Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
833/14.0TBACB.C2
Nº Convencional: JTRC
Relator: LUÍS CRAVO
Descritores: COMPETÊNCIA MATERIAL
TRIBUNAL DE COMÉRCIO
SOCIEDADE
DIREITOS SOCIAIS
GERÊNCIA
DELIBERAÇÃO
IMPUGNAÇÃO
ANULAÇÃO
Data do Acordão: 05/16/2017
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE LEIRIA - ALCOBAÇA - JUÍZO COMÉRCIO - JUIZ 1
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA EM PARTE
Legislação Nacional: ARTS.64, 64, 65 CPC, 40, 128 LOSJ, 261, 411, 412 CSC
Sumário: 1 – Os direitos sociais, nos termos e para os efeitos da norma atributiva de competência material das secções de comércio [art. 128º, nº 1, al.c), da LOSJ], são os direitos cuja matriz, directa e imediatamente, se funda na lei societária (lei que estabelece o regime jurídico das sociedades comerciais) e/ou no contrato de sociedade.

2 – Sendo a causa de pedir da ação também a invalidade duma deliberação da gerência, tal configura um inequívoco “exercício de um direito social” à luz e para os efeitos do citado art. 128º, nº 1, al.c), da LOSJ.

3 – É claramente maioritária a nível jurisprudencial a tese da admissão da impugnabilidade judicial direta, quando, como no caso vertente, está em causa uma deliberação que teve por objeto matéria que o próprio contrato de sociedade autorizara a gerência a sobre tal deliberar, e em que a eventual intervenção da assembleia geral de sócios se traduziria num impasse (dada a equivalência de votos das duas posições em confronto), donde, adivinhando-se a falta de resultado prático dessa intervenção, e mesmo a sua inutilidade, constituir uma dilação inaceitável sustentar a sua necessidade.

4 – Nas sociedades por quotas com gerência plural, os actos praticados com omissão da manifestação de vontade da maioria dos gerentes não vinculam aquela, por se considerar que a sua vontade não chegou a formar-se completamente (art. 261º nº1 C.S.C.).

5 – Na medida em que nos preceitos legais atinentes não se encontra fundamento expresso/literal no sentido de que a sanção para a situação ocorrida deva corresponder à ineficácia, a melhor interpretação a fazer é no sentido de que deve advogar-se a aplicação da figura da anulação, atento até o disposto no art. 411º, nº3 do C.Soc. Com., subsidiariamente aplicável.

Decisão Texto Integral:        








     Acordam na 2ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra[1]                                                                                    *

            1 – RELATÓRIO

R (…), S.A.” e “GRUPO R (…) SGPS, S.A.” deduziram em 07.05.2014 (cf. fls. 39), com o valor de € 30.000,01, ação que denominaram de declarativa de simples apreciação contra “B (…) – Comércio Automóvel e Imobiliário, Lda.”, sedeada em “L (...) , Leiria”, alegando, em síntese, que sendo elas AA. e M (…) detentoras de 50% do capital social da sociedade Ré, e MB (…) e sociedades por este controladas detentores dos restantes 50% desse capital social, sociedade essa que tem como gerentes os ditos M (…) e MB (…), sucedeu que este último assinou um documento denominado “Acta da Gerência nº1”, no qual se atesta que no dia 24.01.2014 reuniu a gerência da Ré na sua sede social, que terá deliberado a mudança da sede social para “E (...), Leiria Concelho: Alcobaça Freguesia: Turquel”, documento esse que é inteiramente falso por não ter ocorrido nenhuma reunião, sendo certo que com base na sua apresentação na Conservatória do Registo Comercial foi mudada a sede da sociedade, mas na medida em que a alegada deliberação da gerência é nula (nos termos dos arts. 294º e 295º do C.Civil, aplicáveis ex vi do art. 3º do C.Comercial), por havendo dois gerentes, terem os respetivos poderes que ser exercidos conjuntamente, o que não sucedeu ao ter o gerente MB (…) atuado sozinho, e nulo sendo igualmente o registo com base nela efetuado (art. 22º, nº1, al.a) do C.Reg. Comercial), devendo ser ordenado o seu cancelamento, nos termos e para os efeitos dos arts. 20º e 22º, nº3 do C.Reg. Comercial, termos em que concluiu no sentido de que devia a ação ser julgada provada e procedente e, em conformidade:

«- ser declarada nula e de nenhum efeito a deliberação da gerência, de mudança da sede social da B (...) , documentada na “Acta Gerência nº 1” junta a esta p.i. (Doc. nº 2);

- ser declarado nulo o registo de mudança de sede da B (…), LDA, correspondente à Insc. 3 AP 30/20140206 e com referência à matrícula NIPC (...) ;

- ser determinado à Conservatória do Registo Comercial de Alcobaça que proceda ao cancelamento da inscrição da mudança de sede da B (…)LDA, correspondente à Insc. 3 AP 30/20140206 e com referência à matrícula NIPC (...) .»

                                                           *

Citada a Ré, veio a mesma apresentar a sua contestação a fls. 41, através da qual, em via de exceção, começa por deduzir a exceção de “preterição dos meios intra-societários de impugnação”, pois, no seu entendimento, só uma deliberação da assembleia geral dos sócios poderia, posteriormente, ser impugnada judicialmente, donde devia a impugnação da deliberação da gerência ter sido necessariamente submetida ao escrutínio dos sócios, em assembleia geral, prosseguindo por, em via de impugnação, sustentar, em síntese, que a reunião da gerência foi devida e regularmente convocada, e veio a ter lugar apesar da falta do gerente M (…), o qual voluntariamente não compareceu, sendo que nessa reunião veio a ser deliberado pelo único gerente que compareceu (o dito MB (…) o que carecia de ser feito, tendo ele poderes para tanto, termos em que concluiu pugnando pela improcedência da ação por não provada, com a consequente absolvição da Ré dos pedidos.  

*

Na Audiência Prévia, foi proferido despacho que julgo verificada a referenciada exceção dilatória inominada e, consequentemente, absolveu-se a ré da instância, declarando-a extinta, tudo nos termos do disposto nos artigos 576º, n. 2, 577º, ambos do Código de Processo Civil.

                                                           *

Por acórdão deste Tribunal da Relação de Coimbra de 8 de Setembro de 2015 (cf. fls. 140-144) veio a apelação das AA. – do mencionado despacho - a ser julgada procedente, e aquelas (sócias) admitidas a impugnar direta e judicialmente a deliberação do órgão de gestão da sociedade requerida com a consequente determinação de que “(…) a ação deve prosseguir para a 1.ª instância com a instrução dos autos que se revele necessária e imprescindível à sua boa decisão (com referência aos fundamentos de nulidade invocados), ou decisão de mérito sem mais.”

                                                           *

Em cumprimento deste acórdão, e após possibilitar a audiência contraditória das partes quanto à questão da competência do Tribunal, em despacho saneador proferido na imediata sequência, decidiu-se no sentido da competência, em razão da matéria, do Tribunal e do Comércio, e bem assim, com o sentido de sentença de mérito, que a deliberação em causa devia ser considerada nula/ineficaz face à violação de normas imperativas do regime de vinculação das sociedades por quotas com gerência plural -conjunta, sendo o registo correspondente susceptível de cancelamento com fundamento em decisão transitada em julgado (art. 20º do C.Reg. Com.), o que tudo se traduziu no seguinte “dispositivo”:

«Pelo exposto julga-se a presente ação declarativa comum instaurada pelas coligadas sociedades R (…) S.A e Grupo R (…), SGPS contra a sociedade B (…) Lda procedente, por provada, e em consequência (i) declara-se nula a deliberação em singular tomada pela gerência da sociedade requerida que se mostra materializada na “Acta Gerência nº 1”, datada de 24.01.2014, de mudança da sua sede, por violação de normas imperativas que impunham deliberação por maioria dos gerentes em exercício ou por eles ratificados, no que a Ré vai condenada a reconhecer, e (ii) consequentemente ser assim cancelada a inscrição promovida na matrícula da sociedade requerida pela Ap.30 de 2014.02.06.

Custas pela sociedade requerida (art.527.º n.º 1 e 2 do CPC).

Valor da ação: 30.000,01 €.

Registe e notifique.»

                                                           *

Inconformada com esta sentença, apresentou a Ré recurso de apelação contra a mesma, terminando as suas alegações com as seguintes conclusões:

(…)

                                                                       *

Apresentaram, por sua vez, as AA. as suas contra-alegações, das quais extraíram as seguintes conclusões:

(…)

                                                                       *

            Colhidos os vistos e nada obstando ao conhecimento do objeto do recurso – sendo certo que no despacho de admissão do mesmo foi-lhe fixado o efeito suspensivo (cf. fls. 317) – cumpre apreciar e decidir.

                                                                       *

            2 – QUESTÕES A DECIDIR: o âmbito do recurso encontra-se delimitado pelas conclusões do recuso da Ré/recorrente que no mesmo foram apresentadas e que atrás se transcreveram – arts. 635º, nº4 e 639º do n.C.P.Civil – e, por via disso, as questões a decidir são:

            - qual dos tribunais/secções – cível (da instância central) ou tribunal/secção de comércio – é competente, em razão da matéria, para julgar a acção (incompetência material das Secções de Comércio)?;

- impossibilidade de impugnação directa de deliberações do órgão de gerência?;

            - desacerto na decisão de mérito igualmente suscitada pela Ré/recorrente, por considerar válida a deliberação da gerência de 24.01.2014 e, consequentemente, o registo da alteração de sede da sociedade Ré inscrito na matrícula da sociedade (inexistência de nulidade da deliberação da gerência e inexistência de nulidade do registo) [sub-questão da violação do disposto no art. 595º, nº1 al. b) do n.C.P.Civil (no processo não estavam ainda reunidos elementos suficientes para proferir uma decisão de mérito de acordo com as várias soluções jurídicas possíveis)].

                                                                       *

3 – FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO

Os factos a ter em conta para a decisão são os que decorrem do relatório supra, e bem assim os que foram alinhados na decisão recorrida (os quais não foram expressamente impugnados no recurso interposto), a saber:

1. A sociedade B (…), Comércio Automóvel e Imobiliário, Lda., pessoa coletiva com contribuinte fiscal n.º (...) , é uma sociedade por quotas com sede na E (...) Turquel, que tem por objeto social o comércio e o aluguer de veículos automóveis, compra e venda, revenda e arrendamento de imóveis, que se mostra descrita na Conservatória do Registo Comercial sobre o mesmo número de matrícula.

2. Obrigando-se pela assinatura de um dos seus gerentes.

3. O seu capital social no valor de 100.000,00 € conheceu as seguintes vicissitudes:

3.1. Com a sua constituição foi repartido pela sociedade T (…), LDA, que ficou titular de uma quota no valor de 50.000,00 € e pela B (…)LDA, titular de uma quota de 50.000,00 €.

3.2. Em 02.03.2012, foi registada a aquisição pela R (…) S.A da quota de 50.000,00 € detida pela B (…), LDA.

3.3. Em 18.02.2013 (i) foi registada a aquisição pela B (…) LDA de uma quota no valor de 24.500,00 €, resultante da divisão da quota detida pela R (…), S.A.; (ii) foi registada a aquisição, por MB (…), de uma quota no valor de 1.000,00 €, resultante da divisão da quota detida pela R (…)S.A; (iii) foi registada a aquisição pelo GRUPO R (…) SGPS, S.A de uma quota de 24.500,00 € resultante da divisão da quota detida pela T (…) LDA; (iv) foi registada a aquisição por M (…) de uma quota de 1.000,00 €, resultante da divisão da quota detida pela T (…), LDA.

4. Sendo aqueles os únicos detentores do capital social da sociedade requerida á data da instauração da presente ação a 07.05.2014.

5. Mostra-se publicada no portal da justiça uma convocatória datada de 17.01.2014, referente à sociedade requerida, subscrita pelo seu gerente MB (…), pelo qual aquele convoca o (co)gerente M (…) para uma reunião da gerência a ter lugar no dia 24.01.2014, às 15 horas, na sede social da requerida, tendo como único ponto da ordem de trabalhos a alteração da sede social do lugar P (...) Leiria, para a E (...) Turquel.

6. Por referência àquele dia e hora mostra-se lavrado uma “ata de gerência n.º 1” pela qual o único gerente presente, MB (…), aprovou aquela ordem de trabalhos e fez inscrever a mudança de sede da sociedade requerida na Conservatória do Registo Comercial de Alcobaça (AP. 30 de 06.02.2014).

7. O pacto social da sociedade requerida, melhor documentado a fls.53-5, cujo teor dou aqui por integrado, prevê no seu artigo primeiro número dois que “por deliberação da gerência a sede social poderá ser deslocada dentro do mesmo concelho ou para concelho limítrofe” e no seu artigo sétimo número dois que “a sociedade vincula-se pela assinatura de um gerente, à exceção das matérias referentes à venda de imóveis, para o que é necessário a intervenção de dois gerentes.”

8. Desde a constituição da sociedade requerida que se mostram nomeados como seus gerentes MB (…) e M (…).

                                                           *

4 - FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO

4.1– Cumpre então começar pela apreciação da questão atinente à alegada incompetência material das Secções de Comércio, isto é, decidir qual dos tribunais/secções – cível (da instância central) ou tribunal/secção de comércio – é competente, em razão da matéria, para julgar a presente acção:

Na decisão recorrida concluiu-se pela positiva, isto é, pela efetiva competência, em razão da matéria, do Tribunal do Comércio onde fora instaurada e pendia a acção, essencialmente porque «Conclui-se da leitura dos articulados, em especial da petição inicial, que através da presente ação as coligadas requerentes pretendem exercer direitos de natureza social, como incontestadas detentoras de 49% do capital social da sociedade requerida, integrando-se a sua pretensão com esse mesmo fundamento e em abstrato na previsão contida na al.c) do n.º 1 do artigo 128.º da Lei da Organização do Sistema Judiciário».

Discorda a Ré/recorrente, no essencial estribada no entendimento de que “A invocação de um vício de registo não corresponde ao exercício de qualquer direito social, podendo a declaração de nulidade do mesmo ser requerida por qualquer pessoa, nos termos do artigo 286.º do Código Civil”.

Que dizer?

Que também quanto a nós, o ponto crucial para a boa decisão desta questão se prende, num primeiro momento, com a exata delimitação e definição do que é o “exercício de direitos de natureza social”, para depois, num segundo momento, se poder ou não concluir pela sua verificação no caso vertente.

Senão vejamos.

Consabidamente, a competência material do tribunal afere-se em função dos termos em que o autor fundamenta ou estrutura a pretensão que quer ver reconhecida, sendo certo que o meio de tutela jurisdicional pretendido pelo autor (i. é, o pedido) se encontra necessariamente correlacionado com o facto concreto que lhe serve de fundamento (causa de pedir).

Assim, ao determinar o tribunal competente em razão da matéria para o conhecimento da lide, temos de atentar, sobretudo, na alegação do A. e no efeito jurídico pretendido.

Por outro lado, vejamos o que nos prescreve o quadro normativo aplicável neste domínio da competência dos tribunais judiciais, no âmbito da jurisdição civil: é a mesma regulada conjuntamente pelo estabelecido nas leis de organização judiciária e pelas disposições do Código de Processo Civil.

Desde logo temos que, na ordem interna, a jurisdição reparte-se pelos diferentes tribunais segundo a matéria, o valor da causa, a hierarquia judiciária e o território (cf. art. 60º do n.C.P.Civil).

Depois, que são da competência dos tribunais judiciais as causas que não sejam atribuídas a outra ordem jurisdicional (cf. art. 64º do mesmo n.C.P.Civil).

E bem assim que as leis de organização judiciária determinam quais as causas que, em razão da matéria, são da competência dos tribunais e das secções dotados de competência especializada (art. 65º, do dito n.C.P.Civil).

Sendo certo que a infracção das regras de competência em razão da matéria determina a incompetência absoluta do tribunal [art. 96º, al. a), do n.C.P.Civil].

Ora, nos termos da Lei de Organização dos Serviços Judiciários [Lei n°62/2013, de 26/8,  doravante “LOSJ”, que vai ser considerada sequentemente na versão decorrente da sua última revisão, a saber, a operada pela Lei n.º 40-A/2016, de 22 de Dezembro, em atenção  ao disposto no art. 38º, nos 1 e 2 daquela][2]:

- de acordo com o art. 40.º dessa LOSJ, com a epígrafe de “Competência em razão da matéria”, decorre o seguinte:

«1 - Os tribunais judiciais têm competência para as causas que não sejam atribuídas a outra ordem jurisdicional.

2 - A presente lei determina a competência, em razão da matéria, entre os juízos dos tribunais de comarca, estabelecendo as causas que competem aos juízos de competência especializada e aos tribunais de competência territorial alargada.»

- que compete aos tribunais de comarca (de competência genérica ou especializada) preparar e julgar os processos relativos a causas não atribuídas a outro tribunal [art. 80º, nos 1 e 2].

- que o subsequente art. 81º prevê no seu nº 1 o desdobramento da comarca em instâncias centrais que integram secções de competência especializada [alínea a)] e instâncias locais que integram secções de competência genérica e secções de proximidade, prescrevendo o nº 2, que nas instâncias centrais podem ser criadas secções de competência especializada, nomeadamente de comércio [alínea f)], mas também de competência cível, às quais, nos termos do artigo 117º, nº 1, al. a), incumbe a preparação e julgamento das acções declarativas cíveis de processo comum de valor superior a € 50.000,00;

- que, finalmente, o art.128º define a competência das secções de comércio, nos seguintes termos:

«1 - Compete às secções de comércio preparar e julgar:

a) Os processos de insolvência e os processos especiais de revitalização;

b) As ações de declaração de inexistência, nulidade e anulação do contrato de sociedade;

c) As ações relativas ao exercício de direitos sociais;

d) As ações de suspensão e de anulação de deliberações sociais;

e) As ações de liquidação judicial de sociedades;

f) As ações de dissolução de sociedade anónima europeia;

g) As ações de dissolução de sociedades gestoras de participações sociais;

h) As ações a que se refere o Código do Registo Comercial;

i) As ações de liquidação de instituição de crédito e sociedades financeiras.

2 - Compete ainda às secções de comércio julgar as impugnações dos despachos dos conservadores do registo comercial, bem como as impugnações das decisões proferidas pelos conservadores no âmbito dos procedimentos administrativos de dissolução e de liquidação de sociedades comerciais.

3 - A competência a que se refere o n.º 1 abrange os respetivos incidentes e apensos, bem como a execução das decisões.».

Dito isto, vejamos agora o que é que se deve entender por “acções relativas ao exercício de direitos sociais” – na medida em que o citado art. 128º, nº 1, al.c), da LOSJ comete às secções de comércio a preparação e o julgamento dessas acções.

«Numa primeira perspectiva, os direitos sociais podem ser vistos como uma das manifestações da situação ou posição jurídica (conjunto de direitos, deveres, ónus, expectativas jurídicas) dos sócios perante a sociedade; nesta linha de entendimento, o direito social traduz sempre a situação jurídica de quem participa numa sociedade, titular do direito social é o sócio e pressuposto dessa titularidade é a existência de uma sociedade, a cujo corpo ele pertence.

Assim, os direitos sociais são direitos dos membros da corporação ou pessoa jurídica, enquanto tais; o direito do sócio não e um direito único, mas antes um feixe de direitos diversos, de vária natureza e conteúdo, sendo esse conjunto que exprime a sua posição ou participação na sociedade – a sua quota – ou, de outro modo dito, o seu estado jurídico – o estado de sócio.

Mas, sendo os sócios os sujeitos do contrato de sociedade, os direitos sociais não se esgotam na sua titularidade, desde logo, porque, gozando as sociedades de personalidade jurídica, será difícil recusar a qualificação de sociais aos direitos de que ela, uma vez constituída, é titular e que emergem especificamente do contrato de sociedade ou da lei societária (imperativa ou meramente supletiva).

Com efeito, no desenvolvimento das actividades da sociedade na prossecução do respectivo objecto social (ou do que, como tal, for entendido) e na implementação das inerentes operações sociais podem gerar-se situações que reclamam tutela jurídica que não respeitam necessariamente aos sócios, mas a terceiros e à própria sociedade, pois que esta, como se sabe, sendo dotada de personalidade jurídica, é um centro autónomo de congregação e imputação de interesses que justificam certo tipo de procedimentos vocacionados para os assegurar, sem que isso signifique a existência de oposição ou conflito com outrem, sócios ou terceiros.

Têm todos estes casos em comum a circunstância de sempre respeitarem à vida da sociedade, sendo através do recurso a juízo que se viabiliza e alcança o respectivo tratamento, com a consequente harmonização dos interesses envolvidos[3]

Naturalmente que uma vez constituída a sociedade, titulares dos direitos sociais tanto podem ser os sócios, como a própria sociedade, donde, os “direitos sociais” são os direitos cuja matriz, directa e imediatamente, se funda na lei societária (lei que estabelece o regime jurídico das sociedades comerciais) e/ou no contrato de sociedade.[4]

Aliás, neste mesmo e idêntico sentido aponta a Ré/recorrente nas suas alegações recursivas quando expressamente invoca que «A competência dos Tribunais de comércio prende-se com questões relacionadas com a vida e actividade das sociedades comerciais e das sociedades civis sob forma comercial, sendo este o princípio que deve presidir à fixação do sentido a atribuir à mencionada al. c). Direitos sociais serão, pois, todos aqueles que os sócios têm enquanto sócios de uma sociedade, tendentes à protecção dos seus interesses sociais. São direitos que nascem na esfera jurídica do sócio enquanto tal, por força do contrato de sociedade. Já aqueles outros direitos de que os sócios são titulares independentemente da sua qualidade de sócios, em que esta qualidade é irrelevante para o exercício de determinado direito, são direitos extra-sociais que os sócios podem exercer como qualquer outra pessoa, numa posição semelhante à de terceiros.»[5]

 Revertendo mais uma vez ao caso presente, temos que na presente acção as sociedades autoras, na sua qualidade de sócias da sociedade Ré (como detentoras de 49% do capital social desta última), impugnam um ato do gerente M (...) , com a alegação de que este lhe procurou dar a aparência de deliberação da gerência da Ré , mas que é “falso” o que como tal consta da “Ata nº1” elaborada para o efeito, sendo em qualquer caso um ato “nulo” enquanto tal (por o mesmo sozinho numa gerência plural não poder deliberar, atento o disposto no art. 261º, nº1 do C.Soc. Comerciais), do que resultaria ser “nulo” o registo efectuado, termos em que  peticionam o seu cancelamento (nos termos e para os efeitos dos arts. 20º e 22º, nº3 do C.Reg. Comercial).

Ora se assim é, não vemos como questionar que na presente acção estavam e estão a ser exercidos “direitos sociais” das sociedades autoras.

E nem se argumente – como feito pela Ré/recorrente – que no anterior acórdão desta Relação, a presente acção foi apenas qualificada como consistindo na invocação de um “vício de registo”, donde, por se tratar de matéria de direito civil, a competência para a preparação e julgamento da causa está atribuída à Jurisdição Comum/Cível .

Não obstante se reconhecer que porventura não se foi totalmente claro a expressar o entendimento da situação, não é de todo verdade uma tal asserção: no anterior acórdão sustentou-se, isso sim, o entendimento de que não estava em causa na ação interposta uma invalidade da deliberação da gerência apenas e em si, mas antes (mais concreta e especificamente) um vício do registo que fora feito, decorrente da nulidade do título com base no qual o registo foi lavrado, consistindo aquele num ato/decisão (inválido) do gerente.

Donde, se ter vincado o entendimento de «que a ação interposta era claramente uma ação que tinha como objetivo a declaração de nulidade do “título” (hipótese não prevista no art. 22º do C.Reg. Comercial), no pressuposto e tendo em vista que tal implicaria, quando declarada, a nulidade do “registo”», isto é, «que estava primacialmente em causa o ato/decisão individual do gerente e o seu caráter instrumental para o registo feito com base nele, visando-se impugnar em último termo este dito registo».

A esta luz, com o que então foi dito no sentido de que o que “verdadeira e autenticamente” estava em causa na acção era a nulidade do “registo”,… não se pretendeu nem pretendia denegar que a tarefa primeira impetrada do Tribunal na ação era a da apreciação e declaração da nulidade do “título”!

O que tudo serve para dizer que sendo como é a causa de pedir da presente a ação também a invalidade da deliberação da gerência, o que configura um inequívoco “exercício de um direito social” à luz e para os efeitos do citado art. 128º, nº 1, al.c), da LOSJ, evidencia-se como inquestionável a competência, em razão da matéria, da seçcão do comércio “a quo” para a apreciação e decisão da presente causa.

Ademais, na atribuição de competência especializada às Secções de Comércio (Tribunais de Comércio, na anterior terminologia) para preparar e julgar as acções relativas ao exercício dos direitos sociais e que têm por objecto questões relacionadas com a actividade das sociedades comerciais, releva a circunstância de estarmos perante matérias que exigem especial preparação técnica e sensibilidade e envolvem dificuldades/complexidades que podem repercutir-se também na respectiva solução; e importando analisar a actuação societária à luz de critérios de racionalidade empresarial (características do “gestor criterioso e ordenado” dotado de saber, competência e aptidão profissional para o bom desempenho e êxito do negócio), para a sua compreensão e para determinar as respectivas consequências, designadamente, em sede de responsabilidade civil, são necessários, naturalmente, conhecimentos especiais para que estão mais vocacionados os tribunais a que foi atribuída competência especializada nessa área (tribunais do comércio) relativamente aos tribunais cíveis.[6]

Termos em que improcede esta primeira questão recursiva.

                                                           *

4.2– Vejamos agora a precedente questão suscitada pela Ré/recorrente – a da impossibilidade de impugnação directa de deliberações do órgão de gerência:

Salvo o devido respeito, suscitar esta questão não tem qualquer justificação processual, na medida em que o anterior acórdão desta Relação (o prolatado em 8 de Setembro de 2015), em apreciação de recurso deduzido que tinha precisamente por objecto sindicar a procedência dada a tal exceção pela decisão então recorrida, concluiu no sentido de dar procedência ao recurso, sendo as aqui AA./recorrentes, sócias da sociedade Ré, admitidas a impugnar direta e judicialmente a deliberação do órgão de gestão dessa sociedade Ré, com a consequente determinação de que “(…) a ação deve prosseguir para a 1.ª instância com a instrução dos autos que se revele necessária e imprescindível à sua boa decisão (com referência aos fundamentos de nulidade invocados), ou decisão de mérito sem mais.” 

Isto é, já foi por decisão transitada em julgado decidido a improcedência desta

exceção da impossibilidade de impugnação directa de deliberações do órgão de gerência, tendo sido precisamente por isso que foi determinada a prossecução da ação.

            Assim, estando uma tal decisão coberta pelo caso julgado que sobre essa matéria se formou, e concorde ou não a Ré/recorrente com essa decisão e o bem ou mal fundado dos fundamentos em que a mesma assentou, ela é questão que nesta fase do processo e por razões jurídico-processuais estritas improcede manifestamente.

Ademais, a tese da impossibilidade de impugnação directa de deliberações do órgão de gerência, que tem sido uma vexata quaestio na doutrina e jurisprudência, suscitou-se toda ela centrada nas deliberações do conselho de administração nas sociedades anónimas e tendo por epicentro a interpretação do disposto nos arts. 411º e 412º do C.Soc. Comerciais…

Ora, no caso vertente estava em causa uma deliberação da gerência numa sociedade por quotas, donde, logo por aí, é de questionar a adequação e pertinência dos argumentos dos que sustentam uma tal impossibilidade de impugnação judicial direta, dificuldade esta que foi bem expressa em opinião doutrinária que sobre tal fez uma recensão.[7]

Em todo o caso, parece-nos ser claramente maioritária a nível jurisprudencial a tese da admissão da impugnabilidade judicial direta[8], quando, como no caso vertente, está em causa uma deliberação que teve por objeto matéria que o próprio contrato de sociedade autorizara a gerência a sobre tal deliberar, e em que a eventual intervenção da assembleia geral de sócios se traduziria num impasse (dada a equivalência de votos das duas posições em confronto), donde, adivinhando-se a falta de resultado prático dessa intervenção, e mesmo a sua inutilidade, constituir uma dilação inaceitável sustentar a sua necessidade.[9]      

Termos em que, sem necessidade de maiores considerações, improcede esta questão recursiva.

                                                           *

4.3– Vejamos, finalmente, a questão do alegado desacerto na decisão de mérito igualmente suscitada pela Ré/recorrente, por considerar válida a deliberação da gerência de 24.01.2014 e, consequentemente, o registo da alteração de sede da sociedade Ré inscrito na matrícula da sociedade (inexistência de nulidade da deliberação da gerência e inexistência de nulidade do registo) [sub-questão da violação do disposto no art. 595º, nº1 al. b) do n.C.P.Civil (no processo não estavam ainda reunidos elementos suficientes para proferir uma decisão de mérito de acordo com as várias soluções jurídicas possíveis)]:

De referir que o conhecimento conjunto da questão e sub-questão em nosso entender é plenamente justificado pela circunstância de as questões estarem afinal interdependentes, na medida em que a prolação de uma decisão final de mérito sobre a decisão em recurso, pressupõe que os autos, sem necessidade de qualquer instrução e produção de prova, mormente em audiência de discussão e julgamento, já forneciam dados de facto bastantes para uma decisão conscienciosa na fase do saneador…

Cremos que esta razão prática vai ficar bem evidenciada na exposição que segue.

Vejamos então.

O Tribunal a quo considerou que, não obstante o facto de a deliberação ter sido tomada em reunião da gerência devidamente convocada, “(…) ao ter o gerente MB (…) deliberado em singular a mudança de sede da sociedade requerida à revelia do outro gerente (sem o seu assentimento, concomitante ou ratificação posterior), fê-lo, é certo, a respeito de uma matéria da competência da gerência (art. 12, n.º 2 do CSC) e no exercício de competência própria de gestão, mas obliterando a maioria (quórum) necessária (simples) para a obtenção de uma deliberação válida (vinculante) e que afeta consequencialmente a validade do registo que fez inscrever na matrícula da sociedade junto da Conservatória do Registo Comercial e que por esta via vinha consequencialmente impugnado”, termos em que concluiu no sentido de que deveria essa deliberação “(…) ser declarada nula/ineficaz face à violação de normas imperativas do regime de vinculação das sociedades por quotas com gerência plural”.

Que dizer quanto a este primeiro segmento da decisão?

Em nosso entender, que é correto o enquadramento feito em termos de ser inválida a deliberação da gerência ajuizada, embora não com a qualificação – “nulidade” – que dela é feita.

É que, face à fundamentação para tanto apresentada, essa declaração de “nulidade” decorria da violação de norma legal imperativa, a saber, o art. 261º do C. Soc. Com. (cf. “violação de normas imperativas do regime de vinculação das sociedades por quotas com gerência plural – conjunta”), quando é certo que vigorava como modo de obrigar a sociedade por quotas a conjunção maioritária dos membros da gerência (dos dois).

Sucede que, em nosso entender, é efetivamente questionável que tal norma do art. 261º do C. Soc. Com. constitua uma norma imperativa.

Atente-se que é doutamente sustentado neste particular que “no que diz respeito à necessidade de formação de conjuntos, que desde logo se retira do método supletivo de actuação conjunta por maioria, nada parece obstar a que a mesma seja afastada através do método de actuação disjunta”, e bem assim que “parece evidente que o contrato de sociedade pode conferir a cada gerente poderes para sozinho decidir a prática de actos. Nesse caso, estaremos perante uma cláusula que estabelece o método disjunto de actuação”, tal como que “no que diz respeito aos exercício dos poderes de representação, o art. 261º, 1, permite que o contrato de sociedade afaste a regra da vinculação pela maioria dos gerentes”, e ainda que “nada impede que o contrato de sociedade permita a vinculação por qualquer um dos gerentes”.[10]

Ora se assim é, merece-nos inteira concordância o que neste particular foi invocado dogmaticamente nas alegações recursivas, a saber, que «imperativas são as normas legais cuja disciplina não pode ser afastada ou derrogada, nem pela colectividade dos sócios (ou o sócio único), nem por outros órgãos sociais” e em seguida explicita o mesmo autor que “aquilatar da imperatividade de certa norma é tarefa interpretativa. Tarefa muitas vezes facilitada (1) pelo próprio texto normativo, com signos linguísticos denotando estar absolutamente vedada a derrogação da disciplina respectiva. Perscrutando os interesses protegidos pelas normas com aqueles sinais textuais, verifica-se serem (2) interesses de terceiros umas vezes, (3) interesses indisponíveis dos sócios outras vezes, (4) o interesse público em sentido estrito (de sujeitos de direito público), (5) ou a garantia de certo esquema organizativo-funcional. A consideração destes interesses relevará especialmente quando faltarem signos textuais concludentes. Por outro lado, também facilita a tarefa do intérprete da lei marcar claramente o carácter dispositivo de algumas normas. É sabido que os preceitos dispositivos do CSC podem ser derrogados, antes do mais, pelos estatutos das sociedades (art. 9º, 3). E não são raros os enunciados normativos que incluem “salvo diferente cláusula contratual” ou expressão equivalente»[11].

Pois que o dito art. 261º do C. Soc. Com., no seu nº1, preceituando que “Quando haja vários gerentes, e salvo cláusula do contrato de sociedade que disponha de modo diverso, os respetivos poderes são exercidos conjuntamente, considerando-se válidas as deliberações que reúnam os votos da maioria e a sociedade vinculada pelos negócios jurídicos concluídos pela maioria dos gerentes ou por ela ratificados” (sublinhado nosso), contempla precisamente o uso de uma destas expressões a que está associado o carácter supletivo de uma norma…

Mas que consequência deriva de se configurar esta norma como supletiva?

Tal não afecta a interpretação que dela se fez na sentença recorrida, mormente no sentido de que «para a «representação ativa» (vinculação) vale na gerência plural o método de conjunção maioritário – vide neste sentido Alexandre Soveral Martins, Código das Sociedades Comerciais em Comentário, Almedina, pág. 163; Jorge M. Coutinho de Abreu, Vinculação das Sociedades Comerciais, pág.; António Menezes Cordeiro, Código das Sociedades Comerciais anotado, Almedina, pág. 755 e Paulo Olavo Cunha, ob cit. Pág. 682 - o que quer significar que a sociedade apenas se vincula pela maioria validamente expressa pelos gerentes, o que a contrario nos leva a concluir que se atuarem em número inferior à maioria a sociedade não ficará vinculada. Seja estatutariamente (em face da modelação conferida ao órgão da gerência no pacto social pelos sócios), seja supletivamente por falta de disposição estatutária (art.260.º n.º 1 do CSC), pode vigorar, como modo de obrigar a sociedade, a conjunção maioritária.

Perante a hipótese de, vigorando o método de conjunção-maioritária, apenas existir (como no caso em apreço) a atuação de um gerente? A sociedade fica vinculada?

O entendimento de alguma doutrina a este respeito vai no sentido de que não obstante a sociedade ficará vinculada pelos negócios jurídicos praticados por um dos seus gerentes, em representação da sociedade, apesar de vigorar o método do exercício conjunto da gerência, tendo por fundamento uma ideia de proteção dos terceiros de boa-fé que contratam com a sociedade – neste sentido, entre outros, vide Paulo de Tarso Domingues, A Vinculação das Sociedades Por Quotas no Código das Sociedades Comerciais, 2004, consultado em 4 de Novembro de 2016 em tps://repositorio-aberto.up.pt/handle/10216/23732?locale=pt.

Na esteira contudo do que vem sendo proposto pelo Professor Jorge Coutinho de Abreu, na obra Vinculação das Sociedades Comerciais, in Separata de Estudos em honra ao Professor Doutor José de Oliveira Ascensão, Vol. II, Almedina, 2008, parece-nos contudo preferível que em situações análogas – em que vigora o método de conjunção - o gerente que atua sozinho e à revelia da maioria dos demais gerentes fá-lo fora dos poderes que lhe são conferidos pela lei e pelo pacto de sociedade e consequentemente será de negar a tutela das expectativas jurídicas que um eventual terceiro haja formado no ato praticado. Isto porque defende que neste caso não devem existir expectativas jurídicas tuteláveis quando estas se baseiam em factos praticados contra legem. Consigna então que “a confiança de terceiros não pode ser invocada, porque não há confiança legítima contra o que dispõe a lei.” (sic.). Deste modo, a sociedade não fica vinculada pela atuação de um só gerente quando vigore a conjunção e os atos assim praticados ficam feridos de ineficácia face à sociedade, não produzindo efeitos em relação a ela.».

De referir que a este propósito já foi doutamente sustentado que “Nas sociedades com gerência plural, os actos praticados com omissão da manifestação de vontade da maioria dos gerentes não vinculam aquela, por se considerar que a sua vontade não chegou a formar-se completamente (art. 261º nº1 C.S.C.)[12]

Revertendo ao caso ajuizado, temos que a mudança de sede ajuizada corresponde a poderes de administração (na tomada/formação de vontade para esse efeito), que não a poderes de representação (activa) ou de vinculação perante terceiros[13], sendo certo que para esta última situação já bastaria a atuação de apenas um dos gerentes a “vincular a sociedade”, tudo nos termos do art. 261º, nº1 do C.Soc. Comerciais, na conjugação com o teor do convencionado no “Artigo Sétimo”, nºs 1 e 2 do “Pacto Social” da Ré, respectivamente.

Dito de outra forma: face ao vindo de explicitar, não pode ser sancionado o entendimento vertido e em que assentou a decisão recorrida em termos de fundamento de “nulidade” ex vi da norma do art. 411º, nº1, al.c) do C. Soc. Com., posto que neste preceito se alude expressamente a que tal deriva de ocorrer a violação de “preceitos legais imperativos”!

Consabidamente “a invalidade é uma espécie do género ineficácia: enquanto a ineficácia «latu sensu» compreende todas as hipóteses em que, por razões intrínsecas ou extrínsecas, o negócio não deve produzir os efeitos a que tendia, a invalidade é apenas a ineficácia que provém de uma falta dos elementos internos (essenciais, formativos) do negócio”.[14]

Ora se assim é, e na medida em que nos preceitos legais atinentes não se encontra fundamento expresso/literal no sentido de que a sanção para a situação ocorrida deva corresponder à ineficácia, cremos que a melhor interpretação a fazer é no sentido de que deve advogar-se a aplicação da figura da anulação, atento até o disposto no art. 411º, nº3 do C.Soc. Com.[15], subsidiariamente aplicável.

E nem se argumente que tal corresponde a uma condenação que não tinha sido  pedida na ação, pois que, tendo sido pedido o mais (a declaração de nulidade), pode naturalmente ter lugar a decretação do menos (a declaração de anulação), sem que com tal se viole o disposto no art. 609º, nº1 do n.C.P.Civil, tanto mais que importa salvaguardar o princípio de que o juiz é livre na interpretação e aplicação do direito.

Concluindo-se, então, pela anulação da deliberação da gerência ajuizada – assim se alterando a decisão recorrida neste particular – o que é que resulta quanto aos demais pedidos sobre os quais igualmente teve lugar a decisão recorrida?

Quanto aos pedidos de declaração de nulidade do registo de mudança de sede da Ré e de que fosse determinado à Conservatória do Registo Comercial de Alcobaça que procedesse ao cancelamento da inscrição da mudança de sede dessa Ré, importa, desde logo, esclarecer que, em nosso entender, a procedência simultânea de ambos estes pedidos em conjugação com o antecedente da declaração de nulidade da deliberação se configurava como uma impossibilidade em sede de despacho saneador-sentença isto é, sem qualquer instrução dos autos.

Na verdade, formulado que fora o pedido da declaração de nulidade do registo com fundamento na al.a) do art. 22º nº1 do C.Reg. Com. – à luz do qual, o registo por transcrição é nulo “quando for falso ou tiver sido feito com base em títulos falsos” (sublinhados nossos) – naturalmente que apurar se o registo, em si, era falso, ou fora feito com base em títulos falsos, na falta de confissão ou admissão pela Ré da correspondente factualidade que para esse efeito fora alegada pela Ré (no essencial, que a “Acta da Gerência nº1”, constitui um documento que é inteiramente falso, por não ter ocorrido nenhuma reunião) implicava instrução/produção de prova.

Acresce até que a procedência do primeiro pedido – o de declaração de nulidade da deliberação – era quanto bastaria para a procedência do pedido de cancelamento da inscrição da mudança de sede da Ré, à luz do disposto no art. 20º do citado C.Reg. Com.[16]  

Esta também parece ter sido a opção da decisão recorrida, não obstante ter invocado, incompreensivelmente, a dita al.a) do art. 22º, nº1 do mesmo C.Reg. Com.

Em todo o caso, decretada que fica agora em sede recursiva a anulação da deliberação da gerência em causa, é de manter, à luz do disposto neste art. 20º do C.Reg. Com., a determinação de cancelamento do registo que teve lugar, donde se manter, quanto a este particular, a condenação proferida.

Por último, importa finalizar esclarecendo que face ao enquadramento vindo de expressar, obviamente que decorre ter sido perfilhado o entendimento de que os autos já forneciam todos os elementos para uma decisão conscienciosa na fase do despacho saneador, nomeadamente que não era necessário instruir os autos.

Sendo certo, em todo o caso, que a alegação constante das alegações da Ré para este efeito – a saber, que havia alegado “diversos factos relativos às circunstâncias que levaram à deliberação de alteração de sede que respeitam ao exercício abusivo de direitos por parte do sócio-gerente M (…) directamente e através das sociedades Autoras, que este confessadamente controla, e à legítima defesa dos interesses da sociedade por parte do sócio-gerente MB (…), factos que, uma vez provados, excluem o suposto vício de que a mesma alegadamente padece, pelo que, os mesmos deveriam ter sido objecto de produção de prova” – não constitui fundamento a que importe reconhecer eventual pertinência ou atendibilidade, na medida em que, não se vislumbra qual o(s) normativos legal(is) ou instituto(s) jurídico(s) à luz do(s) qual(is) tal poderia ter lugar, nem, aliás, a Ré/recorrente o logrou evidenciar com qualquer concludência…

Ademais, seguramente não existiu qualquer abuso do direito por parte das AA. na propositura desta acção!

Termos em que se conclui pela procedência parcial do recurso, mas nos termos e pelas razões supra explicitadas, que são apenas no plano do exato enquadramento jurídico da invalidade em causa.

                                                           *                    

5 – SÍNTESE CONCLUSIVA

I – Os direitos sociais, nos termos e para os efeitos da norma atributiva de competência material das secções de comércio [art. 128º, nº 1, al.c), da LOSJ], são os direitos cuja matriz, directa e imediatamente, se funda na lei societária (lei que estabelece o regime jurídico das sociedades comerciais) e/ou no contrato de sociedade.

II – Sendo a causa de pedir da ação também a invalidade duma deliberação da gerência, tal configura um inequívoco “exercício de um direito social” à luz e para os efeitos do citado art. 128º, nº 1, al.c), da LOSJ.

III – É claramente maioritária a nível jurisprudencial a tese da admissão da impugnabilidade judicial direta, quando, como no caso vertente, está em causa uma deliberação que teve por objeto matéria que o próprio contrato de sociedade autorizara a gerência a sobre tal deliberar, e em que a eventual intervenção da assembleia geral de sócios se traduziria num impasse (dada a equivalência de votos das duas posições em confronto), donde, adivinhando-se a falta de resultado prático dessa intervenção, e mesmo a sua inutilidade, constituir uma dilação inaceitável sustentar a sua necessidade.

IV – Nas sociedades por quotas com gerência plural, os actos praticados com omissão da manifestação de vontade da maioria dos gerentes não vinculam aquela, por se considerar que a sua vontade não chegou a formar-se completamente (art. 261º nº1 C.S.C.).

V – Na medida em que nos preceitos legais atinentes não se encontra fundamento expresso/literal no sentido de que a sanção para a situação ocorrida deva corresponder à ineficácia, a melhor interpretação a fazer é no sentido de que deve advogar-se a aplicação da figura da anulação, atento até o disposto no art. 411º, nº3 do C.Soc. Com., subsidiariamente aplicável.

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6 - DISPOSITIVO

Pelo exposto, decide-se a final julgar parcialmente procedente o recurso,  alterando-se a decisão recorrida que, continuando a ser de procedência da acção, se traduz agora no seguinte dispositivo:

(i) Declara-se anulada a deliberação em singular tomada pela gerência da sociedade requerida que se mostra materializada na “Acta Gerência nº 1”, datada de 24.01.2014, de mudança da sua sede, por violação de normas imperativas que impunham deliberação por maioria dos gerentes em exercício ou por eles ratificados, no que a Ré vai condenada a reconhecer, e

(ii) consequentemente ser assim cancelada a inscrição promovida na matrícula da sociedade requerida pela Ap.30 de 2014.02.06.

            Custas nesta instância em partes iguais pelas AA. e Ré.

Coimbra, 16 de Maio de 2017

                                  

Luís Filipe Cravo ( Relator )

Fernando Monteiro

António Carvalho Martins


[1] Relator: Des. Luís Cravo
  1º Adjunto: Des. Fernando Monteiro
  2º Adjunto: Des. Carvalho Martins
[2] A LOSJ entrou em vigor em 01.9.2014 – cf. art. 188º, nº 1, conjugado com o art. 118º do DL nº 49/2014, de 27.03, que procedeu à sua regulamentação e aprovou o regime aplicável à organização e funcionamento dos tribunais judiciais/RLOSJ – sendo como tal aplicável à presente ação, que, como decorre do Relatório supra, deu entrada em juízo em 07.05.2014.
[3] Assim no acórdão do T. Rel. de Coimbra de 22.09.2015, no proc. nº 5542/13.5TBLRA.C1, acessível em www.dgsi.pt/jtrc.
[4] Neste sentido, vide o acórdão do STJ de 08.5.2013, no proc. nº 5737/09.6TVLSB.L1-S1, acessível em www.dgsi.pt/jstj.
[5] Trata-se do acórdão do T.Rel. do Porto de 20.04.2004, no proc. n.º 0421272, acessível em www.dgsi.pt/jtrp.
[6] Cf., inter alia, os acórdãos do STJ de 18.12.2008 (no proc. nº 08B3907) e de 08.5.2013 (no proc. nº 5737/09.6TVLSB.L1-S1), e bem assim do T. Rel. Lisboa de 26.3.2009, no proc. nº 94/07.8TYLSB.L1-6, todos acessíveis em www.dgsi.pt.
[7] Veja-se  SOVERAL MARTINS, “Suspensão de deliberações sociais das sociedades comerciais: Alguns problemas”, in ROA, ano 63, acessível em http://www.oa.pt/Conteudos/Artigos/detalhe_artigo.aspx?idsc=57754&ida=57692.
[8] A qual, aliás, não está manifestamente vedada legalmente.
[9] Neste sentido, o acórdão do T.Rel. de Lisboa de 13.03.2014, no proc. nº 1535/13.0TYLSB-A.L1-6, e bem assim o acórdão do T.Rel. de Coimbra de 09.01.2017, no proc. nº 1365/14.2T8LRA.C1, ambos acessíveis em www.dgsi.pt.
[10] Assim o já antes referido SOVERAL MARTINS, ora em anotação ao artigo 261º do CSC, in “Código das Sociedades Comerciais em Comentário”, vol. IV, a págs. 164 e 165.
[11] Citando COUTINHO DE ABREU, em anotação ao artigo 411.º do CSC, in “Código das Sociedades Comerciais em Comentário”, vol. VI, a págs. 498.
[12] Assim no acórdão do T. Rel. Lisboa de 30.06.2009, no proc. nº 3236/08.2TVLSB-A.L1-1, acessível em www.dgsi.pt/jtrl.
[13] Mais aprofundadamente sobre todos estes conceitos, vide RAÚL VENTURA, in “Sociedades por Quotas”, Vol.III, Livª Almedina, Coimbra, 1991, a págs. 179-201.
[14] Citámos MOTA PINTO, in “Teoria Geral do Direito Civil”, 2ª Ed. Actualizada, Coimbra Editora, 1983, a págs. 591.
[15] No qual se preceitua que “são anuláveis as deliberações que violem disposições quer da lei, quando ao caso não caiba a nulidade, quer do contrato de sociedade.
[16] No qual se encontra prescrito que “Os registos são cancelados com base na extinção dos direitos, ónus ou encargos neles definidos, em execução de decisão administrativa, nos casos previstos na lei, ou de decisão judicial transitada em julgado.