Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1721/17.4T8VIS-A.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: MOREIRA DO CARMO
Descritores: AÇÃO EXECUTIVA
CAUSA DE PEDIR
DECLARAÇÃO DE DÍVIDA
Data do Acordão: 04/20/2021
Votação: MAIORIA COM * VOT VENC
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE VISEU – JUÍZO DE EXECUÇÃO DE VISEU – JUIZ 2
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTº 10º, Nº 5 DO NCPC.
Sumário: I) A causa de pedir na ação executiva, como seu fundamento substantivo, é a obrigação exequenda, sendo o título executivo o instrumento documental da sua demonstração;

II) Se o título executivo, um escrito particular de declaração de dívida, atestar a prestação de suprimentos à sociedade co-executada, com assunção da dívida pelos executados acionistas, suprimentos que não ocorreram, antes se apurando que ocorreu um mero mútuo particular dos exequentes a tais executados, esse título executivo não pode servir para fundar o prosseguimento da execução, pois dele não deriva a invocada obrigação exequenda, nem crédito dos exequentes, nem dívida dos executados.

Decisão Texto Integral:






I – Relatório

1. M... e J..., residentes em …, intentaram contra A..., M..., residentes em …, e Outros, execução para pagamento de quantia certa de 762.800€, sendo 475.000€ de capital e o resto de juros, mais juros de mora vincendos, com base em declaração de dívida.

Os identificados executados deduziram embargos, alegando, em síntese, o seguinte: o exequente é accionista da executada J..., SA, e como tal, fez suprimentos à mesma, não podendo pedir à referida sociedade, nos termos e circunstâncias em que o fez, o pagamento de tais suprimentos e muito menos pode exigir o pagamento de tais suprimentos/empréstimos, feitos à sociedade, aos ora embargantes; foi isto mesmo o que os executados fizeram saber ao exequente, através de carta; resulta dos termos da própria dita declaração de dívida, que se reconhece que a mesma é referente aos ditos suprimentos pelo que é contraditório e falso que na mesma se diga que a quantia emprestada foi utilizada para o exercício do comércio por estes em benefício da economia comum dos respectivos casais; a declaração de dívida foi redigida a pedido insistente do exequente, e até por imposição ao falecido J..., já muito doente; o exequente sabe que os embargantes jamais se quiseram vincular pessoalmente ao pagamento de tais suprimentos, assinando aquela declaração de dívida a pedido do seu falecido pai e sogro, e porque o exequente garantiu ser apenas uma “pró-forma”.

Os exequentes contestaram, alegando, em suma, o seguinte: a declaração de divida que serve de fundamento à presente execução foi livremente assinada pelos executados ora embargantes, correspondendo à sua vontade expressa naquele documento, por saberem que tal documento reflectia a verdade do que fora acordado entre exequentes e executados; nos embargos não se invoca um único facto que possa ser considerado relevante em sede de vícios da vontade; a declaração de divida teve por fonte da respectiva obrigação a celebração de um contrato de mútuo entre J..., a executada A..., e os embargantes A... e M..., com os ora exequentes; o irmão do exequente, C..., é amigo do embargante A...; sendo que este trabalhava na sociedade co-executada, que, por sua vez, era propriedade dos seus sogros, J... e A... e da mulher, embargante M..., todos eles vivendo exclusivamente dos proveitos obtidos com a actividade dessa sociedade; os exequentes venderam uns terrenos, tendo arrecadado com essa venda para si cerca de 1 milhão de euros, o mesmo ocorrendo com o irmão do exequente; o irmão do ora exequente comentou com o A... a venda que haviam realizado, tendo este proposto ao irmão do ora exequente que lhe fosse emprestado esse dinheiro para investir num empreendimento que ele e a empresa co-executada se propunham construir; comprometeu-se não só devolver o montante assim mutuado em curto prazo, como a pagar-lhe juros pela disponibilização dessa quantia; o irmão do ora exequente dirigiu-se-lhe, perguntando se também estava interessado em fazer esse empréstimo, mediante o pagamento de juros acordado, tendo o ora exequente, mediante o conhecimento que tinha do A..., de quem também era amigo e a confiança que este lhe merecia, anuído em fazer esse empréstimo à empresa e aos restantes membros da família; por razões contabilísticas e para melhor justificar o empréstimo assim contratado nas contas da empresa, celebraram a co-executada e os exequentes o que designaram por “contrato promessa de compra e venda de acções”, e ainda celebraram no mesmo dia o que designaram por “ protocolo para reembolso de suprimentos”, e ainda celebraram, também, já na qualidade de “accionistas”, uma escritura para aumento de capital social da empresa; todos estes negócios foram celebrados pelos ora exequentes, porque assim lhes foi dito pelo seu advogado e pelo A... que seria a melhor forma de formalizar o empréstimo realizado, em beneficio da empresa; nunca os ora exequentes quiseram ser sócios da empresa co-executada ou sequer empresários; bem sabendo os embargantes A... e a A... que o que esteve em causa nestas operações foi pura e simplesmente um empréstimo que lhes foi concedido e à empresa co-executada pelo ora exequente; para que o dinheiro que haviam recebido dos terrenos fosse rentabilizado através do recebimento de juros; o exequente quis fazer um empréstimo aos amigos e sua empresa familiar e não tornar-se acionista dessa empresa nem configurar esse empréstimo como suprimento; por esta razão, aceitaram J..., A..., A... e M... assinar o acordo de reconhecimento de divida que foi junto como titulo executivo, a título pessoal, de forma livre e espontânea, precisamente porque sabiam que o dinheiro aqui em causa lhes havia sido emprestado a eles próprios e à empresa.

*

A final foi proferida sentença que julgou os embargos improcedentes.

2. Os embargantes apelaram, tendo formulado as seguintes conclusões:

...

14) Deverá, pois, dando-se provimento ao recurso, ser a sentença revogada e substituída por outra, que julgue os embargos procedentes e, em consequência, declare extinto o presente processo executivo.

3. Os exequentes/embargados contra-alegaram, tendo concluído que:

...

 II- Factos Provados

...

III- Do Direito

1. Uma vez que o âmbito objectivo dos recursos é delimitado pelas conclusões apresentadas pelos recorrentes (arts. 635º, nº 4, e 639º, do NCPC), apreciaremos, apenas, as questões que ali foram enunciadas.

Nesta conformidade, as questões a resolver são as seguintes.

- Alteração da matéria de facto.

- Falta/Vício de vontade dos embargantes ao assinarem a declaração de dívida.

2. Os recorrentes impugnam os factos provados 9., 10. e 18. e os não provados a) e c), pretendendo alteração das respostas, aqueles com respostas restritivas/explicativas, que propõem, e os dois últimos que passem a provados com a redacção que sugerem.

...

Improcede, por isso, esta parte da impugnação da decisão da matéria de facto.

2.2. Dispõe o art. 607º, nº 4, 2ª parte, do NCPC, aplicável à decisão da Relação, por força do art. 663º, nº 2, do mesmo código, em conjugação com o art. 662º, nº 1, do mencionado diploma, que a Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos apurados impuserem decisão diversa. Devendo o juiz tomar em consideração os factos provados por confissão escrita.

Ora, os exequentes/embargados no seu articulado de contestação aos embargos disseram (arts. 18º a 41º de tal peça) que a declaração de divida teve por fonte da respectiva obrigação a celebração de um contrato de mútuo entre J..., a executada A..., e os embargantes A... e M..., com os ora exequentes; o irmão do exequente, C..., é amigo do embargante A...; sendo que este trabalhava na sociedade co-executada, que, por sua vez, era propriedade dos seus sogros, J... e A... e da mulher, embargante M..., todos eles vivendo exclusivamente dos proveitos obtidos com a actividade dessa sociedade; os exequentes venderam uns terrenos, tendo arrecadado com essa venda para si cerca de 1 milhão de euros, o mesmo ocorrendo com o irmão do exequente; o irmão do ora exequente comentou com o A... a venda que haviam realizado, tendo este proposto ao irmão do ora exequente que lhe fosse emprestado esse dinheiro para investir num empreendimento que ele e a empresa co-executada se propunham construir; comprometeu-se não só devolver o montante assim mutuado em curto prazo, como a pagar-lhe juros pela disponibilização dessa quantia; o irmão do ora exequente dirigiu-se-lhe, perguntando se também estava interessado em fazer esse empréstimo, mediante o pagamento de juros acordado, tendo o ora exequente, mediante o conhecimento que tinha do A..., de quem também era amigo e a confiança que este lhe merecia, anuído em fazer esse empréstimo à empresa e aos restantes membros da família; por razões contabilísticas e para melhor justificar o empréstimo assim contratado nas contas da empresa, celebraram a co-executada e os exequentes o que designaram por “contrato promessa de compra e venda de ações”, e ainda celebraram no mesmo dia o que designaram por “ protocolo para reembolso de suprimentos”, e ainda celebraram, também, já na qualidade de “acionistas”, uma escritura para aumento de capital social da empresa; todos estes negócios foram celebrados pelos ora exequentes, porque assim lhes foi dito pelo seu advogado e pelo A... que seria a melhor forma de formalizar o empréstimo realizado, em beneficio da empresa; nunca os ora exequentes quiseram ser sócios da empresa co-executada ou sequer empresários; bem sabendo os embargantes A... e a M... que o que esteve em causa nestas operações foi pura e simplesmente um empréstimo que lhes foi concedido e à empresa co-executada pelo ora exequente; para que o dinheiro que haviam recebido dos terrenos fosse rentabilizado através do recebimento de juros; o exequente quis fazer um empréstimo aos amigos e sua empresa familiar e não tornar-se acionista dessa empresa nem configurar esse empréstimo como suprimento; por esta razão, aceitaram J..., A..., e os embargantes A... e M... assinar o acordo de reconhecimento de divida que foi junto como titulo executivo, a título pessoal, de forma livre e espontânea, precisamente porque sabiam que o dinheiro aqui em causa lhes havia sido emprestado a eles próprios e à empresa.

Esta alegação dos exequentes demonstra que afinal a causa de pedir que invocaram – prestação de suprimentos à sociedade – não é verdadeira, pois tratou-se de um empréstimo particular ao embargante e à sociedade para investir num empreendimento destinado a construção civil. Duas diferentes realidades, portanto.

Assim, os exequentes, além de alterarem a causa de pedir executiva, acabam por confessar factualidade que, no fim, nada tem a ver com a realidade factual exposta no requerimento inicial executivo e vertida na invocada declaração de dívida.     

Trata-se, pois, na economia dos autos, de uma verdadeira confissão – pois os exequentes reconhecem a realidade de factos que os desfavorecem no processo executivo/embargos de executado, e favorecem os embargantes no mesmo processo e embargos, já que a causa de pedir alegada não corresponde, assim, ao invocado no título executivo -, nos termos do art. 352º do CC, que é confissão judicial espontânea escrita, com força probatória plena, ao abrigo dos arts. 355º, 1 e 2, 356º, nº 1, e 358º, nº 1, do CC.

Como assim, a respectiva factualidade essencial tem de ser dada por assente, factualidade essa que está espelhada nas d) a g) dos factos não provados (e que estranhamente o tribunal a quo deu como não provados com a fundamentação que se estava perante uma simulação, com negócio dissimulado, mas sobre o qual era inadmissível prova testemunhal, a coberto do art. 394º, nº 2, do CC…).

Tendo em conta o exposto, tal factualidade não provada passa a provada, sob os factos 19. a 22. (a negrito, ficando os anteriores não provados em letra minúscula), como segue:

19- O documento referido em 2- e 3- teve como fonte da respectiva obrigação a celebração de um contrato de mútuo entre J..., A..., A... e M... com os exequentes.

20- Em razão do mencionado em 14-, A... propôs ao irmão do exequente que lhe fosse emprestado dinheiro, e à sociedade co-executada, empréstimo esse ao qual os exequentes também anuíram.

21- Acertados os detalhes do acordo de mútuo, os documentos referidos em 5-, 6- e 7- foram apenas celebrados por razões contabilísticas, por ser a melhor forma de justificar e formalizar o empréstimo nas contas da empresa;

22- Nunca os exequentes quiseram ser sócios da empresa co-executada;

2.3. Relativamente à impugnação dos factos provados 18 e não provados a) e c), eles reportam-se à declaração de dívida relacionada com o reembolso de suprimentos. Face, porém, à matéria agora fixada (em 2.2.) e ao que se vai explicitar em 3., que se reportam a realidade diferente, torna-se inútil a apreciação de tal impugnação por ficar prejudicada pela solução de direito que se vai tomar quanto à causa e presente recurso.

3. Na sentença recorrida escreveu-se que:

“Como resulta da previsão do art.º 10.º, n.º 5, do Código de Processo Civil, toda a execução tem por base um título, pelo qual se determinam o fim e os limites da acção executiva, razão por que o acesso à acção executiva pressupõe a titularidade de um direito substantivo, cuja existência é garantida pelo título executivo.

Segundo Antunes Varela (in R.L.J., Ano 121, n.º 3770, p. 148) «(…) o título executivo é a peça que pela sua força probatória abre directamente as portas da acção executiva. É, no plano probatório, o salvo-conduto (uma espécie de abre-te Sésamo) indispensável para ingressar na área dura do processo executivo…dir-se-á que o título executivo é uma espécie de escada magirus necessária para o portador ascender imediatamente ao andar nobre da jurisdição cível – que é o da realização coactiva da prestação a que o queixoso faz jus – em vez de entrar pelo rés-do-chão do edifício judiciário, onde normalmente se discute a existência e a violação do direito que o demandante se arroga (…).

No caso dos autos, os exequentes apresentaram como título executivo um documento particular intitulado declaração de dívida, datado de 13.12.2010, de acordo com o qual os embargantes se assumem devedores perante os exequentes da quantia no mesmo mencionada, decorrente de dívida resultante do incumprimento do designado Protocolo de Reembolso de Suprimentos, dívida que afirmam assumir pessoalmente e solidariamente com a sociedade J..., Lda.

                                                                 «»

(…)

Posto isto, importa ponderar a única questão que constituía objecto do presente litígio, ou seja, da eventual verificação de um vício da vontade, concretamente, da falta de vontade dos executados em se vincularem nos termos da declaração dada à execução.

A declaração de vontade negocial resulta de um comportamento que, exteriormente observado, cria a aparência externa de um certo conteúdo da vontade negocial, caracterizando depois essa vontade como a intenção de realizar determinados efeitos práticos, com o objectivo de que os mesmos sejam juridicamente tutelados e vinculantes: o comportamento externo em que se traduz a declaração manifesta, normalmente, uma vontade, formada sem anomalias e coincidente com o sentido exteriormente captado daquele comportamento – Mota Pinto, Teoria Greral do Direito Civil, p. 416; Manuel de Andrade, Teoria Geral da Relação Jurídica, II Volume, p. 122.

Assim sendo, a sua função por excelência é a de exteriorizar a vontade psicológica do declarante, dentro dos limites da lei e em função do princípio da liberdade contratual (artigo 405.º, do Código Civil), vontade essa que terá de ser livre e esclarecida, livre de qualquer vício que a tolde, para que o negócio jurídico opere em pleno.

Nos termos do artigo 247.º do Código Civil, “Quando em virtude de erro, a vontade declarada não corresponda à vontade real do autor, a declaração negocial é anulável, desde que o declaratário conhecesse ou não devesse ignorar a essencialidade, para o declarante, do elemento sobre que incidiu o erro.”.

Porém, no caso dos presentes autos, os executados, apesar do alegado, nada demonstraram que evidencie a existência do erro alegado, nem de qualquer outro vício da vontade que possa colocar em causa a vontade que manifestaram ao assinar o documento dado à execução, com o concreto teor que o mesmo apresenta, razão por que o mesmo opera todos os seus efeitos.

Por último, verifica-se que os executados põem ainda em causa a sua responsabilidade pelo pagamento da quantia exequenda, em função da natureza do negócio que esteve na origem da dívida assumida (suprimentos/empréstimos efecuados a uma sociedade).

A assunção de dívida é expressamente reconhecida pelo legislador, nos termos previstos no artigo 595.º, do Código Civil, podendo ocorrer por contrato entre o antigo e o novo devedor, ratificado pelo credor, ou por contrato entre o novo devedor e o credor, com ou sem consentimento do antigo devedor.

A assunção de dívida, liberatória do antigo devedor só tem lugar havendo expressa declaração do credor nesse sentido. Não existindo essa declaração ou prevendo-se expressamente a solidariedade, como no caso dos presentes autos, estar-se-á perante uma assunção cumulativa da dívida, também designada por co-assunção da dívida, adjunção à dívida ou adesão à dívida. Neste caso (a que o Prof. Vaz Serra no seu anteprojecto chama de contrato a favor do credor) o antigo devedor continua a responder solidariamente (embora se trate de uma solidariedade imperfeita) com o novo obrigado. A responsabilidade do novo devedor vem juntar-se à do antigo, que continua vinculado a par dele.

Considerando o teor do documento dado à execução, a situação dos autos enquadra-se numa assunção cumulativa da dívida, em que os ora executados assumiram perante os exequentes e credores da sociedade, a obrigação de pagar as quantias que são devidas por esta àqueles.

Ora, nesta medida, a sua responsabilidade advém-lhes do acordo transmissivo celebrado, ou seja, do contrato de assunção de dívida dado à execução – celebrado ao abrigo do preceituado nos artigos 595.º e seguintes do Código Civil – e já não do negócio jurídico a que o mesmo se refere, relativo aos suprimentos/ empréstimos efectuados à sociedade.

Na verdade, como refere o Prof. Menezes Cordeiro "a existência normal de uma fonte originante da assunção não é necessária para a subsistência desta. Entende o Direito que, uma vez celebrada a transmissão da dívida, não seria justo sujeitar o credor que, fiado nas aparências, deu o seu assentimento, às vicissitudes possíveis na relacionação verificada entre os devedores inicial e posterior" - Direito das Obrigações, 1ª ed., 1986 (reimpressão) 2º, p. 114/115.

A assunção da dívida é assim um acto abstracto, subsistindo independentemente da existência ou validade da sua fonte. Neste sentido, também se pronunciou o Prof. Menezes Leitão - Direito das Obrigações, 2002, II, p. 64/65.

Assim, sendo o contrato transmissivo em si mesmo válido e idóneo, os novos devedores, neste caso os executados/embargantes, respondem nos precisos termos em que se obrigaram, improcedendo os embargos deduzidos.”.

A fundamentação e correspondente decisão recorrida não podem manter-se, embora, por razão diferente da expendida, face aos factos provados sob 19. a 22. Expliquemos.

Efectivamente, perante tal factualidade, deparamo-nos com a seguinte realidade: temos uma declaração de dívida, emergente de um alegado protocolo para reembolso de suprimentos, prestados supostamente pelos exequentes à sociedade co-executada, com assunção de dívida dos restantes executados accionistas, que é o título dado à execução – e único alegado pelos exequentes no requerimento inicial executivo.

Sabemos, contudo, que essa não é a realidade, não é verdade que tal tenha acontecido, antes se apurou que afinal ocorreu apenas um mútuo particular dos exequentes à dita sociedade e 4 accionistas, entre os quais os embargantes. E que para acertarem os detalhes desse acordo de mútuo fabricaram os documentos referidos em 5. e 6., por razões contabilísticas, por ser a melhor forma de justificar e formalizar o empréstimo nas contas da empresa.

Isto é, subjacente ao título executivo, está comprovado inexistir quaisquer suprimentos.

Esta conclusão, leva-nos para a problemática, referente à natureza e função do próprio título executivo.

Ensina Lebre de Freitas (A Acção Executiva, À Luz do CPC de 2013, 6ª Ed., pág. 81) que o título executivo extrajudicial é um documento escrito que constitui prova legal para fins executivos, e que a declaração nele representada tem por objecto o facto constitutivo do direito de crédito ou é, ela própria, este mesmo facto.

Por outro lado, professa (págs. 86/90) que o título executivo é condição necessária e suficiente da acção executiva.

Necessária porque não há execução sem título.

Suficiente porque, perante ele, deve ser, em regra, dispensada qualquer indagação prévia sobre a real existência ou subsistência do direito a que se refere.

Contudo, apurada uma desconformidade entre o título e o direito que se pretende fazer valer fica impedida a realização dos respectivos actos executivos. Desconformidade essa que pode resultar, tanto no plano da validade formal como no campo da validade substancial, das declarações de vontade e de ciência que lhe constitui o conteúdo ou do acto jurídico a que a declaração de ciência se reporte, ou ainda de causa que afecte a ulterior subsistência da obrigação exequenda (apuramento esse que pode derivar do próprio título executivo, ou de factos alegados no requerimento inicial, ou de prova produzida em embargos à execução, etc). 

Finalmente, doutrina (págs. 90/91) que deve ser recusada a identificação do título com a causa de pedir, pois não constituindo aquele um acto ou facto jurídico tal construção não se harmoniza com o conceito de causa de pedir – esta é o facto jurídico de que resulta a pretensão do exequente, nos termos do art. 581º, nº 4, do NCPC. Esta interpretação é de sufragar e é a que vem sendo seguida pelo STJ, por ex. nos Acds. de 15.5.2003, Proc.02B3251 e 10.11.2011, Proc.4719/10.0TBMTS-A.

Ou seja, o fundamento substantivo da acção executiva é a própria obrigação exequenda, sendo que o título executivo é um mero instrumento documental legal de demonstração da existência do alegado direito de crédito, constituindo a condição daquela acção.          

Importa, agora concluir, atendendo ao que o acervo factual provado nos demonstra.

Foi dado à execução um título, consubstanciado em escrito particular, que comprovaria uma declaração e assunção de dívida, por parte dos executados, emergente de suprimentos dos exequentes à sociedade co-executada. Temos, por isso, um documento condição necessária e suficiente da acção executiva.

Só que a declaração nele representada, que devia ser o facto constitutivo do direito de crédito, não corresponde à realidade, já que nenhum suprimento foi prestado pelos exequentes à sociedade co-executada e cuja dívida os executados pudessem assumir. O que ocorreu foi um empréstimo particular dos exequentes aos executados.

Existe, portanto, uma desconformidade entre o título e o direito que se pretende fazer valer. É que a causa de pedir apresentada pelos exequentes seriam os ditos suprimentos e concomitante dívida assumida pelos executados, só que estes nunca ocorreram. Ou seja, não está provado que subjacente ao indicado título executivo hajam sido prestados quaisquer suprimentos. Pelo que, não provada a existência da alegada obrigação exequenda, não provado que desse título decorre algum crédito, a execução não pode ser levada a cabo, já que a dívida supostamente decorrente de tal título não existe.    

Como assim, sem prejuízo da eventual formação de título executivo em acção declarativa adrede a apresentar, a oposição dos executados/embargantes, embora por razões diferentes das convocadas na fundamentação da 1ª instância, procede, devendo extinguir-se a execução. 

4. Sumariando (art. 663º, nº 7, do NCPC):

i) A causa de pedir na acção executiva, como seu fundamento substantivo, é a obrigação exequenda, sendo o título executivo o instrumento documental da sua demonstração;

ii) Se o título executivo, um escrito particular de declaração de dívida, atestar a prestação de suprimentos à sociedade co-executada, com assunção da dívida pelos executados accionistas, suprimentos que não ocorreram, antes se apurando que ocorreu um mero mútuo particular dos exequentes a tais executados, esse título executivo não pode servir para fundar o prosseguimento da execução, pois dele não deriva a invocada obrigação exequenda, nem crédito dos exequentes, nem dívida dos executados.  

IV – Decisão

Pelo exposto, julga-se procedente o recurso, assim se revogando a sentença apelada, e, consequentemente, se declarando extinta a execução.

Custas a cargo dos exequentes/recorridos.

                                                                 Coimbra, 20.4.2021

Moreira do Carmo

Fonte Ramos

                                                                 Alberto Ruço Alberto Ruço (com voto de vencido)

Voto de vencido

Confirmaria a sentença recorrida, pelas seguintes razões.

1 – É certo que se provou que não existiram os suprimentos à sociedade J..., S.A., a que alude o título executivo.

O que existiu foi a factualidade descrita nos (novos) factos provados 19 a 22, ou seja:

«19- O documento referido em 2- e 3- teve como fonte da respectiva obrigação a celebração de um contrato de mútuo entre J..., A..., A... e M... com os exequentes.

20- Em razão do mencionado em 14-, A... propôs ao irmão do exequente que lhe fosse emprestado dinheiro, e à sociedade co-executada, empréstimo esse ao qual os exequentes também anuíram.

21- Acertados os detalhes do acordo de mútuo, os documentos referidos em 5-, 6- e 7- foram apenas celebrados por razões contabilísticas, por ser a melhor forma de justificar e formalizar o empréstimo nas contas da empresa;

22- Nunca os exequentes quiseram ser sócios da empresa co-executada».

Verifica-se que existiu um mútuo, sendo os Exequentes mutuantes e mutuários J..., A..., A... e M...

Por conseguinte, os mutuários ficaram obrigados a devolver a quantia mutuada (e juros) aos mutuantes ora exequentes.

2 – O título executivo, muito embora se refira que a dívida resulta de suprimentos feitos à sociedade, também contém à cabeça esta declaração dos ora executados:

«1. Pela presente declaração os primeiros outorgantes declaram expressamente, para todos os devidos efeitos legais, que são devedores aos segundos outorgantes da quantia de € 545.000 euros (quinhentos e quarenta e cinco mil euros)».

Há aqui uma assunção da dívida inequívoca por parte dos executados.

Por conseguinte, fosse por via dos suprimentos, que de facto são ficcionados, seja por via do mútuo, que foi a realidade histórica, a conclusão é sempre a mesma, isto é, os executados são devedores face aos exequentes da quantia em causa.

3 - A factualidade que sustenta a dívida está devidamente apurada nestes embargos e ilumina as declarações do título executivo cujas declarações devem ser entendidas com o complemento que resulta dos factos provados 19 a 22.

Por outras palavras, os executados são efetivamente devedores e do título executivo consta que eles se declararam devedores.

Sendo os executados devedores, não há razão para que a execução seja declarada extinta para ser instaurada uma ação declarativa de condenação para averiguar o que aqui acabou de ser verificado e se constituir um novo título executivo.

4 – O que fica dito sai reforçado pelo facto dos embargantes não terem alegado em sua defesa esta desconformidade do título executivo, mas sim que não são devedores porque na altura em que firmaram o acordo não tiveram a consciência de se constituírem pessoalmente como devedores.

5 – Dada a convicção que presidiu à declaração dos factos provados 19 a 22, a impugnação da matéria de facto no que respeita ao facto provado n.º 18 e aos factos não provado das als. a) e c) seria julgada improcedente.