Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
178/10.5TBNZR.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: EMIDIO FRANCISCO SANTOS
Descritores: INSOLVÊNCIA
EXONERAÇÃO DO PASSIVO RESTANTE
RENDIMENTO DISPONÍVEL
CÁLCULO
Data do Acordão: 03/28/2017
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE LEIRIA - ALCOBAÇA - JUÍZO COMÉRCIO - JUIZ 1 -
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: N.º 3 COM A ALÍNEA B), I), DO ARTIGO 239.º, DO CIRE
Sumário: Quando o apuramento do rendimento disponível se fizer por força da combinação do corpo do n.º 3 com a alínea b), i), do artigo 239.º, do CIRE, o período de referência a ter em conta em tal apuramento é o de um mês.
Decisão Texto Integral:

Acórdão na 1.ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra

A... e mulher, B... , foram declarados insolventes por sentença proferida em 14 de Abril de 2010.

Não havendo motivo para indeferimento liminar, foi proferido em 17 de Setembro de 2010, despacho inicial de exoneração do passivo restante, determinando que, durante os cinco anos subsequentes ao encerramento do processo de insolvência (período da cessão), o rendimento disponível que os insolventes viessem a auferir se considerava cedido ao fiduciário. Em tal despacho foi ainda determinado que o rendimento disponível dos insolventes seria integrado por todos os rendimentos que àqueles adviessem a qualquer título, com exclusão do correspondente ao montante de dois salários mínimos nacionais (um salário mínimo para cada um dos insolventes).

Em 4 de Abril de 2014, foi declarado encerrado o processo de insolvência.

Em 11 de Julho de 2014, alterou-se o montante que se entendia razoavelmente necessário para o sustento minimamente digno dos devedores e do seu agregado familiar, que passou a ser de € 1 335,00, com a consequente exclusão deste montante do rendimento disponível.   

Em 2 de Novembro de 2015, na sequência do despacho proferido pela Meritíssima juíza do tribunal a quo a fls. 573 e 574 destes autos do recurso, onde se afirmou que os insolventes estavam a entregar ao fiduciário menos rendimento disponível do que estavam obrigados a entregar, os insolventes requereram que “o cálculo do rendimento mensal devia ser feito tendo os valores anuais no seu conjunto e não apenas um único mês”. Alegaram em abono da sua pretensão:
1. Que “independentemente da periodicidade da prestação de contas ao Sr. Fiduciário e até da entrega de valores por conta, o cálculo devia ser feito de forma anual, garantindo a equidade dos valores a entregar e do real rendimento disponível aos agregados familiares insolventes”;
2. Que a fórmula de cálculo deveria ser a seguinte: “sobre a soma dos rendimentos anuais a dividir pela soma do rendimento disponível mensal x 14 (ou 12, se assim se entender), garantindo um real rendimento disponível mensal e verdadeira equidade na sua distribuição.

O tribunal a quo indeferiu a pretensão dos requerentes. Invocando o disposto no artigo 239.º, n.º 3, e n.º 4, alínea c), do CIRE, afirmou o seguinte para justificar o indeferimento: “se os rendimentos são recebidos mensalmente, também a entrega tem de ser mensal, o que afasta qualquer espécie de cálculo anual para apuramento dos rendimentos objecto da cessão. A lógica é, então, muito simples: todos os rendimentos que advenham a qualquer título ao devedor, independentemente da sua proveniência ou designação, que excedam o judicialmente fixado como rendimento indisponível, devem ser objecto de cessão, e, quando recebidos pelos insolventes, por si imediatamente entregues ao fiduciário”.

Os insolventes não se conformaram a decisão e interpuseram o presente recurso de apelação, pedindo a revogação e a substituição da decisão recorrida por outra que declarasse nada terem eles, insolventes, a entregar ao fiduciário, por estarem a cumprir com as suas obrigações, nomeadamente as que resultam do artigo 239.º, n.º 4, alínea c), do CIRE.

Os fundamentos do recurso expostos nas conclusões foram os seguintes:
1. O montante atribuído à requerente como rendimento excluído da cessão é aquele que se mostrar razoavelmente necessário para a dignidade do devedor.
2. O cálculo dessa quantia tem em atenção as despesas e necessidades do agregado familiar e não é calculada independentemente por cada um, mas sim tendo em conta o rendimento global.
3. Não há razão para que seja considerado que os rendimentos têm de ser calculados mensalmente e não anualmente.
4. O valor atribuído ao agregado familiar foi-o, tendo em atenção o critério legal, que manda atender às necessidades da insolvente.
5. Não cabe entregar qualquer quantia ao fiduciário, pela insolvente, se, no cômputo dos rendimentos anuais, resultar que tal quantia é inferior mensalmente à quantia que lhe foi excluída da cessão.
6. Deve ser essa, portanto, a quantia excluída do rendimento a ceder aos credores, calculado desta forma.
7. O douto Tribunal a quo, denotando conhecimento da lei e das disposições legais aplicáveis, salvo melhor opinião, faz uma errada interpretação das mesmas, dado que, a quantia atribuída com excluída da cessão, se fosse calculada com base no rendimento de cada um e não nas necessidades do agregado familiar não seria adequada a preservar a dignidade e o sustento dos insolventes.
8. A decisão viola o disposto na subalínea i) da alínea b) [por lapso os recorrentes indicaram a alínea a)] do nº 3 do artigo 239º do CIRE.

Não houve resposta ao recurso.

Questão suscitada pelo recurso

A questão suscitada pelo recurso é a de saber se, ao indeferir o requerimento dos insolventes, a decisão recorrida violou a subalínea i), da alínea b), do n.º 3 do artigo 239º do CIRE.


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Na decisão do recurso, este tribunal irá considerar, como factos relevantes, o teor da decisão liminar sobre a exoneração do passivo restante e o teor da decisão proferida em 11 de Julho de 2014.

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Pelas razões a seguir expostas, o recurso é de julgar improcedente.

Ao alegar que a decisão recorrida violou a norma acima indicada, os recorrentes interpretam-na como se resultasse dela que o “cálculo do rendimento disponível devia ser feito tendo em conta os rendimentos anuais e não os rendimentos de um só mês”.

Esta interpretação não tem amparo nem na letra nem no espírito de tal norma. Vejamos.

O n.º 2 do artigo 239.º do CIRE estabelece que o despacho inicial determina que, durante os cinco anos subsequentes ao encerramento do processo de insolvência (período da cessão), o rendimento disponível que o devedor venha a auferir considera-se cedido ao fiduciário.

O n.º 3 do artigo 239.º do CIRE complementa a norma antecedente, traçando o perímetro do rendimento disponível.

Tal perímetro é o resultado da combinação do corpo do n.º 3 com as suas alíneas a) e b) e subalíneas i), ii), iii).

Para o caso interessa-nos o perímetro que resulta da combinação do corpo do n.º 3, com a alínea b), subalínea i), do citado preceito.

Desta combinação resulta o seguinte: dentro do perímetro do rendimento disponível cabem todos os rendimentos que advierem ao devedor, com exclusão “do que seja razoavelmente necessário para o sustento minimamente digno do devedor e do seu agregado familiar, não devendo exceder, salvo decisão fundamentada do juiz em contrário, três vezes o salário mínimo nacional”.

Vê-se, assim, que a norma da alínea b), subalínea i), concorre para a definição do rendimento disponível. E concorre pela “via da exclusão”, embora não seja uma norma de exclusão de rendimentos, no sentido de que afasta do rendimento disponível certa categoria de rendimentos do devedor [como sucede por exemplo com a norma de exclusão da alínea a), do n.º 3]. O que ela exclui do rendimento disponível – qualquer que seja a sua proveniência – é uma parcela dos rendimentos que advenham ao devedor.

E fá-lo por respeito à dignidade dos devedores, enquanto pessoas humanas [artigo 1.º da Constituição da República Portuguesa]. Socorrendo-nos das palavras de Luís A. Carvalho Fernandes João Labareda, Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado, Quid Juris, página 788, tal exclusão decorre “da chamada função interna do património, enquanto suporte de vida económica do seu titular”.

O contributo que tal norma dá para a definição do rendimento disponível não vai, no entanto, no sentido pretendido pelos recorrentes, ou seja, no sentido de que tal rendimento - que o n.º 2 do artigo 239.º do CIRE considera cedido ao fiduciário - é o que se apurar no fim de cada ano do período da cessão.

Vejamos.

Sobre a natureza da cessão prevista no n.º 2 do artigo 239.º, seguimos o entendimento de que se trata de uma cessão de bens futuros ao fiduciário, que tem a sua fonte na lei, embora concretizada por decisão judicial [Luís Carvalho Fernandes e João Labareda, na obra supra citada, página 789, Assunção Cristas, Exoneração do Passivo Restante, Themis, 2005, Edição Especial, páginas 176 e 177].

Segue-se daqui que todos os rendimentos que advierem ao insolvente consideram-se cedidos, no momento da sua aquisição, ao fiduciário, com excepção – além de outros sem relevância para o caso – da parcela dos que são necessários à satisfação da exigência prevista na alínea b), subalínea i), do n.º 3 do artigo 239.º do CIRE.

Deste modo, sempre que há entradas de rendimentos no património do devedor (periódicas, esporádicas ou ocasionais), coloca-se necessariamente a questão do apuramento do rendimento disponível a ceder ao fiduciário.

E a resposta a tal questão, quando o apuramento se fizer por força da combinação do corpo do n.º 3 com a alínea b), i), do artigo 239.º, não pode deixar de ter por referência o rendimento disponível de um determinado período. No caso, o período de referência é o de um mês.

Com efeito, apesar de a letra do artigo 239.º, n.º 3, alínea b), i), do CIRE, não dizer expressamente que, ao fixar o que seja razoavelmente necessário para assegurar o sustento minimamente digno do devedor e da sua família, o juiz tomará, por referência, o que é razoavelmente necessário no período de um mês, é o este o pensamento legislativo.

Daí que, embora nem o despacho inicial (que fixou, em dois salários mínimos nacionais, o montante que considerava razoavelmente necessário para o sustento minimamente digno dos devedores e do seu agregado familiar) nem o despacho posterior (que alterou tal montante para € 1 335,00), tenham afirmado expressamente que tais montantes eram mensais, é com este sentido que devem ser interpretadas tais decisões. De resto, assim as interpretaram os recorrentes e o fiduciário.

Cabe perguntar, no entanto, o que resulta de tais normas [as normas dos artigos 239.º, n.º 2, e 239.º, n.º 3, alínea b), i, ambos do CIRE], nos meses em que não advierem rendimentos ao devedor ou advierem rendimentos inferiores ao que foi considerado necessário para o sustento minimamente digno dele e da sua família?

A resposta é a seguinte:

Em primeiro lugar, em tais hipóteses, não há rendimento disponível, logo não há cessão de rendimentos.

Em segundo lugar, não nasce, a favor do devedor, o direito de compensar ou de deduzir, nos rendimentos futuros, a ausência de rendimentos ou rendimentos inferiores ao que foi estabelecido como o razoavelmente necessário para o sustento dele e da família.

Com efeito, só se compreenderia tal direito de compensação ou de dedução se se configurasse a subalínea i) da alínea b), do n.º 3 do artigo 239.º do CIRE como uma “garantia de rendimento” a favor do devedor ao longo do período da cessão. Sucede que não é este o sentido da garantia de tal norma. Ela não garante rendimentos ao devedor. O que ela garante é que uma parcela dos seus rendimentos, havendo-os, não será atingida pela cedência ao fiduciário. Garante-se uma “exclusão” se houver rendimentos.

Daí que não tenha amparo no artigo 239.º, n.º 2, e no artigo 239.º, n.º 3, alínea b), i), ambos do CIRE, a pretensão dos recorrentes no sentido de que o apuramento do seu rendimento disponível se faça no fim de cada ano do período de cessão e que tal rendimento seja constituído pela diferença entre os rendimentos totais obtidos em cada ano e o produto da soma, também em cada ano, do montante fixado pelo tribunal como sendo o razoavelmente necessário para o sustento minimamente digno dos devedores e da sua família.     

De resto, se a interpretação dos recorrentes fosse válida, então o apuramento do rendimento disponível não deveria ser feito sequer anualmente; deveria ser feito ao fim do período da cessão, o que não tem qualquer amparo na lei.

Contra a interpretação do n.º 2 do artigo 239.º, combinado com o n.º 3 alínea b), i), do artigo 239.º afirmada por este tribunal, não vale a circunstância de o n.º 2 do artigo 240.º do CIRE, conjugado o n.º 1, do artigo 61.º, impor ao fiduciário o dever de prestar anualmente informação a cada credor e ao juiz sobre a situação da exoneração do passivo restante nem a circunstância de, nos termos do n.º 1 do artigo 241.º do CIRE, ser dever do fiduciário afectar os montantes recebidos, no final de cada ano em que dure a cessão, ao pagamento das custas do processo de insolvência ainda em dívida (alínea a)), ao reembolso ao Cofre Geral dos Tribunais das remunerações e despesas do administrador da insolvência e do próprio fiduciário que por aquele tenham sido suportadas [alínea b)]; ao pagamento da sua própria remuneração já vencida e despesas efectuadas [alínea c)] e à distribuição do remanescente pelos credores da insolvência, nos termos prescritos para o pagamento aos credores no processo de insolvência.

É que as normas em questão dizem respeito exclusivamente ao estatuto e às funções do fiduciário, não dando resposta à questão suscitada pelos recorrentes.

Por todo o exposto, é de manter a decisão recorrida.

Decisão:

Julga-se improcedente o recurso e, em consequência, mantém-se a decisão recorrida.

Condenam-se os recorrentes nas custas do recurso (artigo 527.º, n.º 1 e 2, do CPC).

Relator:

Emidio Francisco Santos

Adjuntos:

1º - Catarina Gonçalves

2º - António Magalhães