norma do artº. 9, nº. 4, do DL 287/93, de 20 de Agosto, que transforma a Caixa Geral de Depósitos em sociedade anónima de capitais exclusivamente públicos – e foi invocada pela exequente no ponto 6, in fine, da sua exposição de factos – se mantém ainda vigente.

Sufragamos, nesta matéria, a posição manifestada por Paulo Faria e Ana Luísa Loureiro 14In obra cit., p. 192 e 193 quando concluem que a vigência do artº. 9, nº. 4, do DL 287/93, de 20/98, já cessou. Isto porque, depois de dissecar a referida disposição com o estabelecido na exposição de motivos da proposta de Lei 113/XII – que esteve na origem do NCPC -, verifica-se que o legislador quis, de modo inequívoco, restringir a força executiva atribuída aos documentos particulares – ressalvando apenas os títulos de crédito, ainda que meros quirógrafos, desde que sejam alegados os factos constitutivos da relação subjacente -, não excepcionando certos credores.

Ou seja, a aqui exequente Caixa Geral de Depósitos não está dotada de uma situação de privilégio por força do artº. 9, nº. 4, do DL 287/93, citado, pois esta norma já não está em vigor, devendo respeitar, assim, o disposto no artº. 703 do NCPC, exercendo a sua actividade em condições iguais às permitidas para as restantes instituições de crédito.

Portanto, também a al. d), do artº. 703, nº. 1, do NCPC, não está preenchida nesta situação em análise” – fim de transcrição.

O art. 9º, nº 4, do DL 287/93, de 20.8, diploma que estabeleceu o regime jurídico da Caixa Geral de Depósitos, S.A., dispõe o seguinte: “os documentos que, titulando acto ou contrato realizado pela Caixa, prevejam a existência de uma obrigação de que a Caixa seja credora e estejam assinados pelo devedor revestem-se de força executiva, sem necessidade de outras formalidades”.

No requerimento executivo, a exequente havia alegado que o contrato dado à execução era título executivo à sombra de tal normativo e do art. 703º, nº 1, d), do NCPC.

No despacho recorrido, seguiu-se o entendimento de que o citado artigo 9º, nº 4, do Decreto-Lei nº 287/93, de 20/8, cessou a sua vigência e, nesse sentido, os contratos dados à execução, configurando meros documentos particulares, não têm natureza de título executivo, dado não se enquadrarem na previsão na previsão contida nas alíneas b) ou d) do nº 1 do artigo 703º do NCPC.
Seguiu-se o referido entendimento defendido por Paulo Faria e Ana L. Loureiro que, a propósito da norma contida naquele preceito, referem: “Importa ter presente que este título em nada difere de todos os restantes que agora perderam a sua força executiva, sendo o único critério putativamente justificador da sua existência a identidade do credor – a Caixa Geral de Depósitos, S.A”.

Cremos, no entanto, que esta posição não deverá ser aceite, pois, o referido preceito legal não foi objecto de revogação expressa, nomeadamente, pelo art. 4º da Lei nº 41/2013, de 26/6, e, por tal razão, afigura-se-nos que os documentos particulares em causa, por titularem actos/contratos realizados pela Caixa, preverem a existência de obrigações por parte da mutuária e estarem assinados pelos devedores (mutuária e fiador), cabem na previsão do art. 703º, nº 1, d), do NCPC, e revestem-se de força executiva, sem necessidade de outras formalidades.

Neste sentido, entre os exemplos de documentos particulares que podem constituir título executivo, L. Freitas enumera, precisamente, o documento de contrato de mútuo concedido pela CGD, nos termos do art. 9º, nº 4, do DL 287/93, - A Acção Executiva à Luz do Código de Processo Civil de 2013, 6ª Ed., pág. 80.

Importa concluir, pois, que, ao contrário do entendimento sufragado na decisão recorrida, os contratos de mútuo dados à execução pela exequente CGD, nos termos do mencionado art. 9º, nº 4, do DL 287/93, constituem título executivo (vide no mesmo sentido o Ac. da Rel. Porto de 26.1.2015, Proc.1162/14.5T8PRT).

Procede, assim, o recurso da exequente Caixa Geral de Depósitos, S.A.
3. Sumariando (art. 663º, nº 7, do NCPC):

i) A norma do art. 703º do NCPC, articulada com o art. 6º, nº 3, da Lei 41/2013, de 26.6, na parte que elimina os documentos particulares, não é de aplicar aos documentos constitutivos de obrigações, assinados pelo devedor antes de 31.8.2013, e que à data da sua elaboração dispunham de exequibilidade;

ii) Tal norma, aplicada a tais títulos, integra uma inconstitucionalidade, por violar a segurança jurídica, a garantia de efectivação dos direitos e confiança, integradores do princípio do Estado de Direito Democrático – art. 2º da CRP;

iii) O documento de contrato de mútuo concedido pela Caixa Geral de Depósitos, nos termos do artigo 9º, nº 4, do DL 287/93, de 20 de Agosto, constitui título executivo.

IV – Decisão

Pelo exposto, julga-se procedente o recurso, assim se revogando a decisão recorrida, e ordenando-se o prosseguimento da execução.

*

Sem custas.

*

                                                                    Coimbra, 28.4.2015

                                                                    Moreira do Carmo ( Relator )

                                                                    Fonte Ramos

                                                                    Maria João Areias         

Declaração de voto:

Concordando, embora, com a solução final a que se chegou no presente acórdão, por se reconhecer que a exequibilidade do título sempre se imporia ao abrigo da alínea d), do nº1 do artigo 703º, dele se discorda na parte em que concluir pela inconstitucionalidade do artigo 703º quando aplicado aos documentos particulares constituídos em dada anterior à publicação do Novo Código.

 Para além dos argumentos já aduzidos no Acórdão de 07.10.2014, de que fui relatora e para o qual se remete (disponibilizado na DGSI), temos a referir que, entretanto, foram proferidos dois acórdãos pelo Tribunal Constitucional (Acórdão nº 847/2014, de 03.12.2014, relatado por Maria de Fátima Mata-Mouros e Acórdão n 161/2015, relatado por Carlos Fernandes Cadilha, disponíveis no site da DGSI). Tais acórdãos, reconhecendo embora que a restrição dos títulos executivos, quando aplicada a títulos formados antes da entrada em vigor do novo Código não implica a retroatividade da lei, encontrando-nos perante aquilo a que a doutrina classifica de “retroatividade inautêntica” ou “retrospetiva”, acabam por formular um juízo de inconstitucionalidade de tal norma, assentando, por um lado, na ideia de que a exclusão imediata de determinado tipo de documento do rol dos títulos executivos acarreta consigo não apenas o acesso imediato à ação executiva como também a privação da presunção de prova do direito de crédito, e por outro lado, na consideração de que, na ponderação entre o efeito negativo sobre o interesse do credor particular e o interesse público da segurança jurídica, deverá ser dada prevalência ao interesse particular do credor por violação do princípio constitucional da confiança.

Contudo, em meu entender, em primeiro lugar, tal norma não interfere com a validade e força probatória dos documentos particulares, que se encontra regulada nos arts. 373º e ss. do CC., em especial no artigo 376º, normas que não foram objeto de qualquer alteração.

Em segundo lugar, e no seguimento do defendido por Miguel Teixeira de Sousa, “a ponderação que importa fazer não é entre o interesse privado (do credor) em poder executar e um interesse público (da comunidade) em evitar execuções injustas, mas entre dois interesses privados contrapostos, ou seja, entre os interesses contraditórios do credor e do devedor”, sendo que, é esta igualdade constitucional dos interesses do credor e do devedor que permite assegurar a constitucionalidade de qualquer das opções possíveis à disposição do legislador ordinário, pois que pode haver motivos justificados quer para alargar o elenco dos títulos executivos (e abranger nele documentos anteriores), quer para restringir esse elenco (e excluir dele documentos anteriores) – “Título executivos perpétuos – anotação ao Ac. do Tribunal Constitucional nº 847/2014, de 03.12.2014”, in Cadernos de Direito Privado, nº 48, Outubro/Dezembro 2014”, págs. 12 a 16.

Mantenho, assim, a posição de constitucionalidade de tal norma anteriormente assumida.

                                                                                 
   Maria João Areias