Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
70/11.6TBTCS.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: JUDITE PIRES
Descritores: COMPRA E VENDA
VENDA DE COISA DEFEITUOSA
PRAZOS
CADUCIDADE
Data do Acordão: 05/15/2012
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRANCOSO
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTS.874, 913, 916, 917, 1225 CC
Sumário: 1- Relativamente aos direitos do comprador de coisa defeituosa, o seu reconhecimento pressupõe o funcionamento, de forma articulada, de três prazos:
- o prazo de denúncia dos defeitos, que, tratando-se de imóvel a coisa vendida, é de um ano a contar do conhecimento dos mesmos, quer por força do disposto nos nºs 2 e 3 do artigo 916º, quer, se for o caso, por força do disposto no artigo 1225º, nºs 2 e 4, ambos do Código Civil;

- o prazo de exercício do direito (eliminação dos defeitos, redução do preço, resolução do contrato, indemnização): seis meses a contar da denúncia atempada dos defeitos, nos termos do artigo 917º do Código Civil, ou, na hipótese de ser aplicável ao caso, um ano, nos termos do nº 3 do artigo 1225º, ex vi do nº 4 do mesmo dispositivo;

- o prazo (limite máximo da garantia legal) de cinco anos sobre a data da entrega da coisa vendida, independentemente da data do conhecimento dos defeitos e da sua denúncia, como decorre dos artigos 916º, nº3, parte final e 1225º, nº4 do Código Civil.

2 - O Decreto-Lei nº 267/94, de 25 de Outubro, ao alterar o artigo 1225º do Código Civil submeteu ao regime de empreitada a venda de imóvel quando o vendedor haja sido simultaneamente o construtor.

3 - O comprador de um imóvel apenas dispõe do prazo de um ano, contado da data da denúncia dos defeitos, para judicialmente exigir do vendedor a eliminação dos mesmos quando o vendedor tenha sido simultaneamente o construtor do mesmo imóvel.

4 - O vendedor não tem a qualidade de construtor quando apenas promoveu a construção do imóvel através de empreitada, a menos que o tenha feito no âmbito de uma actividade profissional de construção/venda, ou com o propósito de, lucrativamente, proceder à sua venda posterior.

5 - Quando o vendedor não tenha sido o construtor do imóvel, o comprador apenas dispõe do prazo do artigo 917º do Código Civil (seis meses) para exercer contra ele o direito de acção para obter a eliminação de defeitos que afectem o prédio urbano adquirido.

Decisão Texto Integral: Acordam os Juízes da Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra

I.RELATÓRIO
1. MF (…) residente em 9 Rue Muguets - 93200 - St. Denis, França intentou, em 16 de Março de 2011, acção declarativa com processo sumário contra AJ (…) e LJ (…), residentes na Rua da Esperança, nº 20, Porto Salvo, Oeiras, pedindo a condenação destes:
- a reconhecerem a autora como dona e legítima proprietária do prédio urbano inscrito na matriz da freguesia de ... sob o n.º ..., melhor identificado no artigo 1º da petição inicial;
- a reconhecerem que tal prédio apresenta os defeitos descritos no artigo 23 a 24 da mesma peça processual;
- e a procederem à reparação desses defeitos, no prazo de 60 dias.
Para tanto, alegaram que os réus lhe venderam o referido imóvel, em Maio de 2007. Em Abril de 2010, quando se deslocou a Portugal constatou a existência de diversos defeitos, os quais foram denunciados aos réus por telefone logo no próprio mês de Abril de 2010, e que, apesar de diversas insistências, os réus não procederam à sua reparação, motivo pelo qual foi obrigada a intentar a presente acção.
Os réus contestaram, defendendo-se por excepção e por impugnação.
Quanto à primeira modalidade de defesa, excepcionaram a ilegitimidade passiva, alegando serem parte ilegítima na acção porquanto não foram os construtores de tal imóvel, pois após terem adquirido o lote de terreno n.º 13 sito na urbanização de ..., Trancoso, decidiram mandar construir naquele local uma moradia para sua própria habitação, tendo a empreitada sido entregue à sociedade de Construtores (…) Lda. Como tal, concluem, sendo apenas donos da obra, não tendo a qualidade de construtores/empreiteiros, são parte ilegítima.
Invocaram ainda os Réus a excepção peremptória da caducidade do direito da acção.
Para tal, alegaram, em síntese, que não foram os construtores do imóvel, mas tão-só os vendedores, motivo pelo qual o regime aplicável é o que decorre do artigo 917.º do Código Civil, que estipula o prazo de seis meses a contar da data da denúncia tempestiva dos defeitos para a interposição da acção.
Ora, tendo os defeitos sido denunciados em Abril de 2010, no dia 16 de Março de 2011 já tinha expirado o prazo de seis meses que a autora tinha para interpor a acção.
A autora respondeu, pugnando pela improcedência da excepção de ilegitimidade, com o argumento de que o que releva é o facto de terem sido os réus quem celebraram o negócio de compra e venda consigo.
Quanto à excepção da caducidade, a Autora respondeu, alegando que não tem obrigação de saber quem construiu o prédio urbano, e que até à contestação os réus nunca tinham dito quem tinha sido o construtor. Acrescenta que, de qualquer forma, isso não releva, pois os réus são os vendedores e os donos da obra, motivo pelo qual podem ser demandados uma vez que se aplica o regime previsto no artigo 1225.º do CC, que prevê os prazos superiores.
Após os articulados, foi proferido despacho saneador, que:
- Julgou improcedente a excepção dilatória da ilegitimidade passiva invocada pelos demandados;
- Julgou procedente a excepção peremptória da caducidade do direito de acção deduzida pelos Réus e, em consequência, absolveu-os do pedido contra eles formulado pela Autora.
2. Inconformada com tal decisão, dela interpôs a Autora recurso de apelação, formulando com as suas alegações as seguintes conclusões:
1º. A A. é dona e legitima proprietária do prédio urbano inscrito na matriz da freguesia de ... sob o n.º ... e descrito na Conservatória do Registo Predial de Trancoso a seu favor;
2º Adveio este prédio à sua posse através de escritura publica de compra e venda outorgada em 7 de Maio de 2007;
3° Após a compra os RR vendedores eliminaram diversos defeitos que o imóvel apresentou;
4° Nunca os RR comunicaram á A quem tinha sido o construtor do imóvel;
5° Sempre os RR assumiram que foram eles quem construíram o imóvel;
6° A A tentou em Abril de 2010 telefonar aos RR , o que nunca conseguiu;
7° O mandatário da A escreveu aos RR em 9 de Abril 2010, solicitando-lhe uma reunião para discutirem os defeitos da casa que haviam vendido á A, reunião que nunca chegou a realizar-se;
8° A A requereu a Notificação Judicial Avulsa dos RR para lhe dar conta dos defeitos existentes na casa que lhe haviam vendido;
9° Os RR não se deixaram notificar;  
10º O mandatário da A enviou por carta regista com aviso de recepção, que a Ré mulher recebeu, cópia da requerida Notificação Judicial avulsa em 9 de Novembro de 2010, onde eram descriminados os defeitos no imóvel;
11° A A considera que os RR tiveram conhecimento dos defeitos no imóvel em 9 de Novembro de 2010;
12° Os RR no artigo 47 da Contestação impugnam a existência dos defeitos;
13° A A intentou acção para reparação dos defeitos em 16 de Março de 2011;
14° A A considera que os RR foram os construtores do imóvel;
15º Os RR aceitam que construíram a casa no lote l3 que haviam comprado
16º Os RR impugnaram a existência dos defeitos no artigo 47 da Contestação.
17° Não resulta dos autos que os RR aceitem a existência dos defeitos, por isso os impugnam;
18º Por isso não se aceite que os RR tenham tomado conhecimento dos defeitos em Abril de 2010 por telefone.
19º Não resulta dos autos que os RR aceitassem a existência de defeitos; nem a data da comunicação dos mesmos;
20° Era necessário fazer prova destes factos para se poder proferir sentença
21º Ao decidir-se como se decidiu violou-se nomeadamente o disposto nos artigos 913 a 917 e 1225 todos do Código Civil;
Deve Assim dar-se provimento ao presente Recurso, revogando-se a Douta Sentença Recorrida e ordenar-se o prosseguimento dos ulteriores termos dos presentes autos, com todas as consequências legais”.
Os Réus contra-alegaram, pugnando pela improcedência do recurso e confirmação da decisão recorrida.
Colhidos os vistos, cumpre apreciar.

II.OBJECTO DO RECURSO
A. Sendo o objecto do recurso definido pelas conclusões das alegações, impõe-se conhecer das questões colocadas pela recorrente e as que forem de conhecimento oficioso, sem prejuízo daquelas cuja decisão fique prejudicada pela solução dada a outras[1], importando destacar, todavia, que o tribunal não está obrigado a apreciar todos os argumentos apresentados pelas partes para sustentar os seus pontos de vista, sendo o julgador livre na interpretação e aplicação do direito[2].
B. Considerando, deste modo, a delimitação que decorre das conclusões formuladas pela recorrente, no caso dos autos cumprirá apreciar fundamentalmente se os autos permitem ou não dar como verificada a excepção peremptória da caducidade do direito da acção

III- FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO
Além dos factos vertidos no relatório que antecede, com relevo para o conhecimento do objecto do recurso mostra-se ainda provado, por acordo das partes, que, em Abril de 2010, a Autora telefonicamente informou os Réus dos vícios descritos nos artigo 23º e 24º da petição inicial.

IV- FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO
1. Caracterização da relação contratual e direitos assegurados ao comprador de imóvel que padeça de defeitos
Tal como é definido pelo artigo 874º do Código Civil, “compra e venda é o contrato pelo qual se transmite a propriedade de uma coisa ou direito, mediante um preço”.        
O contrato de compra e venda, independentemente da sua natureza civil ou comercial, é, assim, um contrato translativo ou de efeito real imediato (produz sempre a transferência da propriedade de uma coisa ou de um direito), bilateral ou sinalagmático, (pressupõe a existência de, pelo menos, dois contraentes, que reciprocamente se vinculam, sendo ambos sujeitos de direitos e obrigações), oneroso (pressupõe atribuições patrimoniais de ambos os contraentes), em regra comutativo (as duas prestações patrimoniais são certas e tendencialmente equivalentes).
Segundo o nº 1 do artigo 406º do Código Civil, que consagra o princípio pacta sunt servanda, traduzido no reconhecimento da força vinculativa dos contratos, tal como foram concluídos, em relação aos contratantes, “o contrato deve ser pontualmente cumprido, e só pode modificar-se ou extinguir-se por mútuo consentimento dos contratantes ou nos casos admitidos na lei”.
E de acordo com o artigo 762º do Código Civil, “o devedor cumpre a obrigação quando realiza a prestação a que está vinculado”.
O cumprimento deve, pois, ter por objecto a coisa ou o facto sobre os quais versa a obrigação.
Vale dizer: no caso específico do contrato de compra e venda, o vendedor cumpre a sua obrigação quando entrega a coisa objecto do contrato, a qual deve ter as características e as qualidades acordadas entre as partes.
A realização da prestação nem sempre implica que o cumprimento haja sido efectuado de forma correcta e nos termos devidos.
No domínio dos contratos nominados como o contrato de compra e venda, podem ocorrer, durante a sua execução, vicissitudes várias que determinem a imperfeição do seu cumprimento.
Como salienta o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 09.03.2010[3], “será preciso (…) distinguir, o cumprimento defeituoso da obrigação (ou falta qualitativa de cumprimento da obrigação) da venda de coisa defeituosa. Naquele, o vendedor não realizou a prestação a que, por força do contrato, estava adstrito. Nesta a coisa objecto da transacção sofre dos vícios ou carece das qualidades referenciadas no art. 913º, quer a coisa entregue corresponda, ou não, à prestação a que o vendedor se encontrava vinculado”.
Com efeito, no âmbito da inexecução do contrato, além da mora e do incumprimento definitivo, destaca-se também a execução defeituosa do contrato, ou cumprimento defeituoso do contrato, na designação acolhida pelo artigo 799º, nº1 do Código Civil. Ou seja: o devedor executa materialmente a prestação, mas em desconformidade com o convencionado com a outra parte – “a prestação realizada pelo devedor não corresponde, pela falta de qualidades ou requisitos dela, ao objecto da obrigação a que ele estava adstrito”[4].
Poder-se-á, assim, considerar que ocorre cumprimento defeituoso da obrigação quando a prestação efectuada não tem requisitos idóneos a fazê-la coincidir com o conteúdo obrigacional tal como este resulta do contrato e do princípio geral da correcção e da boa fé, podendo o defeito ser quantitativo ou qualitativo[5].
O mesmo é dizer, “no cumprimento defeituoso, o devedor cumpre a obrigação que lhe estava imposta, mas não como lhe estava imposta, isto é, cumpre mas de forma defeituosa, com vícios ou deficiências”[6].
Pode-se, deste modo, concluir que “há venda de coisa defeituosa sempre que a coisa vendida sofrer vícios ou carecer de qualidades abrangidas no art. 913 do CC, quer a coisa entregue corresponda ou não à prestação a que o vendedor se encontra vinculado.
O defeito material tanto pode ser inerente à própria coisa, como a uma desconformidade ao contrato ou ainda à sua execução, por isso, sempre que o bem vendido não tem a qualidade, explicita ou implicitamente assegurada, a prestação é defeituosa”
[7].
Na compra e venda, para além da equiparação, em termos de tratamento jurídico, do vício ao defeito e à falta de qualidade da coisa transaccionada, privilegia a lei a idoneidade e aptidão do bem para o fim a que se destina.
Como esclarece João Calvão da Silva[8], “…a lei posterga a definição conceitual e privilegia a idoneidade do bem para a função a que se destina, ciente de que o importante é a aptidão da coisa, a utilidade que o adquirente dela espera.
Daí a noção funcional: vício que desvaloriza a coisa ou impede a realização do fim a que se destina; falta de qualidades asseguradas pelo vendedor ou necessárias para a realização do fim a que a coisa se destina.
Nesta medida, diz-se defeituosa a coisa imprópria para o uso concreto a que é destinada contratualmente - função negocial concreta programada pelas partes - ou para a função normal das coisas da mesma categoria ou tipo se do contrato não resultar o fim a que se destina (art. 913º, nº2)”, acrescentando ainda o mesmo Autor: «a “venda de coisa defeituosa” respeita à falta de conformidade ou qualidade do bem adquirido para o fim (específico e/ou normal) a que é destinado. E na premissa de que parte o Código Civil para considerar a coisa defeituosa, só é directamente contemplado o interesse do comprador/consumidor no préstimo ou qualidade da coisa, na sua aptidão ou idoneidade para o uso ou função a que é destinada, com vista à salvaguarda da equivalência entre a prestação e a contraprestação subjacente ao cumprimento perfeito ou conforme do contrato».
De acordo com o nº1 do artigo 913º do Código Civil, há venda de coisa defeituosa quando “a coisa vendida sofrer de vício que a desvalorize ou impeça a realização do fim a que é destinada, ou não tiver as qualidades asseguradas pelo vendedor ou necessárias para a realização daquele fim”, fornecendo o nº2 do mesmo normativo os critérios supletivos para a determinação do fim relevante.
Resulta do artigo 913º do Código Civil que se o imóvel objecto da venda sofrer de vício que o desvalorize ou impeça a realização do fim a que é destinado, ou não tiver as qualidades asseguradas pelo vendedor ou necessárias para a realização daquele fim, é reconhecido ao comprador o direito à anulação do contrato - artigo 905º do Código Civil -, ou à redução do preço - artigo 911º -, e ainda a ser indemnizado pelos prejuízos sofridos - artigos 908º e 909º do mesmo diploma legal.
Porém, os vícios referidos no artigo 913º, nº 1 não constituem fundamento autónomo de anulação do contrato: como decorre do disposto naquele normativo e no artigo 905º, devem verificar-se requisitos exigidos pelos artigos 251º ou 254º do Código Civil (erro ou dolo).
Para além do direito à anulação por erro ou dolo, o regime da venda de coisa defeituosa confere ainda ao comprador os direitos à reparação ou substituição da coisa -  artigo 914º -, à indemnização em caso de simples erro - artigo 915º -, ao cumprimento coercivo ou à indemnização respectiva - artigo 918º - e à garantia de bom funcionamento -artigo 921º.
Refira-se, no entanto, que os vários meios jurídicos facultados ao comprador de coisa defeituosa pelos artigos 913º e seguintes do Código Civil não podem ser exercidos de forma aleatória ou discricionária; os mesmos acham-se estruturados de forma sequencial e escalonada[9].
Em primeiro lugar, o vendedor está vinculado à eliminação do defeito: se esta não for possível ou se for demasiado onerosa, deverá substituir a coisa viciada;
Frustrando-se qualquer dessas alternativas, assiste ao comprador o direito de exigir a redução do preço e, não se mostrando esta medida satisfatória, poderá o mesmo pedir a resolução do contrato.
Com qualquer dessas pretensões pode cumular-se a indemnização - pelo interesse contratual negativo -, destinada a assegurar o ressarcimento de danos não reparados por aqueles meios jurídicos.
Pode, no entanto, o comprador optar por exercer autonomamente acção de responsabilidade civil pelo interesse contratual positivo decorrente do cumprimento defeituoso e/ou inexacto, presumidamente imputável ao vendedor[10], sem recorrer aos mecanismos facultados pelos artigos 913º e seguintes do Código Civil[11].
No caso, com fundamento nos defeitos que alega afectarem o imóvel adquirido aos Réus, reclamou deles a Autora a sua reparação, ancorando-se na faculdade que o artigo 914º do Código Civil lhe reconhece: “o comprador tem o direito de exigir do vendedor a reparação da coisa ou, se for necessário e esta tiver natureza fungível, a substituição dela; mas essa obrigação não existe, se o vendedor desconhecia sem culpa o vício ou a falta de qualidade de que a coisa padece”.
Como destaca o já mencionado acórdão desta Relação de 01.02.2011, “demonstrando-se que a coisa/fracção apresenta “defeitos”, ficam provados todos os factos constitutivos do direito à reparação/eliminação dos defeitos (art. 914.º, n.º 1, do CC). Com efeito, para no âmbito dum contrato de compra e venda se pedir a reparação/eliminação dum defeito, basta provar (art. 342.º, n.º 1, do CC), por um lado, a existência do defeito e, por outro lado, que o mesmo, pela sua gravidade, é de molde a afectar o uso ou a acarretar uma desvalorização da coisa; uma vez que, provado o defeito e a sua gravidade, presume-se – uma vez que é contratual a responsabilidade do vendedor – que o mesmo é imputável ao vendedor (art. 799.º, n.º 1, do CC), isto é, presume-se que o cumprimento defeituoso é imputável ao vendedor”.
O dever de reparação ou de substituição da coisa afectada por vício ou falta de qualidade apenas deixará de onerar o vendedor se este alegar e demonstrar circunstancialismo fáctico passível de enquadramento na previsão do segundo segmento do artigo 914º do Código Civil.

2. Tempestividade do exercício do direito de acção
2.1. Caducidade
O recurso a qualquer dos apontados meios reconhecidos aos compradores como reacção contra vícios ou falta de qualidade que afecte e desvalorize a coisa adquirida pressupõe o exercício atempado da denúncia dos defeitos, a menos que o vendedor tenha agido com dolo, pois nesse caso não se justifica a reclamação de vícios ou defeitos que ele próprio conhece.
Estabelece, com efeito, o artigo 916º do Código Civil:
“1. O comprador deve denunciar ao vendedor o vício ou falta de qualidade da coisa, excepto se este houver usado de dolo.
2. A denúncia será feita até trinta dias depois de conhecido o defeito e dentro de seis meses após a entrega da coisa.
3. Os prazos referidos no número anterior são, respectivamente, de um e de cinco anos, caso a coisa vendida seja um imóvel”.
O artigo 917º do Código Civil determina, por sua vez: “a acção de anulação por simples erro caduca, findo qualquer dos prazos fixados no artigo anterior sem o comprador ter feito a denúncia, ou decorridos sobre esta seis meses, sem prejuízo, neste último caso, do disposto no nº2 do artigo 287º”.
Como resulta do conteúdo literal do preceito legal em causa, este foi concebido para a hipótese do comprador optar, como remédio para a solução dos defeitos da coisa que adquiriu, pela anulação do contrato fundado em erro ou dolo.
E compreende-se a necessidade de consagração de um prazo de caducidade da acção pois que a anulabilidade tem de ser invocada, não podendo ser oficiosamente decretada, e exige uma demanda judicial para o efeito.
Apesar de não constarem expressamente do conteúdo literal do artigo 917º do Código Civil, já alguma jurisprudência defendia o entendimento de que o referido normativo abarcava os demais direitos reconhecidos ao adquirente de coisa defeituosa (reparação, substituição, redução, resolução, indemnização) por interpretação extensiva do mesmo, tendo o Acórdão de Uniformização de Jurisprudência nº 2/97[12] firmado doutrina no sentido de a acção destinada a exigir a reparação de defeitos de coisa imóvel estar sujeita ao prazo de caducidade previsto no preceito legal em causa.
Deste modo, para que o vendedor possa ser responsabilizado pelo cumprimento defeituoso e seja reconhecido o direito ao comprador à eliminação dos defeitos é indispensável que este tempestivamente proceda à sua denúncia, nos termos do artigo 916º do Código Civil, e, não sendo na sequência dela eliminados, interponha a correspondente acção no prazo fixado no artigo 917º do mesmo diploma.
Dito de outro modo: relativamente aos direitos do comprador de coisa defeituosa, o seu reconhecimento pressupõe o funcionamento, de forma articulada, de três prazos:
- o prazo de denúncia dos defeitos, que, tratando-se de imóvel a coisa vendida, é de um ano a contar do conhecimento dos mesmos, quer por força do disposto nos nºs 2 e 3 do artigo 916º, quer, se for o caso, por força do disposto no artigo 1225º, nºs 2 e 4, ambos do Código Civil;
- o prazo de exercício do direito (eliminação dos defeitos, redução do preço, resolução do contrato, indemnização): seis meses a contar da denúncia atempada dos defeitos, nos termos do artigo 917º do Código Civil, ou, na hipótese de ser aplicável ao caso, um ano, nos termos do nº 3 do artigo 1225º, ex vi do nº 4 do mesmo dispositivo;
- o prazo (limite máximo da garantia legal) de cinco anos sobre a data da entrega da coisa vendida, independentemente da data do conhecimento dos defeitos e da sua denúncia, como decorre dos artigos 916º, nº3, parte final e 1225º, nº4 do Código Civil.
Quanto a este último prazo, partiu o legislador da presunção iuris et de iure de que cinco anos constitui espaço temporal suficiente para os vícios de que possa padecer a coisa vendida serem conhecidos, denunciados e exercidos os correlativos direitos.
Importa, delineada abstractamente a questão, indagar se, no caso concreto, foi respeitado o prazo para o exercício do direito de acção ou se, mostrando-se excedido, se configura a excepção da caducidade invocada pelos Réus e cuja verificação é reconhecida na decisão ora sob recurso.
Convergem as partes nos seus articulados no facto de ter a Autora telefonicamente informado, em Abril de 2010[13], os Réus da existência das anomalias cuja reparação ela deles reclama através da acção judicial proposta em 16 de Março de 2011.
A menos que pretenda a Autora asseverar que a acção foi intentada dentro do prazo de seis meses após a denúncia dos defeitos, não se compreende que venha agora, em sede recursiva, como o faz no ponto 11º das conclusões que rematam as alegações apresentadas, afirmar que “a A. considera que os RR. tiveram conhecimento dos defeitos do imóvel em 9 de Novembro de 2010”, contrariando o que antes não só admitira, como antes assegurara.
Quando a acção foi proposta achava-se claramente esgotado, em relação à data da efectivação da denúncia dos defeitos, o prazo de seis meses fixado no artigo 917º do Código Civil.
O Decreto-Lei nº 267/94, de 25 de Outubro, ao alterar o artigo 1225º do Código Civil submeteu ao regime de empreitada a venda de imóvel quando o vendedor haja sido simultaneamente o construtor.
Estabelece hoje, com efeito, o nº 4 deste normativo que “o disposto nos números anteriores é aplicável ao vendedor de imóvel que o tenha construído, modificado ou reparado”. Do que resulta, em confronto com o que dispõem os números 2 e 3 do mesmo preceito legal, que é de um ano, contado da data da denúncia, o prazo para accionar o vendedor para que este proceder à eliminação dos defeitos de que padeça o imóvel.
Sustentou a Autora na petição inicial - artigo 33º - para demonstrar a legitimidade dos Réus, que estes foram “os construtores e vendedores do prédio urbano”.
A isso contrapõem os Réus que, sendo proprietários do lote de terreno nº 13, sito na Urbanização de ..., no lugar de Trancoso, nele decidiram construir uma moradia para habitação própria, deram de empreitada tal construção à “Sociedade de Construções (…), Ldª”, vindo o imóvel posteriormente a ser adquirido pela Autora.
Na resposta à contestação, a Autora sustentando embora que não tem obrigação de saber quem construiu o prédio urbano e que os Réus, antes da contestação, nunca a informaram de quem fora o construtor, o empreiteiro que fez a obra, não impugna a factualidade invocada pelos Réus, no sentido de terem eles entregue a terceiro, mediante contrato de empreitada, a construção do imóvel. Passa, no entanto, a Autora a justificar a responsabilidade dos Réus pela eliminação dos defeitos na circunstância de serem eles os donos da obra e de ter sido com eles que contratou.
O prazo alargado de um ano contemplado nos nºs 2 e 3 do artigo 1225º do Código Civil, ex vi do seu nº 4, para judicialmente o adquirente do imóvel obter a eliminação dos defeitos não se aplica às situações em que o vendedor promoveu a sua construção através da intermediação de um empreiteiro. Como salienta o acórdão da Relação do Porto de 22.10.2009[14], “se o vendedor construiu o imóvel através de empreiteiro, assume a posição de dono da obra e a situação do terceiro adquirente está salvaguardada pelo disposto no nº 1 do artº 1225º, podendo demandar directamente o empreiteiro para reparação dos defeitos do imóvel, em relação ao qual beneficia do prazo de caducidade de um ano previsto nos nºs 2 e 3 do artº 1225º.
Assim, em princípio, construtor nos termos e para os efeitos do disposto no nº 4 do artº 1225º, será apenas quem construiu por meio de gestão directa, sem a intermediação de um empreiteiro”.
Direccionado no mesmo sentido, defende o Acórdão da Relação do Porto de 19.05.2010[15]: “a redacção dada ao art° 1225° C.Civ., nomeadamente o aditamento do nº 4, com a introdução do conceito de vendedor/construtor, deve ler-se na sua materialidade (enquanto o vendedor acumule as duas condições) ou então, visando o vendedor o lucro, deve aproximar-se ao conceito de profissional, por oposição a consumidor, do art° 2° n°1 da Lei de Defesa do Consumidor de 1996, vista a interpretação histórica e autêntica do preceito.
O mero “dono da obra” não-profissional não preenche o conceito do art° 1225° n°4 Código Civil”.

Foi esse também o entendimento perfilhado pela decisão recorrida: “o regime previsto no artigo 1225.º, só se aplica ao vendedor que também tenha sido o construtor da obra, ou que, não o sendo, seja, pelo menos o dono da obra feita com intuito de venda posterior e no âmbito da actividade profissional do vendedor.

            Na verdade o n.º4 do artigo 1225.º do CC é claro no sentido de aplicar este regime mais favorável ao comprador desde que o vendedor do imóvel seja também o seu construtor (…).

            No caso dos autos a autora assume no conjunto dos seus articulados que os réus não construíram. Foram tão-só donos da obra.

Mas esta factualidade, por si só, é insuficiente para se considerar que os réus possam ser enquadrados no âmbito do regime previsto no artigo 1225.º, n.º4 do Código Civil”.

            Embora alegando a Autora no artigo 8º da resposta à contestação que “conforme os RR afirmam nos artigos 10 e 11 da Contestação, compraram o lote de terreno e nele construíram um prédio urbano para venderem”, tal não encontra correspondência naquele articulado, onde os Réus afirmam ter mandado construir no lote de terreno que lhes pertencia “uma moradia para a sua própria habitação”.

            Ou seja: aceitando a Autora que a construção do imóvel não tenha sido directamente efectuada pelos Réus, que disso incumbiram a sociedade empreiteira, também a mesma se demitiu de alegar que estes o tenham feito no âmbito de uma actividade profissional ou com objectivos lucrativos.

            O princípio da auto-responsabilidade das partes impunha à Autora o dever de invocar a factualidade que lhe permitisse aceder ao prazo alargado concedido pelo nº 4 do 1225º do Código Civil. Não o tendo feito, terá de suportar o desvalor dessa omissão.
            Não merece, pois, qualquer censura a decisão recorrida que julgou procedente a excepção da caducidade do exercício do direito de acção da Autora.

*
Síntese conclusiva:
- O comprador de um imóvel apenas dispõe do prazo de um ano, contado da data da denúncia dos defeitos, para judicialmente exigir do vendedor a eliminação dos mesmos quando o vendedor tenha sido simultaneamente o construtor do mesmo imóvel.
- O vendedor não tem a qualidade de construtor quando apenas promoveu a construção do imóvel através de empreitada, a menos que o tenha feito no âmbito de uma actividade profissional de construção/venda, ou com o propósito de, lucrativamente, proceder à sua venda posterior.
- Quando o vendedor não tenha sido o construtor do imóvel, o comprador apenas dispõe do prazo do artigo 917º do Código Civil (seis meses) para exercer contra ele o direito de acção para obter a eliminação de defeitos que afectem o prédio urbano adquirido.
*
Nestes termos, acordam os juízes desta Relação em, julgando improcedente a apelação, confirmar a sentença recorrida.
Custas pela apelante.

Judite Pires ( Relatora )
Carlos Gil
Fonte Ramos


[1] Artigos 684º, nº 3 e 690º-A, nº 1 do C.P.C., na redacção anterior à introduzida pelo Decreto-Lei nº 303/2007, de 4 de Agosto.
[2] Artigo 664º do mesmo diploma.
[3] Processo nº 4467/06.5TBVLG.P1.S1, www.dgsi.pt.
[4] Antunes Varela, parecer publicado na “Colectânea de Jurisprudência”, Ano XII, 1987, Tomo 4, págs. 22 a 35.
[5] Baptista Machado, “Obra Dispersa”, I, pág. 169.
[6] Armando Braga, “Contrato de Compra e Venda”, pág. 174.
[7] Acórdão desta Relação de 14.11.2006, processo nº 477/05.8TBILV.C1, www.dgsi.pt.
[8] “Compra e Venda de Coisas Defeituosas”, 5ª ed., págs. 44 e 49.
[9] Pedro Romano Martinez, “Direito das Obrigações - Parte Especial”, pág. 130.
[10] Artigos 798º, 799º e 801º, nº1 do Código Civil.
[11] Cfr. Calvão da Silva, “Compra e Venda de Coisas Defeituosas”, 2ª ed., pág. 72.
[12] Acórdãos Uniformizadores, Colectânea de Jurisprudência, 1.ª ed., pág. 89.
[13] Artigos 38º e 63º da contestação e artigos 26º e 35º da resposta à mesma.
[14] Processo nº 1639/04.0TBGDM.P1, www.dgsi.pt.; no mesmo sentido: Acórdão da mesma Relação de 11.12.2007, processo nº 0725473, www.dgsi.pt., Acórdão STJ de 22.6.2005, CJ STJ, Ano XII, Tomo II, págs. 122/4.
[15] Processo nº 139/08.4TBVCD.P1, www.dgsi.pt.