Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
644/10.2TBCBR-A.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: HENRIQUE ANTUNES
Descritores: PRESCRIÇÃO
DIREITO DE REGRESSO
SEGURADORA
PRAZO
INÍCIO
CONTAGEM DOS PRAZOS
ÓNUS DA PROVA
Data do Acordão: 01/24/2012
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: VARA DE COMPETÊNCIA MISTA DE COIMBRA
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTºS 498º, Nº 2 DO C. CIVIL; 19º, Nº 1, AL. C) DO D. L. Nº 522/85, DE 31/12
Sumário: I - O modo como o Código Civil constrói a sub-rogação legal, permite distingui-la do direito de regresso. Ao contrário do credor sub-rogado, que antes da satisfação do direito do credor era terceiro, alheio ao vínculo obrigacional, o titular do direito de regresso é um devedor com outros, o seu direito nasce, ex novo, com a extinção da obrigação a que também ele estava vinculado.

II - No tocante aos danos causados a terceiros por um veículo terrestre a motor, cujo condutor tenha actuado sobre a influência do álcool, a seguradora da responsabilidade civil e o responsável directo não podem, em relação ao lesado, deixar ser considerados como responsáveis solidários por aqueles danos: o responsável directo com base na responsabilidade civil extracontratual; a seguradora, com base no contrato de seguro de responsabilidade civil (artº 497º, nº 1 do Código Civil).

III - Todavia, entre a seguradora e o responsável directo ocorre uma relação de solidariedade imperfeita ou imprópria, dado o escalonamento sucessivo que caracterizam as relações internas entre ambos os condevedores: o devedor principal é o responsável directo, do qual a seguradora - mero garante da indemnização no confronto dos lesados – poderá exigir tudo o que pagou (artº 19 nº c) do DL nº 522/85, de 31 de Dezembro).

IV - No tocante à indemnização suportada pela seguradora da responsabilidade civil automóvel por danos causados a terceiros pelo conduto do veículo automóvel que tiver agido sob a influência do álcool, a lei é terminante em qualificar o direito de reembolso da indemnização que satisfez que lhe assiste, como direito de regresso.

V - Ainda que no plano teórico parecesse mais ajustado o enquadramento a situação na categoria técnica da sub-rogação, o caso deve, ter-se, ex-vi legis, como de verdadeiro direito de regresso.

VI - Por força desta qualificação, é patente que o direito de regresso da seguradora se não confunde, de todo, com o direito de indemnização que contra ela foi feito valer pelos lesados: com a satisfação desta indemnização – e só com essa satisfação – surge na esfera jurídico-patrimonial da seguradora um direito de crédito verdadeiramente novo, embora consequente à extinção da relação creditícia de indemnização anterior.

VII - Por sua vez, o direito de regresso deve ser exercido em prazo igual ao previsto para o exercício do direito de indemnização, com uma diferença sensível: o prazo conta-se, agora, da data do cumprimento da obrigação (artº 498º, nº 2 do Código Civil).

VIII - O direito de regresso do segurador que tiver satisfeito a indemnização ao lesado não beneficia do maior prazo disponibilizado ou assinado na lei para a prescrição do procedimento criminal.

IX - Aquele prazo de prescrição é, portanto, e sempre, de apenas 3 anos, contados do cumprimento da obrigação de indemnização que, por força do contrato de seguro, vincula o segurador.

X - No tocante ao direito de regresso entre responsáveis, é nítida a orientação pelo sistema objectivo: o prazo prescricional conta-se do cumprimento da obrigação de indemnização (artº 498º, nº 2 do Código Civil).

XI - Uma jurisprudência largamente maioritária, mesmo do Supremo, fazia situar o terminus a quo do prazo prescricional no segundo daqueles momentos: o decurso do prazo prescricional operaria a partir de cada acto de pagamento parcelar ou fraccionado e não a partir do último.

XII - Mas também a este propósito é patente uma mudança de orientação da jurisprudência do Supremo que vem sustentando, ultimamente, que o prazo de prescrição considerado se conta, por regra, desde o último de pagamento, pelo segurador, da indemnização ao lesado.

XIII – É, pois, de três anos o prazo de prescrição do direito de regresso da seguradora relativamente à indemnização que tenha satisfeito aos lesados em acidente de viação causalmente conexionado com o estado de alcoolemia do condutor do veículo automóvel.

XIV - Esse prazo de prescrição inicia o seu curso com o último acto de pagamento parcelar da indemnização, excepto no tocante à indemnização em renda e, por aplicação de um critério funcional, aos núcleos indemnizatórios autónomos e juridicamente diferenciados e normativamente cindíveis, casos que a prescrição inicia o seu curso no momento em que ocorreu o adiantamento da indemnização.

XV - O ónus da prova de que os actos de pagamento parcelares da indemnização, realizados pelo segurador para além dos três anos que precederam a citação do demandado para a acção de regresso, representam núcleos indemnizatórios autónomos e juridicamente diferenciados e normativamente cindíveis, vincula o último.

Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra:

1. Relatório.

Companhia de Seguros A…, SA propôs, na 1ª secção da Vara de Competência Mista de Coimbra, contra H…, acção declarativa de condenação com processo comum, ordinário pelo valor, pedindo a declaração de que o último é exclusivamente responsável pela ocorrência do acidente e a condenação do demandado a pagar-lhe a quantia de € 36.800,80, acrescida de juros legais, desde a citação até pagamento.

Fundamentou a sua pretensão no facto de ter celebrado com o réu um contrato de seguro da responsabilidade civil por danos causados a terceiros com o veículo automóvel …, de no dia 5 de Outubro de 2005, o réu, por apresentar uma taxa de álcool no sangue de 0,92 g/l, que o afectou nas suas capacidades para o exercício da condução, ao chegar ao entroncamento da Praça 25 de Abril, em Coimbra, e virado á esquerda em direcção ao estádio Cidade de Coimbra, ter passado a circular na via reservada ao trânsito de sentido contrário, indo embater no veículo automóvel …, conduzido por F…, causando a este e à outra ocupante do mesmo veículo, M…, várias lesões, e de ter pago, a cada um deles, no dia 18 de Setembro de 2000, a título de danos não patrimoniais, as quantias de € 10.000,00, e ainda as quantias de € 4.303,54 e de € 1.121,00, tendo pago aos Hospitais da Universidade de Coimbra e à Casa de Saúde de …, pelos serviços clínicos prestados aos lesados, e ao perito liquidatário, pela intervenção na regularização do sinistro, as quantias de € 571,20, € 10.625,06 e € 180,00, respectivamente, quantias relativamente às quais goza, relativamente ao réu, de direito de regresso.

O réu defendeu-se, por impugnação, negando qualquer relação entre a taxa de álcool de que seria portador e o acidente e imputando-o a F…, e por excepção peremptória, invocando a prescrição do direito de regresso da autora relativamente a todos os pagamentos alegados pela última, que também impugnou, ocorridos há mais de 3 anos relativamente à sua citação para a acção.

A autora replicou que não decorreram mais de três anos entre os pagamentos da indemnização por danos morais e a proposição da acção e que do comportamento do réu resultou ofensa à integridade física por negligência nas pessoas de F… e M…, crime cujo procedimento criminal se extingue decorridos que sejam 5 anos sobre a sua prática, prazo que será aplicável nos autos.

O Sr. Juiz de Direito, logo no despacho saneador, depois de fazer notar que a acção foi proposta no dia 6 de Maio de 2010 e que o réu se deve considera citado 5 dias depois – dado que a citação ocorreu no dia 1 de Junho de 2010 – e que o prazo de prescrição aplicável é o de 3 anos, julgou procedente a excepção peremptória correspondente, no tocante aos pagamentos efectuados pela autora aos Hospitais da Universidade de Coimbra, à Casa de Saúde de …, a F… em 26 de Outubro de 2006 e entre 19 de Janeiro e 28 de Dezembro de 2006, a título de despesas de tratamentos e abonos, e a M…, entre 7 de Julho e 9 de Novembro de 2006, a título de despesas de tratamentos e abonos, e absolveu o réu do pedido relativo a tais pagamentos.

Apelou, naturalmente, a autora, pedindo a revogação da decisão impugnada e a sua substituição por outra que julgue improcedente aquela excepção.

A recorrente condensou a sua alegação nas conclusões seguintes:

Não foi oferecida resposta.

2. Factos relevantes para o conhecimento do objecto do recurso.

Para a apreciação do objecto do recurso releva e está documentalmente provado o facto seguinte:

2.1. A petição inicial deu entrada na secretaria judicial no dia 6 de Maio de 2010.

3. Fundamentos.

3.1. Delimitação objectiva do âmbito do recurso.

Além de delimitado pelo objecto da acção e pelos eventuais casos julgados formados na instância recorrida e pela parte dispositiva da decisão impugnada que for desfavorável ao impugnante, o âmbito, subjectivo ou objectivo, do recurso pode ser limitado pelo próprio recorrente. Essa restrição pode ser realizada no requerimento de interposição ou nas conclusões da alegação (artº 684 nºs 2, 1ª parte, e 3 do CPC).

Nas conclusões da sua alegação, é lícito ao recorrente restringir, expressa ou tacitamente, o objecto inicial do recurso (artº 684 nº 2 do CPC). Porém, se tiver restringido o objecto do recurso no requerimento de interposição, não pode ampliá-lo nas conclusões[1].

Nestas condições, tendo em conta os parâmetros de delimitação da competência decisória deste Tribunal representados pelo conteúdo da decisão recorrida e da alegação das partes, a única questão concreta controversa que há que resolver é a de saber se o direito de crédito que a apelante pretende declarar e fazer na acção contra o recorrido foi ou não, ao menos em parte, atingido pela prescrição.

A resolução deste problema exige, evidentemente, a determinação do prazo prescricional que lhe é aplicável e do terminus a quo desse mesmo prazo.

3.2. Prazo de prescrição aplicável.

A prescrição – de que o Código Civil não dá uma noção – assenta num facto jurídico involuntário: o decurso do tempo. A ideia comum que lhe preside é a de uma situação de facto que se traduz na falta de exercício dum poder, numa inércia de alguém que, podendo ou porventura devendo actuar para a realização do direito, se abstém de o fazer[2].

Verificada a prescrição, o seu beneficiário tem a faculdade de, licitamente, recusar a prestação a que estava adstrito (artº 304 nº 1 do Código Civil).

A prescrição não tem, portanto, uma eficácia extintiva, antes se limita a paralisar o direito do credor, dado que apenas confere o direito potestativo de a invocar: se este direito não for exercido, a obrigação mantém-se civil, não se produzindo quaisquer efeitos; se a prescrição for invocada, a obrigação converter-se-á em obrigação natural – como tal inexigível, mas com solutio retendi[3].

É, naturalmente, sobre o devedor que recai o encargo de provar a prescrição da obrigação, ou melhor, dos seus elementos estruturais: a não exigência do crédito pelo credor; o início e o decurso do lapso prescricional (artº 342 nº 2 do Código Civil).

Uma pluralidade de qualificações do dever de indemnização não tem qualquer relevância prática num ordenamento jurídico em que os regimes da responsabilidade contratual e delitual são totalmente coincidentes. Mas não é esse, decerto, o caso do direito português.

Entre nós, a regulamentação dessas responsabilidades divergem, designadamente, em aspectos tão relevantes como a determinação do ónus da prova – dado que enquanto na ilicitude delitual a regra é a prova da culpa pelo lesado e a excepção é a presunção da culpa pelo agente, na ilicitude contratual o princípio é a presunção de culpa do devedor remisso (artºs 487 nº 1, 491, 492 nº 1, 493 e 799 nº 1 do Código Civil); a medida da culpa, porque na responsabilidade ex delicto é suficiente a negligência do infractor e na responsabilidade ex contractu é exigida, nalgumas situações, o dolo do faltoso (artºs 487 nº 2 e 494, 814 nº 1, 915, 957, 1134 e 1151 do Código Civil) e – ponto que releva para a economia do recurso – o prazo prescricional, pois que na responsabilidade delitual a pretensão de reparação prescreve, em regra, em três anos, e na responsabilidade contratual o dever de indemnização é regulado, em regra, pelo prazo prescricional ordinário de vinte anos (artºs 309 e 498 do Código Civil).

Como logo se intui, as especificidades da ilicitude contratual e da ilicitude delitual tornam particularmente relevante a qualificação, em cada caso concreto, da responsabilidade como contratual ou extracontratual.

No direito português, as modalidades de responsabilidade distribuem-se em consonância com o interesse atingido pela acção ou omissão ilícita e não segundo a origem contratual ou extracontratual do acto ilicitamente realizado ou omitido. Se o dano afecta o interesse contratual, a responsabilidade é sempre obrigacional; se o prejuízo atinge um interesse extracontratual, a responsabilidade é sempre delitual[4].

Em face destes parâmetros de repartição das formas de responsabilidade do direito positivo, é patente que o dever de reembolso que, segundo a autora vincula o réu, não resulta da violação de qualquer dever contratual, não procede de qualquer incumprimento contratual, antes emerge da infracção de um interesse extracontratual: a lesão do bem integridade física de duas pessoas. À luz da causa petendi desenhada pela apelante na petição inicial, o dever de restituição a que o apelado está adstrito não assenta na violação, pelo demandado, de deveres contratualmente impostos ou assumidos; a pretensão indemnizatória, que a recorrente afirma ter adquirido, funda-se, isso sim, dado que o interesse atingido é extracontratual, numa responsabilidade puramente delitual.

Fundando-se a pretensão de que a autora se diz titular numa responsabilidade ex delicto, a sujeição do crédito correspondente aos prazos de prescrição específicos da responsabilidade aquiliana é meramente consequencial.

Todavia, esta conclusão está longe de resolver todos os problemas, dada a dualidade dos prazos de prescrição do dever de reparação fundado na responsabilidade extracontratual disposta na lei (artº 498 nºs 1 e 3 do Código Civil).

No caso que nos ocupa, a recorrente faz derivar o seu direito de crédito deste facto complexo: por força do contrato de seguro de responsabilidade civil automóvel por danos causados a terceiros com o veículo automóvel …, que concluí com o réu, procedi ao pagamento de indemnizações, por danos patrimoniais e não patrimoniais, às pessoas que sofreram lesões corporais – F… e M… – aos estabelecimentos hospitalares que os tratarem e assistiram e, bem assim, ao perito que interveio no processo de regularização do sinistro; como este ficou a dever-se à actuação sob o efeito do álcool do segurado e condutor do veículo seguro, gozo, relativamente àquele, do direito de regresso por tudo o que paguei aos titulares do direito à indemnização.

É discutível, ao menos no domínio estritamente teórico, se o direito de reembolso que a lei reconhece ao segurador deve ser qualificado como sub-rogação antes como direito de regresso.

No plano dogmático, a diferença entre sub-rogação e o direito de regresso é clara e cristalina.

Na sub-rogação legal verifica-se, uma sucessão, uma transmissão do crédito – que mantém a sua identidade e os seus acessórios, apesar da modificação subjectiva operada: o credor sub-rogado continua o direito de crédito anterior, no todo ou em parte, consoante a sub-rogação seja total ou parcial. Já o direito de regresso, por exemplo, no caso paradigmático nas obrigações solidárias, é um direito novo, que nasce ou se constitui na esfera do solvens, em consequência do cumprimento de uma obrigação: é um novo direito de crédito a que corresponde também um novo dever de prestar.

É claro que esta diferença entre uma e outra figura se projecta inevitavelmente no seu regime. Se o caso for de transmissão da obrigação, o novo credor não poderá exigir do devedor a realização da prestação devida em termos diferentes dos que podia fazer o credor anterior; tratando-se, porém, de direito de regresso, o conteúdo da obrigação extinta ou as suas garantias e acessórios já não é tão determinante: o novo direito tem um regime novo, ainda que sejam patentes algumas semelhanças face ao conteúdo do direito extinto.

A nossa lei civil fundamental regula a sub-rogação em sede de transmissão das obrigações, ao lado da cessão de créditos e da assunção de dívida (artº do Código Civil). A doutrina nota, una voce, que a sub-rogação se traduz na substituição do credor na titularidade do direito por outrem, que realizou a prestação devida pelo devedor ou que forneceu a este os meios necessários para o efeito.

Em qualquer das modalidades reguladas de sub-rogação – pelo credor, pelo devedor ou legal – a satisfação dada ao direito do credor não extingue o direito, que se transmite para um novo titular, na medida exacta dessa satisfação (artº 593 nº 1, 594 e 582 do Código Civil).

No tocante à sub-rogação voluntária, credor sub-rogado é nitidamente um terceiro que realiza a prestação devida (artºs 589 e 590 do Código Civil). Já no tocante à sub-rogação legal, a conclusão, no tocante à solidariedade passiva, não é isenta de dúvidas, face à dificuldade em definir o directo interesse na satisfação do crédito, de que a lei faz depender a admissibilidade da sub-rogação (artº 592 nº 1, in fine, do Código Civil)[5]. Seja como for, a par deste caso, a lei admite a sub-rogação legal a favor do terceiro que tenha garantido o cumprimento (artº 592 nº 1, 1ª parte, do CC).

O modo como o Código Civil constrói a sub-rogação legal, permite distingui-la do direito de regresso. Ao contrário do credor sub-rogado, que antes da satisfação do direito do credor era terceiro, alheio ao vínculo obrigacional, o titular do direito de regresso é um devedor com outros, o seu direito nasce, ex novo, com a extinção da obrigação a que também ele estava vinculado. No exemplo característico da solidariedade passiva, o direito de regresso configura-se como um direito à restituição ou reintegração face a outros co-obrigados, por parte do devedor que cumpriu mais do que lhe competia, no plano das relações internas (artº 524 do Código Civil).

Mas esta conclusão só é exacta no tocante à solidariedade passiva própria, i.e., aos casos em que todos os devedores solidários assumem definitivamente um quota-parte do débito comum e em que, portanto, o co-devedor que satisfez a totalidade da prestação pode repercutir nos restantes uma parcela da prestação que satisfez ao credor. Já não assim nos casos de solidariedade imprópria ou imperfeita, em que os as relações internas dos vários co-devedores se baseiam numa disjunção ou no escalonamento ou na hierarquização sucessiva das diversas obrigações, em que incumbe a um dos devedores, em primeira linha, realizar ao credor a totalidade da prestação devida, podendo, porém, num segundo momento, exigir a totalidade daquilo que prestou de um outro devedor, que é considerado devedor principal ou definitivo. Nestas situações, a satisfação do interesse do credor pelo devedor de primeiro grau não lhe confere qualquer direito de regresso sobre os co-devedores de segundo grau; pelo contrário, nos casos em que o credor obtém a prestação do devedor de segundo grau, este – porque só responde transitoriamente, por uma espécie de prestação de adiantamento - fica investido num direito de reembolso de tudo aquilo que prestou sobre o devedor principal e definitivo da obrigação.

À parte a constelação de casos típicos de solidariedade passiva própria – em que o direito de reembolso do devedor que cumpriu é nitidamente um direito de regresso – e do cumprimento da obrigação por terceiro, não vinculado perante o credor, ou pelo devedor subsidiário e mero garante pessoal do cumprimento – em que o direito de reembolso é actuado por via da sub-rogação – é muita vezes particularmente espinhosa a exacta qualificação do instrumento jurídico adequado para o devedor que cumpriu se fazer reembolsar daquilo que satisfez ao credor.

De outro aspecto, a amplitude com que a lei define os pressupostos da sub-rogação legal – interesse directo no cumprimento; garantia do cumprimento – tem levado a jurisprudência, fora dos casos de solidariedade própria passiva e na ausência de uma previsão específica de um direito de regresso, e de modo a evitar um benefício injustificado do lesante, a indicar a sub-rogação como meio jurídico adequado para o devedor que cumpriu, mas que não deva suportar definitivamente o sacrifício patrimonial do cumprimento, seja reembolsado, do devedor que, em última extremidade deve suportar a realização da prestação, do que satisfez ao credor[6]. Não se encontra melhor exemplo do que o Acórdão do Plenário do STJ nº 5/97, de 14 de Janeiro de 1997 – DR, I Série, de 23 de Março de 1997 – de harmonia com o qual o Estado tem o direito de ser reembolsado, por via de sub-rogação legal, do que despendeu com vencimentos a um seu funcionário, ausente do serviço e impossibilitado da prestação da contrapartida laboral, por doença resultante de acidente de viação e simultaneamente de serviço, causado por culpa de terceiro.

Como exemplo característico da solidariedade imprópria ou imperfeita apontava-se também, justamente - apesar de a lei falar abertamente em direito de regresso - a concorrência entre a responsabilidade civil de terceiro e a responsabilidade por acidente de trabalho (Base XXXVII da Lei nº 1 127, de 3 de Agosto de 1965).

No tocante aos danos causados a terceiros por um veículo terrestre a motor, cujo condutor tenha actuado sobre a influência do álcool, a seguradora da responsabilidade civil e o responsável directo não podem, em relação ao lesado, deixar ser considerados como responsáveis solidários por aqueles danos: o responsável directo com base na responsabilidade civil extracontratual; a seguradora, com base no contrato de seguro de responsabilidade civil (artº 497 nº 1 do Código Civil).

Todavia, entre a seguradora e o responsável directo, ocorre uma relação de solidariedade imperfeita ou imprópria, dado o escalonamento sucessivo que caracterizam as relações internas entre ambos os condevedores: o devedor principal é o responsável directo, do qual a seguradora - mero garante da indemnização no confronto dos lesados – poderá exigir tudo o que pagou (artº 19 nº c) do DL nº 522/85, de 31 de Dezembro)[7].

No tocante à indemnização suportada pela seguradora da responsabilidade civil automóvel por danos causados a terceiros pelo conduto do veículo automóvel que tiver agido sob a influência do álcool, a lei é terminante em qualificar o direito de reembolso da indemnização que satisfez que lhe assiste, como direito de regresso. Ainda que no plano teórico parecesse mais ajustado o enquadramento a situação na categoria técnica da sub-rogação, o caso deve, ter-se, ex-vi legis, como de verdadeiro direito de regresso[8].

Por força desta qualificação, é patente que o direito de regresso da seguradora se não confunde, de todo, com o direito de indemnização que contra ela foi feito valer pelos lesados: com a satisfação desta indemnização – e só com essa satisfação – surge na esfera jurídico-patrimonial da seguradora um direito de crédito verdadeiramente novo, embora consequente à extinção da relação creditícia de indemnização anterior.

O direito de crédito de indemnização assente na responsabilidade delitual prescreve no prazo de três anos a contar da data em que o lesado teve conhecimento do seu direito excepto se o facto ilícito constitutivo da responsabilidade integrar crime para o qual a lei estabeleça prazo mais longo, caso em que será este o aplicável (artº 498 nºs 1 e 3 do Código Civil).

Por sua vez, o direito de regresso deve ser exercido em prazo igual ao previsto para o exercício do direito de indemnização, com uma diferença sensível: o prazo conta-se, agora, da data do cumprimento da obrigação (artº 498 nº 2 do Código Civil).

Os factos invocados pela recorrente a título de causa petendi são susceptíveis de ser subsumidos ao tipo criminal da ofensa à integridade física por negligência, previsto e punido no artº 148 nº 1 do Código Penal, com pena de prisão até 1 ou com pena de multa até 120 dias. O procedimento criminal correspondente extingue-se, por prescrição, quando sobre a prática daquele crime tiver decorrido o prazo de 5 anos (artº 118 nº 1 c) do Código Penal).

Ora, dado que no caso o prazo de prescrição procedimento criminal é mais longo é esse, decerto, o abstractamente o aplicável à obrigação primária de indemnização – embora só o seja, efectivamente, se o lesado demonstrar o preenchimento do tipo objectivo e subjectivo daquele crime, portanto, além do elemento que confere especificidade ao tipo de ilícito negligente - a violação pela agente de um dever objectivo de cuidado que, no caso, sobre ele juridicamente impedia – a culpa desse agente, que é dada, nos termos gerais, pela censurabilidade da acção ilícita-típica, em função da atitude interna juridicamente desaprovada, que naquela se expressa e fundamenta (artº 15 do Código Penal).

O que se pergunta é se esse maior prazo é também aplicável ao direito de regresso da seguradora que satisfez aquela obrigação de indemnização. A resposta da jurisprudência está longe de ser acorde.

Efectivamente, uma jurisprudência largamente maioritária considerava que o direito de regresso não está sujeito ao prazo prescricional único de três anos, podendo beneficiar, nas condições apontadas, do prazo de prescrição do procedimento criminal, se este for mais longo (artº 498 nºs 2 e 3 do Código Civil)[9].

Trata-se, de resto, parece, a solução para a qual se inclinava, até há bem pouco tempo, a jurisprudência do Supremo[10]. Recentemente, porém, o mesmo Supremo mudou de orientação, passando a entender, maioritariamente, que o maior prazo de prescrição, correspondente à prescrição do procedimento criminal, não é aplicável ao direito de regresso da seguradora, fundado na alínea c) do artº 19 do DL nº 522/85 de 31 de Dezembro[11].

Esta solução – por ter contra si um argumento textual – assenta sobretudo, em argumentos extra-textuais, concentrados em argumentos teleológicos (telelógico-objectivo).

De um aspecto, faz-se notar que a razão de ser do alargamento do prazo de prescrição do direito do lesado, quanto o facto lesivo constitui simultaneamente um facto qualificado como crime, cujo procedimento criminal esteja sujeito a um prazo superior a 3 anos - a possibilidade de o facto, para efeitos das consequências jurídicas do crime poder ser apreciado para além dos 3 anos, transcorridos sobre a data da sua verificação que justifica que possibilidade análoga se ofereça à responsabilidade civil dele decorrente, responsabilidade que, de resto, por força do princípio da adesão ou da interdependência da acção civil correspondente, terá de ser actuada no processo penal – não vale para o direito de regresso (artºs 128 do Código Penal e 71 do Código de Processo Penal); de outro, sublinha-se que o regresso constitui um direito novo, inteiramente dissociado quer do facto gerador da responsabilidade civil, quer, sobretudo, do facto qualificado na lei como crime: o facto do pagamento da indemnização ao lesado opera a extinção da obrigação primária de indemnização, extinção que, do mesmo passo, faz constituir, na esfera jurídica do segurador um direito novo que releva e se baseia no regime específico do contrato de seguro obrigatório – tendo, portanto, uma base contratual – e não tanto na ilicitude extracontratual em que se fundamenta o direito de indemnização cuja satisfação está na base do regresso.

É este o entendimento do problema – que a sentença impugnada também fez seu – que se tem por exacto: o direito de regresso do segurador que tiver satisfeito a indemnização ao lesado não beneficia do maior prazo disponibilizado ou assinado na lei para a prescrição do procedimento criminal.

Esta conclusão é, de resto, a que melhor se harmoniza com a ratio, neste contexto, da prescrição: perante um dano que dê lugar a um dever de indemnizar, a lei pretende uma solução rápida; a incerteza é sempre prejudicial, ao passo que a dilação dificulta a reconstituição e a prova das circunstâncias que rodeiam e que explicam o facto danoso. O primeiro destes aspectos leva a que o direito de regresso entre responsáveis prescreva no prazo de três anos: a pessoa chamada por via do regresso deve, quanto possível, estar próxima do facto danoso. Um prazo curto de três anos não deixa ainda de ligar-se às perspectivas que acentuam na responsabilidade civil, dimensões preventivas e mesmo retributivas, que, inevitavelmente se perderiam no caso de um afastamento temporal largo entre o exercício do regresso, relativamente aos factos constitutivos da responsabilidade.

Aquele prazo de prescrição é, portanto, e sempre, de apenas 3 anos, contados do cumprimento da obrigação de indemnização que, por força do contrato de seguro, vincula o segurador.

Resta, porém, saber em que momento é que um tal prazo de prescrição inicia o seu curso.

3.3. Início do prazo de prescrição do direito de regresso entre responsáveis.

O início do prazo de prescrição é, evidentemente, um factor estruturante do próprio instituto. No tocante à obrigação de indemnização fundada numa responsabilidade aquiliana o Código Civil adopta, em contrário da regra geral, o sistema subjectivo: o prazo começa a correr quando o lesado tenha conhecimento dos elementos essenciais do seu direito (artº 498 nº 1 do Código Civil). Já, porém, no tocante ao direito de regresso entre responsáveis, é nítida a orientação pelo sistema objectivo: o prazo prescricional conta-se do cumprimento da obrigação de indemnização (artº 498 nº 2 do Código Civil).

Na espécie do recurso é patente que a decisão impugnada situou o inicio do prazo de prescrição, separadamente, relativamente a cada acto singular de pagamento, pela recorrente, da indemnização aos lesados e aos estabelecimentos hospitalares que lhes prestaram serviços de assistência ou tratamento. De harmonia com a sentença recorrida, o dies a quo do prazo de prescrição do regresso corresponde à data em que a recorrente efectuou cada um dos diversos actos singulares de pagamento da indemnização.

A recorrente sustenta, porém, no recurso, que o início do prazo de prescrição a que o seu direito está submetido se conta do último pagamento, o mesmo é dizer, do último acto de satisfação, aos lesados, do direito à reparação.

Também este ponto particular é objecto de uma jurisprudência desencontrada e, portanto, incerta. A controvérsia gravita em torno da questão de saber o que se deve entender por cumprimento da obrigação – primitiva ou primária – de indemnização.

De todos os momentos possíveis – do primeiro acto de pagamento da indemnização[12]; de cada acto de pagamento dessa indemnização; do último destes actos de pagamento – uma jurisprudência largamente maioritária, mesmo do Supremo, fazia situar o terminus a quo do prazo prescricional, no segundo daqueles momentos: o decurso do prazo prescricional operaria a partir de cada acto de pagamento parcelar ou fraccionado e não a partir do último[13].

Os fundamentos finais e os princípios gerais a que obedece a prescrição da obrigação de indemnização fundada na responsabilidade aquiliana – de harmonia com os quais o prazo da prescrição se inicia no momento em que o direito pode ser exercido, na sequência do conhecimento do direito que compete ao lesado embora na ignorância da pessoa do responsável e da extensão dos danos – inculcariam que a solução que a solução materialmente mais adequada consistiria em situar o início do curso do prazo da prescrição do direito de regresso do segurador no momento em que, com conhecimento de que o acidente é objectivamente imputável à alcoolemia que afectava o obrigado de regresso, satisfaz uma qualquer parcela da indemnização de que é devedor.

Esta solução é, porém, incompatível com o princípio de que o direito de regresso – à imagem do que ocorre com a sub-rogação – não é admissível no tocante a prestações futuras (Assento do STJ nº 2/78, de 9 de Novembro de 1977 publicado no DR, I Série, de 22 de Março de 1978, hoje, com a autoridade diminuída de acórdão de uniformização de jurisprudência – artº 17 nº 2 do DL nº 329-A/95, de 12 de Dezembro).

O que torna razoável que o prazo de prescrição inicie o seu curso sem que o lesado tenha efectivo conhecimento da extensão dos danos é a possibilidade de, na acção destinada a actuar a responsabilidade, deduzir um pedido genérico e mesmo de obter de obter uma condenação do responsável também puramente genérica (artºs 569 do Código Civil, 471 nº 1 b) e 661 nº 2 do CPC).

Uma tal faculdade não é, porém, reconhecida ao segurador na actuação do direito de regresso, dado que um tal direito é um direito novo que só se constitui com o cumprimento da obrigação de indemnização, o que exclui, por inteiro, evidentemente, qualquer possibilidade do seu exercício de forma antecipada relativamente a cada acto de pagamento parcelar da indemnização.

Esta razão obsta, decisivamente, a que o início do prazo de prescrição do direito de regresso se deva contar do primeiro acto de pagamento da indemnização, pelo que a opção se resume a esta alternativa: ou contar aquele prazo, de forma atomística, relativamente a cada parcela da indemnização satisfeita ao lesado; ou situar o início desse mesmo prazo, em homenagem ao carácter unitário da obrigação de indemnização, no momento em que essa obrigação, por aplicação do princípio da reparação integral do dano, se mostrar cumprida na sua totalidade.

Mas também a este propósito é patente uma mudança de orientação da jurisprudência do Supremo que vem sustentando, ultimamente, que o prazo de prescrição considerado se conta, por regra, desde o último de pagamento, pelo segurador, da indemnização ao lesado[14].

Esta solução assenta no carácter unitário da obrigação de indemnizar cada lesado da pluralidade de danos que o facto ilícito lhe causou – unidade da obrigação que traz implicada a unidade da prescrição - e na necessidade de evitar a proliferação das acções de regresso, sobretudo no caso de pagamentos fragmentados por lapsos de tempo significativamente dilatados. A estas razões bem pode somar-se esta outra: a tutela do lesado que seria significativamente diminuída já que o segurador, confrontado com a necessidade de promover sucessivas acções de regresso, tenderá a não proceder a pagamentos faseados ou parcelares da indemnização mas a um pagamento concentrado mas diferido no tempo relativamente à verificação do facto ilícito gerador da responsabilidade.

É claro que esta proposta de solução não é isenta de reparos nem de inconvenientes, de que se salientam estes: o excessivo retardamento do exercício da acção de regresso e o agravamento da posição do demandado, que poderá ser confrontado com a exigência de discutir as causas do acidente, de modo a determinar se a alcoolemia de que era portador contribuiu ou não para o sinistro, muito tempo para além do prazo geral de 3 anos, assinado na lei; a verdadeira imprescritibilidade do direito de regresso, na hipótese da indemnização em renda vitalícia, visto que nesse caso, o exercício do regresso só poderia ser actuado no momento em que cessasse a obrigação, do segurador, de a pagar.

Sensível a esta consequência desrazoável – um alargamento desproporcionado do prazo prescricional do regresso, como sucederá, decerto nos casos em que a obrigação de indemnização compreenda danos futuros susceptíveis de se relevarem e desenvolverem ao longo de arcos temporais especialmente alargados - o Supremo, num primeiro momento[15], exceptuou da regra de que a prescrição do direito de regresso se conta do último de pagamento, a indemnização em renda, excepção, que, num segundo momento[16], alargou, aos danos actuais, causados pelo facto gerador da responsabilidade, já perfeitamente consolidados e devidamente ressarcidos.

Uma tal jurisprudência obedece, declarada e nitidamente, a este pensamento: a recusa – por força do carácter unitário da obrigação da indemnização - da autonomização do início de sucessivos e diferenciados prazos prescricionais, aplicáveis ao regresso do segurador, em função de circunstâncias puramente aleatórias, ligadas apenas ao momento em que foi satisfeita parte da indemnização, excepto nos casos em que – por aplicação de critérios funcionais, ligados à natureza da indemnização e ao tipo de bem jurídico atingido – essa autonomização se justifique, com o consequente ónus do segurador de actuar logo o direito de regresso relativamente a cada núcleo indemnizatório autónomo e juridicamente diferenciado, v.g., indemnização de danos patrimoniais e não patrimoniais ou indemnização de danos que correspondam à lesão de bens ou direitos claramente diferenciados ou normativamente cindíveis, desde logo, os que correspondem a lesões de bens ou direitos de personalidade e os que decorrem da ofensa de direitos referidos a coisas.

Como é bem de ver, esta solução traz, naturalmente, implicado um problema: o da distribuição do ónus da prova. A quem compete a prova de que os singulares actos de pagamento realizados pelo segurador, situados no perímetro temporal de 3 anos que precederam a citação do obrigado de regresso para a acção, correspondem a núcleos autónomos e juridicamente diferenciados da indemnização: ao segurador ou ao obrigado de regresso?

A resposta é dada pelas regras gerais: a prova desse facto vulnera o obrigado de regresso, não sendo suficiente, para se livrar do encargo, alegar, como fundamento da prescrição, a data dos singulares e sucessivos actos de pagamento parcelares da indemnização, invocados pelo segurador (artº 342 nº 2 do Código Civil).

Esta solução corresponde àquela que, embora subsidiariamente, vem sustentada pela apelante na sua alegação. E dela decorre a consequência que a lei lhe assinala: a procedência da impugnação.

Desde logo, porque o recorrido se limitou a alegar que parte dos actos de pagamento da indemnização invocados pela recorrente foi realizada para além do prazo de 3 anos, anterior o acto da sua citação para a acção.

Depois, porque parte dos pagamentos alegados pela impugnante relativamente aos quais actua o direito de regresso, não correspondem, de harmonia com o critério funcional apontado, a um núcleo indemnizatório e juridicamente diferenciado.

É certo que parte dessa indemnização que a recorrente alega ter sido satisfeita, tem por objecto as despesas com os serviços clínicos prestados, aos corporalmente lesados, por estabelecimentos hospitalares: os Hospitais da Universidade de Coimbra e a Casa de Saúde de ...

Esses estabelecimentos hospitalares gozam, por virtude da sua contribuição para a assistência e tratamento das pessoas corporalmente vitimizadas pelo sinistro, de um autónomo direito de indemnização (artº 495 nº 2 do Código Civil).

Mas essa autonomia subjectiva do direito à indemnização não correspondente uma autonomia normativa dos danos ressarcíveis, que, do ponto de vista relevante, sejam perfeitamente cindíveis e autonomizáveis: trata-se simplesmente, de danos que se inscrevem na categoria mais vasta de danos patrimoniais, que no momento em que foram realizados os respectivos actos de pagamento, não se tinham por definitivamente consolidados, e cuja indemnização, por virtude daqueles actos de pagamentos parcelar, se devesse ter por integralmente satisfeita.

E o mesmo se pode dizer no tocante à indemnização parcial relativa às despesas de tratamento e abonos feitos aos lesados corporalmente – F… e M… – que a decisão apelada julgou também atingidos pela prescrição. Trata-se nitidamente de pagamentos parcelares ordenados para reparação antecipada dos danos ligados às lesões corporais suportadas por aqueles lesados, que também não integram um núcleo indemnizatório autónomo e juridicamente diferenciado, relativamente ao qual se deva aceitar – como salienta a recorrente, fazendo sua a jurisprudência do Supremo - o início e o curso, de modo igualmente autónomo, do prazo de prescrição a que está submetido o direito de regresso alegado.

Sendo isto exacto, então o recurso deve proceder.

A retórica argumentativa do acórdão, que sustenta a decisão da parcial procedência do recurso, pode sintetizar-se nestas proposições simples: é apenas de três anos o prazo de prescrição do direito de regresso da seguradora relativamente à indemnização que tenha satisfeito aos lesados em acidente de viação causalmente conexionado com o estado de alcoolemia do condutor do veículo automóvel; esse prazo de prescrição inicia o seu curso com o último acto de pagamento parcelar da indemnização, excepto no tocante à indemnização em renda e, por aplicação de um critério funcional, aos núcleos indemnizatórios autónomos e juridicamente diferenciados e normativamente cindíveis, casos que a prescrição inicia o seu curso no momento em que ocorreu o adiantamento da indemnização; o ónus da prova de que os actos de pagamento parcelares da indemnização, realizados pelo segurador para além dos três anos que precederam a citação do demandado para a acção de regresso, representam núcleos indemnizatórios autónomos e juridicamente diferenciados e normativamente cindíveis, vincula o último.

O recorrido sucumbe no recurso. Deverá, por isso, satisfazer as custas dele (artº 446 nºs 1 e 2 do CPC).

Dada a pouca complexidade do tratamento processual do objecto do recurso, a respectiva taxa de justiça deve ser fixada nos termos da Tabela I-B que integra o RCP (artº 6 nº 2).

4. Decisão.

Pelos fundamentos expostos, concede-se provimento ao recurso, revoga-se a decisão recorrida e, consequentemente, julga-se improcedente a excepção peremptória da prescrição oposta pelo recorrido, H…, à recorrente, Companhia de Seguros A…, SA.

 Custas do recurso pelo recorrido, devendo a taxa de justiça ser fixada nos termos da Tabela I-B, integrante do RCP.

Henrique Antunes (Relator)

Regina Rosa

Artur Dias




[1] Acs. do STJ de 16.10.86, BMJ nº 360, pág. 534 e da RC de 23.03.96, CJ, 96, II, pág.24.
[2] José Dias Marques, Prescrição Extintiva, Coimbra, 1953, pág. 4.
[3] António Menezes Cordeiro, Da prescrição do pagamento dos denominados serviços públicos essenciais, O Direito, Ano 133º, T, IV (Outubro -Dezembro), 2001, págs. 803 a 805 e Tratado de Direito Civil Português, I, T, IV, Almedina, Coimbra, 2007 (reimpressão), pág. 172. Contra, sustentando que a prescrição não converte a obrigação civil numa obrigação natural, Pedro Pais de Vasconcelos, Teoria Geral do Direito Civil, 4ª edição, Almedina, Coimbra, 2007, pág. 381.
[4] Miguel Teixeira de Sousa, O Concurso de Títulos de Aquisição da Prestação, Almedina, Coimbra, 1988, págs. 315 a 317.
[5] Cfr. Manuel Januário da Costa Gomes, Assunção Fidejussória de Dívida, Almedina, Coimbra, 2000, págs. 895 a 903.
[6] Ac. do STJ de 05.11.09, www.dgsi.pt.
[7] Este diploma legal foi, entretanto, revogado pelo DL nº 291/2007, de 21 de Agosto que procedeu à recodificação do regime do sistema do seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel (artº 94 nº 1 a)). Todavia, de harmonia com o princípio tempus regit factum, ao caso do recurso, considerada a data em que ocorreu o evento danoso, é aplicável a lei revogada (artº 12 nº 1 do Código Civil).
[8] Ac. da RL de 26.05.09, www.dgsi.pt. Sobre as razões subjacentes à atribuição do direito de regresso, cfr. Sinde Monteiro, Estudos sobre a Responsabilidade Civil, págs. 175 a 178, Filipe de Albuquerque Matos, “O contrato de seguro obrigatório de responsabilidade civil, BFDUC, Coimbra, 2002, págs. 353 e 354 e Afonso Correia, Seguro Automóvel de Responsabilidade Civil, Direito de Regresso da Seguradora, II Congresso Nacional de Direito dos Seguros, pág. 204.
[9] Neste sentido, Acs. do STJ de 24.10.02, CJ, STJ, III, pág., 120 e de 13.04.00, BMJ nº 496, pág. 246, da RL de 18.02.08, CJ, I, pág. 103, da RC de 02.03.02, CJ, II, pág. 259, do STJ de 26.06.07, da RL de 15.05.07, 31.10.06, 31.10.02 e da RP de 27.11.08, www.dgsi.pt e, na doutrina, António Menezes Cordeiro, Tratado de Direito Civil Português, II, Direito das Obrigações, Tomo III, 2010, Almedina, Coimbra, pág. 757; contra, Acs. da RL de 26.05.09, 09.12.08 e 14.12.06, da RP de 04.10.01, 17.09.09 e de 18.10.99, e do STJ de 04.11.08, www.dgsi.pt.
[10] Acs. do STJ de 31.03.09 e 31.03.09, www.dgsi.pt.
[11] Acs. do STJ de 29.11.11, 17.11.11, 16.11.10, 04.11.10, 27.10.09, 04.11.08, 09.10.03 e 06.05.09, www.dgsi.pt, e Maria Manuela Ramalho Sousa Chichorro, O Contrato de Seguro Obrigatório de Responsabilidade Civil Automóvel, Coimbra Editora, 2010, pág. 219.
[12] Vaz Serra – RLJ, Ano 92º, pág. 182 – era do parecer de que o início da contagem do prazo da prescrição se situava na data do primeiro pagamento. Todavia, o autor raciocinava, não no contexto do direito de regresso – que, como se notou, é um direito se constitui ex-novo - mas de sub-rogação do segurador.
[13] Acs. da RL de 26.05.09 e do STJ de 28.11.04 e de 26.06.07, www.dgsi.pt. É claro que, no caso de pluralidade de lesados, o prazo de prescrição do direito de regresso corre separadamente relativamente a cada um deles: Acs. do STJ de 27.03.03, 28.10.04 e 04.11.10.
[14] Acs. do STJ de 04.11.10 e de 07.04.11, www.dgsi.pt.
[15] Ac. do STJ de 04.11.10, www.dgsi.pt.
[16] Ac. do STJ de 07.04.11, www.dgsi.pt.