Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1030/13.8TBTMR-B.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ANABELA LUNA DE CARVALHO
Descritores: AVALISTA
EXECUÇÃO
SUSPENSÃO
PROCESSO ESPECIAL DE REVITALIZAÇÃO
PLANO DE REVITALIZAÇÃO
Data do Acordão: 06/03/2014
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TOMAR 1º JUÍZO
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTS. 32, 47, 77, 78 LULL, 733 CPC, 17 E, 217 CIRE
Sumário: 1- O aval é uma garantia prestada à obrigação cartular do avalizado.

2- O avalista não é sujeito da relação jurídica existente entre o portador e o subscritor da livrança, mas apenas da relação subjacente à obrigação cambiária estabelecida entre ele e o avalizado.

3- A razão de ser do art. 32 da LULL é constituir o aval um ato cambiário que desencadeia uma obrigação independente e autónoma.

4- A obrigação do avalista vive e subsiste independentemente da obrigação do avalizado, mantendo-se mesmo que seja nula a obrigação garantida, salvo se a nulidade provier de um vício de forma.

5- Por via dessa autonomia, o avalista não pode defender-se com as excepções que o seu avalizado pode opor ao portador do título, salvo a do pagamento.

6- A aprovação de um plano de revitalização, com moratória para pagamento da dívida, de que beneficie a sociedade subscritora da livrança, não é invocável pelos avalistas contra quem é instaurada a execução para seu pagamento.

Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra:

                                                                        I

B (...) S.A. instaurou execução contra J (…) e D (…), demandando-os na qualidade de avalistas de três livranças no valor total de €. 93.014,44, subscritas pela sociedade A (…), Lda e avalizadas por aqueles.

Embargaram os executados alegando, entre o mais, que a devedora principal, a A (…) Lda, tem em curso um processo de revitalização a aguardar homologação judicial, cujo plano teve a aceitação da exequente depois de aprovado pela maioria dos credores, pelo que, não estando comprovada a impossibilidade de cumprimento por parte daquela sociedade, não podem os avalistas ser demandados, ou pelo menos, não pode a respetiva execução prosseguir contra estes.

Acresce o facto de, as três livranças terem sido declaradas vencidas pelo exequente, já depois de este ter concordado com a alteração do plano de pagamentos, não havendo qualquer incumprimento do referido plano de pagamentos.

Assim, enquanto o plano for cumprido pela A (...), devedora principal, não podem nem devem ser chamados os garantes pessoais da dívida.

Mais requereram a atribuição do efeito suspensivo aos embargos com dispensa de prestação de caução.

A exequente opôs-se alegando ser a obrigação exequenda certa, líquida e exigível em relação aos avalistas e declarando inexistir causa justificativa para a suspensão.

Foi então proferido o seguinte despacho:

«Da suspensão dos autos principais de processo executivo:

No caso dos autos, resulta do teor do articulado de embargos apresentado que os oponentes, não só vieram impugnar a exigibilidade da obrigação exequenda, como requereram que fosse determinada a suspensão dos autos principais de execução.

Ouvido o exequente, o mesmo veio se pronunciar do sentido do indeferimento do requerido, por a obrigação exequenda ser certa, líquida e exigível.

Dispõe o art. 733.º, n.º 1, al. c), do Código de Processo Civil que, o recebimento dos embargos só suspende o prosseguimento da execução se tiver sido impugnada, no âmbito da oposição deduzida, a exigibilidade ou a liquidação da obrigação exequenda e o juiz considerar, ouvido o embargado, que se justifica a suspensão sem a prestação de caução.

Ora, atento o montante e natureza da obrigação exequenda e a factualidade em discussão no âmbito dos presentes embargos de executado (designadamente a circunstância dos oponentes J (...) e S (...) terem apenas sido demandados devido a avais prestados à sociedade A (…), Lda., a qual está presentemente sujeita a processo de revitalização, cujo plano se encontrará em vistas de homologação), considera-se que se justifica a suspensão dos autos principais de execução sem a prestação de caução por parte dos executados/oponentes.

Por todo o exposto, declaro suspensa a execução dos autos principais, nos termos do art. 733.º, n.º 1, al. c), do CPC».

Inconformada com tal decisão veio a exequente recorrer, concluindo do seguinte modo as suas alegações de recurso:

A) Em 20-08-2013 a aqui Apelante intentou contra J (…) e D (…) ação executiva para pagamento de quantia certa, resultante de dívida comercial.

B) Foram apresentadas, enquanto título executivo, três livranças no valor total de €. 93.014,44, subscritas pela sociedade A (…), Lda e avalizadas pelos Executados/Embargados.

C) Vieram, em 31-10-2013, os Executados opor-se à Execução, requerendo a suspensão dos autos em virtude de se encontrar em negociação um Plano Especial de Revitalização da sociedade A (…), Lda, subscritora das Livranças nas quais os Executados apuseram o seu aval.

D) A ora Apelante apresentou a sua Contestação alegando, entre outros, a ausência de causa justificativa para que uma tal pretensão pudesse valer e ser decretada a suspensão dos autos.

E) Contudo, em 23-01-2014, foi proferido despacho a declarar suspensos os autos principais de execução, nos termos do art. 733º nº 1 alª c) do CPC, com o fundamento único na existência de um Processo Especial de Revitalização, em vistas de homologação, apresentado pela sociedade A (…)Lda.

F) Salvo o devido respeito, essa decisão não pode merecer acolhimento, desde logo, porque é manifesta a insuficiência de fundamento que o justifique, já que a existência de um Plano Especial de Revitalização sobre uma sociedade que não é demandada nestes autos de execução não pode determinar a suspensão do processo quanto aos outros obrigados cambiários, cuja responsabilidade é autónoma da Insolvente.

G) A suspensão das ações para cobrança de dívidas prevista no art. 17º-E, nº 1 do Código de Insolvência e Recuperação de Empresas (CIRE) não se estende aos terceiros que, através de aval, sejam garantes da dívida que se pretende cobrar.

H) Aliás, atento o teor do art. 17º nº 1 do CIRE, é de salientar que as ações ali indicadas e passíveis de suspensão são as ações para cobrança de dívidas apenas contra a entidade que figura no P.E.R. como devedora, no caso, a sociedade A (…)Lda, apenas.

I) O Processo Especial de Recuperação não afeta nem pode afetar os direitos dos credores contra os codevedores ou terceiros garantes, não existindo qualquer disposição legal que impeça os credores de reclamar créditos nesse Processo e, simultaneamente, intentar execução contra os outros devedores, no caso, os avalistas subscritores das livranças.

J) É, por isso, indiscutível e inequívoco que os Embargantes, enquanto avalistas, respondem solidariamente perante o banco exequente, portador das Livranças, podendo ser demandados, individual ou conjuntamente com a sociedade subscritora.

K) Se assim não fosse estava retirada ao aval a sua natureza garantística.

L) Assim o determina a LULL artºs 32, 47, 77 e 78 e assim o entendeu o STJ em Acórdão Uniformizador de Jurisprudência de 11.12.2012, de onde se retira que “O avalista não é responsável ou não se obriga ao cumprimento da obrigação constituída pelo avalizado, mas tão só ao pagamento da quantia titulada no título de crédito”.

M) A aprovação de um PER quanto à sociedade subscritora das livranças não inibe o credor de acionar os demais obrigados cambiários durante a vigência de tal plano.

N) O PER vincula a exequente (Credora e ora Apelante) mas apenas no que se refere à exigibilidade do crédito quanto à devedora A (…), Lda.

O ) Não estando os Embargantes sob tutela do PER e sendo devedores solidários pelo aval prestado enquanto garantia da dívida contraída pela sociedade subscritora das Livranças, não podem invocar a inexigibilidade temporária do crédito por força do mesmo.

P ) O mesmo entendimento sufragaram a Relação de Guimarães em 05.12.2013, a Relação de Lisboa em 09.09.2013 e, mais uma vez, o STJ em 26.02.2013.

Q) A garantia do aval não tem carater subsidiário mas sim cumulativo, conforme determina o art. 517º do CC.

R) O Plano da Insolvência é constituído por um conjunto de medidas que só se aplicam à sociedade insolvente, não sendo razoável que o credor ficasse inibido de acionar os respetivos avalistas, não insolventes e sem qualquer impossibilidade de facto ou de direito de cumprir as obrigações que livremente assumiram, face à autonomia da obrigação do aval que prestaram.

S) Não estando sob a tutela do PER, não podem os Embargantes/Executados opor à exequente/Apelante a inexigibilidade temporária do crédito, pois a sua responsabilidade é autónoma e solidária à da sociedade subscritora das Livranças.

A final requer que seja revogado o despacho recorrido, decretando-se o levantamento da suspensão dos autos.

Os recorridos apresentaram as seguintes contra-alegações:

1) O fundamento para a prolação do despacho de suspensão é o artigo 733º nº 1 alª c) do Código de Processo Civil (e não o art. 17º-E/1 do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas invocado pelo banco exequente).

2) Os Recorridos puseram em causa, não só a existência da dívida, mas também a oportunidade da cobrança e a sua certeza, características essenciais para conferir validade executiva ao título apresentado nos autos.

3) Os argumentos apresentados pelos ora Recorridos na oposição, quando for apreciada a sua validade e julgada a sua procedência, conduzirão à inexigibilidade da obrigação em cobrança contra estes executados e ora recorridos.

4) Em face das dúvidas suscitadas pela oposição apresentada e recebida, andou bem o tribunal ao ter decidido pela suspensão dos autos, até que se tenha a certeza do que se pretende cobrar e se é o património destes executados que deve suportar a dívida.

5) Tendo em conta que tal despacho foi proferido no exercício de um poder discricionário, a decisão não deve sequer ser recebida e apreciada.

Pugnando assim pela manutenção do decidido.

A factualidade a considerar consta do relatório supra.

É a seguinte a questão do recurso: se a pendência dum processo de revitalização relativamente à devedora principal obsta à execução ou ao prosseguimento da execução contra os avalistas?

Ou se, pelo contrário, pode o exequente exigir aos avalistas o pagamento das livranças dadas à execução, mesmo depois de ter acordado num plano de revitalização da devedora/subscritora das livranças ?

Vieram os avalistas requerer a suspensão da execução com o argumento de que tendo a exequente acordado num plano de revitalização da subscritora das livranças, o qual se encontra em vias de homologação, estava impedida de preencher as livranças e acionar os avalistas garantes da mesma, pois que, a alteração da dívida provocada pelo plano de revitalização terá de se repercutir na relação do credor com o avalista (no âmbito das relações imediatas), nomeadamente no que respeita a prazos de cumprimento. E assim, no domínio das relações imediatas a pendência dum processo de revitalização relativamente à devedora avalizada obsta à execução ou ao prosseguimento da execução contra os avalistas daquela.

Vejamos:

Seguimos de perto o acórdão do STJ de 26-02-2013, P.597/11.0TBSSB-A.L1.S1, Relator Azevedo Ramos, in www.dgsi.pt, o qual contemplando, embora uma situação em que a devedora principal está em processo de insolvência, aplica-se a este nos seus fundamentos, não obstante neste, o processo a que a devedora está sujeita ser o de revitalização.

O aval é o ato pelo qual um terceiro ou um signatário de uma letra garante o seu pagamento por parte de um dos seus subscritores – art. 30 da LULL, aplicável às livranças por força do seu art. 77.

A função do aval é, assim, uma função de garantia, inserida ao lado da obrigação de um certo subscritor cambiário, a cobri-la e caucioná-la.

O fim específico do aval é o de garantir o cumprimento pontual do direito de crédito cambiário.

É uma garantia prestada à obrigação cartular do avalizado.   

O avalista não é sujeito da relação jurídica existente entre o portador e o subscritor da livrança, mas apenas da relação subjacente à obrigação cambiária estabelecida entre ele e o seu avalizado.

O art. 32 da LULL, determina que o dador de aval é responsável da mesma forma que a pessoa por ele afiançada.

A extensão e o conteúdo da obrigação do avalista aferem-se pela do avalizado (Ferrer Correia, Lições de Direito Comercial, 1975, III, pág. 207 a 215).

A razão de ser do referido art. 32 é ser o aval um ato cambiário que desencadeia uma obrigação independente e autónoma.

A obrigação do avalista é uma obrigação materialmente autónoma, ainda que formalmente dependente da do avalizado, pois o avalista responsabiliza-se pela pessoa que avaliza, assumindo a responsabilidade, abstrata e objetiva, pelo pagamento do título.

Com efeito, a obrigação do avalista vive e subsiste independentemente da obrigação do avalizado, mantendo-se mesmo que seja nula a obrigação garantida, salvo se a nulidade desta provier de um vício de forma – art. 32 da LULL.

Como se escreve no Acórdão Uniformizador de Jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça de 11-12-2012, proferido na revista nº 5903/09.4TVLSB.L1.S1,“tratando-se de uma obrigação autónoma, independente da relação subjacente, não poderá o avalista valer-se da renovação/prorrogação do contrato de abertura de crédito para se desobrigar de uma obrigação que, pela sua abstração e literalidade, se emancipou da relação subjacente para subsistir como obrigação independente e autónoma.

O avalista não é responsável ou não se obriga ao cumprimento da obrigação constituída pelo avalizado, mas tão só ao pagamento da quantia titulada no título de crédito.

A obrigação firmada pelo avalista é perante a obrigação cartular e não perante a relação subjacente.

Do que ficou dito supra, o avalista não se obriga perante o avalizado, mas sim perante o titular da letra ou livrança, constituindo uma obrigação autónoma e independente e respondendo como obrigado cartular, pelo pagamento da quantia titulada na letra ou livrança.

A circunstância de ocorrerem vicissitudes na relação subjacente não captam a virtualidade de se transmitirem à obrigação cambiária, pelo que esta se mantém inalterada e plenamente eficaz, podendo o beneficiário do aval agir, mediante ação cambiária, perante o avalista para obter a satisfação da quantia titulada na letra.

A circunstância da relação subjacente se modificar ou possuir contornos de renovação não induz ou faz seguir que esses efeitos se repercutam ou obtenham incidência jurídica na relação cambiária.

A relação cambiária constituída permanece independente às mutações ou alterações que se processem na relação subjacente, não acompanhando as eventuais transformações temporais e/ou de qualidade da obrigação causal”.               

Por via dessa autonomia, o avalista não pode defender-se com as exceções que o seu avalizado pode opor ao portador do título, salvo a do pagamento (Vaz Serra, R.L.J, Ano 113, pág. 186, nota 2; Ac. S.T.J. de 23-1-86, Bol. 353, pág. 485; Ac. S.T.J. de 27-4-99, Col. Ac. S.T.J., VII, 2º, 68; Ac. S.T.J. de 19-6-2006, Col. Ac. S.T.J., XV, 2º, 118).  

Esta doutrina da autonomia da obrigação do avalista está conforme e harmoniza-se perfeitamente com o preceituado no art. 217, nº4, do CIRE, onde se estabelece que:

“As providências previstas no plano de insolvência com incidência no passivo do devedor não afetam a existência nem o montante dos direitos dos credores da insolvência contra os codevedores ou os terceiros garantes da obrigação, mas estes sujeitos apenas poderão agir contra o devedor em via de regresso nos termos em que o credor da insolvência pudesse exercer contra ele os seus direitos”. 

É, pois, de concluir que a aprovação do plano de revitalização onde possa existir uma moratória para o cumprimento das obrigações da subscritora das livranças, quanto ao pagamento dos seus débitos, não é invocável pelos respetivos avalistas, ora recorrentes, contra o portador da mesma livrança que instaurou a presente execução para obter o seu pagamento. 

Na verdade, tal plano é constituído por um conjunto de medidas que só se aplicam à sociedade subscritora.

Ao votar a favor de tal plano, o credor fá-lo apenas por se tratar de medidas aplicáveis a uma sociedade que está numa particular situação de dificuldade de cumprir as suas obrigações para com os credores.

Não seria razoável que o credor ficasse inibido de acionar os respetivos avalistas, que não são contemplados por tal plano, nem se encontram impossibilitados de cumprir as obrigações que livremente assumiram, face à autonomia da obrigação do aval que prestaram.

Os garantes estão fora do âmbito de tal plano de revitalização e do que nesta se delibera.

Uma vez que não foi invocado pelos avalistas o pagamento ou nulidade da obrigação principal por vício de forma, únicas exceções que poderiam opor ao portador das livranças, o recurso não pode deixar de proceder.

Em suma:

- O aval é uma garantia prestada à obrigação cartular do avalizado.

– O avalista não é sujeito da relação jurídica existente entre o portador e o subscritor da livrança, mas apenas da relação subjacente à obrigação cambiária estabelecida entre ele e o avalizado.

- A razão de ser do art. 32 da LULL é constituir o aval um ato cambiário que desencadeia uma obrigação independente e autónoma.

– A obrigação do avalista vive e subsiste independentemente da obrigação do avalizado, mantendo-se mesmo que seja nula a obrigação garantida, salvo se a nulidade provier de um vício de forma.

– Por via dessa autonomia, o avalista não pode defender-se com as exceções que o seu avalizado pode opor ao portador do título, salvo a do pagamento.

– A aprovação de um plano de revitalização, com moratória para pagamento da dívida, de que beneficie a sociedade subscritora da livrança, não é invocável pelos avalistas contra quem é instaurada a execução para seu pagamento.

                                                                        *

Termos em que, acorda-se, em julgar a apelação procedente revogando-se a decisão recorrida, que se substitui por outra fazendo prosseguir a execução.

Custas pelos apelados.

 Anabela Luna de Carvalho ( Relatora )

 João Moreira do Carmo

 José Fonte Ramos