Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
27/10.4TBPNL-O.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ISABEL SILVA
Descritores: RESOLUÇÃO
CONTRATO
BENEFÍCIO DA MASSA INSOLVENTE
CADUCIDADE DO DIREITO
Data do Acordão: 06/16/2015
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DE COIMBRA – COIMBRA – SEC. DE COMÉRCIO
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: DECRETADA NULA
Legislação Nacional: ARTº 123º, NºS 1 E 2 DO CIRE.
Sumário: I – Se a Autora invoca a caducidade do direito de resolução dum contrato em benefício da Massa Insolvente ao abrigo do nº 1 do art. 123º do CIRE, e a Massa Insolvente contrapõe com a possibilidade de resolução a todo o tempo por via de exceção (nº 2 do art. 123º CIRE), esta invocação integra uma nova questão a resolver no âmbito da questão da caducidade.

II - Sendo a sentença completamente omissa quanto a essa nova questão, há que decretar a sua nulidade, por omissão de pronúncia [art. 615º nº 1 al. d) do CPC].

Decisão Texto Integral:

ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE COIMBRA

I - HISTÓRICO DO PROCESSO

                1.            Construções P..., L.da (de futuro, apenas Autora) instaurou ação de impugnação da resolução do contrato em benefício da Massa Insolvente de Construções M..., L.da (de futuro, apenas Massa Insolvente), pedindo se declare a ilegalidade da resolução em benefício da Massa Insolvente do acordo de cessão de créditos celebrado entre ela e a Autora em 20.10.2008.

                Alicerçou o seu pedido invocando a caducidade do direito de resolver o contrato e a ausência de pressupostos da resolução.

                A Massa Insolvente deduziu oposição, considerando não se verificar a caducidade e impugnando a matéria dos pressupostos para a resolução.

                Seguidamente, proferiu-se sentença em que, julgando procedente a exceção de caducidade do direito de resolução, se declarou sem efeito a resolução operada pela administradora da insolvência, em 26.06.2013, da cessão de créditos celebrada entre a Massa Insolvente e a Autora.

2.            Inconformada, vem a Massa Insolvente apelar da sentença, formulando as seguintes conclusões:

...

3.            A Autora não contra-alegou.

A M.mª Juíza respondeu à nulidade da sentença por omissão de pronúncia, considerando que a mesma se não verificava.

Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.

II - FUNDAMENTAÇÃO

4.            OS FACTOS

Foram os seguintes os factos considerados em 1ª instância:

«1º Por sentença proferida em 8 de abril de 2008, transitada em julgado em 19 de maio de 2008, no âmbito do processo nº ..., do Tribunal Judicial de Penela, a insolvente foi condenada a pagar à aqui autora a quantia de €108.382,18, acrescida de juros de mora, calculados à taxa de 11,20% desde 29 de janeiro de 2008 até efetivo e integral pagamento;

2º Em 20 de outubro de 2008, insolvente e aqui autora subscreveram o documento intitulado de Cessão de Crédito junto de fls. 11 a 12 cujos dizeres dou por integralmente reproduzidos, do qual consta, designadamente:

...

3º Em 4 de março de 2010 foi requerida a declaração de insolvência de Construções M..., Lda;

4º Em 15 de junho de 2011 foi declarada a insolvência de Construções M..., Lda.;

5º Em 28 de novembro de 2011 a administradora da insolvência nomeada nos presentes autos de insolvência elaborou o parecer sobre a qualificação da insolvência junto de fls. 2 a 12, do Apenso D, cujos dizeres dou por integralmente reproduzidos, no qual alude à celebração do acordo referido em 2º;

6º Em 10 de junho de 2013 deu entrada no Tribunal Judicial de Penela a notificação judicial avulsa junta de fls. 22 verso a 27 cujos dizeres dou por integralmente reproduzidos;

7º Na notificação judicial avulsa referida em 6º a administradora da insolvência nomeada nos presentes autos de insolvência pede a notificação da aqui autora da resolução em benefício da massa insolvente do negócio referido em 2º;

8º A aqui autora foi notificada do teor da notificação judicial avulsa referida em 6º em 26 de junho de 2013.»

                5.            O MÉRITO DO RECURSO

O objeto do recurso é delimitado pelas questões suscitadas nas conclusões dos recorrentes, e apenas destas, sem prejuízo de a lei impor ou permitir o conhecimento oficioso de outras: art. 608º nº 2, ex vi do art. 663º nº 2, do Código de Processo Civil (de futuro, apenas CPC).

No caso, são as seguintes as questões a decidir:
· Se ocorre nulidade da sentença por omissão de pronúncia
· Se o prazo referido no art. 123º do CIRE é um prazo de prescrição ou de caducidade
· Entendendo-se ser um prazo de prescrição, se a mesma já ocorreu, tendo em conta os factos interruptivos

5.1.         OMISSÃO DE PRONÚNCIA

De acordo com o art. 608º n.º 2 do CPC, o juiz deve resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, excetuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras; (...).

                A inobservância de tal comando é, como se sabe, sancionada com a nulidade da sentença: art. 615º n.º 1 al. d) CPC.

Vejamos o caso em concreto.

Em 26.06.2013, a Sr.ª administradora da insolvência procedeu à resolução em benefício da Massa Insolvente de um contrato de cessão de créditos que a Insolvente havia outorgado com a Autora.

Inconformada, a Autora pretendeu que se declarasse a ilegalidade dessa resolução e apresentou dois fundamentos para tal pedido: por um lado, a caducidade do direito de resolução e, por outro, a ausência de pressupostos para a resolução, mais concretamente não se verificar prejudicialidade para a Massa e inexistir má fé do contratante.

As questões suscitadas pela Autora foram, pois, (i) a caducidade e (ii) a não verificação dos pressupostos da resolução.

A M.mª Juíza começou por decidir a questão da caducidade.

E, à partida, bem andou, dado que, a proceder essa questão, tornava-se inútil o apuramento da verificação dos pressupostos da resolução (art. 608º nº 2 do CPC).

Contudo, há que entrar em linha de conta com a posição da contraparte.

Ter-se-á ela limitado a impugnar os factos atinentes à caducidade do direito? Ou suscitou alguma outra questão?

Em contestação, a Massa Insolvente, para além de considerar não se verificar a caducidade, invocou que a lei prescreve a existência de dois prazos de caducidade, conforme o negócio esteja ou não cumprido, sendo que, em seu entendimento o negócio em causa não estava ainda cumprido e, nesse caso, a resolução podia operar a todo o tempo.

Considerou, portanto, ser aplicável ao caso o prazo consignado no nº 2 do art. 123º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas (de futuro, apenas CIRE).

Sucede que a Autora, ao invocar a caducidade, alegou apenas que há muito se mostravam ultrapassados os 6 meses e os 2 anos prescritos no art. 123º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas (de futuro, apenas CIRE).

Ou seja, estribou-se no nº 1 do preceito.

Efetivamente, o art. 123º do CIRE prescreve duas situações:

1 - A resolução pode ser efetuada pelo administrador da insolvência por carta registada com aviso de receção nos seis meses seguintes ao conhecimento do ato, mas nunca depois de decorridos dois anos sobre a data da declaração de insolvência.

2 - Enquanto, porém, o negócio não estiver cumprido, pode a resolução ser declarada, sem dependência de prazo, por via de exceção.

Ora, resulta da leitura da sentença que a M.mª Juíza apenas tomou em conta os prazos do nº 1 do art. 123º, sendo totalmente omissa quanto ao tratamento da possibilidade de no caso se tratar do prazo consignado no nº 2.

                Com pertinência para a, agora, invocada omissão de pronúncia, impõe-se então decidir se a invocação da possibilidade de resolução do contrato por via de exceção (nº 2 do art. 123º do CIRE) constitui uma questão ou se integra antes um argumento da Massa Insolvente para demonstrar a inoperância da caducidade.

O exato conteúdo do que sejam as questões a resolver de que falam tais normativos foi objeto de abundante tratamento doutrinal e jurisprudencial, havendo um consenso no sentido de que não se devem confundir as questões a resolver propriamente ditas com as razões ou argumentos, de facto ou de direito, invocadas pelas partes, para sustentar a solução que defendem a propósito de cada questão a resolver.

                Assim, a nulidade não se verifica quando o juiz deixe de apreciar algum ou todos os argumentos invocados, conhecendo contudo da questão.

                Utilizando a clareza de exposição de Rodrigues Bastos: «As partes, quando se apresentam a demandar ou a contradizer, invocam direitos ou reclamam a verificação de certos deveres jurídicos, uns e outros com influência na decisão do litígio; isto quer dizer que a «questão» da procedência ou improcedência do pedido não é geralmente uma questão singular, no sentido de que possa ser decidida pela formulação de um único juízo, estando normalmente condicionada à apreciação e julgamento de outras situações jurídicas, de cuja decisão resultará o reconhecimento do mérito ou do demérito da causa. Se se exige, por exemplo, o cumprimento de uma obrigação, e o devedor invoca a nulidade do título, ou a prescrição da dívida, ou o pagamento, qualquer destas questões tem necessariamente de ser apreciada e decidida porque a procedência do pedido dependa da solução que lhes for dada; mas já não terá o juiz de, em relação a cada uma delas, apreciar todos os argumentos ou razões aduzidas pelos litigantes, na defesa dos seus pontos de vista, embora seja conveniente que o faça, para que a sentença vença e convença as partes, como se dizia na antiga prática forense.». [[1]]

Já Alberto dos Reis, a propósito do critério de reconhecimento do que seja uma questão a resolver, pondera: «as questões suscitadas pelas partes só podem ser devidamente individualizadas quando se souber não só quem põe a questão (sujeitos), qual o objecto dela (pedido), mas também qual o fundamento ou razão do pedido apresentado (causa de pedir)». [[2]]

                «As “questões” a apreciar reportam-se aos assuntos juridicamente relevantes, pontos essenciais de facto ou direito em que as partes fundamentam as suas pretensões». [[3]]

                Olhando apenas ao articulado da Autora, a questão a decidir era apenas a da caducidade, à luz da contagem dos prazos consignados no nº 1 do art. 123º do CIRE.

                Mas a Massa Insolvente veio contrapor com a possibilidade da resolução do contrato se poder operar por via de exceção (nº 2 do art. 123º do CIRE) e que tal pode ser feito a todo o tempo.

                Na hipótese de se considerar que lhe assiste razão, tal significaria a improcedência da caducidade pois os prazos consignados no nº 1 do art. 123º do CIRE passariam a ser inócuos.

                Ou seja, com tal invocação, a Massa Insolvente alargou o âmbito da decisão sobre a caducidade pois introduziu um outro assunto juridicamente relevante: a possibilidade de inaplicabilidade dos prazos de caducidade invocados pela Autora.

                Para decidir a caducidade, tornou-se então necessário proceder previamente à análise da resolução do contrato por via de exceção, designadamente dos termos e condições em que ela pode ter lugar e se pode ser invocada nestes autos.

A posição que se tome perante esta possibilidade tem absoluta influência na decisão da caducidade: concluindo-se pela afirmativa, a caducidade improcede, enquanto que, pela negativa, a caducidade haverá de proceder.

                Não se tratou apenas de um argumento na defesa do seu ponto de vista, de que a caducidade se não verifica; deslocalizou-se o problema de uma previsão legal (nº 1 do art. 123º) para outra (nº 2 do art. 123º), sendo que esta comporta diferentes pressupostos jurídicos.

                Uma verdadeira questão a resolver, portanto.

                A omissão de conhecimento de tal questão importa a nulidade da decisão, nos termos do art. 615º nº 1 al. d) do CPC, não podendo este Tribunal da Relação substituir-se ao Tribunal de 1ª instância e conhecer da questão omitida, sob pena de violação do princípio do duplo grau de jurisdição.

                Face ao que acaba de se decidir, fica prejudicado o conhecimento das demais questões suscitadas no recurso.

                6.            SUMARIANDO (art. 663º nº 7 do CPC)
a) Se a Autora invoca a caducidade do direito de resolução dum contrato em benefício da Massa Insolvente ao abrigo do nº 1 do art. 123º do CIRE, e a Massa Insolvente contrapõe com a possibilidade de resolução a todo o tempo por via de exceção (nº 2 do art. 123º CIRE), esta invocação integra uma nova questão a resolver no âmbito da questão da caducidade.
b) Sendo a sentença completamente omissa quanto a essa nova questão, há que decretar a sua nulidade, por omissão de pronúncia [art. 615º nº 1 al. d) do CPC].

                III.           DECISÃO

7.            Pelo que fica exposto, acorda-se nesta secção cível da Relação de Coimbra em dar provimento ao recurso e, consequentemente, decretar a nulidade da sentença, por omissão de pronúncia, devendo os autos baixar à 1ª instância para conhecimento da questão omitida ou prosseguimento dos autos, se se entender não reunirem eles os elementos necessários para desde já se poder decidir.

Custas a cargo da Massa Insolvente.

                                                                                                              Coimbra, 16/06/2015


(Relatora, Isabel Silva)

(1ª Adjunto, Alexandre Reis)

(2º Adjunto, Jaime Ferreira)



***


[[1]] In “Notas ao Código de Processo Civil”, vol. III, Lisboa, 1972, pág. 228.
      [[2]] In “Código de Processo Civil Anotado”, vol. V, pág. 54.

      [[3]] In acórdão do STJ, de 16.04.2013 (processo 2449/08.1TBFAF.G1.S1), disponível em www.dgsi.pt/, sítio a atender nos demais arestos que vierem a ser citados sem outra menção de origem.