Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
2504/16.4T8ACB.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: LUÍS CRAVO
Descritores: PROCESSO ESPECIAL DE REVITALIZAÇÃO
PER
PESSOAS SINGULARES
CONSTITUCIONALIDADE
Data do Acordão: 02/07/2017
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE LEIRIA - ALCOBAÇA - JUÍZO COMÉRCIO - JUIZ 1
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTS. 5, 17-A CIRE, 13 CRP
Sumário: 1 – A lei apenas admite ao processo especial de revitalização (PER) o devedor pessoa singular que vise a revitalização de um substrato empresarial de que seja titular, e não já todo e qualquer devedor pessoa singular, como por exemplo a pessoa singular que tenha sido sócio e gerente de uma sociedade comercial.

2 – Isto porque a empresa (“organização de capital e de trabalho destinada ao exercício de qualquer actividade económica” – cfr. art. 5º do CIRE) que se encontre na esfera jurídica da sociedade, é da titularidade da sociedade e não dos respectivos sócios, gerentes ou administradores.

3 – Não padecem de inconstitucionalidade por violação do princípio da igualdade as normas legais atinentes do processo especial de revitalização assim interpretadas.

Decisão Texto Integral:       






      Acordam na 2ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra[1]

                                                                       *

            1 - RELATÓRIO

J (…) e M (…)  casados entre si no regime da comunhão de adquiridos, contribuintes fiscais n.ºs (...) e (...) , respetivamente, residentes na Rua (...) , concelho de Alcobaça, vieram ao abrigo do disposto no art.17-A do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas (diploma legal doravante designado pelo acrónimo CIRE) intentar o presente processo especial de revitalização.

Alegaram estar numa situação económica difícil mas que ainda assim reuniam condições para a sua recuperação em face da disponibilidade dos seus rendimentos do trabalho e ainda do património mobiliário e imobiliário que identificam.

Juntaram cópia de alguns dos documentos previstos no art. 24º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas e requereram a nomeação de administrador judicial provisório (doravante designado pelo acrónimo de AJP) que identificam.

                                                           *

Foi proferido despacho liminar corrigindo o valor da ação para 30.000,00 €, convidando os requerentes à junção de documentos julgados pertinentes e em falta, solicitada a confirmação de que nenhum dos requerentes exerceu funções a título de empresário em nome individual (ENI) de onde o passivo a consolidar tivesse origem e refletir sobre a afirmação de que não se encontram em situação de insolvência face à relação díspar entre o binómio rendimentos do trabalho/património e passivo a consolidar, tendo os requerentes acedido ao convite formulado e concluído como no seu requerimento inicial.

*

De referir que, atenta a controvérsia instalada sobre se o processo especial de revitalização é ou não aplicável às pessoas singulares que não sejam comerciantes, empresários (isto é, que não exerçam elas mesmas e por si uma atividade económica (ENI), como é o caso dos requerentes – trabalhadora por conta de outrem e ex-membro de um órgão de administração societário), foi dada possibilidade dos Requerentes se pronunciarem.

Sendo que, em resposta, os ditos pugnaram pela admissibilidade formal (apesar de serem pessoas singulares) e substancial (não estão insolventes) deste procedimento.

                                                           *

Sucede que o tribunal a quo assim não o entendeu, pois que, na sequência decidiu que:

«III.

Pelo exposto e ao abrigo do disposto no art.17-A do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas indefiro liminarmente o Processo Especial de Revitalização que é requerido por J (…) e M (…) casados entre si no regime da comunhão de adquiridos, contribuintes fiscais n.ºs (...) e (...) , respetivamente, residentes na Rua (...) , concelho de Alcobaça, em virtude de não sendo comerciantes ou empresários em nome individual, nem exercendo por si mesmos qualquer atividade autónoma e por conta própria, não se mostrar justificado face ao enquadramento legal e fatual efetuado e admissível o recurso a este processo de revitalização, em linha com a interpretação restritiva que vem sendo pugnada uniformemente pelo Supremo Tribunal de Justiça.

Valor tributário: 30.000,00 € (aplicando analogamente o art.301.º do CIRE).

Custas pelos devedores mas com taxa de justiça reduzida a ½ - art.302.º nº 1, do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, este com as devidas adaptações.

Registe e notifique. »

                                                           *

Inconformados com tal decisão vieram os Requerentes recorrer, formulando a rematar as alegações que apresentaram, as seguintes conclusões:

«I. O Tribunal recorrido fez uma errada interpretação e aplicação do C.I.R.E..

II. O Processo Especial de Revitalização (P.E.R.) vem regulado nos artigos 17.º-A a 17.º-I do C.I.R.E..

III. Nenhum dos supra citados artigos (17.º-A a 17.º - I do C.I.R.E.) refere que o devedor terá de ser, necessariamente, um empresário.

IV. Por outro lado, nos termos da jurisprudência do Tribunal da Relação de Évora, nomeadamente do Acórdão de 10.09.2015, proferido no âmbito do Proc. n.º 1234/15.9T8STR.E1, em que foi relatora a Veneranda Desembargadora Elisabete Valente, in www.dgsi.pt, “O Processo Especial de Revitalização não deixa de abranger devedores pessoas singulares que não sejam empresários nem exerçam, por si mesmos, qualquer atividade autónoma e por conta própria”, pelo que, “Têm legitimidade para recorrer ao Processo Especial de Revitalização tanto as empresas como as pessoas singulares, pois a lei refere-se sempre ao devedor e a “todo o devedor”, o que abrange as entidades referidas no art.º 2.º: pessoas singulares e coletivas, herança jacente, associações sem personalidade jurídica e comissões especiais, sociedades civis, comerciais, civis sob a forma comercial, cooperativas, estabelecimentos individuais de responsabilidade limitada e quaisquer outros patrimónios autónomos”.

V. O mesmo entendimento teve o Acórdão do Tribunal da Relação de Évora, de 09.07.2015, proferido no âmbito do Proc. n.º 1518/14.3T8STR.E1, em que foi relatora a Veneranda Desembargadora Conceição Ferreira, in www.dgsi.pt.

VI. O próprio Governo Português elucida os cidadãos, através do IAPMEI (http://www.iapmei.pt), informando que pode recorrer ao P.E.R. todo o devedor que se encontre comprovadamente em situação económica difícil ou em situação de insolvência meramente iminente, independentemente de o devedor ser uma pessoa singular ou uma pessoa coletiva, ou mesmo um ente jurídico não personalizado (por ex. um património autónomo).

VII. As condições de acesso por parte de alguém que queira socorrer-se do P.E.R., resultam do que dispõe o artigo 17.º-A, n.ºs 1 e 2 do C.I.R.E., ou seja, todo o devedor que se encontre comprovadamente em situação económica difícil, ou em situação de insolvência eminente.

VIII. O P.E.R. é aplicável a qualquer devedor, pessoa singular ou coletiva, e ainda aos patrimónios autónomos, independentemente da titularidade de uma empresa (é aplicado na sua plenitude o disposto no art.º 2 n.º 1 do C.I.R.E.).

IX. Se é certo que o P.E.R. foi concebido no interesse da recuperação do tecido empresarial, ainda assim as vantagens de um processo expedito e não estigmatizante pode até ser mais justificado no caso de pessoas singulares.

X. Os sujeitos que podem utilizar o processo de revitalização não são necessariamente titulares de empresas; o processo de revitalização tem sido também utilizado por pessoas singulares não titulares de empresas.

XI. Admitir, de resto, entendimento contrário, como o fez o Tribunal a quo, constituirá uma grosseira violação do principio da igualdade, consagrado no artigo 13.º da C.R.P..

XII. É inconstitucional, por violação do princípio da igualdade consagrado no artigo 13.º da C.R.P., o artigo 17.º-A, n.º 1 do C.I.R.E., interpretado no sentido de que o P.E.R. não é aplicável a todo e qualquer cidadão, e que só é aplicável a quem seja comerciante/empresário.

XIII. O douto despacho recorrido violou, assim, por errada interpretação e aplicação, o disposto nos artigos 17.º-A a 17.º-I do C.I.R.E. e no artigo 13.º da C.R.P..

Nestes termos, deverão V. Exas julgar procedente o presente recurso e, em consequência, revogar o douto despacho recorrido, substituindo-o por outro que admita o Processo Especial de Revitalização (PER) dos recorrentes, com o que farão, como é timbre deste Venerando Tribunal, como sempre, inteira

JUSTIÇA!»

                                                                       *

Não foram apresentadas quaisquer contra-alegações.

                                                                       *

            O Exmo. Juiza a quo proferiu despacho a admitir o recurso interposto, providenciando pela sua subida devidamente instruído.

            Nada obstando ao conhecimento do objecto do recurso, cumpre apreciar e decidir.

                                                                       *

            2QUESTÕES A DECIDIR: o âmbito do recurso encontra-se delimitado pelas conclusões que nele foram apresentadas e que atrás se transcreveram – arts. 635º, nº4 e 639º do n.C.P.Civil – e, por via disso, por ordem lógica e sem prejuízo do conhecimento de questões de conhecimento oficioso, a questão a decidir consiste em decidir se às pessoas singulares que não sejam empresários ou titulares de qualquer empresa é permitido o recurso ao PER e, na negativa, se tal entendimento contende com o princípio da igualdade consagrado no art. 13º da CRP.

                                                                       *

3 – FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO

Corresponde à que como tal foi alinhada na decisão recorrida, a saber:

- A requerente mulher sempre exerceu uma profissão por conta de outrem (enfermeira) e o requerente marido foi gerente e sócio de sociedades por quotas e pelo qual uma grande partes das dívidas foi revertida contra si ou é responsável solidário pelo seu pagamento (avais).

- A requerente mulher aufere cerca de 1.500,00 € por mês e o requerente marido não auferiu nos últimos seus meses vencimento ou rendimentos do trabalho;

- As duas empresas de que era sócio e gerente estão encerradas e/ou insolventes;

- O reconhecido passivo a conciliar ascende a 2.319.391,03 €, do qual apenas 100.000,00 € decorrem de um crédito à habitação própria;

- O património imobiliário que se mostra inscrito em nome do requerente marido apresenta valores patrimoniais na ordem de 24.890,00 €; 3,09 €, 4.750,00 €, 0,40 € e 12,87 € - cfr fls.14-31.

- Os requerentes nunca exerceram funções a título de empresário em nome individual (ENI).

                                                               *

4 - FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO

Cumpre então decidir a questão supra enunciada, sendo certo que vamos fazê-lo começando por referir que a mesma vem constituindo uma “vexata quaestio” a nível do Tribunais de 2ª Instância (Tribunais da Relação), com acórdãos sustentando posições opostas em tal matéria, de que, aliás, a própria decisão recorrida fez eco, enumerando número significativo de arestos num e noutro sentido.

Sendo de referir, igualmente, que as alegações recursivas dos Requerentes aparecem basicamente sustentadas em dois arestos do Tribunal da Relação de Évora (um é o acórdão de 10.09.2015, proferido no proc. nº1234/15.9T8STR.E1, e o outro é o acórdão de 09.07.2015, proferido no proc. nº 1518/14.3T8STR.E1), arestos estes que já  figuravam entre os elencados na sentença recorrida como exemplos de jurisprudência de sentido oposto à que foi a perfilhada…

Isto para dizer que, a sentença recorrida foi proferida tendo bem presente a posição de sentido oposto e os argumentos em que a mesma se sustentava, sendo que, por outro lado, se constata que os Requerentes/recorrentes “insistem” nos argumentos que, afinal, foram postergados pela e na decisão recorrida.

Mas será que afinal esta decidiu com acerto?

A nossa resposta – e releve-se o juízo antecipatório! – é inequívoca e claramente de sentido afirmativo.

Pois que a decisão recorrida adere, s.m.j., à melhor posição nesta matéria, que é a perfilhada pelo nosso mais alto Tribunal (o Supremo Tribunal de Justiça), posição essa que, tanto quanto nos é dado saber, vem sendo unânime e reiteradamente nesse mesmo e único sentido.

Disso mesmo nos dá nota um recente acórdão do dito STJ, mais concretamente o acórdão de 18.10.2016[2], onde se elenca esse conjunto de arestos [«Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 10/12/2015 (PINTO DE ALMEIDA), Processo n.º 1430/15.9T8STR, pronunciaram-se, no mesmo sentido, designadamente, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 05/04/2016 (JOSÉ RAINHO), Processo n.º 979/15.8T8STR.E1.S1, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 12/04/2016 (SALRETA PEREIRA), Processo n.º 531/15.8T8STR.E1.S1 e o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 21/06/2016 (ANA PAULA BOULAROT), Processo n.º 3377/15.0T8STR.E1.S1»], e cujo sumário, por paradigmático deste citado entendimento, com data venia, nos permitimos transcrever:

«I - Constitui jurisprudência reiterada do STJ o entendimento de que o processo especial de revitalização não é aplicável a trabalhadores subordinados.

II - O velho brocardo “onde a lei não distingue, não podemos distinguir” não deve, modernamente, ser tomado à letra e não é impedimento para uma interpretação teleológica da lei, impondo apenas um ónus de fundamentação quando o intérprete pretende introduzir diferenciações que não resultam directamente da letra da lei.

III - Tal fundamentação resulta do escopo que o legislador atribuiu ao processo especial de revitalização e que transparece nos próprios trabalhos preparatórios, qual seja, o de reorientar o CIRE para a promoção da recuperação, privilegiando-se sempre que possível a manutenção do devedor no giro comercial.

IV - Este escopo não é coerente com a aplicação do processo especial de revitalização a trabalhadores por conta de outrem. Uma vez que a declaração de insolvência dos trabalhadores subordinados não faz cessar os seus contratos de trabalho, “não se entende em que poderia consistir a sua revitalização económica, a não ser num perdão parcial das respectivas dívidas” (Ac. do STJ de 12-04-2016), numa recuperação, em suma, não da sua actividade, mas da sua capacidade de endividamento.

V - Seria pouco coerente uma lei que, sendo tão exigente em matéria de exoneração do passivo restante do devedor insolvente, permitisse com a amplitude que o processo especial de revitalização proporciona, o referido perdão parcial de dívidas, sempre sem estar em causa evitar o desaparecimento de um agente económico e o concomitante empobrecimento do tecido empresarial.»

Ademais, em direta resposta aos argumentos que se encontram vertidos nas alegações recursivas, veja-se o que foi aduzido no acórdão do STJ de 21.06.2016, proferido no proc. nº 3377/15.0T8STR.E1.S1[3], a saber:

«(…)

  A doutrina e a jurisprudência não são unívocas quanto a este entendimento, cfr inter alia na doutrina, contra aquela posição, Catarina Serra, in O Regime Português da Insolvência, 5ª edição, 176; Maria do Rosário Epifâneo, O Processo Especial de Revitalização, 2015, 16; Isabel Alexandre, Efeitos Processuais da Abertura do Processo de Revitalização, in II Congresso de Direito da Insolvência, 235/254; Luís M. Martions, Recuperação de Pessoas Singulares, Vol I, 2ª edição, 15; Soveral Martins, Um Curso de Direito da Insolvência, 461; a favor, Carvalho Fernandes e João Labareda, Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado, 2ª edição, 142/143; Paulo Olavo Cunha, Os deveres dos gestores e dos sócios no contexto da revitalização de sociedades, in II Congresso de Direito da Insolvência, 209/234; Nuno Salazar Casanova e David Sequeira Dinis, PER, O Processo Especial De Revitalização, 13 (embora estes autores defendam uma quase terceira posição ao sustentarem que apenas as pessoas singulares, pessoas colectivas e os patrimónios autónomos que exerçam uma actividade económica - não necessariamente lucrativa – poderão aceder ao PER).

A jurisprudência das Relações tem andado divida no que tange ao melhor entendimento a adoptar.

Num intuito de esclarecer e de harmonizar os diferentes entendimentos, foi produzido o primeiro Ac do STJ neste sentido em 10 de Dezembro de 2015, no proc 1430/15.9.T8STR.E1.S1 (Relator Pinto de Almeida, aqui primeiro Adjunto) – que constitui o Acórdão fundamento -, sendo que, posteriormente, foi publicado um outro, em 12 de Abril de 2016 (Relator Salreta Pereira), este como aquele in www.dgsi.pt, os quais traduzem a posição desta 6ª secção do STJ, especializada nesta problemática insolvencial, além do mais.

Ambos os Acórdãos se debruçaram sobre a temática, pondo o assento tónico na Exposição de Motivos que supra se referenciou, a qual constitui a pedra angular para as interpretações a efectuar à legislação sobre o PER e suas eventuais correcções.»

Mas afinal o que é que nos diz a dita Exposição de Motivos[4]?

Precisamente que o principal objectivo prosseguido pela revisão da lei é o de reorientar o CIRE para a promoção da recuperação, privilegiando-se sempre que possível a manutenção do devedor no giro comercial. Trata-se de evitar o desaparecimento de agentes económicos, “visto que cada agente que desaparece representa um custo apreciável para a economia, contribuindo para o empobrecimento do tecido económico português, gerando desemprego e extinguindo oportunidades comerciais”.

Ora se assim é, este escopo não parece coerente com a aplicação do PER a pessoas que não sejam “agentes económicos” strictu sensu.

Isto é, parece-nos indubitável que os “trabalhadores por conta de outrem”, qua tale, não integram essa referenciada categoria dos “agentes económicos” a quem se destinava dogmaticamente esse instituto jurídico…

Como igualmente não a integra quem não tenha uma empresa no seu património, ou seja, quem não seja “empresário”.[5]

Revertendo diretamente agora à situação ajuizada, o que se vem de dizer tem obviamente como consequência que a qualidade de sócio e gerente de sociedades comerciais (qualidade do Requerente marido), assim como a de administrador de uma sociedade comercial não equivale à titularidade de qualquer empresa e, como tal, o sócio gerente de uma sociedade, sendo pessoa singular e não tendo sido (ele próprio e em nome individual) titular da exploração de qualquer empresa, não poderá aceder ao processo de revitalização.

E assim o é porque a empresa (“organização de capital e de trabalho destinada ao exercício de qualquer actividade económica” – cfr. art. 5º do C.I.R.E.) que se encontre na esfera jurídica da sociedade, é da titularidade da sociedade e não dos respectivos sócios, gerentes ou administradores.[6]

Aderimos assim, de pleno, à conclusão extractada em aresto deste mesmo Tribunal da Relação de Coimbra, no sentido de que «No que respeita aos devedores pessoas singulares, o processo especial de revitalização ( PER) apenas é admitido àqueles que detenham uma empresa (“organização de capital e trabalho destinada ao exercício de qualquer atividade económica”)».[7]

Não vemos, assim, que se encontre afetado na sua validade o conjunto de argumentos em que assentam os arestos do STJ, bem como dos citados Tribunais da Relação, donde improcederem as alegações recursivas de sinal contrário.

O que de igual modo vale relativamente ao argumento nelas por último invocado, a saber o de que “É inconstitucional, por violação do princípio da igualdade consagrado no artigo 13.º da C.R.P., o artigo 17.º-A, n.º 1 do C.I.R.E., interpretado no sentido de que o P.E.R. não é aplicável a todo e qualquer cidadão, e que só é aplicável a quem seja comerciante/empresário.

Na verdade, quanto a nós, carece-lhes qualquer razão, na medida em que nada tem de inconstitucional o normativo legal do PER quando interpretado no sentido aqui propugnado.

Senão vejamos, o que já foi sublinhado em douto aresto do mesmo STJ relativamente a esta particular questão:

«Como tem sido apontado na doutrina (v. Jorge Miranda, Manual de Direito Constitucional, 3ª ed., tomo IV, pp. 238 e seguintes; Jorge Miranda-Rui Medeiros, Constituição Portuguesa Anotada, Tomo I, pp. 120 e seguintes) e na jurisprudência do Tribunal Constitucional, o tratamento legal igual é exigido para situações iguais, enquanto para situações substancial e objetivamente desiguais (impostas pela diversidade das circunstâncias ou pela natureza das coisas) é admitido tratamento diferenciado. E a prevalência da igualdade tem de ser caso a caso compaginada com a liberdade que assiste ao legislador de ponderar os diversos interesses em jogo e diferenciar o seu tratamento no caso de entender que tal se justifica.

Ora, a diferenciação de que se queixam os Recorrentes está plenamente fundada em circunstâncias objetivas também diferenciadas. No caso de pessoas singulares titulares de empresas está em causa a tentativa de recuperação para a economia geral do país de meios produtivos geradores de riqueza e emprego, enquanto no caso de pessoas titulares trabalhadoras por conta de outrem essa vantagem não se coloca. Isto não significa, bem entendido, que a força do trabalho, a empregabilidade e o circuito geral de consumo não relevem para a economia. Apenas acontece que para o legislador (conforme aliás as vinculações assumidas no acima referido “Programa de Assistência Financeira”), na sua liberdade de ponderação, de conformação e de regulação, a implementação da revitalização do devedor tal como feita constar do CIRE justifica-se apenas quando esteja em equação a salvaguarda do tecido económico empresarial, e não já quando esteja em causa um qualquer devedor pessoa singular, ademais quando é certo que a legislação (art. 249º e seguintes do CIRE) já prevê medidas de salvaguarda direcionadas para devedores pessoas singulares não titulares de empresa.»[8]

Termos em que, brevitatis causa, improcede inapelavelmente o recurso.

                                                                       *

5 – SÍNTESE CONCLUSIVA

I – A lei apenas admite ao processo especial de revitalização (PER) o devedor pessoa singular que vise a revitalização de um substrato empresarial de que seja titular, e não já todo e qualquer devedor pessoa singular, como por exemplo a pessoa singular que tenha sido sócio e gerente de uma sociedade comercial. 

II – Isto porque a empresa (“organização de capital e de trabalho destinada ao exercício de qualquer actividade económica” – cfr. art. 5º do CIRE) que se encontre na esfera jurídica da sociedade, é da titularidade da sociedade e não dos respectivos sócios, gerentes ou administradores.

III – Não padecem de inconstitucionalidade por violação do princípio da igualdade as normas legais atinentes do processo especial de revitalização assim interpretadas.

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6 – DISPOSITIVO

            Pelo exposto, acorda-se em julgar improcedente a apelação, mantendo-se a decisão recorrida nos seus precisos termos.

            Custas do recurso a cargo dos recorrentes.

                                                                       *

Coimbra, 7 de Fevereiro de 2017

Luís Cravo ( Relator )

Fernando Monteiro

António Carvalho Martins

                                  

                                              


[1] Relator: Des. Luís Cravo
  1º Adjunto: Des. Fernando Monteiro
  2º Adjunto: Des. Carvalho Martins

[2] Proferido no proc. nº 65/16.3T8STR.E1.S1, acessível em www.dgsi.pt/jstj.
[3] Igualmente acessível em www.dgsi.pt/jstj.
[4] Cf. Proposta de Lei 39/XII de 30.12.2011 que esteve na origem da Lei 16/2012 que alterou o CIRE e criou o PER.
[5] Neste mesmo sentido, CARVALHO FERNANDES e JOÃO LABAREDA, in “Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado”, 3ª ed., Quid Juris, 2015, a págs. 139-140, ponto “8.”, em anotação ao art. 17.º-A, onde rematam dizendo que “Temos, pois, por adequada, a conclusão de que o processo de revitalização se dirige somente a devedores empresários, justificando-se a correspondente restrição ao significado literal do texto”.
[6] Sublinhando este aspeto, vide o acórdão do T. Rel. de Coimbra de 13.10.2015, no proc. nº 996/15.8T8LRA-E.C1, igualmente acessível em www.dgsi.pt/jtrc.
[7] Trata-se do acórdão de 13.09.2016, no proc. nº 1801/16.3T8LRA.C1, de que, aliás, são Exmos. Relator e 1º Adjunto, os aqui Exmos. 1º e 2º Adjunto, respetivamente.
[8] Citámos agora o acórdão do STJ de 05.04.2016, no proc. nº 979/15.8T8STR.E1.S1, também ele acessível em www.dgsi.pt/jstj.