Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
310/13.7GBPMS.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: OLGA MAURÍCIO
Descritores: IMPUGNAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO
REQUISITOS
VÍCIOS
RECURSO INTERPOSTO PELO ASSISTENTE
MEDIDA DA PENA
INDEMNIZAÇÃO CÍVEL
Data do Acordão: 05/17/2017
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: LEIRIA (J L DE PORTO DE MÓS)
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTS. 401.º; 410.º; 412.º DO CPP; ART. 496.º DO CC
Sumário: I - Quando o recorrente pretenda ver alterada a matéria de facto por via do mecanismo previsto no art. 412.º, n.ºs 3 e 4, do C.P.P., tem, para além de concretizar os factos que padecerão de erro de julgamento, que concretizar as provas que impõem decisão diversa da recorrida e tem, depois, que localizar com exactidão no respectivo suporte o excerto relevante da prova gravada de que se socorreu para demonstrar o erro da decisão.

II - Pode sempre conhecer-se dos vícios da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, da contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão e do erro notório na apreciação da prova, isto desde que resultem do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum.

III - O assistente tem legitimidade para recorrer, desacompanhado do Ministério Público, da espécie e medida da pena quando demonstrar um concreto e próprio interesse em agir, que não se pode reconduzir à pura e simples invocação da qualidade de assistente.

IV - O assistente não tem um direito pessoal a uma concreta punição. A pena é dominada pelo interesse público da correcta sanção correspondente ao crime e à culpa, razão pela qual ele não poderá, digamos, imiscuir-se nessa discussão salvo quando demonstrar um concreto e próprio interesse em agir.

V - A indemnização por danos não patrimoniais não visa pagar, nem apagar, os danos provocados pelo facto, porque sobre eles não podem incidir regras de cálculo.

VI - A fixação da indemnização de acordo com a equidade significa que o seu valor é determinado considerando a culpa do agente, a sua situação económica e a situação económica do lesado, as especiais circunstâncias do caso, a gravidade do dano, etc., ou seja, todas as regras de boa prudência, de bom senso prático, de justa medida das coisas, de criteriosa ponderação das realidades da vida: a indemnização deve ser proporcional à gravidade do dano, a avaliar objectivamente, e ser fixada de acordo com critérios de boa prudência e ponderação das realidades da vida.

VII - É entendimento que as decisões em cujo julgamento intervém a equidade são passíveis de alteração nas hipóteses em que o tribunal recorrido afronte, manifestamente, as regras da boa prudência, de bom sendo prático, de justa medida das coisas e de criteriosa ponderação das realidades da vida.

Decisão Texto Integral:








Acordam na 4ª secção do Tribunal da Relação de Coimbra:

RELATÓRIO


1.

O arguido A.... foi condenado nas penas de 120 dias de multa, à taxa diária de € 6,00, por cada um dos dois crimes de ofensa à integridade física simples, do artigo 143º, nº1, do Código Penal, cometidos em autoria material, na forma consumada e em concurso real.

Feito o cúmulo jurídico foi-lhe aplicada a pena única de 160 dias de multa, à taxa fixada.

Quanto ao mais, foi absolvido de um crime de ofensa à integridade física simples, do artigo 143º, nº 1, de um crime de perturbação da vida privada, do artigo 190º, nº 2, de um crime de ameaça agravada, do artigo 153º, nº 1, e 155º, nº 1, al. a), e de um crime de coacção agravada, na forma tentada, dos artigos 22º, nº 1 e 2, al. a), 23º, nº 1 e 2, 73º, nº 1, als. a) e b), 154º, nº 1, e 155º, nº 1, al. a), todos do Código Penal.

Relativamente à parte civil, o pedido de indemnização deduzido pelo Centro Hospitalar de Leiria, E.P.E., foi julgado procedente e o arguido condenado a pagar-lhe a quantia de 102 €, acrescida de juros de mora, à taxa legal, desde a citação para contestar o dito pedido e até integral pagamento;

O pedido de indemnização civil deduzido pela assistente/demandante B... foi julgado parcialmente procedente, tendo o arguido sido condenado a pagar-lhe 100 € a título de danos patrimoniais e 500 € a título de danos não patrimoniais, acrescidos de juros de mora desde a decisão e até integral pagamento.

2.

A assistente recorreu, apresentando as seguintes conclusões relevantes:

«…

2º Quanto ao facto não provado constante do ponto d., cabe esclarecer que, salvo o devido respeito, a inclusão do mesmo no elenco dos factos não provados carece de qualquer fundamento.

3º Pois da prova produzida nos presentes autos, mormente a inquirição do próprio Arguido, o mesmo admitiu como possível ter empurrado a ofendida na face

4º Nestes termos, encontramo-nos perante um caso de erro notório na apreciação da prova, nos termos da alínea c) do nº 2 do artigo 410º do Código de Processo Penal (doravante abreviadamente designado por C.P.P.).

5º Caso assim não se entenda, existirá sempre uma demonstrada insuficiência para a decisão de facto provado (artigo 410º/2, alínea c) do C.P.P.), devendo a Sentença ser corrigida, passando tal facto a constar dos factos dados como provados.

6º Por outro lado, a ora Recorrente não se pode conformar com a absolvição do crime de ofensa à integridade fisica quanto aos factos ocorridos em 23.09.2013.

7º Considerou o Tribunal a quo que actuou, pois, o Arguido nesta situação ocorrida em 23 de Setembro de 2013, com dolo necessário, encontrando-se portanto igualmente preenchido o tipo subjectivo do crime de ofensa à integridade física praticado sobre B... .

8º Ora quanto a este ponto, importará esclarecer que segundo a versão apresentada pelo Arguido, que confessou parcialmente as agressões, estas ocorreram porque a Assistente ora Recorrente pretendia obrigá-lo a estacionar em local não permitido.

9º Ora, tal argumentação não poderá - salvo melhor opinião - fundamentar uma exclusão da culpa.

10º Assim, no caso concreto, não se vislumbra quais as circunstâncias concretas do facto que levaram à exclusão de culpa.

11º Nestes termos, o facto k) (que com o comportamento descrito supra em 8. a 9. dos "factos provados" o Arguido agiu com o propósito de maltratar o corpo e a saúde da ofendida.) deverá ser retirado do elenco dos factos não provados e incluído nos factos dados como provados.

12º Por conseguinte, deverão considerar-se preenchidos os requisitos objectivos e subjectivos do crime de ofensa à integridade, não se verificando qualquer causa que justifique a ilicitude do mesmo ou exclua a culpa do agente e por conseguinte deverá ser revogada a decisão de absolvição quanto aos factos ocorridos no dia 23/09/2013, e substituída por uma sentença condenatória, sendo ainda condenado a pagar a correspondente indemnização civil pelos danos morais bem como patrimoniais.

13º Caso assim não se entenda, sempre se dirá que o comportamento do Arguido foi manifestamente excessivo para afastar o alegado perigo.

14º Termos em que a actuação do arguido não pode ser considerada adequada a afastar o alegado perigo, sendo manifestamente excessiva.

15º Por conseguinte, deverão considerar-se preenchidos os requisitos objectivos e subjectivos do crime de ofensa à integridade, não se verificando qualquer causa que justifique a ilicitude do mesmo ou exclua a culpa do agente e por conseguinte deverá ser revogada a decisão de absolvição quanto aos factos ocorridos no dia 23/09/2013, e substituída por uma sentença condenatória.

16º Quanto ao crime de perturbação da vida privada, também a ora Recorrente não se poderá conformar com a decisão absolutória.

17º Com efeito, perante os factos provados sob 14, não se concebe como pode o Tribunal a quo considerar que o Arguido não cometeu o crime que lhe vem imputado.

18º Pois, perante os factos descritos sob o ponto 14, resulta pelo contrário e salvo melhor opinião que o Arguido quis e conseguiu perturbar a vida privada, a paz e o sossego da Assistente ao enviar as referidas sms para o telemóvel da mesma.

19º Termos em que deverá a Sentença absolutório do crime de perturbação da vida privada, p. e p. Pelo artigo 190º, nº 2 do Código Penal ser revogada e substituída por outra condenatória.

20º Por conseguinte e tendo em conta uma vez mais os factos dados como provados sob o ponto 14, mormente a mensagem enviada no dia 04/08/2013, "(...) vai gozando enquanto podes, um dia destes isso acaba(...) terás que pagar o dobro", e quanto à mensagem enviada à ofendida no dia 24/08/2013 "(...)vais ter boas surpresas pelo k recebi a momentos"(...) " você ira engolir muitas lagrimas amargas e ensanguentadas, aguarde pela hora certa, ok, adeus, e felicidades, doa a quem doer"

21º Deverá o arguido ser condenado pelo crime de ameaça agravada de que vinha acusado, devendo ser revogada a sentença absolutória e substituída por sentença condenatória.

22º Por outro lado, quanto à fixação da medida da pena aplicada aos dois crimes de ofensa à integridade física, sempre se dirá que não pode a ora Recorrente concordar.

23º Não obstante, para além das considerações que o Tribunal a quo teceu quanto aos factos que depuseram contra o Arguido, deveriam, salvo o devido respeito, ter constado na fundamentação da douta Sentença, as seguintes circunstâncias:

24º Ainda que o Arguido não tenha antecedentes criminais, a verdade é que se encontram a correr outros dois processos-crime contra o Arguido por factos praticados contra a Assistente ora Recorrente, Processo nº 219/14.7GAANS e Processo 177/15.0GAANS ambos a correr no DIAP de Pombal, por factos ocorridos após os factos de que vem acusado nos presentes autos.

25º A existência de tais autos encontra-se documentada já que foi requerida a apensação, tendo sido proferido nos presentes autos Despacho de não admissão de apensação em 30/06/2015.

26º Ademais, tais factos objecto dos processos nº 219/14.7GAANS e Processo 177/15.0GAANS ambos a correr no DIAP de Pombal, foram salvo melhor opinião, praticados quando o Arguido ainda estava sujeito às medidas de coacção aplicadas em primeiro interrogatório, ou seja:

- Não contactar por qualquer forma com a ofendida B... ,

- Não frequentar nem permanecer na área da residência da ofendida;

- Não frequentar nem permanecer na área do local de trabalho da ofendida;

- Obrigação de apresentações periódicas semanais junto da entidade policial da área de residência do arguido, todos os domingos entre as 9:00 e as 17:00 horas.

27º Nestes termos, ao praticar os factos imputados nos processos supra referidos, o Arguido violou reiteradamente as medidas de coação aplicadas, termos em que deveria ter sido aplicadas as devidas consequências legais.

28 Pelo contrário, tais medidas foram posteriormente reduzidas à medida menos gravosa, ou seja ao TIR, ....

29º Termos em que, salvo o devido respeito, mal andou o Tribunal a quo que deveria ter mantido ou mesmo agravado as medidas de coação impostas ao Arguido aquando do primeiro interrogatório judicial, mantendo-se estas até ao trânsito em julgado.

30º Por outro lado, será ainda de salientar que, tanto durante a Audiência de Julgamento como fora da mesma, o arguido nunca se mostrou arrependido, mantendo-se impávido e sereno,

31º Tais circunstâncias, deveriam igualmente ter sido valoradas na determinação da medida da pena.

32º Perante o supra exposto, contrariamente à douta Sentença, não se poderá considerar adequada a pena aplicada.

33º Pois, ponderada a matéria dada como provada com todas as circunstâncias agravantes, a pena aplicada será, salvo o devido respeito, desajustada e desproporcional, por defeito.

34º Ora, perante todo o supra exposto, seria, salvo melhor opinião, adequada e proporcional face à prova existente, a aplicação de uma pena sempre mais próxima do limite máximo e nunca do limite mínimo aplicável ao caso subjudice.

35º Quanto ao pedido de indemnização civil formulado pela Assistente ora Recorrente, julgou o Tribunal a quo parcialmente procedente e, em consequência, condenou o arguido e demandado no pagamento, as quantias de € 100,00 [cem euros] a título de danos patrimoniais, e €500,00 [quinhentos euros] a título de danos não patrimoniais, acrescidas de juros de mora desde a data da prolação a presente decisão e até integral pagamento, absolvendo-o do remanescente pedido;

36º Ora, salvo melhor opinião, perante os factos dados como provados, (factos 25 a 27) bem como a prova documental junta aos autos com o pedido de indemnização civil e as declarações da Assistente, os valores da condenação tanto a nível dos danos morais como dos danos patrimoniais são manifestamente insuficientes.

37º Por outro lado, da prova documental junta aos autos pela Recorrente, resulta que a mesma despendeu uma quantia não inferior a €800,00 (oitocentos euros), não só com as deslocações mas também com os tratamentos médicos e medicamentosos, quantia essa da qual deverá ser ressarcida a título de danos patrimoniais.

38º Ademais, a quantia de €500,00 a título de danos morais é manifestamente injusta, sendo que se trataram de dois crimes de ofensa à integridade física da Assistente ora recorrente.

39º Nestes termos, a ora Recorrente não se pode conformar com a indemnização cível fixada, tanto a título de danos morais bem como dos danos patrimoniais devendo ser revogada a decisão proferida e fixada uma indemnização nos termos formulados no pedido de indemnização cível, sob pena de se revelar desajustada e desadequada aos danos sofridos».

3.

O recurso foi admitido.

O Ministério Público respondeu defendendo a manutenção do decidido.

Quanto à impugnação da decisão da matéria de facto disse que este segmento do recurso não poderia ser conhecido porque a assistente não cumpriu o art. 412º, nº 3, do C.P.P., no que à especificação das provas determinantes da alteração pretendida respeita.

Ainda a propósito desta questão avançou que o que resultava do recurso é que a assistente, mais do que invocar a discordância entre a decisão e a prova, impugnava a convicção formada pelo tribunal perante as provas. E quanto à convicção disse ainda que a decisão da matéria de facto estava fundamentada de forma cabal, esclarecendo o percurso lógico trilhado, com indicação dos meios de prova em a decisão assentou e esclarecendo as razões da sua relevância.

Defendeu, por fim, a manutenção das penas parcelares e única, porque adequadas ao caso, bem como a avaliação dos danos sofridos pela assistente em consequência da actuação do arguido.

O arguido também respondeu ao recurso, pugnando pelo seu improvimento.

Quanto à impugnação da decisão da matéria de facto sustentou que a assistente não cumpriu o ónus de impugnação contido no art. 412º, nº 4, do CPP.

Quanto ao pedido de condenação pelo crime de perturbação da vida privada, e não obstante o que consta do ponto 14 dos factos provados, disse a intenção de perturbação não se provou, sendo que as mensagens invocadas nunca teriam uma tal virtualidade, tanto mais que depois do seu envio a assistente aceitou um pedido de encontro e aceitou entrar no seu carro, conforme reconheceu.

Quanto ao pedido de condenação pelo crime de ameaça agravada, disse que não só as mensagens enviadas não anunciavam qualquer mal, como também não se provou que ao enviá-las ele quisesse ameaçar.

O Sr. P.G.A. também defendeu a manutenção da sentença recorrida.

Quanto à impugnação da matéria de facto referiu que a recorrente tinha que indicar concretamente os factos sobre os quais incidia a sua discordância e, também, indicar concretamente as provas que imporiam decisão diversa, tudo nos termos do art. 412º, nº 3 e 4,do C.P.P., o que não foi cumprido.

Em relação aos vícios invocados disse que da leitura da sentença resultava que não se verificavam.

Foi cumprido o disposto no nº 2 do art. 417º do C.P.P..

4.

Proferido despacho preliminar foram colhidos os vistos legais.

Realizada a conferência cumpre decidir.


*

FACTOS PROVADOS

5.

Na sentença recorrida foram julgados provados os seguintes factos:

«1.       No dia 08 de Agosto de 2013, cerca das 00H10, no interior do estabelecimento comercial de dança, conhecido como “ K... , sito na (...) , Porto de Mós, o Arguido, A... , puxou a cadeira onde B... se encontrava sentada, tendo esta caído ao solo.

2.         Como B... se procurava levantar, o Arguido agarrou-a pelos braços e puxou-lhe a roupa na zona do peito.

3.         Nesse mesmo dia, pelas 04H00, junto à residência da ofendida, em (...) , Ansião, o Arguido que ali se encontrava à espera daquela, abordou-a e desferiu-lhe um empurrão que a levou a cair ao solo.

4.         Em consequência das supra referidas condutas do Arguido, B... sofreu duas equimoses na zona do torax, com 4 e 5 cm, sobre a mama esquerda, equimose na face anterior do terço médio e superior do braço esquerdo, 17 por 2 cm, descontínua, escoriação com 1 por 1 cm no cotovelo esquerdo, duas equimoses circulares com 1,5 cm de diâmetro na face anterior e terço médio e inferior da perna esquerda, bem como dores,

5.         … lesões essas que lhe determinaram 12 dias para cura, sem afectação da capacidade de trabalho geral e sem afectação da capacidade de trabalho profissional,

6.         … das quais não resultaram quaisquer consequências permanentes.

7.         Posteriormente à apresentação da queixa por parte da ofendida, no dia 23 de Setembro de 2013 o Arguido e ofendida encontraram-se na zona da Camarinha, tendo ambos circulado, posteriormente, numa só viatura.

8.         A determinado momento do percurso, e por razões não concretamente apuradas, a ofendida, acomodada no lugar do passageiro e com o veículo automóvel em circulação, agarrou no volante do mesmo, tentando, desse modo, direccioná-lo.

9.         Acto contínuo, o Arguido empurrou-a com a mão contra a janela, fazendo-a embater ali com a cabeça e com as costas.

10.       Consequência directa e necessária da conduta do Arguido descrita supra, B... sofreu fenómenos dolorosos na zona lombar e no couro cabeludo.

11.       À data de 26.09.2013, apresentava equimose de cor escura da região média da nádega direita com 4,3 cm, equimose da face externa do terço distal do braço direito de cor escura com 1 cm de diâmetro de forma digitiforme e equimose da face externa do terço distal do braço esquerdo de cor escura com 1 cm de diâmetro de forma digitiforme,

12.       … as quais lhe determinaram 7 dias para cura, sem afectação da capacidade de trabalho geral e sem afectação da capacidade de trabalho profissional,

13.       … não tendo resultado quaisquer consequências permanentes.

14.       O Arguido enviou através do seu telemóvel, com o n.º (...) as seguintes SMS´s para o telemóvel da ofendida:

- No dia 04 de Agosto de 2013, com o seguinte teor: “Xau, aproveira e diverte-te, a noite também e minha, vai gozando enquanto podes, um dia destes isso acaba, tens toda a razão k me ensinaste a ver e a gozar a *falta algum texto* ncaste e gozaste, isso acabou, boa sorte, não me envergonhas nem me deixas mal em mais lado nenhum” e “a merda k tu me quiseste fazer comer e a merda em k me deixaste, teras k o pagar em dobro, vai ofender e tratar mal os teus o caralho e com quem andas ok, também tenho direito a me divertir e passear, não estou para te aturar mal educada tyraidora, nada me importa ou interesse ao k digas ou ao k pensas de mim, sou uma pessoa livre k não tenho k dar contas a ninguém, a muito quem goste ok”.

- No dia 08 de Agosto de 2013, com o seguinte teor: “se fosses da minha laia portabaste como uma mulher em condições, so k não consegues k tens o veneno e o diabo no corpo ate o vicio”.

- No dia 24 de Agosto de 2013, com o seguinte teor: “Voce vai ter boas supresas pelo k recebi a momentos, doa a quem doer, vai dar muita cabecada, não se preocupe ok, divirta-se” e “O numero auxiliar k tem guarde-o para os seus acompanhantes de luxo e para os seus amigos com quem anda e tem andado por todo o lado, so isso basta e mostra a espécie de pessoa com quel lidei estes anos, foram anos de falsidades traições enganadores e de mentiras, pode seguir k tem o k quer o k escolheu e o caminho aberto”, e ainda “Apenas gozou e brincou com a pessoa errada, nem piedade, você ira engolir muitas lagrimas amargas e ensanguentadas, aguarde pela hora certa ok, adeus, e felicidades, doa a quem doer”.

15.       Com o comportamento descrito supra em 1. a 3, o Arguido agiu com o propósito de maltratar o corpo e a saúde da ofendida, o que conseguiu.

16.       Com o comportamento descrito supra, o Arguido agiu com o propósito de repelir a actuação da ofendida e reaver o domínio do veículo automóvel, bem sabendo que ao fazê-lo, necessariamente, maltratava o corpo e a saúde da ofendida – como maltratou.

17.       Agiu o Arguido de forma sempre livre, voluntária e deliberada, bem sabendo que todas as suas condutas eram proibidas e punidas por lei penal.

Mais se provou que:

18.       O Arguido é solteiro.

19.       Mora sozinho em casa arrendada, com a qual despende a quantia mensal de € 150,00 [cento e cinquenta euros].

20.       É motorista de profissão, auferindo de um salário mensal de € 1.150,00 [mil cento e cinquenta euros].

21.       O Arguido tem por habilitações literárias o 9.º ano de escolaridade.

Bem como que:

22.       Do certificado de registo criminal do Arguido nada consta.

Com pertinência, para o apuramento da responsabilidade civil do Arguido, provou-se ainda que:

23.       A assistência médica prestada pelo Centro Hospitalar de Leiria, E.P.E., a B... na sequência directa e necessária das condutas do Arguido importou € 102,00 [cento e dois euros],

24.       … os quais ainda se encontram em dívida.

25.       B... em consequência directa e necessária das condutas do Arguido descritas supra em 1 a 3 e 7 a 9, sentiu dores,

26.       … tendo despendido quantia não concretamente apurada, mas não inferior a € 100 [cem euros], nas deslocações que teve de efectuar com a vista ao recebimento de cuidados médicos e comparência ao exame de avaliação de dano corporal.

27.       Consequência directa e necessária das conduta do Arguido descrita supra em 1 a 2, B... sentiu-se vexada».

6.

E foram julgados não provados os seguintes factos:

«a)       Que tenha sido o Arguido a contactar a ofendida para se encontrarem no mencionado dia 23 de Setembro de 2013.

b)         Que o motivo do encontro tenha sido a queixa apresentada pela ofendida.

c)         Que a conduta descrita em 8 e 9 supra tenha ocorrido por o Arguido se ter exaltado por a ofendida não ter anuído aos seus pedidos para desistir da queixa.

d)         Que o Arguido tenha empurrado, nesse circunstancialismo, a ofendida pela face.

e)         Que, acto contínuo, o Arguido agarrou o pescoço da ofendida, apertando-o.

f)         Que o Arguido tenha dirigido à ofendida a seguinte expressão: “Se me tramares a vida, mato-te”.

g)         Que com a conduta descrita supra em 8 e 9, pretendeu o Arguido causar medo à ofendida, por forma a determiná-la a desistir do procedimento criminal contra si instaurado, sabendo que tal conduta era adequada a causa-lo e a levar a ofendida a agir do modo pretendido, o que quis.

h)         Que desde data não concretamente apurada, mas localizada em Abril de 2013, que o Arguido tem vindo a perseguir a queixosa, bem como lhe telefona de forma quase permanente para o seu telemóvel.

i)          Que o Arguido permanece em vigilância junto à residência da ofendida, rondando-lhe a casa.

j)          Que, de forma reiterada e desde o mês de Abril de 2013, que o Arguido telefona para o telemóvel da ofendida ameaçando-a de morte, dizendo-lhe “tu estragas-me a vida, mas eu mato-te”.

k)         Que com o comportamento descrito supra em 8 a 9 dos “factos provados” o Arguido agiu com o propósito de maltratar o corpo e a saúde da ofendida.

l)          Que os comportamentos que o Arguido vem assumindo causam medo, temor e receios à ofendida, a qual passou a tomar precauções no seu dia-a-dia de modo a não denunciar a sua presença na habitação.

m)        Quis ainda o Arguido ofender a ofendida na sua honra e consideração, deixando-a em constante sobressalto pela segurança da sua integridade física e paz de espírito, provocando-lhe permanente sentimento de instabilidade que se reflecte no seu estado psíquico

n)         Que em consequência directa e necessária das condutas praticadas pelo Arguido a Assistente entrou em estado depressivo, com  síndroma pós-traumático,

o)         que a obrigou a necessitar em termos regulares de ajuda médica, mormente psiquiátrica,

p)         e a tomar regularmente diversos anti-depressivos.

q)         Que a Assistente tenha assumido o custo inerente à assistência médica prestada pelo centro Hospitalar de Leiria E.P.E. nos dois episódios de urgência a que teve de recorrer».

7.

O tribunal recorrido motivou a sua decisão sobre os factos provados nos seguintes termos:

«O Tribunal fundou a sua convicção a partir da análise crítica do conjunto da prova produzida em audiência de julgamento, bem como nos documentos juntos aos autos, em conjugação com as regras da experiência comum.

Assim, considerou o Tribunal:

▪ Declarações prestadas pelo Arguido, A... , parcialmente confessórias, nos termos que infra se explanarão.

As declarações do Arguido foram ainda tomadas em consideração no que à sua situação pessoal e económica diz respeito.

▪ Declarações da Assistente/Demandante B... [52 anos, divorciada, empresária] a qual sufragou a acusação pública e, até, muito para além dela, conforme adiante se explicitará.

▪ Depoimentos das testemunhas C... [31 anos, solteiro, Eng. Civil, funcionário do estabelecimento K... à data dos factos], D... [48 anos, divorciada, prima da Assistente], E... [66 anos, casado, reformado, mero conhecido dos Arguido e Assistente], F... [74 anos casada, reformada] e G... [76 anos, casado, reformado], ambos tios do aqui Arguido e conhecidos da Assistente: todos a contribuir para a formação da convicção do julgador nos termos que infra se deixarão explicitados.

▪ Documentos juntos aos autos, mormente:

- Relatórios de avaliação de dano corporal em processo penal, de fls. 10 a 12 destes autos e de fls. 26 a 27v. e 48 a 49v. do apenso “A”;

- Declaração hospitalar de fls. 6;

- Informações clínicas de fls. 130 a 132;

- Auto de transcrição e fls. 161;

- Informação da Vodafone de fls. 235;

- Certidão de dívida de fls. 289;

- Certificado de registo criminal do Arguido de fls. 411.

No que tange aos episódios ocorridos em 08 de Agosto de 2013 [pontos de facto 1. a 6.] temos por comprovada a matéria inscrita nos pontos 1 e 2, desta feita, por expressa confissão do Arguido em audiência de discussão e julgamento. Contextualiza o Arguido os factos por si praticados na sequência de um prévio contacto estabelecido entre ambos – Arguido e Assistente –, nos termos do qual teriam combinado sair na noite em apreço, o que a aqui Assistente acabou por fazer, porém na companhia apenas da prima desta, a testemunha D... . Independentemente das – digam-se, inúmeras – contradições em que a Assistente e a sobredita testemunha D... incorreram nesta matéria, a verdade é que o Arguido confessou-a integralmente, confissão essa que não nos mereceu qualquer reserva.

Já não assim no que diz respeito ao segundo dos episódios ocorridos nesse mesmo dia 08 de Agosto de 2013: admitindo, embora, o Arguido ter estado presente nas circunstâncias de tempo e lugar descritas em 3 supra da matéria de facto provada, afirma que a aqui Assistente terá caído ao chão, não por efeito de qualquer empurrão desferido por si, mas por iniciativa daquela, num momento em que, segundo declara, este estaria a abraçá-la, com o intuito de a acalmar. Ora, também neste segmento, não servindo de muito os esclarecimentos prestados pela Assistente a propósito do dito episódio – conquanto absolutamente contraditórios – a verdade é que não nos merece credibilidade a versão apresentada pelo Arguido. E não nos merece credibilidade em si mesma: não só o Arguido admite o estado de exaltação de ânimo em que se encontrava [do que é demonstrativo, aliás, o episódio ocorrido poucas horas antes desse mesmo dia], como também admite a existência de uma altercação física entre ambos, nos termos da qual a aqui Assistente até terá tentado libertar-se dele, e o Arguido até lhe terá tapado a boca com a mão, de modo a impedir que esta gritasse. Temos, assim, por despropositada a versão apresentada pelo Arguido, neste segmento muito mais consentânea com a descrição que deles é efectuada pela Assistente [embora, sempre, levada ao extremo, neste e noutros episódios, tal a – aliás, admitida – animosidade que, presentemente, a Assistente dedica ao aqui Arguido]. Provada está, a nosso ver, também a matéria inscrita no ponto 3 supra da rubrica “Factos provados”.

No que tange aos pontos de facto 4 a 6 da rubrica “Factos provados”: a mesma decorre da conjugação dos elementos probatórios que acabamos de referir com a prova documental e pericial junta aos autos, mormente a fls. 6 e 10 a 12, nenhuma dúvida se suscitando neste particular.

No que tange ao episódio ocorrido em 23 de Setembro de 2013 [pontos de facto 7. a 13.] temos por comprovado que o Arguido e a Assistente se terão encontrado nas circunstâncias de tempo e lugar mencionadas nos autos. Ambos assim o afirmam. De quem partiu a iniciativa do encontro, é matéria que o Tribunal não logrou apurar, nem que o mesmo servisse o propósito de conversarem sobre a queixa apresentada pela aqui Assistente. Neste particular, não pode o Tribunal deixar de considerar que, pese embora a Assistente o tenha, reiteradamente, negado, a verdade é que prova foi feita de que a mesma manteve, em determinada altura [o Arguido reputa por cerca de 7/8 anos a esta parte], uma relação de natureza “íntima” com o aqui a Arguido. Desse facto deram conta, directamente, não só o Arguido, mas também as testemunhas F... e G... , e, indirectamente, a testemunha E... , sem que se suscitasse qualquer reserva relativamente às respectivas credibilidades, tal a espontaneidade, o detalhe e a postura que evidenciaram as testemunhas referenciadas [concedendo o Tribunal, neste particular, credibilidade ao Arguido, até no confronto com as inverosímeis explicações apresentadas pela Assistente para refutar determinada factualidade “denunciadora” do dito relacionamento – a ponto de ter sido promovido, e ordenado, em audiência de discussão e julgamento a extração de certidão com vista à instauração do competente inquérito para apuramento da sua responsabilidade criminal]. Isto para significar que não nos surpreende, de nenhum modo, que a iniciativa do encontro pudesse ter partido da própria Assistente, conforme afirma o Arguido, e que este pudesse versar qualquer tema, que não necessariamente o da queixa apresentada pela Assistente. Aliás, caso o assunto fosse o da queixa e a Assistente vivesse aterrorizada, conforme sublinhou exaustivamente, pelo Arguido, muito se estranharia que a mesma tivesse acedido encontrar-se com ele, ainda para mais não o tendo feito em local público, antes predispondo-se a seguir com o mesmo num único veículo automóvel [sendo certo que, quando questionada pelo Tribunal, a Assistente confirmou tê-lo feito voluntariamente e não sob qualquer espécie de ameaça ou coacção]. Do que acabámos de referir, resulta a não prova os pontos de facto a) e b) da correspondente rubrica.

Dito isto, seguem-se as agressões por parte do Arguido das quais a Assistente terá sido alvo no interior do veículo automóvel. Mostra-se, inequívoco, a nosso ver, que as lesões descritas nos pontos de facto 10 a 13 terão sido perpetradas pelo aqui Arguido sobre a aqui Assistente nas circunstâncias de tempo e lugar mencionadas em 7. Tal factualidade encontra-se documentada pelas informações clínicas e perícias de avaliação e dano corporal em processo penal que fazem fls. 130 a 132 destes autos e 26 a 27v. e 48 a 49v. do apenso “A”. O Arguido – com excepção da factualidade imputada relativa a ter agarrado o pescoço da ofendida, apertando-o – não as nega. O que o Arguido afirma é que o fez numa situação de último recurso, num momento em que a Assistente, acomodada no lugar do passageiro e com o veículo automóvel em circulação, agarrou no volante do mesmo, tentando, desse modo, direccioná-lo. Esta factualidade é também corroborada pela Assistente. Se esta o terá feito, como diz, para impedir que o Arguido cumprisse o anunciado suicídio/homicídio e permitir-lhe sair do veículo ou se o terá feito, como diz o Arguido, para obrigá-lo a estacionar em local não permitido, é algo que o Tribunal não logrou apurar com clareza. Qualquer das versões é, no mínimo, rebuscada. A “novel” versão da Assistente mostra-se inverosímil, conquanto é a própria quem afirma, igualmente, que quando o Arguido logra imobilizar o veículo automóvel, esta recusa-se a sair, com o fundamento de que o local em questão era “povoado” por prostitutas, sobrepondo-se o valor maior da sua reputação, aparentemente, ao valor da sua vida, na sua própria versão, posta em risco pelo Arguido. Não é mais credível a versão do Arguido no que respeita à motivação subjacente à intervenção da Assistente. Facto é – e ambos assim o afirmam – que a Assistente, a determinado momento do percurso, tentou dominar o volante do veículo automóvel. Nesse contexto, confessa o Arguido, lançou-lhe a mão e empurrou-a, não sabendo precisar se esta teria embatido com a cabeça e costas na janela do veículo, mas, dizemos nós, admitindo tal possibilidade, face à descrição que dos factos é efectuada. Em conformidade com o exposto, temos por comprovado o facto inscrito em 16. da rubrica “Factos provados”, encontrando o seu reflexo negativo na al. k) da rubrica “Factos não provados”, estes por aplicação do princípio in  dubio pro reo, conforme adiante melhor se explicitará. Nega o Arguido, todavia, peremptoriamente, que em algum momento tenha apertado o pescoço à Assistente. Aqui cumprirá explanar que se as lesões verificadas na informação clínica e relatórios de avaliação de dano corporal em processo penal a que já nos referimos supra, comprovam a versão da Assistente no que tange ao embate na janela do veículo com a cabeça e costas, o mesmo não se diga relativamente a quaisquer sequelas na zona do pescoço. É verdade que no dia imediatamente posterior, quando a Assistente procurou assistência médica, queixou-se com dores, além do mais, nessa área. Mas tal, em nenhum momento da documentação clínica e/ou exames periciais resulta corroborado. Aliás, na informação clínica de fls. 130 a 132 dos autos, as únicas incidências documentadas são do crânio e da coluna, sendo certo que nos relatórios de avaliação de dano corporal de fls. 26 a 27v. e 48 a 49v. do apenso “A”, regista-se “Pescoço: boa mobilidade articular, sem lesões visíveis”. Face a todo o exposto, e porque prova não foi efectuada nesse sentido, inscrevem-se como não provados os factos a) a g) da correspondente rubrica, tendo-se, reflexamente por comprovada a intervenção da Assistente no volante do veículo automóvel em circulação e a consequente conduta do Arguido, bem como as lesões dela decorrentes para a aqui Assistente.

No que concerne às alegadas perseguições e telefonemas do Arguido, a acusação pública, situando-as, embora, a partir de Abril de 2013, pouco mais logra concretizar, utilizando fórmulas como “tem vindo a perseguir” telefona-lhe “de forma quase permanente” e “permanece em vigilância junto à residência”. Ora, pese embora o carácter eminentemente conclusivo das imputações efectuadas, a verdade é que nenhuma delas acaba por relevar no contexto da acusação pública, uma vez nenhum crime vem imputado ao Arguido com reporte a tais factos. É certo que o Arguido vem acusado, além do mais, da prática de um crime de perturbação da vida privada, porém, na previsão do n.º  2 do artigo 190.º do Código Penal, este claramente reportado às SMS transcritas no libelo acusatório. Ainda assim, e porque estamos ainda em sede de fundamentação da matéria de facto, sempre se dirá que tais imputações não resultaram provadas em audiência de discussão e julgamento. Com efeito, para além das declarações da Assistente, nenhuma outra prova foi efectuada no sentido de corroborar as “perseguições”, “rondas”, “vigilâncias” e “telefonemas” do Arguido, muito menos com o carácter “permanente” reputado pela acusação pública. A Assistente, neste particular – dizemo-lo com toda a frontalidade – nenhuma credibilidade nos mereceu. Decorrendo do seu discurso que esta tem o Arguido como responsável por todos os seus infortúnios [vg. acidente de viação por despiste de que foi vítima (numa altura em que o Arguido sequer lá estaria), cirurgia facial decorrente de problemas respiratórios de que foi objecto (problemas respiratórios que o Arguido teria agravado com a conduta do dia 23 de Setembro de 2013), e outras de semelhante pendor], exigir-se-ia mais do que a circunstância de a Assistente “pressentir” ou “sentir” que o Arguido estaria por perto da sua residência – conforme declarou – para ter-se por provada tal factualidade. O mesmo se diga dos também “reiterados” telefonemas do Arguido para a ofendida, sendo certo que neste segmento cumpre atentar na circunstância de o Arguido afirmar que era [também] a Assistente quem lhe telefonava e marcava encontros – e pelo menos um encontro comprovado existiu em momento posterior a este putativo “cerco” que o Arguido terá feito à Assistente [independentemente de quem dele teve a iniciativa]: o de 23 de Setembro de 2013. Não se mostra conforme esta realidade, àquela outra que vem descrita. Também não se mostra conforme tal realidade à circunstância de a Assistente, pelo menos com reporte à data de 04 de Outubro de 2014, conforme o documentam os autos a fls. 269, ter na sua posse roupas e a carteira com os documentos do aqui Arguido, caso não permanecesse aquele, conforme afirmou ter permanecido, na residência da aqui Assistente, com o consentimento desta, mesmo após a apresentação da queixa-crime por parte desta – nem colhe aqui, de nenhum modo, a tese da Assistente de que teria sido o Arguido quem, nesse dia, se terá deslocado à sua residência a fim de atirar os próprios pertences para a dita residência, limitando-se a Assistente a devolvê-los à proveniência. Compreende-se, porém, a dificuldade da Assistente em justificar a detenção de objectos pessoais do Arguido, com quem, desde o início da audiência de discussão e julgamento, e perante as mais flagrantes evidências, sempre refutou ter mantido qualquer tipo de relacionamento, senão um distante e até caridoso conhecimento de circunstância. Não colhe a versão da Assistente, como nos parece por demais evidente.

Nesta sequência, cumpre dizê-lo, também nenhuma prova foi feita de que o Arguido, presencial ou telefonicamente que fosse, ameace a ofendida de morte, mormente dizendo-lhe “tu estragas-me a vida, mas eu mato-te”. Sublinhamos uma vez mais: a única prova em sentido concordante são as declarações da própria ofendida [impregnado das contradições e perplexidades que, a propósito de cada matéria, fomos dando conta], conquanto o Arguido negue a prática dos factos e nenhuma das testemunhas inquiridas estivesse em posição de afirmá-lo – nem mesmo a prima da Assistente, D... , a qual, neste particular, se limitou a reproduzir o que ouviu dizer da própria, cumprindo-nos acrescentar que do depoimento da testemunha em apreço sequer se logrou extrair, com alguma – pouca que fosse – precisão os factos que, temos por seguro, terá presenciado [pelo menos parcialmente], quanto mais aqueles em que o seu conhecimento não é directo [nem nos convenceu a testemunha que o fosse].

Finalmente, no que concerne aos SMS´s enviados pelo Arguido à Assistente nos dias 04, 08 e 24 de Agosto de 2013, temo-los por comprovados face à conjugação das declarações do Arguido com o teor de fls. 161 e 235 dos autos.

Soçobra a factualidade relativa aos elementos volitivos dos tipos de crime pelos quais o Arguido vem acusado.

Resulta comprovado, face à confissão efectuada pelo Arguido em audiência de discussão e julgamento em conjugação com as declarações, nesta parte, concordantes da Assistente e do depoimento da testemunha C... , que com o comportamento descrito nos pontos de facto 1 a 3 da rubrica “Factos provados” o Arguido agiu com o propósito de maltratar o corpo e a saúde da ofendida, o que conseguiu, provocando-lhe dores e as lesões que melhor se acham descritas nos pontos de facto 4 a 6 de idêntica rubrica.

No que diz respeito ao episódio descrito nos pontos de facto 7 a 9 da rubrica “factos provados”, não tem este Tribunal idêntica convicção. Na verdade, o que resultou da prova produzida [cfr. fundamentação supra], foi que o Arguido actuou do modo que aí se deixou plasmado, por forma a obstar que a aqui Assistente persistisse no acto de direcionar o volante do veículo. Note-se que nesse momento o veículo automóvel encontrava-se em circulação [segundo a Assistente, até, em alta velocidade]. Ora, nesse contexto, resulta do relato dos factos, em benefício do arguido, que a conduta do mesmo destinou-se, em primeira linha, a repelir a acção da aqui Assistente e recuperar o controlo do veículo automóvel, sem prejuízo de ao fazê-lo saber o Arguido que necessariamente causaria ofensa ao corpo e à saúde da ofendida – como causou [cfr. pontos de facto 10 a 13].

No que diz respeito à factualidade inscrita no ponto de facto 14 da rubrica “Factos provados”, não se nos afigura, compulsado o teor dos transcritos SMS, que o Arguido agisse com outra intenção que não a de ofender a honra e consideração da Assistente [factualidade que nos parece inútil introduzir na fixação da matéria de factos, conquanto – como já em outro momento se deixou sublinhado – inexiste qualquer acusação particular pelo crime de injúria, pese embora a agora Assistente tenha sido notificada para o fazer]. Parece-nos, efectivamente, que os factos, quer de per si, quer no contexto relacional dos intervenientes, não alcançam a dimensão imputada pela acusação pública de perturbar a paz e a tranquilidade e/ou sossego da aqui Assistente, com a dignidade penal que o preceito legal pretende acautelar.

No que diz respeito à matéria relativa aos pedidos de indemnização civil.

Temos por comprovado que a Assistente recebeu cuidados médicos no Centro Hospitalar de Leiria, E.P.E. nos dias 08.08.2013 e 24.09.2013, em consequência directa e necessária da conduta do Arguido, cuidados esses que importaram a quantia de € 102,00, que ainda se encontram por pagar, conforme certidão e dívida que faz fls. 289 dos autos.

Temos também por comprovado que B... em consequência directa e necessária das condutas do Arguido descritas supra em 1 a 3 e 7 a 9, sentiu dores, tendo despendido quantia não concretamente apurada, mas não inferior a € 100 [cem euros], nas deslocações que teve de efectuar com a vista ao recebimento de cuidados médicos e comparência aos exames de avaliação de dano corporal. Finalmente, que em consequência directa e necessária das conduta do Arguido descrita supra em 1 a 2 da matéria de facto provada, B... sentiu-se vexada. Ora, a meteria que se inscreveu nos pontos 24 a 27 da rubrica “Factos provados”, relativa ao pedido de indemnização civil deduzido pela Assistente, resulta, não só das regras da experiência comum, como também da prova documental examinada e por declarações prestada pela Assistente. Nada mais se provou, com relevo para o apuramento da responsabilidade civil do Arguido/demandado, mormente os pontos factuais constantes das als. l), m), n), o), p) e q). da correspondente rubrica. Esta última [al. q)], mostra-se infirmada pela certidão e dívida junta aos autos pelo Centro Hospitalar de Leiria, E.P.E. É certo que a Assistente/demandante junta, a fls. 342 e ss., documentos que titulam determinadas despesas médias, medicamentosas, portagens e combustíveis. Todavia, atentas as datas inscritas nos sobreditos documentos, não podemos asseverar que tais despesas decorrem de qualquer das condutas imputadas nestes autos ao Arguido. Acresce que, conforme resultou da prova produzida em audiência de discussão e julgamento, mormente das declarações da própria Assistente/demandante, esta, desde, sensivelmente, por altura do seu divórcio [2003], teve necessidade de assistência médica psiquiátrica e da médica de família, bem como medicamentosa. Também por efeito de acidente de viação por despiste de que foi vítima [ocorrido em Maio de 2014 – cfr. fls. 203 dos autos], ficou em convalescença, tendo tido necessidade de assistência médica e medicamentosa. Finalmente, foi intervencionada cirurgicamente ao nariz em Novembro de 2013, por efeito de problemas respiratórios, o que também ocasionou despesas da natureza das mencionadas. Perante todo o exposto, e porque a Assistente/Demandante imputa a responsabilidade por todos estes acontecimentos [excepto o seu divórcio] ao aqui Arguido, não logrou o Tribunal descortinar quais os danos patrimoniais efectivamente sofridos pela Assistente/Demandante em virtude da conduta do Arguido submetida a julgamento – para além das estimadas despesas inerentes às deslocações que, comprovadamente, terá tido que efectuar para efeitos de recebimento de assistência médica e submissão a exame pericial. Tivesse a Assistente/demandante logrado ser menos parcial, senão mesmo realista, nesta matéria, possivelmente a tarefa que se impunha ao Tribunal não teria sido inglória – como foi – na determinação dos efectivos danos patrimoniais sofridos por aquela em decorrência das condutas do Arguido.

Quanto aos danos não patrimoniais que o tribunal inscreveu na rubrica “Factos não provados”, alguns decorrem da não prova dos factos que objectivamente vinham imputados ao Arguido, outros resultam da mesmíssima dificuldade sentida por este Tribunal de destrinçar quais deles seriam imputáveis ao Arguido, posto o que, na versão da Assistente/Demandante, todos o seriam – o que, inquestionavelmente, assim não é – sendo certo que a prova testemunhal produzida nenhuma luz trouxe à matéria em questão».


*

DECISÃO

Atento o disposto no art. 412º, nº 1, in fine, do C.P.P., as questões a decidir respeitam à impugnação da decisão sobre a matéria de facto, à existência dos vícios da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada e do erro notório na apreciação da prova e consequente repercussão na decisão absolutória proferida, às penas aplicadas e valores indemnizatórios atribuídos


*

            Nos termos do art. 412º, nº 3 e 4, do C.P.P., quando impugne a decisão proferida sobre matéria de facto o recorrente deve especificar, para além do mais, as concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida, sendo que relativamente às provas gravadas as especificações fazem-se por referência ao consignado na acta, nos termos do disposto no nº 3 do art. 364º, «devendo o recorrente indicar concretamente as passagens em que se funda a impugnação».

Portanto, quando o recorrente pretenda ver alterada a matéria de facto por via do mecanismo previsto no art. 412º, nº 3 e 4, do C.P.P., tem, para além de concretizar os factos que padecerão de erro de julgamento, que concretizar as provas que impõem decisão diversa da recorrida e tem, depois, que localizar com exactidão no respectivo suporte o excerto relevante da prova gravada de que se socorreu para demonstrar o erro da decisão.

            Sobre a norma da al. b) do nº 3 pelo acórdão 3/2012 o S.T.J. fixou jurisprudência  no sentido de que quando no recurso se impugne a decisão sobre a matéria de facto com reapreciação da prova gravada basta «a referência às concretas passagens/excertos das declarações que, no entendimento do recorrente, imponham decisão diversa da assumida, desde que transcritas, na ausência de consignação na acta do início e termo das declarações».

            Sendo certo que esta jurisprudência tornou menos rígida a norma, a verdade é que continua a impor ao recorrente o cumprimento de mínimos relativamente à referência à prova oral a conhecer com vista à sindicância da conformidade entre a decisão e a prova invocada.

            Ora, a arguida não cumpre as regras no que toca à especificação das provas, pois avança para a alteração da decisão sem curar de demonstrar que as provas assim o determinam.

            Portanto, não se conhece deste segmento do recurso.


*

A alteração da decisão sobre a matéria de facto pode derivar, ainda, da verificação de algum dos vícios descritos no nº 2 do art. 410º do C.P.P.

Nos termos desta norma pode sempre conhecer-se dos vícios da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, da contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão e do erro notório na apreciação da prova, isto desde que resultem do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum.

O conhecimento dos vícios enumerados no art. 410º nº2 do C.P.P. é próprio do modelo de revista alargada adoptado pelo nosso código de processo.

Na medida em que estes vícios têm que resultar do texto da decisão, significa que lhe são intrínsecos, que são vícios da sentença e não erros de julgamento. Daí que a sua constatação tenha que resultar da sua leitura, sem recurso a quaisquer outros elementos que lhe sejam exteriores, mesmo se constantes do processo, com excepção das regras da experiência.

O vício de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada significa que os factos apurados são insuficientes para a decisão de direito, do ponto de vista das várias soluções que se perfilem e o víciodo erro notório na apreciação da prova acontece quando existam e se revelem distorções de ordem lógica entre os factos provados e não provados, quando ocorre uma apreciação manifestamente ilógica, arbitrária, insustentável, e portanto incorrecta.

Ora, do texto da decisão nenhum destes vícios emerge.

Assim, mantém-se o decidido no que aos factos provados e não provados respeita.


*

            Agora, quanto à impugnação do enquadramento legal dos factos, a assistente requereu a condenação do arguido por todos os crimes acusados na base da alteração da decisão de facto.

            Não tendo esta alteração ocorrido soçobra, também, o pedido de revisão do enquadramento legal feito, porque a procedência desta pretensão dependia de serem julgados provados factos que não estão provados.


*

            A assistente impugnou as penas aplicadas alegando, em síntese, que pendem contra o arguido outros processos crime, pelo que a inexistência de antecedentes criminais, referida na sentença, é irrelevante, que os factos que integram um destes processos foram cometidos quando ele estava sujeito a medidas de coacção e que o arguido nunca mostrou arrependimento pelo que fez.

A legitimidade do assistente de recorrer da pena foi objecto de controvérsia jurisprudencial, que deu lugar às três tradicionais soluções conhecidas:

- uma, para a qual o assistente nunca tinha legitimidade para recorrer da pena;

- outra, que lhe conferia sempre essa legitimidade;

- uma terceira que entendia que a solução era casuística, dependendo de a posição do assistente ser afectada pela natureza da condenação ou pela espécie da pena aplicada.

            Esta terceira posição obteve vencimento quando o S.T.J. fixou a seguinte jurisprudência no assento 8/99: «o assistente não tem legitimidade para recorrer, desacompanhado do Ministério Público, relativamente à espécie e medida da pena, salvo quando demonstrar um concreto e próprio interesse em agir».

Sendo certo que se entendia e continua a entender que as questões atinentes à medida da pena fazem parte do núcleo punitivo do Estado, cuja defesa cabe ao Ministério Público, entendeu-se que naquelas situações o assistente teria legitimidade para recorrer desacompanhado do Ministério Público. Daí a decisão.

            Entretanto foi questionada a constitucionalidade deste acórdão por, relativamente à espécie e medida da pena aplicada ao arguido, fazer depender a atribuição de legitimidade ao assistente para recorrer de uma específica e concreta demonstração de um particular interesse em agir, não reconduzida à pura e simples invocação da qualidade de assistente no processo. Sobre isto o Tribunal Constitucional decidiu, no acórdão 205/2001, pela sua constitucionalidade por os princípios consagrados nos artigos 2º e 9º, alínea b) e c) da Constituição não terem sido afrontados, dado que a limitação imposta ao assistente não afectava o núcleo essencial da intervenção do ofendido como assistente na tramitação do processo penal e porque o princípio da confiança, ínsito no do Estado de direito democrático, não tinha sido afectado.

            Portanto o assistente tem legitimidade para recorrer, desacompanhado do Ministério Público, da espécie e medida da pena quando demonstrar um concreto e próprio interesse em agir, que não se pode reconduzir à pura e simples invocação da qualidade de assistente. É que se a qualidade de assistente bastasse para conferir uma tal legitimidade não teria sentido exigir a demonstração de um concreto e próprio interesse, uma vez que a qualidade de assistente estaria demonstrada à partida.

Citando o texto do assento «Este interesse em agir tem de ser concreto e do próprio, pelo que é insuficiente se o tribunal, concluindo que se não está face a um mero desejo de vindicta privada, nada mais encontrar; como insuficiente é para por aquele se concluir se o MP, nas suas alegações escritas, emitir parecer no sentido de o tribunal a quo ter usado de uma benevolência que se não justifica na determinação da medida concreta da pena (havia de ter recorrido e no recurso ter pedido a agravação; a reformatio in pejus é proibida – artigo 409 CPP).

 …

Diversamente, se o assistente não demonstrar um real e verdadeiro interesse, um seu pedido de agravação da pena (em termos de espécie ou de medida) tem um cunho, ou, pelo menos, aparenta tê-lo, de regresso à vindicta privada … ainda quando elas admitem a acção directa ou a legítima defesa nunca se as quis como e enquanto sinal de vindicta, mas enquanto acção de justiça dentro de um apertado e rigoroso condicionalismo que concretamente se previu e o qual o agente não deve voluntariamente provocar. Nestes casos, aparece com uma nitidez, bem demarcada, a ideia — exacta — de que o domínio da acção penal cabe ao MP».

            O acórdão remete para o outro pressuposto de que depende a possibilidade de recurso – pressuposto já não restrito ao assistente, mas alargado a todos os intervenientes -, constante do nº 2 do art. 401º, que diz que «não pode recorrer quem não tiver interesse em agir».

            Sobre o interesse em agir diz-se no acórdão do S.T.J. de 18-1-2012, proferido no processo S.T.J. 1740/10.1JAPRT, que «o interesse em agir do assistente, como pressuposto do recurso, significa a necessidade que tenha de usar este meio para reagir contra uma decisão que comporte uma desvantagem para os interesses que defende, ou que frustre uma sua expectativa ou interesse legítimos, que significa que só pode recorrer de uma decisão que determine uma desvantagem … Na interpretação do sentido da jurisprudência fixada, o assistente não fica impedido de recorrer, desacompanhado do MP, no que respeite à espécie e medida concreta da pena; impõe-se-lhe, no entanto, a obrigação ou o ónus processual de demonstrar um concreto e próprio interesse em agir».

            Diz-se numa outra decisão daquele tribunal, de 7-9-2011, que «o interesse em agir, pressuposto ou condição do recurso, também conhecido por legitimidade objectiva ou interesse processual (locus standi), consiste na necessidade de que a decisão recorrida seja alterada para que a pretensão do assistente seja satisfeita, para que o direito que aquele exerce em juízo seja tutelado, obtenha vencimento ou ganho de causa, necessidade que se terá de traduzir na existência de um interesse material, juridicamente protegido, cuja não satisfação causa prejuízo ou desvantagem, constituindo o recurso o meio adequado para a sua obtenção».

            Mais incisivas foram as palavras usadas no acórdão do S.T.J. de 1-3-2006, processo 113/06, onde se diz que o interesse em agir referido no acórdão de fixação de jurisprudência «tem de ser concreto e próprio», isto para que não possa haver dúvida que o assistente interpôs recurso para defender um tal interesse e não enquanto corporização do espírito de “vindicta” privada, porque em tal caso o recurso não será admissível.

            Aqui, no caso de recurso contra a pena, já não relevam considerações gerais de, digamos, uma melhor justiça. O recurso tem radicar na defesa de interesses próprios do assistente para ser admitido, isto porque a tese que domina, e que temos por correcta, é que o assistente não tem um direito pessoal a uma concreta punição. A pena é dominada pelo interesse público da correcta sanção correspondente ao crime e à culpa, razão pela qual ele não poderá, digamos, imiscuir-se nessa discussão salvo quando demonstrar um concreto e próprio interesse em agir.

            Por exemplo, na decisão agora citada o tribunal decidiu pela legitimidade dos assistentes em recorrer com os seguintes argumentos:

«No caso dos autos, não pode deixar de se considerar que a não condenação do arguido [o tribunal “a quo” decidiu julgar verificados os elementos típicos, de carácter objectivo, de um crime de homicídio qualificado, p. e p. pelos arts. 131.º e 132.º, n.º 1, do CP, e de um crime de detenção ilegal de arma, p. e p. pelo art. 6.º, n.º 1, da Lei 22/97, de 27-06, que os respectivos factos haviam sido praticados pelo arguido, declará-lo inimputável relativamente a tal conduta, e determinar o seu internamento em estabelecimento psiquiátrico adequado ao tratamento, por período não inferior a 3 anos, decisão de algum modo equivalente a uma absolvição] foi proferida contra os assistentes, avós maternos dos ofendidos, dois menores filhos da vítima e do arguido, que se haviam conformado com a acusação deduzida pelo MP e ficaram vencidos face ao afastamento da culpa do arguido.

Por outro lado, actuando os assistentes em representação dos filhos menores do arguido e da vítima, sua mulher, não pode deixar de se considerar que têm interesse em agir, na medida em que da condenação do arguido podem resultar efeitos a nível sucessório - o arguido poderá ser privado da sua capacidade sucessória (art. 2034.º, al. a), do CC) - e a nível de direito de família - a condenação do arguido poderá eventualmente relevar para efeitos de inibição ou limitação do exercício do poder paternal (art. 1915.º do CC)».

            No acórdão de 13-7-2006, processo 06P2172, o S.T.J. decidiu que o assistente não tinha interesse em agir no recurso em que pedia o agravamento da pena e a não suspensão da execução da mesma, uma vez que aceitou o processo como estava e limitou-se a deduzir pedido de indemnização. Acrescentou que «outra seria a solução se o assistente tivesse pedido, por exemplo, que a suspensão da pena ficasse condicionada ao pagamento aos lesados de uma certa compensação económica, por conta da indemnização, pois aí manifestava um concreto e próprio interesse em agir».

Do mesmo modo decidiu o S.T.J. no processo em 7-5-2009, processo 579/09, que em caso de recurso do assistente, desacompanhado do Ministério Público, dirigido à pena o relevante era não o discriminar os casos em que ele teria interesse em agir processualmente atendível, mas sim excluir da possibilidade de recurso as «situações em que o assistente se confina ao interesse geral da justiça da punição do delinquente, porque esse é um interesse colectivo, e não pessoal, seu. Assistente que nestes autos, sublinhe-se, nem sequer foi vítima do crime» (saliente-se que neste acórdão constam duas posições que defendem a legitimidade do assistente de recorrer da qualificação jurídica do crime).

Finalmente temos o acórdão de 22-1-2015, proferido no processo 520/13.7PHLSB, que decidiu, aderindo à tese de Cláudia Santos, in RPCC, 2008, nº 1, que «“o assistente tem um interesse próprio e concreto na resposta punitiva que é paralelo ao interesse comunitário na realização da justiça”».

Desenvolvendo esta tese decidiu este acórdão que se é verdade que existe um interesse colectivo na resposta ao crime «há, por outro lado, um interesse concreto do assistente em uma resposta punitiva que entenda como justa tendo em conta os bens jurídicos que foram ofendidos. Na verdade, “enquanto assistente, ele tem o poder de procurar conformar a resposta à questão penal, que engloba quer a questão da culpa, quer a questão da pena. Logo, se através da operação de determinação da medida da pena em sentido amplo o tribunal chegar a uma decisão contrária à pretensão manifestada pelo assistente no processo e que ofenda o seu concreto interesse na justeza da punição (...), dessa decisão deverá o assistente ter a faculdade de recorrer de forma autónoma” (Cláudia Santos, ob. cit., p. 165)».

E por isso considerou existir legitimidade e interesse em agir do assistente no recurso da pena «sempre que a decisão seja contra “pretensões fundadamente manifestadas pelo assistente durante o processo e quando essa resposta [ofenda] de forma não insignificante o seu interesse na determinação de uma sanção para o agente que considere justa” (idem)». Fazendo apelo a essas posições o assistente demonstrará que tem um interesse concreto e próprio em agir.

Em reforço da sua posição refere o decidido pelo Tribunal Constitucional no acórdão 205/01, que afirmou que            a exigência imposta pelo assento 8/99 «apenas veio cominar “um específico ónus de demonstração de um particular interesse” – “desde que mostre que da concreta escolha da medida da pena aplicada ao arguido lhe decorre específica e concreta lesão de interesses pessoais relevantes”».

E conclui, a propósito da admissibilidade do recurso do assistente desacompanhado do Ministério Público dirigido à pena, que ele «deve apresentar elementos que permitam concluir que aquela pena em que o arguido foi condenado lesa de forma não insignificante o seu interesse na atribuição de uma pena justa ao agente».

E descendo ao caso concreto decidiu que ali esse interesse estava amplamente demonstrado porque:

- o assistente tinha aderido à acusação do Ministério Público, assim demonstrando claramente o seu interesse na condenação e punição do arguido;

- interveio, através de mandatário, na audiência de discussão e julgamento;

- posteriormente, quando se questionou a sua legitimidade para interpor recurso da pena, «veio invocar que sendo a vítima do crime e tendo sofrido com a sua prática, entende a pena como “diminuta, uma vez que, saindo o arguido em liberdade, fica posta em causa a segurança da ofendida, nomeadamente a sua própria vida”, receando que “o arguido volte a atentar contra a sua vida”; e neste ponto não podemos ignorar que quando o arguido se encontrava em prisão preventiva, e porque diariamente realizava telefonemas a perturbar a assistente, esta requereu que fosse aplicada, para além daquela medida de coação, a medida de proibição de contactos, o que veio a acontecer …»,

concluindo que com tais argumentos, nomeadamente saber se a pena será o meio adequado para lhe dar segurança, «a assistente demonstrou um interesse próprio e concreto para interpor o recurso. Além de que expôs os motivos para considerar que a pena que foi atribuída é injusta: entende que, tendo em conta o “elevadíssimo grau da ilicitude dos factos”, “a perversidade demonstrada”, o “elevadíssimo grau de culpa”, a atuação do Arguido mostrando uma “olímpica indiferença perante a vida de terceiro”, as “elevadíssimas” exigências de prevenção geral”, um “juízo de prognose quanto ao comportamento futuro (...) sombrio”, o “perigo [que o arguido] constitui para a sociedade”, a pena se mostra “desajustada à gravidade dos factos e à personalidade do arguido”. Ou seja, não vê na pena a resposta adequada à ofensa de que foi vítima, assim demonstrando um interesse próprio e concreto na interposição do recurso».

            No caso dos autos a assistente, na fundamentação do pedido de alteração das penas, alegou que os critérios gerais de fixação da pena foram violados e que existem factos concretos que determinam a sua agravação.

            Pegando nesta alegação, a defesa do cumprimento dos critérios gerais de escolha e fixação da pena cabe em exclusivo ao Ministério Público cabendo-lhe a ele, portanto, reagir à sua violação.

            Relativamente aos factos invocados pela assistente para demonstrar a desproporcionalidade das penas aplicadas, que poderiam já configurar o tal interesse próprio e concreto, a verdade é tais factos não estão provados, não são atendíveis sequer, e, portanto, não podem ser considerados.

            Pelo exposto, rejeita-se o recurso nesta parte.


*

            Finalmente, e quanto ao recurso da indemnização, a assistente alegou que dos factos que constam dos pontos 25 a 27 da matéria provada, da prova documental junta aos autos e das declarações que prestou resulta que os valores atribuídos são manifestamente insuficientes, pois há prova que despendeu quantia não inferior a 800 € com as deslocações e tratamentos médicos e medicamentosos, sendo que os 500 € atribuídos pelos danos morais é manifestamente injusta.

            Dos pontos 25 a 27 dos factos provados consta que em consequência das condutas descritas em 1 a 3 e 7 a 9 – em 8-8-2012, no interior do estabelecimento comercial de dança, o arguido puxou a cadeira onde a assistente estava sentada e ela caiu, depois agarrou-a pelos braços e puxou-lhe a roupa na zona do peito e mais tarde, já junto à residência dela, o arguido abordou a assistente, deu-lhe um empurrão e ela caiu; em 23-9-2013 arguido e assistente encontraram-se, passaram a circular numa só viatura, indo a assistente no lugar do passageiro, a certa altura esta agarrou no volante tentando direccioná-lo e acto contínuo o arguido empurrou-a com a mão contra a janela, fazendo-a embater ali com a cabeça e com as costas -, a assistente sentiu dores, sentiu-se vexada com o que aconteceu no estabelecimento e despendeu quantia não inferior a 100 € nas deslocações que fez para receber tratamentos e realizar exames de avaliação de dano corporal.

            Relativamente aos danos patrimoniais, consta que a assistente despendeu quantia não inferior a 100 € nas deslocações que teve que realizar em consequência da actuação do arguido.

            Como interpretar estas palavras?

            Claro que a interpretação possível é só uma, que é que se provou que a assistente despendeu 100 € nessas deslocações.

É certo que a formulação da resposta pode indiciar que despendeu mais, mas este mais, porque totalmente desconhecido, não pode ser considerado.

            Quanto aos danos não patrimoniais, a sentença recorrida fixou-os em 500 €.

Os danos não patrimoniais são aqueles que são insusceptíveis de expressão pecuniária, como sejam as dores físicas e morais sofridas.

Por isso a sua quantificação faz-se com recurso à equidade.

A fixação da indemnização de acordo com a equidade significa que o seu valor é determinado considerando a culpa do agente, a sua situação económica e a situação económica do lesado, as especiais circunstâncias do caso, a gravidade do dano, etc., ou seja, todas as regras de boa prudência, de bom senso prático, de justa medida das coisas, de criteriosa ponderação das realidades da vida: a indemnização deve ser proporcional à gravidade do dano, a avaliar objectivamente, e ser fixada de acordo com critérios de boa prudência e ponderação das realidades da vida.

E não podia deixar de ser assim porque a indemnização por danos não patrimoniais não visa pagar, nem apagar, os danos provocados pelo facto, porque sobre eles não podem incidir regras de cálculo. O que aqui se pretende é atenuar, minorar e de certo modo compensar os danos sofridos pelo lesado, atribuindo-lhe uma soma em dinheiro que lhe permita um acréscimo de bem-estar que sirva de contraponto ao sofrimento moral provocado pela lesão, na medida em que lhe pode proporcionar alegrias que compensem a dor, tristeza ou sofrimento ocasionado pelo facto danoso.

Sendo essa a função a indemnização pelo dano não patrimonial, não pode ela ser meramente simbólica, a menos que seja isso que se pretenda.

Para o ressarcimento destes danos a lei, conforme resulta do art. 496º do Código Civil, confia ao julgador a tarefa de determinar o que é equitativo e justo em cada caso, e nesta apreciação releva não o rigor contabilístico da adição de custos, despesas, ou de ganhos mas sim o desiderato de, prudentemente, dar alguma correspondência compensatória ou satisfatória entre uma maior ou menor quantia de dinheiro a arbitrar à vítima e a importância dos valores de natureza não patrimonial em que ela se viu afectada.

Por tudo quanto dissemos é entendimento mais ou menos uniforme que as decisões em cujo julgamento intervém a equidade são passíveis de alteração nas hipóteses em que o tribunal recorrido afronte, manifestamente, as regras da boa prudência, de bom sendo prático, de justa medida das coisas e de criteriosa ponderação das realidades da vida [1].

No caso, considerando os factos temos que o valor atribuído não afronta as tais regras da boa prudência.


*

DISPOSITIVO

Pelos fundamentos expostos, julga-se improcedente o recurso.

Fixa-se em 4 UCs a taxa de justiça.

Elaborado em computador e revisto pela relatora, 1ª signatária – art. 94º, nº 2, do C.P.P.

Coimbra, 2017-05-17

(Olga Maurício – relatora)

(Luís Teixeira – adjunto)


[1] Vide, entre outros, os acórdãos do S.T.J. de 17-6-2004 e 29-11-2001, processos 2364/04-5 e 3434/01-5, citados no acórdão deste mesmo tribunal de 13-7-2006, processo 06P2046.