Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
179/08.3YRCBR
Nº Convencional: JTRC
Relator: VIRGÍLIO MATEUS
Descritores: REVISÃO DE SENTENÇA ESTRANGEIRA
Data do Acordão: 09/21/2010
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: REVISÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTIGO 1096º AL. D) DO CPC
Sumário: a). Não obsta à revisão e confirmação da sentença suíça que decretou o divórcio o caso julgado formado por sentença portuguesa que decretou o divórcio dos mesmos cônjuges, porque o tribunal suíço preveniu a jurisdição.
b). Para se aferir se o tribunal suíço preveniu a jurisdição, no sentido do artigo 1096º al. d) do CPC, não releva a data do trânsito em julgado da decisão a rever, mas sim a data de instauração da respectiva acção: preveniu a jurisdição o tribunal onde foi instaurada em primeiro lugar a acção, no caso o tribunal suíço.

c). As incorrecções da tradução de documento junto aos autos não podem constituir litigância de má fé, por qualquer das seguintes circunstâncias verificadas no caso dos autos: os factos em que ocorreram as incorrecções são irrelevantes; as incorrecções são imputáveis apenas à actividade do tradutor e não à parte litigante.

Decisão Texto Integral: ACORDAM O SEGUINTE:

1.Relatório:

B P (…), residente na Suíça, intentou acção de revisão e confirmação de sentença de divórcio proferida por tribunal suíço (do cantão de Neuchâtel), contra M L (…), também residente na Suíça.

Juntou os documentos de fls. 4 a 24.

Citada, a ré contestou, alegando em suma que antes dessa sentença já fora proferida pelo Tribunal de Cantanhede a sentença que decretou o divórcio litigioso entre ambos, com culpa exclusiva do ora autor, pelo que a sentença suíça não deve ser confirmada por se verificar o caso julgado. Acrescentou que as partes acordaram no divórcio na Suíça, o que interessava à ora ré para beneficiar da partilha aí acordada quanto aos bens situados nesse país, mas em apenso do processo de divórcio decretado em Portugal corre o processo de inventário para partilha dos bens sitos em Portugal. Juntou os documentos de fl. 100 a 138.

Mediante parecer do Ministério Público, foi notificado o autor para que juntasse comprovativo da data em que foi instaurado na Suíça o processo de divórcio e se pronunciasse sobre o alegado pelo Ministério Público, tendo o A. vindo informar que houve uma audiência verbal em 16.6.2003 e o processo deu entrada muito antes disso. E as partes juntaram vários documentos (relativos à instauração de arrolamento e de “medidas protectoras da união conjugal”), designadamente os de fls. 166/191 e fls. 317 ss.

Perante os novos elementos, a ré pronunciou-se a fl. 341 no sentido de ser negada a revisão, em suma atendendo a que o prévio arrolamento dos bens do casal por si intentado aos 13.7.2005 preveniu a jurisdição dos tribunais portugueses para a acção de divórcio, antes de qualquer acto praticado nos tribunais suíços, e atendendo a que o tribunal português decretou o divórcio com força de caso julgado antes do decretamento pelo tribunal suíço. Logo procedendo a excepção de caso julgado. Mais solicitou a condenação do autor como litigante de má fé. E o Ministério Público aditou ao seu parecer o que consta a fl. 345, no sentido de se conceder a revisão e confirmação, em suma atendendo às datas de entrada dos processos de divórcio na Suíça e em Portugal (sendo a daquele anterior à deste) e ao disposto no art. 1096º al. d) do CPC.

2.Saneamento do processo:

Este tribunal é o competente, o processo não enferma de nulidades e as partes são legítimas, nada obstando ao conhecimento do mérito da causa.

3.Fundamentos:

São factos provados relevantes, com base nos documentos juntos:

a)- O A. e a ré casaram um com o outro aos 30-10-1982, conforme assento de casamento nº 269 na C. R. Civil de Cantanhede;

b)- Em acção de divórcio litigioso (Pº nº 113/05) intentada pela ora ré contra o ora autor aos 15/9/2005 no Tribunal de Cantanhede, este proferiu sentença 31.07.2007, que declarou o tribunal internacionalmente competente e dissolveu o casamento entre o autor e a ré, por divórcio com culpa única do cônjuge marido, e fixou indemnização a favor do cônjuge mulher, tendo havido quanto à indemnização recurso para a Relação que confirmou a decisão recorrida. A sentença proferida pelo Tribunal de Cantanhede transitou em julgado aos 4.10.2007 quanto ao decretamento do divórcio e declaração de culpa exclusiva do cônjuge marido;

c)- Preliminarmente a essa acção, a ora ré requereu aos 13.7.2005 no mesmo tribunal o arrolamento dos bens do casal, conforme doc a fls. 166 ss;

d)- Na Suíça, um dos referidos cônjuges (o ora A.) fez entrar em tribunal o pedido de divórcio contra o outro em 26.8.2005 (doc fl. 166) e, após acordo dos cônjuges celebrado aos 29.8.2006, foi proferida sentença aos 14.01.2008 pelo Tribunal Civil do Distrito de La Chaux-de-Fonds (do cantão de Neuchâtel), que decretou o divórcio por mútuo acordo entre B P (…) e M L (…), ali designada (…), em solteira (…), e ratificou a convenção sobre os efeitos do divórcio. A sentença tornou-se definitiva aos 12.02.2008 (doc fl. 4 e segs);

e)- Preliminarmente a d), o ora autor instaurou aos 6.5.2004 o procedimento de “medidas protectoras da união conjugal”, conforme doc a fls. 317 ss destes autos.

Não se suscitam dúvidas sobre a autenticidade dos documentos, nem sobre a inteligibilidade da decisão revidenda, nem sobre o trânsito em julgado desta.

Cabe conhecer da invocada verificação de caso julgado obstativo da peticionada confirmação da sentença proferida pelo tribunal de cantão helvético.

Um dos requisitos para que a sentença estrangeira seja confirmada consta do artigo 1096º al. d) do CPC português: «Que não possa invocar-se a excepção de litispendência ou de caso julgado com fundamento em causa afecta a tribunal português, excepto se foi o tribunal estrangeiro que preveniu a jurisdição».

Este preceito significa que deve ser negada a confirmação quando perante tribunal português está a correr ou já foi decidida acção idêntica à julgada pela sentença revidenda, salvo se, antes de a acção ser proposta em Portugal, já a outra idêntica havia sido intentada perante o tribunal estrangeiro ([1]).

Ou seja: o caso julgado formado por sentença portuguesa é, em regra, oponível, operando como excepção, ao pedido de confirmação de sentença estrangeira. Mas a regra sofre uma excepção prevista no preceito (a qual funciona como excepção à excepção): o caso de o tribunal estrangeiro ter prevenido a jurisdição. Neste caso, desaparece tal obstáculo à confirmação; o mesmo vale por dizer: prevenida a jurisdição pelo tribunal estrangeiro, o caso julgado não obsta à procedência do pedido de confirmação.

No caso dos autos, verifica-se a identidade de acções (a revidenda e a proferida por tribunal português), tendo em ambas sido decretada a dissolução do mesmo casamento celebrado entre as partes. Quando transitou em julgado a sentença portuguesa de 31.7.2007 que dissolveu o casamento ([2]), ainda não fora proferida a sentença do tribunal suíço, o que só aconteceu em 14.01.2008.

Porém, a excepção do caso julgado não opera, ou seja, não é obstativa da revisão e confirmação da sentença estrangeira e, portanto, obstativa da eficácia desta em Portugal, se se verificar o requisito da prevenção da jurisdição pelo tribunal estrangeiro. Este requisito pressupõe um outro: o da competência electiva do tribunal estrangeiro (cf. al. c) do artigo 1096º citado) ([3]).

Quanto a essa competência electiva, a competência do tribunal suíço (ou também dele) não vem posta em causa, tanto mais que as partes estavam emigradas nesse país. Os autos não mostram que essa competência tenha sido provocada em fraude à lei e, com toda a segurança, podemos afirmar, face ao disposto no artigo 65º-A do nosso CPC, que a sentença versa sobre matéria que não é da exclusiva competência dos tribunais portugueses (cf. al. c) citada e o artigo 1101º - 2ª parte do mesmo CPC).

O mesmo vale por dizer: tal competência presume-se ([4]), a partir do facto de no tribunal suíço ter corrido a acção com a prolação da decisão do divórcio.

Quanto ao requisito da prevenção da jurisdição pelo tribunal estrangeiro, convém sublinhar-se que a prevenção de jurisdição, ao contrário do que a ré defende nestes autos, não tem a ver com datas de prolação das decisões ou do trânsito em julgado.

Para se apurar se o tribunal estrangeiro preveniu a jurisdição, temos de equacionar as datas de introdução dos feitos em juízo, os processos de divórcio.

A acção de divórcio litigioso foi intentada no Tribunal de Cantanhede aos 15/9/2005, enquanto a petição da acção de divórcio intentada no tribunal suíço deu aí entrada em 26/8/2005 (facto provado d) que se baseou na data e dizeres do carimbo aposto no documento junto a fls. 100 e segs).

Consequentemente, o tribunal suíço preveniu a jurisdição. E, porque preveniu a jurisdição, o caso julgado não opera, o mesmo vale por dizer, não obsta à revisão e confirmação da sentença suíça.

E ainda que porventura se devesse atender às datas de instauração dos procedimentos prévios, o de “medidas protectoras da união conjugal” no dito tribunal suíço (em 6.5.2004) e o de arrolamento em Portugal (13.7.2005), a solução seria a mesma, dado que aquela é anterior.

Quanto à pretensa litigância de má fé do autor, sucede que a ré a invocou com fundamento no facto de a tradução do documento nº 14 («acta de audiência» a fls. 273 e 336) estar incorrecta quanto à data de 29.10.2006 (correcta é a de 29.8.2006) e quanto à utilização da expressão “medidas protectoras” (correcta seria a menção de “divórcio”).

Ora, essas incorrecções são aqui irrelevantes (não se repercutem nos factos provados nem na decisão de direito sobre o mérito da causa) e, além disso, são imputáveis apenas à actividade do tradutor, ao que parece a título de mero lapso. Não sendo imputáveis à parte, não podem tais incorrecções implicar litigância de má fé, porque só à parte litigante pode ser imputada a litigância de má fé nos termos do artigo 456º do CPC. O tradutor não é litigante.

Não se verifica litigância de má fé por parte do autor.

Em resumo e conclusão:

a). Não obsta à revisão e confirmação da sentença suíça que decretou o divórcio o caso julgado formado por sentença portuguesa que decretou o divórcio dos mesmos cônjuges, porque o tribunal suíço preveniu a jurisdição.

b). Para se aferir se o tribunal suíço preveniu a jurisdição, no sentido do artigo 1096º al. d) do CPC, não releva a data do trânsito em julgado da decisão a rever, mas sim a data de instauração da respectiva acção: preveniu a jurisdição o tribunal onde foi instaurada em primeiro lugar a acção, no caso o tribunal suíço.

c). As incorrecções da tradução de documento junto aos autos não podem constituir litigância de má fé, por qualquer das seguintes circunstâncias verificadas no caso dos autos: os factos em que ocorreram as incorrecções são irrelevantes; as incorrecções são imputáveis apenas à actividade do tradutor e não à parte litigante.

4.Decisão:

Pelos fundamentos expostos, acordam em julgar a acção procedente, confirmando mediante revisão a sentença proferida aos 14.01.2008 pelo Tribunal Civil do Distrito de La Chaux-de-Fonds (do cantão de Neuchâtel), que decretou o divórcio B P (…) e M L (…), ali designada (…), em solteira (…), e ratificou a convenção sobre os efeitos do divórcio, tendo essa sentença transitado em julgado em 12.02.2008.

Valor tributário da causa: quinze mil euros.

Custas pelo autor.

Notifique e comunique.


VIRGÍLIO MATEUS ( Relator )
CARVALHO MARTINS
CARLOS MOREIRA


[1] Cf. J. Alberto dos Reis, Processos Especiais, II, 1982, p. 169.
[2] O recurso para a Relação incidiu apenas sobre a fixação de indemnização (cf. fls. 130/132 e 137/138).
[3] Como ensinava J. Alberto dos Reis, op. cit, p. 169, a prevenção da jurisdição pressupõe que o tribunal estrangeiro não é internacionalmente incompetente.
[4] Cf. J. Alberto dos Reis, Processos Especiais, II, 1982, p. 163.