Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
173/14.5TBCVL-A.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: FONTE RAMOS
Descritores: INSOLVÊNCIA
PEDIDO INFUNDADO
RESPONSABILIDADE CIVIL
DOLO EVENTUAL
Data do Acordão: 01/27/2015
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COVILHÃ - TRIBUNAL JUDICIAL ( EXTINTO ) - 3º JUÍZO
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTS.20, 22 CIRE, 483 CC
Sumário: 1. A responsabilidade prevista no art.º 22º, do CIRE, restringe-se aos casos de dolo e abrange tanto a dedução de pedido infundado de declaração de insolvência por um credor como a apresentação indevida por parte do devedor.

2. Existirá dolo eventual se o resultado não foi directamente querido nem previsto como consequência lateral necessária da conduta, mas se puder dizer que o agente o aceita na eventualidade de ele se vir a produzir, verificando-se, assim, uma sobreposição do seu interesse (em vista da obtenção de uma certa finalidade do actuar) ao desvalor do ilícito e suas consequências, ou, dito doutra forma, manifestando-se a sua indiferença pela realização do facto, a sua conformação com o risco de produção do resultado ilícito.

3. Demonstrando-se que a requerente/credora instaurou o processo de insolvência movida pelo único propósito de cobrar o seu alegado “crédito” sobre a devedora, não se coibindo de configurar quadro factual, pelo menos, por aquela desconhecido e susceptível de “justificar” a instauração e o prosseguimento dos autos, mas contrário à realidade (dada a evidente solvência da sociedade requerida), não podemos deixar de concluir por actuação dolosa por parte da requerente, ante a deliberada sobreposição do seu interesse e a indiferença pela verificação das previsíveis consequências danosas, para a requerida, advindas da existência e publicitação dos autos de insolvência corporizando pretensão infundada de declaração de insolvência.

4. Provocando esse pedido infundado de insolvência danos ao devedor, deve a requerente dessa insolvência indemnizar tais danos, nos termos dos art.ºs 22º, do CIRE, e 483º, n.º 1, do Código Civil.

Decisão Texto Integral:
 

            Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra:

           

            I. Em 12.02.2014, M (…), S. A., instaurou, no Tribunal Judicial da Covilhã, a presente acção especial de insolvência contra T (…), Lda., requerendo a declaração da insolvência da requerida.

            Alegou, em síntese:

            - No âmbito da sua actividade comercial (comércio por grosso de madeira em bruto e de produtos derivados) efectuou diversos fornecimentos de madeira e outros materiais à requerida (que se dedica à fabricação de outras obras de carpintaria para a construção), a pedido desta, material que se encontra descrito nas facturas identificadas no art.º 7º da petição inicial (p. i.);

            - Tal material foi entregue à requerida que sobre ele não apresentou qualquer reclamação;

            - As facturas emitidas tinham data de vencimento a 60 dias, sendo certo que a requerida, pese embora as sucessivas interpelações, nunca efectuou o pagamento do material fornecido, na quantia global de € 15 300,35, acrescida de juros de mora;

            - A dívida à requerente, só por si, pelo seu montante e pelo facto de estar vencida há mais de um ano, evidencia a situação de insolvência da requerida, pois é demonstrativa da impossibilidade de cumprimento das suas obrigações vencidas;

            - Além de que, vários outros indicadores apontam no mesmo sentido, como seja o facto da requerida dever avultadas quantias aos seus fornecedores, desconhecendo-se se terá já sido accionada judicialmente pelos credores com vista à cobrança dos seus créditos;

            - O montante do crédito da requerente e o facto de nunca ter feito qualquer pagamento por conta dos montantes titulados pelas facturas levam a crer que a requerida se encontra impossibilitada de cumprir as suas obrigações vencidas e que suspendeu de forma generalizada o cumprimento das suas obrigações pecuniárias vencidas;

            - Não sabe, mas tem razões fortes para crer que a requerida será devedora à banca, ao fisco e à segurança social;

            - Desconhece a existência de quaisquer imóveis na titularidade da requerida;

            - A situação de insolvência da requerida é actual - é certa a impossibilidade actual e futura de cumprimento de obrigações pela requerida.

            A requerida deduziu oposição, tendo alegado, em resumo:

            - A requerente deduz pretensão cuja falta de fundamento não devia ignorar, fazendo um uso manifestamente reprovável do processo, com o único fim de conseguir um objectivo ilegal: in casu pressionar a requerida a - perante os transtornos que inevitavelmente ocasionam os processos de insolvência, constituindo, presentemente, atento o estado da economia, uma manifesta ignomínia - pagar, sem discutir, o crédito a que requerente se arroga possuir sobre a requerida;

            - A requerida tem as suas contas devidamente organizadas e contabilisticamente tratadas;

            - Tem uma autonomia financeira de 37,88 %, sendo proprietária de sete fracções autónomas de um edifício, onde tem a sua sede (fracções com o valor patrimonial tributário global de € 867 450), destinado à indústria e, bem assim, de treze veículos automóveis, sobre os quais não incide qualquer ónus;

            - Não tem qualquer dívida de natureza fiscal;

            - Tem a sua situação totalmente regularizada perante a Segurança Social;

            - Tem, nesta data, depositada em contas à ordem de que é titular sedeadas na C (...) , S. A., B (...) , S.A. e (...) , S.A., uma quantia global que ascende ao montante global de € 161 390,83;

            - Dispõe ainda da possibilidade de utilizar uma quantia de € 250 000, no âmbito do “contrato de factoring” celebrado com a C (...) , S. A., sendo certo que, nesta data, apenas tem utilizada a quantia de € 82 653,14;

            - As hipotecas que oneram os imóveis de que é titular garantem apenas, neste momento, a conta corrente caucionada de apoio à tesouraria contratada com a C (...) e a conta corrente de factoring, na medida em que todos os demais créditos junto da C (...) que justificaram a constituição das hipotecas já foram liquidados;

            - Contratou outros empréstimos a longo prazo, no âmbito dos programas “PME Investe IV”, no montante global de € 211 041,76, cujo cumprimento se encontra a satisfazer de acordo com o contratado;

            - Quatro das fracções que compõem o imóvel do qual é titular, encontram-se arrendadas, auferindo, a título de rendas, uma quantia global mensal de € 3 150;

            - Em 31.7.2013, foi distinguida pelo IAPMEI, pela qualidade do seu desempenho e perfil de risco, como “PME Líder 2013”, no âmbito do Programa FINCRESCE;

            - Aumentou o seu volume de negócios de 2012 para 2013 em mais de 60 %, tendo obtido uma situação líquida (positiva) de € 448 807,20 e um resultado líquido de € 61 318,10;

            - As sua contas estão aprovadas e depositadas na Conservatória de Registo Comercial;

            - Para além dos gerentes, possui nos seus quadros dezassete trabalhadores, a quem paga religiosamente os vencimentos;

            - Os aros, portas e placas em folheados de madeira fornecidos pela requerente encontravam-se manchados e riscados, do que foi de imediato informado o vendedor, o qual se deslocou à obra e constatando aquela circunstância, informou o técnico da requerida que ali se deslocaria para proceder à respectiva substituição, o que nunca sucedeu;

            - Em 30.3.2012, comunicou à requerente os defeitos dos produtos vendidos, nada tendo sido feito e, em 17.12.2012, respondeu à requerente após a recepção de carta remetida pelo administrador da insolvência da requerente;

            - É por causa dos defeitos do material fornecido que não paga à requerente, recusando-se a efectuar o pagamento enquanto a requerente não a compensar devidamente pelos prejuízos que padeceu, designadamente, com a substituição dos materiais;

            - Para além dos presentes autos, não existe nenhuma acção, providência cautelar, injunção ou qualquer outro meio judicial a correr os respectivos termos, que tenha sido instaurado ou requerido contra a requerida;

            - A insolvência foi dolosamente requerida;

            - Os meios informáticos e o cruzamento de dados presentemente existentes levaram a que a notícia do pedido de insolvência se espalhasse rapidamente pelas instituições financeiras e outras, fornecedores e clientes, circunstância que afecta o bom nome comercial da requerida, na medida em que esta, perante a notícia, se viu confrontada com a recusa dos mesmos em fornecerem sem que recebam a pronto, o que acarreta dificuldades de tesouraria e na obtenção de fornecimentos de que carece para o desenvolvimento da actividade a que se dedica.

            Terminou, solicitando que o Tribunal indefira o pedido de insolvência e que condene a requerente no pagamento de uma indemnização, a liquidar, a fim de serem ressarcidos os danos que lhe causou pelo recurso ao presente meio processual e, bem assim, como litigante de má fé.

            A requerente pronunciou-se sobre a matéria de excepção da “oposição”, bem como sobre os pedidos, e correspondentes factos, de condenação como litigante de má fé e no pagamento de indemnização nos termos do art.º 22º, do CIRE.

            Efectuado o julgamento, o Tribunal a quo, por sentença de 06.6.2014, decidiu julgar improcedente, e infundado, o pedido de declaração de insolvência da requerida e, em consequência, condenou a requerente a pagar-lhe uma indemnização pelos prejuízos causados com o pedido de insolvência, a liquidar posteriormente; julgou também improcedente o pedido de condenação por litigância de má fé.

            Inconformada, a requerente interpôs a presente apelação formulando as conclusões que assim vão sintetizadas:

            1ª - A Mm.ª Juíza fundamenta a sua decisão (de condenação no pagamento de indemnização) no conhecimento da requerente da não aceitação do pagamento do seu crédito – pelo menos na totalidade – por parte da requerida.

            2ª - A requerida[1] nunca reclamou formalmente de tais fornecimentos - a única comunicação que recebeu da requerida, foi em resposta à carta do administrador de insolvência, para tentar obviar à liquidação do valor em dívida.

            3ª - Depois desta comunicação, voltou a receber nova interpelação da requerente, para pagamento, que não obteve resposta.

            4ª - Já há muito que decorreu o prazo para a denúncia (dos pretensos defeitos do material fornecido pela requerente à requerida), pois estamos perante facturas, algumas delas do ano de 2011, pelo que não se coloca, em momento algum, a aceitação ou não de pagamento com base em alegados defeitos, pois os mesmos a existirem, já há muito se encontram expirados todos os prazos à disposição da requerida para fazer valer os alegados direitos.

            5ª - Caso estes defeitos fossem reais, nada ficou demonstrado para sustentar qualquer dolo da requerente, mas sim da requerida, em enganar o tribunal, com argumentos falsos e extemporâneos.

            6ª - A sentença refere ainda que a única intenção da requerente com a presente acção era pressionar a requerida a pagar, o que resulta da forma como se mostra gizada a petição inicial, afirmação do tribunal a quo sustentada pelo facto da requerente ter alegado genericamente, crer que a requerida tem dívidas a fornecedores, a instituições bancárias, ao fisco e à segurança social, que o passivo é superior ao activo, limitando-se a invocar desconhecimento de existência de bens e, no fundo, da real situação financeira da requerida.

            7ª - A requerente procurou a existência de bens e deparou-se com os prédios com mais de € 1 000 000 em hipotecas voluntárias.

            8ª - Quanto à situação fiscal ou perante a segurança social, como é do conhecimento geral, a requerente ou seus representantes ou mandatários estão impedidos de obter qualquer informação.

            9ª - Pesquisou o que podia, e estava na sua disponibilidade, e fundamentou o seu pedido por duas ordens de razão: 1ª) a existência do crédito sobre a requerida, há muito vencido; 2ª) a existência de factos-índice que indicavam que a requerida se encontrava em situação de insolvência.

            Ao abrigo do disposto no art.º 20º, do CIRE, podia lançar mão do processo de insolvência.

            10ª - Limitou-se a alegar factos com base na incerteza da lei, na dificuldade de apurar factos e de os interpretar; apresentou uma tese jurídica que está longe de se poder considerar infundada, pelo que nenhuma censura processual lhe poderá ser imputada.

            11ª - Não se entende como o tribunal a quo conclui que a requerente representou como possível a improcedência da acção, desconhece-se onde se baseia o tribunal para retirar esta conclusão.

            12ª - A requerente constatou que o património da requerida estava, e está, completamente onerado; a dívida para com a requerente tem quase quatro anos, e apesar das diversas tentativas de cobrança, não obteve qualquer sucesso, pelo que optou por um meio processual que, pelo menos, lhe permitia a recuperação do IVA.

            13ª - Não existirá conduta dolosa quando o agente incorrer em erro de tipo, ou seja, quando pratica a conduta sem ter vontade ou consciência daquilo que leva a efeito. É dolosa uma acção quando o agente quis o resultado ou assumiu o risco de produzi-lo.

            14ª - A pretensão indemnizatória formulada nos autos foi-o no âmbito da previsão do art.º 22º, do CIRE, cuja aplicação foi violada, sendo que a dedução de pretensão indemnizatória pelo devedor contra o credor que deduz pedido infundado de declaração de insolvência só pode ser feita com base numa lide dolosa.

            15ª - A ideia foi prever um regime especial que não inibisse o credor de requerer a insolvência, sem o receio de vir a ser sancionado no caso de o Tribunal não deferir a pretensão e não declarar a peticionada situação de insolvência.

            16ª - A questão que se coloca é saber se a requerente, quando instaurou a acção com vista a que fosse declarada a insolvência, agiu com culpa (mera culpa/negligência ou dolo).

            17ª - A sentença recorrida concluiu que a requerente[2] agiu com dolo eventual, mas não fundamenta essa afirmação, sendo que apenas se demonstra que esta poderá ter sido, na melhor das hipóteses, negligente - em momento algum, considerando os factos alegados na petição inicial, e os dados como provados na sentença, bem como na fundamentação da mesma, se demonstra que a requerente tenha alegado factos falsos, que sabia que essa factualidade não correspondia à realidade, ou seja, que assim alterava a verdade dos factos e ainda assim quis fazê-lo, actuando intencionalmente para obter o resultado ilícito.

            18ª - Na sua formulação mais ténue, do dolo eventual, a alegação passa por afirmar que o agente prefigura a consequência ilícita e danosa como uma consequência possível do seu comportamento e não faz nada para a evitar.

            19ª - A invocação de que a requerente agiu da forma como descreveu na sentença, ou seja, que não tomou as devidas precauções por forma a verificar e atestar a veracidade dos factos por si alegados (na incerteza dos mesmos), tendo uma “atitude impensada” reconduzem-se ao comportamento ou actuação negligente.

            20ª - Do art.º 22º, do CIRE, decorre que foi opção do legislador excluir a responsabilidade processual civil do credor nos casos em que este agiu negligentemente quando instaurou processo de insolvência, afastando-se, pois, do regime regra enunciado no art.º 456º da lei processual civil, em que se sanciona a conduta dolosa e a conduta gravemente negligente.

            Remata dizendo que deve ser revogada a sentença na parte em que, julgando o pedido infundado, condenou a requerente a pagar uma indemnização pelos prejuízos causados com a dedução do pedido de insolvência, a liquidar em momento posterior.

            A requerida respondeu concluindo pela improcedência do recurso.

            Atento o referido acervo conclusivo, delimitativo do objecto do recurso, importa verificar e decidir se a actuação da requerente foi dolosa nos termos e para os efeitos do art.º 22º, do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas/CIRE[3] (aprovado pelo DL n.º 53/2004, de 18.3, e na redacção conferida pela Lei n.º 16/2012, de 20.4).


*

            II. 1. A 1ª instância deu como provados os seguintes factos:

            a) A requerente é uma sociedade anónima que se dedica ao comércio por grosso de madeira em bruto e de produtos derivados.

            b) A requerida é uma sociedade comercial que se dedica à fabricação de outras obras de carpintaria para a construção.

            c) No exercício da sua actividade comercial, a requerente efectuou diversos fornecimentos de madeira e outros materiais à requerida, a pedido desta.

            d) A requerente entregou o material à requerida.

            e) Com cada fornecimento de madeira, a requerente enviou à requerida as respectivas facturas.

            f) Cada uma dessas facturas vencer-se-ia 60 dias após a sua emissão.

            g) A requerida nunca entregou à requerente qualquer meio de pagamento das facturas, estando actualmente por pagar as seguintes:

            - factura n.º 11F03896, no valor de € 485,96 (quatrocentos e oitenta e cinco euros e noventa e seis cêntimos), relativa a um fornecimento de MDF, perfis e guarnições, vencida em 17/02/2012;

            - factura n.º 12F00122, no valor de € 830,41 (oitocentos e trinta euros e quarenta e um cêntimos), relativa a um fornecimento de orlas e prancha, vencida em 12/01/2012;

            - factura n.º 12F00239, no valor de € 1 194,80 (mil cento e noventa e quatro euros e oitenta cêntimos), relativa a um fornecimento de portas, aros, perfis, guarnições, orla, tafilam e melamina, vencida em 25/3/2012;

            - factura n.º 12F00299, no valor de € 119,04 (cento e dezanove euros e quatro cêntimos), relativa a um fornecimento de orla, vencida em 01/4/2012;

            - factura n.º 12F00312, no valor de € 338,90 (trezentos e trinta e oito euros e noventa cêntimos), relativa a um fornecimento de melamina, vencida em 01/4/2012;

            - factura n.º 12F00350, no valor de € 708,63 (setecentos e oito euros e sessenta e três cêntimos), relativa a um fornecimento de Kaindl, vencida em 07/4/2012;

            - factura n.º 12F00364, no valor de € 2 912,12 (dois mil novecentos e doze euros e doze cêntimos), relativa a um fornecimento de MDF, vencida em 09/4/2012;

            - factura n.º 12F00477, no valor de € 3 080,12 (três mil e oitenta euros e doze cêntimos), relativa a um fornecimento de portas e pranchas, vencida em 28/4/2012;

            - factura n.º 12F00555, no valor de € 2 920,83 (dois mil novecentos e vinte euros e oitenta e três cêntimos), relativa a um fornecimento de MDF, prancha e portas, vencida em 07/5/2012;

            - factura n.º 12F00590, no valor de € 410,36 (quatrocentos e dez euros e trinta e seis cêntimos), relativa a um fornecimento de portas e melamina, vencida em 12/5/2012;

            - factura n.º 12F00642, no valor de € 1 311,88 (mil trezentos e onze euros e oitenta e oito cêntimos), relativa a um fornecimento de faia e portas, vencida em 20/5/2012;

            - factura n.º 12F00800, no valor de € 987,30 (novecentos e oitenta e sete euros e trinta cêntimos), relativa a um fornecimento de MDF e melamina, vencida em 26/06/2012.

            h) Mostra-se descrito na Conservatória do Registo Predial da Covilhã, sob o n.º 1790/20081009 e inscrito na matriz sob o art.º 338–P, o prédio urbano, sito em (...) , Parque Industrial, com a área total de 2985 m2 (sendo 1952,5 m2 de área descoberta e 1032,5 m2 de área coberta), composto de semi-cave, rés-do-chão e 1º andar (fracções autónomas A, B, C, D, E, F, G), o qual confronta de norte e sul com arruamentos públicos e de nascente e poente com terrenos municipais, sendo que, o valor de mercado das fracções foi avaliado, a solicitação da requerida, em cerca de € 2 000 000.

            i) A aquisição do direito de propriedade sobre o prédio identificado em II. 1. h) mostra-se registada a favor da requerida, através da ap. 3 de 1999/12/02, por compra à Câmara Municipal da Covilhã.

            j) Sobre o mesmo prédio e todas as fracções que o constituem incidem os seguintes ónus:

            § - Hipoteca voluntária (ap. 23 de 2000/03/03), constituída a favor da Caixa (...) , referente ao capital de 60 000 000$00 e no montante máximo assegurado de 90 210 000$00, para garantia das obrigações pecuniárias assumidas ou a assumir, decorrentes de quaisquer operações bancárias, nomeadamente mútuos, aberturas de crédito de qualquer natureza, descobertos em contas à ordem, letras, livranças, cheques, extractos de factura, warrants, garantias bancárias, avales e empréstimos obrigacionistas, à taxa de juro de 11,45 %, acrescida da sobretaxa até 4 % na mora, a título de cláusula penal e despesas no montante de 2 400 000$00.

            § Hipoteca voluntária (ap. 24 de 2002/06/05), constituída a favor da Caixa (...) , referente ao capital de € 150 000 e no montante máximo assegurado de € 225 525, para garantia das obrigações pecuniárias assumidas ou a assumir, decorrentes de quaisquer operações bancárias, nomeadamente mútuos, aberturas de crédito de qualquer natureza, descobertos em contas à ordem, letras, livranças, cheques, extractos de factura, warrants, garantias bancárias, avales e empréstimos obrigacionistas, à taxa de juro de 11,45 %, acrescida da sobretaxa até 4 % na mora, a título de cláusula penal e despesas no montante de € 6 000.

            § Hipoteca voluntária (ap. 23 de 2008/10/06), constituída a favor da Caixa (...) , referente ao capital de € 299 278,74 e no montante máximo assegurado de € 449 965,60, para garantia das obrigações pecuniárias assumidas ou a assumir, decorrentes de quaisquer operações bancárias, nomeadamente mútuos, aberturas de crédito de qualquer natureza, descobertos em contas à ordem, letras, livranças, cheques, extractos de factura, warrants, garantias bancárias, avales e empréstimos obrigacionistas, à taxa de juro de 11,45 %, acrescida da sobretaxa até 4 % na mora, a título de cláusula penal e despesas no montante de € 11 971,15.

            § Hipoteca voluntária (ap. 24 de 2008/10/06), constituída a favor da Caixa (...) , referente ao capital de € 150 000 e no montante máximo assegurado de € 225 525, para garantia das obrigações pecuniárias assumidas ou a assumir, decorrentes de quaisquer operações bancárias, nomeadamente mútuos, aberturas de crédito de qualquer natureza, descobertos em contas à ordem, letras, livranças, cheques, extractos de factura, warrants, garantias bancárias, avales e empréstimos obrigacionistas, à taxa de juro de 11,45 %, acrescida da sobretaxa até 4 % na mora, a título de cláusula penal e despesas no montante de € 6 000.

            k) O rés-do-chão, correspondente à fracção A do prédio identificado em II. 1. h) foi avaliado no ano de 2013, tendo o valor patrimonial actual de € 29 130.

            l) O rés-do-chão, correspondente à fracção B do dito prédio foi avaliado no ano de 2013, tendo o valor patrimonial actual de € 445 840.

            m) A semi-cave, correspondente à fracção C do mesmo prédio foi avaliada no ano de 2013, tendo o valor patrimonial actual de € 106 060.

            n) A semi-cave, correspondente à fracção D do mesmo prédio foi avaliada no ano de 2013, tendo o valor patrimonial actual de € 104 650.

            o) A semi-cave, correspondente à fracção E do mesmo prédio foi avaliada no ano de 2013, tendo o valor patrimonial actual de € 120 300.

            p) A semi-cave correspondente à fracção F do mesmo prédio foi avaliada no ano de 2013, tendo o valor patrimonial actual de € 15 630.

            q) A semi-cave correspondente à fracção G do mesmo prédio foi avaliada no ano de 2013, tendo o valor patrimonial actual de € 45 480.

            r) A requerida tem registados em seu nome os seguintes veículos automóveis:

            § veículo automóvel de matrícula (...) , de marca Peugeot, sendo a data da primeira matrícula 19.5.2009, cuja aquisição foi registada em 05.11.2013.

            § veículo automóvel de matrícula (...) , de marca BMW, cuja aquisição foi registada em 14.10.2010.

            § veículo automóvel de matrícula (...) , de marca Nissan, cuja aquisição foi registada em 16.5.2008.

            § veículo automóvel de matrícula (...) , ligeiro de mercadorias, de marca Ford Transit, cuja aquisição foi registada em 15.3.1996.

            § veículo automóvel de matrícula (...) , de marca Honda e cuja aquisição foi registada em 18.10.2007.

            § veículo automóvel, de matrícula (...) , ligeiro de mercadorias, de marca Renault Kangoo, cuja aquisição foi registada em 30.6.2004.

            § veículo automóvel de matrícula (...) , ligeiro de mercadorias, de marca Mercedes-Benz, matriculado em 29.5.2009, cuja aquisição foi registada em 15.07.2013.

            § veículo automóvel de matrícula (...) , ligeiro de mercadorias, de marca Nissan, matriculado em 05.09.2006, cuja aquisição foi registada em 19.10.2010.

            § veículo automóvel de matrícula (...) , ligeiro de mercadorias, de marca Nissan, matriculado em 28.01.2004 e cuja aquisição foi registada em 13.3.2008.

            § veículo automóvel, de matrícula (...) , ligeiro de mercadorias, de marca Toyota, cuja aquisição foi registada em 26.5.1994.

            § veículo automóvel de matrícula (...) , ligeiro de mercadorias, de marca Ford Transit, cuja aquisição foi registada em 20.01.1997.

            § veículo automóvel de matrícula (...) , ligeiro de mercadorias, de marca Renault Clio, matriculado em 27.01.2006 e cuja aquisição foi registada em 13.11.2007.

            s) Sobre os veículos acima identificados não se encontram registados e em vigor quaisquer ónus ou encargos.

            t) A requerida tem a sua situação tributária regularizada, não sendo devedora perante a Fazenda Pública de quaisquer impostos, prestações tributárias ou acréscimos legais.

            u) As contas da requerida, referentes ao ano de 2012, estão aprovadas e depositadas, assim como todas as contas dos anos anteriores, estando ainda organizadas as contas relativas ao exercício de 2013.

            v) A requerida tem a sua situação contributiva perante a Segurança Social regularizada.

            w) Tendo por referência 31.12.2013, a requerida apresentava uma autonomia financeira de 37,84 %, correspondente a uma situação líquida de € 448 807,20.

            x) A requerida, em 20.02.2014, tinha depositada, na conta bancária n.º 0270053905230, da Caixa (...) , a quantia de € 18 870,19.

            y) Em 27.02.2014, a requerida tinha depositada, na conta bancária n.º 0000000122559986, do M (...) , a quantia de € 48 775,81.

            z) Em 25.02.2013, a requerida tinha depositada, na conta bancária n.º 551002360000, do Banco (...) , a quantia de € 93 744,65.

            aa) À data da apresentação da contestação, a requerida tinha ainda disponível, através de contas correntes caucionadas que tem contratualizadas com o Banco (...) e com a Caixa (...) , uma quantia global de € 199 759,58.

            bb) Dispõe ainda da possibilidade de utilizar uma quantia de € 250 000 no âmbito de um “contrato de factoring”, celebrado com a Caixa (...) , sendo que, em 25.02.2014, do referido montante, tinha apenas utilizada uma quantia de € 82 653,14.

            cc) As hipotecas mencionadas em II. 1. j) encontram-se em vigor para garantia das seguintes operações de crédito:

            - conta corrente de apoio à tesouraria, no montante contratado de € 100 000 e com saldo utilizado, em 25.02.2014, de € 0;

            - conta corrente de factoring, no montante contratado de € 250 000 e com saldo utilizado de € 82 653,14, em 25.02.2014;

            dd) A operação de médio e longo prazo n.º 0270.003002.491, no montante contratado de € 299 278,74, como garantia da qual também haviam sido constituídas as referidas hipotecas, foi liquidada em 24.7.2010.

            ee) A operação de médio e longo prazo n.º 0270.003466.691, no montante contratado de € 150 000, como garantia da qual também haviam sido constituídas as referidas hipotecas, foi liquidada em 05.9.2012.

            ff) A requerida contraiu quatro outros empréstimos, a longo prazo, no âmbito dos programas “PME Ineste IV”, junto do Banco (...) , S. A., do Banco (...) , S. A. e do B (...) , PLC, no montante global de € 211 041,76, cujo cumprimento vem satisfazendo, de acordo com o contratado.

            gg) Quatro das fracções identificadas em II. 1. h) encontram-se arrendadas, auferindo a requerida a renda global de cerca de € 3 150 por cada mês.

            hh) O IAPMEI, em 31.7.2013, distinguiu a requerida pela qualidade do seu desempenho e perfil de risco, como “PME Líder 2013”, no âmbito do Programa FINCRESE.

            ii) Em 31.12.2012, a requerida obteve uma situação líquida de € 448 807,20.

            jj) A requerida possui dezassete trabalhadores, pagando atempadamente os respectivos vencimentos.

            kk) Após a aplicação, numa obra, de aros, portas e placas em folheados de madeira de carvalho que a requerente havia fornecido à requerida, esta[4] deparou-se com o facto de aquele material se encontrar manchado e riscado.

            ll) A requerida, de imediato, informou o vendedor da requerente, o qual se deslocou às instalações da requerida, para onde havia sido removido tal material, tendo constatado a existência das desconformidades referidas em II. 1. kk), na parte do material que lhe foi exibido, tendo-as reconhecido como sendo desconformidades do produto fornecido pela requerente e tendo-lhe sido dito que, para além daquele que visualizou, havia outro material nas mesmas circunstâncias.

            mm) Nas instalações da requerida, e para o efeito da substituição do material, nunca compareceu qualquer técnico da requerente.

            nn) Com data de 30.3.2012, o legal representante da requerida elaborou uma comunicação que dirigiu à requerente, por via postal simples, identificando-a como M (…), SA A/C Departamento Comercial Zona Industrial dos (...) Leiria, com o seguinte teor: conforme comunicado anteriormente e acordado com o vosso departamento comercial, informamos mais uma vez que a mercadoria correspondente às facturas 364/477/555/642, não vem nas condições exigidas, pois apresenta problemas de coloração e defeito nas folhas, a qual deve ser retirada da obra com custos acrescidos e atraso da empreitada. Aguardamos a substituição do referido material ou nota de crédito.

            oo) A requerente não procedeu à substituição do material.

            pp) A requerida[5] procedeu à substituição do material, adquirindo-o a outro fornecedor.

            qq) Com data de 17.7.2012, foi enviado pela requerente para o n.º 275332631 uma comunicação via fax, datada de 13.7.2012, nos termos da qual solicitava à requerida o pagamento da quantia de € 15 300,35, tendo por referência as facturas referenciadas em II. 1. g), no prazo de 5 dias após o recebimento.

            rr) Com data de 10.12.2014, o senhor administrador da insolvência da requerente remeteu à requerida uma comunicação, na qual solicitou o pagamento do valor das mencionadas facturas.

            ss) Em 17.12.2012, a requerida respondeu, reiterando o teor da carta referida em II. 1. nn).

            tt) A notícia da sujeição da requerida ao presente processo espalhou-se rapidamente pelas instituições bancárias e outras, fornecedores e clientes.

            uu) Tal circunstância afectou a confiança que a requerida goza no mercado, na medida em que agora é confrontada com a preocupação dos seus fornecedores e com a recusa destes em fornecerem, sem que recebam a pronto.

            2. E deu como não provado:

            a) Foi estipulado entre ambas as partes que o pagamento das facturas referenciadas em II. 1. g) seria efectuado por cheque.

            b) A requerida deve avultadas quantias aos seus fornecedores.

            c) O passivo da requerida é superior ao seu activo.

            d) As viaturas identificadas em II. 1. r) têm um valor global de mercado de € 126 000.

            e) O vendedor da requerida, nas circunstâncias referenciadas em II. 1. mm) deslocou-se à obra.

            f) O vendedor da requerente informou a requerida, logo nas mesmas circunstâncias, que um técnico da requerente ali se deslocaria para que esta procedesse à substituição.

            g) Foi por motivos referentes às dificuldades financeiras da requerente e à sua situação de insolvência que o técnico nunca compareceu.

            h) A requerente recebeu a comunicação aludida em II. 1. nn).

            3. Cumpre apreciar e decidir com a necessária concisão.

              A requerente/recorrente insurge-se, apenas, contra a forma como foi qualificada a sua actuação, nos termos e para os efeitos do art.º 22º - que reza o seguinte: a dedução de pedido infundado de declaração de insolvência, ou a indevida apresentação por parte do devedor, gera responsabilidade civil pelos prejuízos causados ao devedor ou aos credores, mas apenas em caso de dolo -, não enjeitando, assim, quer o indeferimento do pedido de declaração da insolvência da requerida, quer a factualidade dada como provada, sendo por demais evidente a irrelevância da indicação, esparsa e inconsequente (por inatendível), dalguns excertos da prova pessoal que terá sido produzida em audiência de discussão e julgamento (cf., nomeadamente, os art.ºs 17º, do CIRE, e 640º, do CPC de 2013).
            4. Indemonstrados os factos (eventualmente) conducentes à afirmação da situação de insolvência prevista no art.º 3º[6] e/ou integráveis na previsão das diversas alíneas do n.º 1 do art.º 20º[7] - sendo que a alegação e prova dos factos deste normativo (cuja verificação faz presumir a situação de insolvência, tal como a caracteriza o art.º 3º, n.º 1) constitui ónus que impende sobre o credor que requeira a declaração de insolvência -, e, face ao enquadramento fáctico descrito em II. 1., supra, não podendo, pois, subsistir a menor dúvida de que o pedido da requerente era manifestamente infundado, importa, tão-somente, decidir se esta deverá ser responsabilizada pelos prejuízos causados à requerida em razão da existência e consequente publicitação dos presentes autos [cf., sobretudo, II. 1. tt) e uu), supra].
            5. Decorre do cit. art.º 22º que a dedução em juízo de um pedido infundado de declaração de insolvência constitui o impetrante em responsabilidade civil perante o requerido, desde que tenha agido com dolo, estando assim abrangidas todas as modalidades que a doutrina geralmente identifica na figura genérica do dolo, a saber: dolo directo, necessário e eventual.[8]
            A responsabilização ali prevista restringe-se, assim, aos casos de dolo e abrange tanto a dedução de pedido infundado de declaração de insolvência por um credor como a apresentação indevida por parte do devedor.[9]
            6. O dolo é a modalidade mais grave de imputação do (facto) ilícito, aquela em que o agente merece mais forte reprovação por maior ser a dependência entre o evento ilícito e a sua vontade.
            Porém, o dolo apresenta mais de uma variante: umas vezes o sujeito tem a intenção de produzir o resultado antijurídico, o evento ilícito constitui o fim ou objectivo do seu comportamento (dolo directo); outras vezes o agente não tem a intenção de produzir o resultado ilícito (pois prossegue finalidade diversa) mas sabe que também produzirá forçosamente/necessariamente esse resultado (dolo necessário); e existem também situações em que o agente também prevê o resultado ilícito mas não tem a intenção de o produzir, nem o prevê como consequência certa/necessária, sendo que, ainda que movido por finalidade diversa, apenas prevê o resultado ilícito como possível ou eventual – tem a consciência de que, agindo de determinada maneira, esse resultado poderá produzir-se mas não tem a certeza de que se produzirá, havendo dolo se, não se encontrando seguro de que o resultado ilícito se dará, não se preocupa todavia com que eventualmente venha a dar-se, aceitando-o e portanto querendo-o para essa hipótese; a insensibilidade do agente perante os valores que violou continua a merecer um juízo de forte reprovação (dolo eventual).
            Assim, existirá dolo eventual – modalidade com particular interesse para a análise da situação dos autos – se o resultado não foi directamente querido nem previsto como consequência lateral necessária, mas se puder dizer que o agente o aceita na eventualidade de ele se vir a produzir.
            Diferente do dolo, em qualquer das suas variantes, é o conceito de mera culpa ou negligência, a qual consiste na omissão da diligência exigível do agente, e que compreende, em primeiro lugar, os casos (excluídos do conceito do dolo) em que o agente prevê a produção do facto ilícito como possível, mas por leviandade, precipitação, desleixo ou incúria crê na sua não verificação, e só por isso não toma as providências necessárias para o evitar (negligência consciente).[10]
            No fundo, o que caracteriza (e distingue) o dolo eventual é uma sobreposição, pelo agente, do seu interesse ao desvalor do ilícito (e da previsível responsabilização ou sanção), manifestando, assim, a sua indiferença pela realização do facto; o agente conforma-se com o risco de produção do resultado ilícito (em vista da obtenção de uma certa finalidade do actuar) e actua sem confiar em que aquele se não produzirá (conforma-se com a sua produção).[11]
            7. Perante a factualidade descrita em II. 1., supra, a alegação da requerente sintetizada em I., supra, e o evidente propósito da requerente de ver satisfeito o seu invocado crédito sobre a requerida, independentemente da situação litigiosa que lhe estava subjacente e das consequências comummente assinaladas a todo e qualquer processo de insolvência [nalgumas situações, hoje porventura esbatidas ou secundarizadas em razão da crise económica e social dos últimos anos – pelo menos, para muitos dos insolventes singulares – mas, noutras, e na sua generalidade, apesar da crise, nem por isso menos gravosas para a posição das empresas no contexto da economia de mercado][12], dúvidas não restam de que estamos em face de uma actuação dolosa por parte da requerente, na medida em que a mesma aceitou todas as consequências eventualmente decorrentes da instauração dos presentes autos.
            Na verdade, a requerente, movida pelo único propósito de cobrar o seu alegado “crédito” sobre a requerida - que sabia ser litigioso, passível de discussão em acção declarativa comum [veja-se, por exemplo, que a requerida sempre recusou pagar cerca de 67 % (66,83 %) do montante total dos fornecimentos e invocou “custos acrescidos” e “atrasos da empreitada”, o que foi transmitido à requerente ou a entidades ou pessoas a ela de algum modo ligadas - cf., sobretudo, II. 1. g), kk), ll), nn), pp), qq), rr) e ss), supra] -, não se coibiu de alegar e de configurar um quadro fáctico de forma a “justificar” a instauração e o prosseguimento dos autos [designadamente, ao dizer - desconhecendo-o, mas sem o assumir! - que a requerida devia avultadas quantias aos seus fornecedores, bem como ao afirmar desconhecer a existência de quaisquer imóveis na titularidade da requerida, quando é certo que era possível afastar (pelo menos, algumas) possíveis dúvidas quanto a esse facto e à situação patrimonial da requerida, e, por último, ao rematar e concluir, contrariamente ao que lhe era lícito fazer, pela impossibilidade actual e futura de cumprimento de obrigações por parte da requerida; ademais, nenhuma relevância poderia ser dada à “crença” quanto à existência de “dívidas” à banca, ao fisco e à segurança social…][13], pelo que não podemos deixar de concluir pela manifesta sobreposição do seu interesse[14] e a sua indiferença pela verificação das previsíveis consequências danosas, para a requerida, advindas da simples existência e publicitação dos autos de insolvência corporizando pretensão infundada de declaração de insolvência.
            Conformou-se, assim, a requerente, necessariamente (ante o decisivo e único objectivo prosseguido - maxime, o de ver satisfeito o seu invocado “crédito”) com o risco de produção de consequências danosas.

            8. Ademais, como se escreveu num aresto desta Relação, a dedução de um pedido de declaração de insolvência por um credor do devedor visando pressionar este ao pagamento de determinado valor no quadro da discussão entre os dois do montante de um crédito (enquanto forma de pressão no quadro de um litígio contratual individualizado), consubstancia um uso desviado do processo de insolvência, relativamente a um fim legítimo: propiciar a execução universal do património de um devedor impossibilitado de cumprir as suas obrigações vencidas (art.ºs 1º e 3º, n.º 1); é esta associação que torna evidente a desproporção do meio empregue e faz sobressair a ultrapassagem dos limites da simples negligência, sendo que, como vimos, não se apurou que a requerente tivesse alguma razão para intuir que a situação patrimonial da requerida fosse de incapacidade para cumprir a generalidade das suas obrigações vencidas ou se verificassem quaisquer factos-índice da situação de insolvência (art.º 20º).[15]

            9. Concluindo-se, assim, que a dedução do pedido de declaração de insolvência foi dolosa (na modalidade de dolo eventual) e que, como se refere na decisão sob censura, a única intenção da requerente com a presente acção era pressionar a requerida a pagar, há lugar à responsabilização prevista no art.º 22 em conjugação com o disposto no art.º 483º, n.º 1, do Código Civil.

            Soçobram, desta forma, as “conclusões” da alegação de recurso.

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III. Face ao exposto, julga-se improcedente a apelação, confirmando-se a decisão recorrida.

            Custas pela requerente/apelante.


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27.01.2015

Fonte Ramos ( Relator )

Maria João Areias

Fernando Monteiro



[1] Rectifica-se lapso manifesto.
[2] Idem.
[3] Diploma a que respeitam os normativos adiante citados sem menção da origem.
[4] Rectificou-se lapso manifesto (cf., ainda, o art.º 54º da “oposição”).
[5] Idem (que também constava do art.º 59º da “oposição”).
[6] Preceitua o n.º 1 do mencionado art.º: “é considerado em situação de insolvência o devedor que se encontre impossibilitado de cumprir as suas obrigações vencidas”.

[7] Dispõe o art.º 20º, n.º 1, que a declaração de insolvência de um devedor pode ser requerida por quem for legalmente responsável pelas suas dívidas, por qualquer credor, ainda que condicional e qualquer que seja a natureza do seu crédito, ou ainda pelo Ministério Público, em representação das entidades cujos interesses lhe estão legalmente confiados, verificando-se algum dos seguintes factos:
                a) Suspensão generalizada do pagamento das obrigações vencidas;
                b) Falta de cumprimento de uma ou mais obrigações que, pelo seu montante ou pelas circunstâncias do incumprimento, revele a impossibilidade de o devedor satisfazer pontualmente a generalidade das suas obrigações;
                c) Fuga do titular da empresa ou dos administradores do devedor ou abandono do local em que a empresa tem a sede ou exerce a sua principal actividade, relacionados com a falta de solvabilidade do devedor e sem designação de substituto idóneo;
                d) Dissipação, abandono, liquidação apressada ou ruinosa de bens e constituição fictícia de créditos;
                e) Insuficiência de bens penhoráveis para pagamento do crédito do exequente verificada em processo executivo movido contra o devedor;
                f) Incumprimento de obrigações previstas em plano de insolvência ou em plano de pagamentos, nas condições previstas na alínea a) do n.º 1 e no n.º 2 do artigo 218.º;
                g) Incumprimento generalizado, nos últimos seis meses, de dívidas de algum dos seguintes tipos:
                               i) Tributárias;
                               ii) De contribuições e quotizações para a segurança social;
                               iii) Emergentes de contrato de trabalho, ou da violação ou cessação deste contrato;
                               iv) Rendas de qualquer tipo de locação, incluindo financeira, prestações do preço da compra ou de empréstimo garantido pela respectiva hipoteca, relativamente a local em que o devedor realize a sua actividade ou tenha a sua sede ou residência;
                h) Sendo o devedor uma das entidades referidas no n.º 2 do artigo 3º, manifesta superioridade do passivo sobre o activo segundo o último balanço aprovado, ou atraso superior a nove meses na aprovação e depósito das contas, se a tanto estiver legalmente obrigado.
[8] Vide, neste sentido - ainda que com reservas quanto à solução consagrada na lei -, Carvalho Fernandes e João Labareda, CIRE Anotado, Quid Juris-Sociedade Editora, 2009, págs. 144 e seguintes.
   Manifestando maiores reservas quanto a esta opção do legislador, vide, entre outros, Luís Menezes Leitão, in CIRE anotado, 4ª edição, pág. 70, que assim discorre: “temos por dificilmente justificável consagrar uma responsabilidade limitada ao dolo por parte de quem decida mover infundadamente um pedido de declaração de insolvência, sabendo-se que no âmbito da responsabilidade civil a regra geral é que tanto se responde por dolo como por negligência (art.º 483 n.º 1, do Cód. Civil), apenas se admitindo uma limitação da indemnização neste último caso (art.º 494º, do Cód. Civil). Ora, não há qualquer razão para quem mova negligentemente um pedido de declaração de insolvência deixe de responder pelos prejuízos causados, não fazendo por isso sentido a limitação deste artigo. Precisamente por esse motivo em anteriores edições sustentámos que pelo menos esta disposição poderia ser analogicamente aplicável à negligência grosseira, com base no brocado culpa lata dolo aequipararatur...”.
   Não vendo razões para a referida posição crítica e considerando a solução legal “lógica e explicável”, e invocando-se, nesse sentido, o preâmbulo do DL n.º 53/2004, de 18.3, que aprovou o CIRE [mormente, no seu ponto 13. - que refere que “uma das causas de insucesso de muitos processos de recuperação ou de falência residiu no seu tardio início, seja porque o devedor não era suficientemente penalizado pela não atempada apresentação, seja porque os credores são negligentes no requerimento de providências de recuperação ou de declaração de falência, por falta dos convenientes estímulos” -, apontando para o favorecimento do desencadeamento do processo por parte dos credores], cf., entre outros, o acórdão da RP de 22.4.2008-processo 0727065, publicado no “site” da dgsi.
[9] Cf., neste sentido, de entre vários, o cit. acórdão da RP de 22.4.2008-processo 0727065 e o acórdão da RC de 19.02.2013-processo 1194/09.5TBVNO.C1, publicado no “site” da dgsi.
[10] Vide, nomeadamente, I. Galvão Telles, Direito das Obrigações, 5ª edição, Coimbra Editora, págs. 317 e seguintes; Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, Vol. I, 4ª edição, Almedina, págs. 487 e seguintes e Rui de Alarcão, Direito das Obrigações, Lições ao 3º Ano Jurídico, Coimbra, 1983, págs. 250 e seguintes.
[11] Vide, no âmbito do direito penal mas perfilhando entendimento perfeitamente transponível para o direito civil, entre outros, Maia Gonçalves e Figueiredo Dias, in, respectivamente, “Actas das Sessões da Comissão Revisora do Código Penal, parte geral”, Volume I e II, edição da Associação Académica de Lisboa, pág.118 e “Direito Penal – Sumários das Lições à 2ª Turma do 2º ano da Faculdade de Direito”, Universidade de Coimbra, 1975, págs. 239 e seguinte.
[12] Vide Carvalho Fernandes e João Labareda, ob. cit., pág. 144.
[13] Diga-se que a alegação manifestamente insuficiente, e genérica, da requerente poderia porventura conduzir ao indeferimento liminar do pedido de declaração de insolvência – cf., a propósito, a acórdão desta Relação de 11.11.2014-processo 3857/13.1TJCBR.C1, do mesmo colectivo, publicado no “site” da dgsi.
[14] Não se impondo, nem sendo lícito, chamar à colação - como se fez nas alegações de recurso - o teor de quaisquer dos depoimentos porventura produzidos nesse sentido, ou em sentido contrário, em audiência de discussão e julgamento, bastando-nos a materialidade que se logrou comprovar e a perspectiva delineada na petição inicial.

[15] Cf. o acórdão da RC de 12.6.2012-processo 1954/09.7TBVIS.C1, publicado no “site” da dgsi, constando também do respectivo sumário: A dedução desse pedido de insolvência, apurando-se a não verificação de qualquer das situações elencadas nas alíneas do n.º 1 do artigo 20º do CIRE, confere ao comportamento do credor ao requerer essa insolvência a natureza de comportamento temerário, expressando uma total indiferença pela exposição do devedor aos desvalores normalmente associados pelos diversos agentes económicos, à circunstância de alguém (concretamente uma empresa) ser sujeito a um processo de insolvência, mesmo quando esta não vem a ser decretada (II). A temeridade desta conduta do credor e a indiferença que ela expressa quando aos resultados dela previsivelmente decorrentes para o devedor colocam tal requerimento infundado de insolvência no domínio do dolo eventual (III); Provocando esse requerimento infundado de insolvência danos ao devedor, designadamente referidos à percepção do mercado quanto a solvabilidade dele, deve o requerente dessa insolvência indemnizar esses danos, nos termos do artigo 22º do CIRE e 483º, n.º 1 do CC (IV).