Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
80/12.6GTCBR.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: JORGE FRANÇA
Descritores: CRIME NEGLIGENTE
UNIDADE DE INFRACÇÕES
PLURALIDADE DE INFRACÇÕES
CASSAÇÃO DA LICENÇA DE CONDUÇÃO
PERSONALIDADE DO AGENTE
Data do Acordão: 06/24/2015
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COIMBRA (INSTÂNCIA LOCAL CRIMINAL DE COIMBRA - J2)
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: CONFIRMADA, PARCIALMENTE
Legislação Nacional: N.º 1 DO ARTIGO 101.º DO CP
Sumário: I - Nos casos em que a conduta negligente do arguido atinge uma pluralidade de bens de natureza eminentemente pessoal (no caso, a vida de uma pessoa e a integridade física de outra), verificam-se tantos crimes quantos os resultados ocorridos.

II - A cassação da licença de condução, enquanto medida de segurança, exigirá, em primeira linha, a apreciação da personalidade do arguido, que se deverá revelar propensa à prática de factos da espécie dos previstos no n.º 1 do artigo 101.º do CP (e daí a perigosidade manifestada); numa segunda fase, através da análise do facto concreto, tipificado como crime, é mister concluir que o mesmo foi uma consequência daquela inclinação criminosa do agente, sendo, por isso, um índice dessa personalidade perigosa, dada a natureza do facto, sua gravidade ou reiteração.

Decisão Texto Integral:

ACORDAM NA SECÇÃO CRIMINAL DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE COIMBRA

Nos autos de processo comum (singular), que sob o nº 80/12.6GTCBR, correu termos pela Secção Criminal, J2, da Instância Local de Coimbra, da Comarca de Coimbra, foi o arguido A... , submetido a julgamento, acusado pela prática, como autor material e em concurso real, de um crime de homicídio por negligência grosseira, previsto e punido pelo art.º 137.º, n.º 2, do Código Penal, de um crime de ofensa à integridade física por negligência, previsto e punido pelo art.º 148.º, n.º 1 do Código Penal, de um crime de condução perigosa de veículo rodoviário, previsto e punido pelo art.º 291.º, n.º 1, als. a) e b), do Código Penal, das contra-ordenações, previstas e punidas pelos art.ºs 13.º, n.ºs 1 e 4, 24 n.ºs 1 e 2, e 81.º, do Cód. da Estrada, incorrendo na pena acessória de proibição de condução de veículos motorizados, prevista no art.º 69.º, n.º 1, al. a), do Código Penal, na sanção acessória de inibição de condução de veículos motorizados prevista nos art.ºs 138.º, 145.º, n.º 1, als. a) e e), 146.º, al. j), e 147.º, do Cód. da Estrada, e na pena acessória de cassação do título de condução, nos termos do art.º 101.º, n.º 1, al. a), do Código Penal

            Efectuado o julgamento, viria a ser proferida sentença condenando o arguido nos seguintes termos (transcrição parcial):

Pelo exposto, julgo parcialmente procedente a acusação e, consequentemente:

1. Absolvo o arguido, A... , solteiro, escriturário e estudante de gestão de empresas, filho de (...) e de (...) , nascido em 09/03/1987, natural da freguesia de (...) , município do Porto, residente na Rua (...) , Esposende, da prática, como autor material, do crime de condução perigosa de veículo rodoviário, previsto e punido pelo art.º 291.º, n.º 1, als. a) e b), do Código Penal, e das contra-ordenações, previstas e punidas pelos art.ºs 13.º, n.ºs 1 e 4, 24 n.ºs 1 e 2, e 81.º, do Cód. da Estrada, de que se encontrava acusado.

2. Absolvo a demandada, Companhia de Seguros B... , S.A., do pedido de indemnização civil contra si deduzido pelo Centro Hospitalar e Universitário de C... , EPE.

3. Condeno o arguido, A... , pela prática, como autor material e em concurso efectivo, de um crime de homicídio por negligência grosseira, previsto e punido pelas disposições conjugadas dos art.ºs 137.º, n.ºs 1 e 2, e 15.º, al. a), do Cód. Penal, e de um crime de ofensa à integridade física por negligência, previsto e punido pelo art.º 148.º, n.º 1 do Código Penal, respectivamente, nas penas de 2 (dois) anos e 6 (seis) meses de prisão e de 6 (seis) meses de prisão. Operando o cúmulo jurídico dessas penas parcelares, cuja soma material corresponde a 3 (três) anos de prisão, e considerando conjuntamente os factos provados e o que se apurou acerca da personalidade do arguido, nos termos do art.º 77.º, n.ºs 1 e 2, do Cód. Penal, condeno o arguido na pena única de 2 (dois) anos e 10 (dez) meses de prisão.

4. Vistas as circunstâncias acima mencionadas e relativas ao arguido, nos termos dos art.ºs 50.º, n.ºs 1 e 5, do Cód. Penal, o Tribunal suspende a execução da pena de prisão aplicada pelo período de 2 (dois) anos e 10 (dez) meses.

5. Mais condeno o arguido na pena acessória de cassação do seu título de condução de veículo com motor, pelo período de 2 (dois) anos e 6 (seis) meses, nos termos do disposto nos art.ºs 100.º, n.º 2, 101.º, n.ºs 1, al. b), 2, al. b), 3 e 5, do Cód. Penal, e, consequentemente, determino que ao arguido, durante este período, não possa ser concedido novo título de condução de veículos com motor, de qualquer categoria.

O arguido deverá, no prazo de 10 (dez) dias após o trânsito em julgado da sentença, proceder à entrega da sua carta/licença de condução (qualquer título de condução que o habilite à condução) na secretaria deste Tribunal ou em qualquer posto policial, sob pena de, não o fazendo, incorrer na prática de um crime de desobediência – art.ºs 69.º, n.º 3, 101.º, n.º 3, 348.º, n.º 1, al. b), do Cód. Penal, 397.º, n.º 2, in fine, 500.º, n.º 2, do Cód. de Proc. Penal, e Ac. de Fixação de Jurisprudência 2/2013, DR-I de 08/01/2013.

Custas a cargo do arguido, com taxa de justiça que se fixa, ponderada a “complexidade da causa”, em 4 UCs, compreendendo, ainda, os respectivos encargos (art.ºs 513.º, n.º 1, 514.º, n.º 1, do Cód. de Proc. Penal, 8.º, n.º 9, e Tabela Anexa III, do Regulamento das Custas Processuais).

Sem custas da instância cível, atendendo ao valor do pedido e à isenção prevista no art.º 4.º, n.º 1, al. n), do Regulamento das Custas Processuais.

            Inconformado, o arguido interpôs o presente recurso, que motivou, concluindo nos seguintes termos:

1. Na sentença ora recorrida o arguido foi condenado por um crime de ofensa à integridade física negligente e um crime de homicídio por negligência grosseira.

2. A jurisprudência maioritária tem entendimento que, ocorrendo vários crimes num sinistro, em caso de actuação negligente, estaremos perante um único crime, muito embora agravado pelo resultado.

3. Atento o exposto, deverá a sentença do tribunal ‘a quo’ ser revogada e substituída por uma que condene apenas por um dos crimes de que vinha acusado, com a inerente redução da pena aplicada.

4. Em sede de acusação foi peticionada a aplicação de uma sanção acessória de cassação do título de condução nos termos da al. a) do nº 1, do artº 101º do CP.

5. Da factualidade dada por provada o recorrente não aceita que se encontram preenchidos os requisitos da referida alínea, muito menos quanto ao fundado receio de que o arguido possa vir a praticar outros factos da mesma espécie ou que a personalidade do agente faça isso prever.

6. A condenação na referida pena acessória apenas deve ocorrer quando se encontrem preenchidos os respectivos requisitos, não tendo efeitos automáticos a referida prescrição legal.

7. Não poderá o arguido ser condenado na pena acessória de cassação do título de condução uma vez que não se encontram preenchidos os requisitos previstos na al. a) do nº 1 do artº 101º do CP, tendo a sentença recorrida violado o referido normativo.

8. Na acusação não consta nenhuma referência à al. b) do nº 1 do artº 101º do CP, que alicerçou a condenação do arguido na sanção acessória de cassação do título de condução.

9. O tribunal recorrido ao condenar o recorrente em 2 anos e 6 meses de cassação da licença de condução, sem que tenha lançado mão do disposto nos artºs 358º do CPP extravasou os seus poderes de cognição – veja-se neste sentido Acórdão Uniformizador de Jurisprudência de 25/6/2008 STJ.

10. A aplicação desta sanção acessória está dependente do preenchimento dos respectivos requisitos, os quais têm que ser objecto de prova em sede de julgamento – o que não sucedeu in casu.

11. A sentença, na parte em que condena o recorrente na medida de segurança de cassação da licença de condução por um período de 2 anos e 6 meses é inexistente, ou mesmo que assim se não entenda, é nula, nos termos dos artº 379º, 1, b) e c) do CPP, o que se alega.

12. Ainda que na acusação figurasse referência à al. b) do artº 101º do CP, a aplicação de 2 anos e 6 meses de cassação da licença de condução in casu, seria sempre excessiva e desproporcional à gravidade do facto e à perigosidade do agente.

13. O recorrente não revela «um grau de perigosidade tal para a sociedade que esta tenha de defender-se prevenindo o risco da prática de futuros factos criminosos» não podendo o arguido crer que seja condenado em igual pena que um crime doloso ou mesmo alguém reincidente.

14. Finalmente, o arguido já procedeu ao pagamento da contra-ordenação pela condenação com excesso de álcool no sangue, tendo cumprido a respectiva sanção acessória de inibição de conduzir pelo período de 60 dias.

15. Por não se encontrarem preenchidos os requisitos para a sua condenação, deve ser absolvido da sanção acessória de cassação do titulo de condução ou, se porventura assim não for entendido, deve a condenação ser reduzida ao mínimo legal, suspendendo-se a sua execução por período a determinar.

16. Sendo que, no apuramento final da pena a cumprir, deverá sempre ser tido em conta o valor da multa já paga pelo arguido assim como a sanção acessória de inibição de conduzir que o arguido já cumpriu pelo período de 60 dias.

17. A sentença recorrida violou nomeadamente o disposto nos artºs 32º, 1 e 5 da CRP, e 238º, 3, b) e c), 358º, 379º, 1, b) do CPP e 30º, 2, 70º e 71º do CP.

            Respondeu o MP em primeira instância, concluindo pelo não provimento do recurso.

            Nesta Relação, a Ex.ma PGA emitiu douto parecer, concluindo no mesmo sentido.

            Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.

FACTOS ASSENTES:

1 – No dia 07 de Junho de 2012, pelas 08H25, na auto-estrada A1, ao km 198,735, no sentido Sul – Norte, Vil de Matos, área desta comarca de Coimbra, D... conduzia o veículo ligeiro de mercadorias com a matrícula AJ... , levando, na ocasião, como ocupante, E... ;

2 – A via é de traçado recto, sendo a faixa de rodagem dividida por separador central e composta por quatro vias de trânsito, sendo duas para cada sentido de marcha;

3 – E com ampla visibilidade;

4 – O piso é betuminoso;

5 – O piso encontrava-se húmido, tendo chuviscado em momento anterior;

6 – O piso estava em bom estado de conservação;

7 – No local, atento o sentido Sul – Norte, a via possui duas hemi-faixas de rodagem;

8 – Com uma curva com ligeira inclinação ascendente, à esquerda, atento o sentido Sul – Norte;

9 – E sem obstáculo visual;

10 – Nas mesmas circunstâncias de tempo, lugar e sentido acima indicados, atrás do veículo ligeiro de mercadorias com a matrícula AJ... , seguia o arguido, conduzindo o veículo ligeiro de passageiros com a matrícula (...) XE;

11 – O veículo ligeiro de passageiros com a matrícula (...) XE circulava à velocidade de, pelo menos, 120 km/h;

12 – O arguido havia ingerido bebidas alcoólicas;

13 – Apresentando uma TAS (Taxa de Álcool no Sangue) de 0,94 gr./l.

14 – O arguido encontrava-se exausto e com sono;

15 – E não dormia há mais de 24 horas;

16 – D... e o arguido seguiam na via de trânsito mais à direita das duas permitidas no local para o sentido por ambos tomado;

17 – O arguido seguia desatento, sem atender ao trânsito que seguia à sua frente;

18 – O arguido não se apercebeu da respectiva aproximação ao veículo ligeiro de mercadorias com a matrícula AJ... ;

19 – O arguido não logrou controlar o seu veículo e abrandar atrás do referido veículo, nem manter deste distância adequada a evitar colisão;

20 – O arguido veio a embater com a parte da frente do veículo por si conduzido na parte traseira do veículo que estava à sua frente e conduzido por D... ;

21 – Em consequência do embate, o veículo ligeiro de mercadorias com a matrícula AJ... foi projectado para a frente;

22 – E entrou em despiste, para o lado direito da via, atento o respectivo sentido de marcha, vindo a embater nas guardas metálicas de segurança existentes no lado direito da via;

23 – Seguiu, em despiste, pela zona de terra marginal à via;

24 – E embateu, com a respectiva parte lateral direita, no talude de terra existente ao km 198,792;

25 – Capotou;

26 – E imobilizou-se em posição invertida ao km 198,809;

27 – O embate ocorreu dentro da via de trânsito por onde seguia o veículo ligeiro de mercadorias com a matrícula AJ... e, atrás deste, o veículo conduzido pelo arguido;

28 – Em consequência da colisão, resultaram, para E... , as lesões examinadas e descritas no auto e relatório de autópsia constantes de fls. 51 a 56, cujo teor aqui se dá como integralmente reproduzido;

29 – E das quais veio a suceder a morte de E... ;

30 – Em consequência da colisão, resultaram, para D... , as lesões examinadas e descritas nos autos de exame médico constantes de fls. 94 a 95 e 423 e vs., cujo teor aqui se dá como integralmente reproduzido;

31 – O arguido sabia que ingerira bebidas alcoólicas compatíveis com a TAS de que era portador;

32 – E quis conduzir do modo descrito;

33 – O arguido, encontrando-se apto a acatar as regras de circulação rodoviária, representou como possível que do exercício da sua condução pudesse resultar a colisão com outros veículos e que poderia vir a originar um evento do qual resultassem lesões na integridade física ou a morte de terceiros;

34 – E acreditou que tal não sucederia;

35 – K... era transportado, como passageiro, no veículo conduzido pelo arguido;

36 – Em consequência da colisão, no dia 07 de Junho de 2012, o mesmo deu entrada no serviço de urgência do Centro Hospitalar e Universitário de C... , EPE;

37 – Onde recebeu assistência;

38 – Sendo o custo de tal assistência de € 147,00;

39 – Sobre a responsabilidade civil por danos causados a terceiros em consequência da circulação rodoviária do veículo ligeiro de passageiros com a matrícula (...) XE, havia sido celebrado contrato de seguro com a demandada, COMPANHIA DE SEGUROS B... , S.A., titulado pela apólice n.º (...) ;

40 – Em consequência da colisão, o arguido socorreu-se de “apoio psicológico”;

41 – O arguido reside na companhia dos seus pais, em casa destes;

42 – O arguido é o irmão mais novo de 4 filhos;

43 – O arguido encontra-se a frequentar o último ano do curso de licenciatura em gestão, na Universidade Católica, no Porto;

44 – O arguido presta trabalho na empresa de congelados explorada pelo seu pai;

45 – O arguido é reputado, no seu círculo laboral e de convívio, como pessoa calma e ponderada;

46 – O arguido mantém bom relacionamento com a família e os amigos;

47 – O arguido não tem averbada ao seu registo individual do condutor a prática de qualquer contra-ordenação;

48 – O arguido não tem averbada ao seu registo criminal qualquer condenação.

FACTOS NÃO PROVADOS:

1 – O arguido tinha iniciado a marcha cerca da meia-noite;

2 – O arguido circulava inserido numa fila de trânsito;

3 – O piso encontrava-se seco;

4 – O arguido agiu livre, deliberada e conscientemente, bem sabendo que as suas condutas eram proibidas por lei;

5 – Inexistia trânsito, pelo menos, nos 5 quilómetros que precederam o sinistro;

6 – Quando avista a curva referida supra, o arguido deslocou a viatura da faixa da direita para a faixa da esquerda no intuito de fazer “acompanhar a curva”, evitando “forçar a mesma”;

7 – Movimento que permite o carro ter maior tracção na curva;

8 – Momento em que também não avistava nenhuma viatura à sua frente;

9 – A meio da aludida curva, o arguido avistou a viatura AJ;

10 – Circulava no meio das duas faixas de rodagem; 11 – Com a faixa da rodagem da direita desimpedida;

12 – A uma velocidade muito manifestamente inferior à do XE;

13 – Momento em que o arguido, antevendo que não conseguia passar pela faixa da esquerda, coloca o pé no travão;

14 – Acto contínuo, o XE entrou em despiste;

15 – O XE passou o AJ pela via da esquerda;

16 – E foi imobilizar-se na berma d0o lado direito, cerca de uns 50 metros após o embate;

17 – No local do embate, a berma do lado direito não tem rail de protecção;

18 – No local do embate existe uma valeta longa e funda, seguida de um talude elevado em terra;

19 – Entre o piso das vias de trânsito e a valeta, o pavimento betuminoso faz um degrau de cerca de 10 centímetros;

20 – Após o embate, o veículo AJ caiu na valeta;

21 – Já imobilizado o XE, o arguido saiu da sua viatura para auxiliar o ofendido e a vítima E... ;

22 – Durante longo período de tempo (cerca de dois meses), o arguido passou muitas noites sem dormir e/ou dormir mal;

23 – Tendo durante muitos períodos e, ainda agora, acordado a meio da noite com pesadelos a pensar no acidente;

24 – O arguido, sempre que se desloca para algum evento festivo, vai de boleia com os amigos ou utiliza táxi para as suas deslocações;

25 – O arguido deixou de utilizar viatura própria quando sai após o horário de trabalho para qualquer evento;

26 – A mãe do arguido é doméstica;

27 – O pai do arguido, por dificuldades financeiras, viu-se obrigado a emigrar para Moçambique.

           

Analisadas as conclusões que o recorrente retira da motivação do seu recurso, verifica-se que são apenas duas as grandes questões cuja apreciação submete ao nosso conhecimento, a saber:

I - a de averiguar se nos casos, como o presente, em que uma conduta negligente do arguido atingiu mais do que um bem eminentemente pessoal (vida e integridade física de duas vítimas), deve ele ser punido apenas pela prática do crime com resultado mais grave, atendendo-se aos demais resultados na concretização da pena (punição pelo desvalor da conduta, não do resultado) ou se, ao invés, deve ser estabelecida uma relação de concurso entre todos os crimes dada a natureza pessoal dos bens atingidos; e

II - a de averiguar se se mostram preenchidos os requisitos exigidos pela norma incriminadora para ser decretada a medida de segurança de cassação do titulo de condução; subsidiariamente a esta última questão suscita ainda as duas seguintes:

a) a pretensa ocorrência do vício de inexistência da sentença na parte em que condena o recorrente nessa medida de segurança, ou, pelo menos, a sua nulidade nos termos do artº 379º, 1, b) e c) do CPP, por falta de referência à al. b) do nº 1, do artº 101º do CP;

b) finalmente, suscita a questão da medida encontrada para essa cassação, que pretende ser reduzida ao mínimo legal e, mesmo assim, com a respectiva execução suspensa.

I - A primeira questão que nos é colocada prende-se, como dissemos já, com a averiguação sobre se o arguido cometeu apenas um ou dois crimes negligentes, conhecida que é a controvérsia a propósito existente sobre se existe uma unidade ou uma pluralidade de crimes.

            A questão tem sido objecto de acesa discussão na nossa jurisprudência, existindo uma corrente que sustenta a existência de um só crime, uma vez que a actuação culposa do arguido é só uma, muito embora o seu resultado não tenha apenas afectado uma pessoa, mas mais que uma – cfr. os Ac. STJ de 1985/Jan./16, 1985/Mai./28, 1986/Jun./25, 1989/Mai./31, 1990/Mar./07 e 1991/Jan./09, in, respectivamente, BMJ 343/184, 347/214, 358/283, 387/320, 395/258 e 403/150; vide ainda de Eduardo Correia, “Unidade e Pluralidade de infracções”, p. 120, nota 1. Ou seja, para esta corrente, porque estamos perante crimes meramente culposos considera-se que a punição é pelo desvalor da conduta, não pelo desvalor do resultado.

            Cremos no entanto que nos casos em que a conduta negligente do arguido atinge uma pluralidade de bens de natureza eminentemente pessoal, se justificará a punição pelo concurso de crimes.

A definição legal do que seja negligência, em termos penais, resulta do art.º15.º do CP:

«Age com negligência quem, por não proceder com o cuidado a que, segundo as circunstâncias, está obrigado e de que é capaz: a) Representar como possível a realização de um facto que preenche um tipo de crime mas actuar sem se conformar com essa realização; ou b) Não chegar sequer a representar a possibilidade de realização do facto».

Daqui se retira que também a negligencia terá um tipo objectivo, traduzido na realização de uma acção que supere o risco permitido e a imputação objectiva do resultado, havendo pois um desvalor de acção e um desvalor de resultado. Já o tipo subjectivo (cuja existência temos de admitir ser discutível, pelo menos nesta formulação doutrinal), consiste no desconhecimento evitável do perigo concreto, o que nos leva a distinguir entre a negligência consciente (o autor conhecia o perigo abstracto gerado pela sua acção e podia conhecer o perigo concreto) e a negligência inconsciente (o autor actua desconhecendo o perigo criado pela sua acção). (nesta passagem seguimos de muito perto o Manual de Derecho Penal, Tomo I. Parte General, coordenado por Carlos Suárez-Mira Rodríguez, pag.s 338-340).

Ou seja, nos casos de negligência consciente, como o presente, muito embora a tónica seja posta no desvalor da conduta descuidada e indiferente, não pode ser desprezado o resultado, já que actuando o agente num quadro que lhe exigia que conhecesse também o perigo concreto, o que lhe estava acessível, o desvalor da sua conduta é infectado pela indiferença por esse conhecimento. Por isso se afirma que o autor não conhecia, mas devia conhecer esse perigo, situação psicológica que, por isso mesmo, lhe é censurável.

Porque estamos a meio caminho entre as situações de actuação negligente e as de actuação dolosa, justifica-se que o desvalor da conduta seja, também, integrado com o desvalor do resultado.

Como se disse na douta sentença recorrida «não é possível, porém, conceber o desvalor da acção sem que este se refira ao desvalor do resultado. O resultado não é irrelevante, não é um evento meramente casual ou aleatório, mas é imputado ao agente de acordo com as regras da adequação causal, quer tratando-se de crimes dolosos, quer de crimes negligentes».

Não colhe aqui a afirmação do recorrente, sustentada no ac. do TRP nº 414552, datado de 9/12/2004, de que «o que está em causa é uma actuação negligente inconsciente, em que o agente não previu como possível a realização do resultado típico múltiplo pois, não é plausível que o arguido previsse que na viatura sinistrada era transportado mais do que um passageiro»; com efeito, ao levar a cabo uma viagem em auto-estrada, influenciado pelo álcool (0,94 g/l), a uma velocidade de, pelo menos, 120 km/h, exausto e com sono, pois que não dormia havia mais de 24 horas, sem atentar no trânsito que seguia à sua frente, com piso molhado, factos todos eles do conhecimento do arguido, este deveria conhecer que desse modo criava perigo para a integridade física/vida de, pelo menos, a ocupante do seu veículo e os condutores e/ou passageiros dos demais veículos que poderia supor circularem na via naquele concreto momento. A sua obrigação de conhecimento ou, pelo menos a censura pelo desprezo por esse conhecimento, deve também abranger essas pessoas (pelo menos a sua acompanhante e o condutor do veículo que o precedia, ambos vitimados) e todas as demais que na ocasião circulassem ou pudessem circular na via, dadas as circunstâncias, acabadas de referir, que essas, sim, eram do seu conhecimento.

Citando Claus Roxin (in ‘Problemas Fundamentais de Direito Penal, pag. 257): «Assim, a questão fundamental e decisiva é a seguinte: como se pode reconhecer se uma violação do dever de cuidado à qual se segue uma morte, fundamenta ou não um homicídio negligente? Como método de resposta, proponho o seguinte procedimento: examine-se qual a conduta que não se poderia imputar ao agente como violação do dever de acordo com os princípios do risco permitido; faça-se uma comparação entre ela e a forma de actuar do arguido, e comprove-se então se, na configuração dos factos submetidos a julgamento, a conduta incorrecta do autor fez aumentar a probabilidade de produção do resultado em comparação com o risco permitido. Se assim for, existe uma violação do dever que se integra na tipicidade e dever-se-à punir a título de crime negligente. Se não houver aumento de risco, o agente não poderá ser responsabilizado pelo resultado e, consequentemente, deve ser absolvido».

Transcrevendo essa situação para o nosso caso concreto, a resposta à questão formulada não pode deixar de ser a de que a conduta do arguido fez aumentar exponencialmente a possibilidade de produção do(s) resultado(s), em comparação com o risco permitido. Ora, se a condução automóvel é, por si só, e em condições normais, geradora de perigos, do chamado risco permitido, a actuação do arguido, que o fazia com os seus reflexos e capacidades muito diminuídos em virtude do álcool ingerido e da situação de extremo cansaço em que se encontrava, a uma velocidade que, dessa maneira se poderá qualificar de excesso de velocidade relativo, incrementou, e de que maneira, esse risco.

No mesmo sentido, v. Prof. Figueiredo Dias (in Comentário Conimbricense do Código Penal, Coimbra Editora, tomo I, pág. 114) que “Se através de uma mesma acção são mortas várias pessoas estar-se-á perante uma hipótese de concurso efectivo, sob a forma de concurso ideal, com absoluta indiferença por que a negligência tenha sido consciente ou inconsciente”. Dr. Germano Marques da Silva (in Problemas Fundamentais de Direito Penal, Homenagem a Roxin, Univ. Lusíada Editora, Lisboa 2002, pág. 141, citando o Ac. do STJ, de 15-11.98, proc. 891/98 da 3ª secção.) “se através de uma mesma acção forem cometidos vários crimes ou o mesmo crime várias vezes estar-se-á perante uma hipótese de concurso efectivo, sob a forma de concurso ideal, com absoluta indiferença por que a negligência tenha sido consciente ou inconsciente ”.

Neste sentido v. também, Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 22-1-2007, Ac da RC de 16-07-2008, RC. De 19-10-2010 todos in www.dgsi.pt. Ac. RP, de 5/1/2000 (BMJ n.º 493, pág. 416) e de 24/11/2004 (C.J., ano XXIX, 5.º, pág. 213); Ac. RC, de 29/3/2000 (C.J., ano XXV, 2.º, pág. 48), 23/11/2005, proferido no Proc. n.º 2398/05, acessível in www.dgsi.pt ; Ac. RE, de 24/6/2003 (C.J., n.º 167, pág. 267); Ac. RL, de 14/9/2007, proferido no Proc. n.º 2274/2007-5 e 16/5/2007, proferido no Proc. n.º 0645774, acessíveis in www.dgsi.pt e Ac. STJ, de 22/11/2007, proferido no Proc. n.º 05P3638, acessível in www.dgsi.pt. Também, os Acs. da. RP 24.11.2004, da RC, de 04.06.2008, de 23.11.2005, e da RP, de 15.04.2009 e de 16.05.2007, (com votos de vencido), da RL, de 14.09.2007, todos in www.dgsi.pt.

            Termos em que se conclui que, por se tratar de uma situação de concurso, nada temos a censurar na douta decisão recorrida, sob este aspecto.

II – A segunda questão cujo conhecimento é colocado à nossa apreciação, primeiro a título principal e, depois, a título subsidiário, aqui como sub-questões, prende-se com a averiguação do concreto preenchimento dos requisitos exigidos pela norma incriminadora para ser decretada a medida de segurança de cassação do titulo de condução.

            Dispõe o artº 101.º, n.º 1, do Cód. Penal, que: “Em caso de condenação por crime praticado na condução de veículo com motor ou com ela relacionado, ou com grosseira violação dos deveres que a um condutor incumbem, ou de absolvição só por falta de imputabilidade, o tribunal decreta a cassação do título de condução quando, em face do facto praticado e da personalidade do agente: a) Houver fundado receio de que possa vir a praticar outros factos da mesma espécie; ou b) Dever ser considerado inapto para a condução de veículo com motor”.

Nos termos do n.º 2, deste art.º, “é susceptível de revelar a inaptidão referida na alínea b) do número anterior a prática, de entre outros, de factos que integrem os crimes de: a) Omissão de auxílio, nos termos do artigo 200.º, se for previsível que dele pudessem resultar graves danos para a vida, o corpo ou a saúde de alguma pessoa; b) Condução perigosa de veículo rodoviário, nos termos do artigo 291.º; c) Condução de veículo em estado de embriaguez ou sob influência de estupefacientes, substâncias psicotrópicas ou produtos com efeito análogo, nos termos do artigo 292.º; ou d) Facto ilícito típico cometido em estado de embriaguez, nos termos do artigo 295.º, se o facto praticado for um dos referidos nas alíneas anteriores”.

            Como sabemos, essa medida acabou por ser decretada, tendo por suporte legal as normas dos artºs 100º, 2, 101º, 1, b), 2, b), 3 e 5, ambos do CP. Ou seja, para a cassação da licença de condução considerou-se que o arguido deve ser considerado inapto para a condução (artº 101º, 1, b)) e que levou a cabo a sua conduta através da condução perigosa de veículo rodoviário (nº 2, b)).

            Estamos nós no âmbito da aplicação ao recorrente de uma medida de segurança não privativa da liberdade (secção IV do CP, que contém os normativos em referência). Por isso, tal aplicação tem como pressupostos gerais a prévia comissão de um delito e a perigosidade criminal. Quanto à comissão de delitos negligentes não persistem dúvidas, face a tudo o que atrás se disse e ainda ao que ficou dito na sentença recorrida.

            Como se diz na obra atrás citada (Manual de Derecho Penal., pag. 481), «no basta la comission de un hecho delictivo para la imposicion de una medida de seguridade. El hecho punible no és más que el presupuesto que deve ser completado con outro, cual es el de la peligrosidad. La peligrosidad criminal es la probabilidade de que se pueda realizar en el futuro un nuevo hecho criminal por el sujeto que ya há cometido uno anteriormente. Se trata de un prognóstico sobre el riesgo de una nueva infracción, assentado em el estúdio de las circunstancias personal es del sujeto y de la naturaleza del hecho delictivo cometido.» Como mais adiante se refere na mesma obra, a apreciação dessa perigosidade traduz-se, numa primeira fase na formulação de um juízo de diagnóstico, no qual se valoram as circunstâncias do sujeito, dos transtornos que sofre, do meio no qual se integra, na identidade do facto, na sua forma de execução, nos motivos e atitudes posteriores; na segunda fase está em causa a formulação de um juízo de prognóstico criminal, no qual se determinará a conexão que pode existir entre os sintomas da perigosidade e a previsão de repetição do facto.

            Aplicando tais ensinamentos à interpretação da norma do artº 101º do CP, temos que a cassação da licença de condução, enquanto medida de segurança, se traduzirá, numa primeira linha, na apreciação da personalidade do arguido, que se deverá concluir ser atreita á prática de factos desta natureza (e daí se concluir pela sua perigosidade); numa segunda fase, através da análise do facto concreto, tipificado como crime, deverá concluir-se que ele foi uma consequência daquela propensão criminosa do arguido, sendo, por isso, um índice dessa personalidade perigosa, dada a natureza do facto, sua gravidade ou reiteração.

“No âmbito do art. 101º do Código Penal, o juízo sobre a inaptidão do condutor tem de partir de factos sobre a sua personalidade.” — neste sentido, Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 15/04/2009, proferido no processo n.º 7790/08 (4 Secção), in www.trp.pt. Ac. do Supremo Tribunal de Justiça, de 30 de Junho de 1999, in www.dgsi.pt/jstj). Acórdão do Tribunal da Relação de Porto, de 05/01/2005, proferido no processo 0414555, in www.dgsi.pt.

            Da análise dos factos dados como assentes ressalta a ideia de que estamos perante um acontecimento isolado na vida do recorrente - não obstante a gravidade das suas consequências e da conjugação simultânea de uma série de factores imputáveis ao agente, geradores da sua conduta negligente, qualificada mesmo de grosseira. Tal ideia é confirmada pela própria sentença impugnada que foi expressa na afirmação de que «a imagem global dos factos em concurso não faz transparecer uma particular tendência criminosa, antes apontando para que se tenha tratado de uma situação fortuita, no percurso social do arguido. Porém, ambos os crimes em concurso estão intimamente relacionados na perspectiva dos bens jurídicos tutelados, radicando embora em uma mesma acção. Também naquela perspectiva global, não se fazem sentir particulares necessidades de prevenção especial, impondo-se, contudo, atenta a gravidade dos crimes, um apelo para que o arguido, de futuro, cumpra as normas de circulação rodoviária. (…) Tendo em consideração que o arguido não é possuidor de antecedentes criminais e que inexistem notícias da repetição de comportamentos de idêntica natureza após o curso dos presentes autos (…)». Ou seja, do texto da sentença retira-se, contraditoriamente com a aplicação de tal medida de segurança, que estamos perante uma situação «fortuita» que não faz «transparecer uma particular tendência criminosa»; mais, considera-se que a personalidade do agente determina que não se façam «sentir particulares necessidades de prevenção especial», sendo que este se mostra susceptível de recondução ao cumprimento das normas de circulação estradal mediante um singelo «apelo».

            Acresce que, como se diz na sentença recorrida, a aplicação desta medida não pode «constituir, de acordo com a própria Lei Fundamental (art.º 30.º, n.º 4, da Constituição da República Portuguesa, vertido na lei ordinária no art.º 65.º, n.º 1, do Cód. Penal), efeitos automáticos destas».

            Da análise da sentença recorrida conclui-se que esta formulou o seu juízo de perigosidade com base apenas no concreto facto gerador da punição, não contextualizando a personalidade do arguido - nesse facto isolado traduzida - nas circunstâncias do sujeito, dos transtornos que sofre, do meio no qual se integra, na identidade do facto, na sua forma de execução, nos motivos e atitudes posteriores. Só após formular esse enquadramento, poderia elaborar o seu juízo de prognóstico criminal, determinando a conexão existente entre os sintomas da perigosidade e a previsão de repetição do facto (perigosidade).

            Uma coisa é a perigosidade objectiva da conduta do agente, traduzida no facto, que será alvo de censura, em virtude da previsão típica, e outra, bem diferente, será a perigosidade do agente, que se traduzirá na análise da sua personalidade em situação, em conjugação com o facto, permitindo a retirada da conclusão de que existe o perigo de reiteração criminosa. Mas nem a análise desse juízo de prognóstico global e compreensivo foi levada a efeito na sentença, nem os factos dados como assentes legitimariam a retirada da conclusão de que o arguido manifesta uma personalidade perigosa, traduzida na possibilidade de reiteração no mesmo tipo de ilícitos. Aliás, da sentença recorrida retira-se a conclusão de que estamos perante factos isolados na vida do arguido (apesar da sua extrema gravidade) e de que não se vislumbram sinais de que a sua personalidade faça criar a convicção de existir o referido perigo de reiteração.

            Como se referiu já, a previsão normativa é complexa, integrada pela prática de crime «na condução de veículo com motor ou com ela relacionado, ou com grosseira violação dos deveres que a um condutor incumbem» se se concluir por essa perigosidade ou inaptidão «em face do facto praticado e da personalidade do agente». O uso do conjuntivo «e» na previsão legal, reforça a ideia, que atrás expressamos, de que a cassação há-de basear-se, mais no que na gravidade do facto praticado, na sua conjugação com a natureza perigosa da personalidade do agente.

Deste modo, não pode o arguido, sem mais, ser considerado «inapto» para a condução (al. b) do nº 1 do artº 101º), mostrando-se injustificada a referência à al. b) do nº 2 do mesmo artigo, face à absolvição operada relativamente a esse crime.

            Por isso, neste pormenor, deve a sentença recorrida ser revogada. Tal não quer significar, no entanto, que não seja de questionar a aplicação ao arguido de uma pena acessória, no caso concreto de inibição da faculdade de conduzir.

            Com efeito, na própria acusação se fez referência, em IV, na possibilidade de o arguido incorrer «na pena acessória de proibição de condução de veículos motorizados, prevista no artº 69º, 1, a), do CP».

            À data da prática dos factos, era a seguinte a redacção do referido artº 69º (não esqueçamos que a actual redacção resultou da alteração efectuada pela Lei nº 19/2013, de 21/2):

1 - É condenado na proibição de conduzir veículos com motor por um período fixado entre três meses e três anos quem for punido:

a) Por crime previsto nos artigos 291.º ou 292.º;

b) Por crime cometido com utilização de veículo e cuja execução tiver sido por este facilitada de forma relevante; ou

c) Por crime de desobediência cometido mediante recusa de submissão às provas legalmente estabelecidas para detecção de condução de veículo sob efeito de álcool, estupefacientes, substâncias psicotrópicas ou produtos com efeito análogo.

2 - A proibição produz efeito a partir do trânsito em julgado da decisão e pode abranger a condução de veículos com motor de qualquer categoria.

3 - No prazo de 10 dias a contar do trânsito em julgado da sentença, o condenado entrega na secretaria do tribunal, ou em qualquer posto policial, que remete àquela, o título de condução, se o mesmo não se encontrar já apreendido no processo.

4 - A secretaria do tribunal comunica a proibição de conduzir à Direcção-Geral de Viação no prazo de 20 dias a contar do trânsito em julgado da sentença, bem como participa ao Ministério Público as situações de incumprimento do disposto no número anterior.

5 - Tratando-se de título de condução emitido em país estrangeiro com valor internacional, a apreensão pode ser substituída por anotação naquele título, pela Direcção-Geral de Viação, da proibição decretada. Se não for viável a anotação, a secretaria, por intermédio da Direcção-Geral de Viação, comunica a decisão ao organismo competente do país que tiver emitido o título.

6 - Não conta para o prazo da proibição o tempo em que o agente estiver privado da liberdade por força de medida de coacção processual, pena ou medida de segurança.

7 - Cessa o disposto no n.º 1 quando, pelo mesmo facto, tiver lugar a aplicação da cassação ou da interdição da concessão do título de condução, nos termos dos artigos 101.º e 102.º

Vimos já que está fora de causa a aplicação ao caso da al. a) do nº 1 na redacção atendível, já que o arguido foi absolvido relativamente á acusação de condução perigosa.

Não existindo, à data dos factos, norma semelhante à da actual al. a) do nº 1, do artº 69º, primeira parte, apenas seria de questionar a eventual aplicação da sua al. b), cuja previsão normativa é a seguinte: «é condenado na proibição de conduzir veículos com motor (…) quem for punido por crime cometido com utilização de veículo e cuja execução tiver sido facilitada de forma relevante».

            Como se diz no acórdão da Relação do Porto de 8/3/2006, (pesquisado em www.dgsi.pt, onde tem o nº conv. JTRP00038913, “A interpretação gramatical da norma, em que as duas orações se ligam através de uma conjunção copulativa (indicando adição), revela que as condições previstas são de verificação cumulativa.

Ou seja, o âmbito de aplicação da norma em questão apenas abrange os casos de crime em que o veículo, não sendo essencial à eclosão do delito, é nele utilizado dolosamente como instrumento, como ‘arma de arremesso’, assim potenciando a perigosidade e as consequências criminais. Não é este manifestamente o caso, já que o crime em causa nos presentes autos não é doloso mas meramente negligente. Dado o princípio da tipicidade, que rege no direito criminal, não pode, assim, a conduta do arguido ser também objecto desta reacção penal secundária.

Diferente seria a solução, caso fosse aplicável a norma do nº 1 do artº 69º na sua actual redacção.

A análise das questões suscitadas a título subsidiário fica prejudicada, face à procedência da anterior conclusão, formulada a título principal, atinente à não aplicação da cassação da licença de condução.

Termos em que, nesta Relação, se acorda em, no parcial provimento do recurso, revogar a sentença recorrida no segmento em que condenou o arguido A... na pena acessória de cassação do seu titulo de condução de veículo com motor, pelo período de 2 anos e 6 meses, absolvendo-o nessa parte.

No mais, confirma-se a sentença recorrida.


Sem tributação

Coimbra, 24 de junho de 2015

(Jorge França - relator)

(Fernanda Ventura - adjunta)