Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
3945/08.6TJCBR.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: JORGE ARCANJO
Descritores: CASO JULGADO MATERIAL
FUNDAMENTO DE FACTO
SENTENÇA
ARRENDAMENTO URBANO
RESOLUÇÃO
SUBLOCAÇÃO
ÓNUS DA ALEGAÇÃO E PROVA
Data do Acordão: 06/28/2011
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COIMBRA – 3º JUÍZO CÍVEL
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTº 1093º, Nº 2, AL. E) DO CC
Sumário: I – Os fundamentos de facto, constantes da sentença, por si só não formam caso julgado material, de forma a imporem-se extraprocessualmente.

2. Pedida judicialmente a resolução de um contrato de arrendamento com fundamento na sublocação não autorizada (art. 1083º, nº 2, e) do CC), ao senhorio, como factos constitutivos do direito, cabe o ónus da alegação e prova do contrato de arrendamento, da cedência do locado a terceiro e da sua não autorização, e ao réu (arrendatário) a prova de uma causa que legitime a cedência.

3. Convencionando-se no contrato que as obras de reparação e beneficiação são da responsabilidade do arrendatário, não pode invocar-se a equidade, nem o abuso de direito, para impor ao senhorio o reembolso do custo das efectivamente realizadas.

Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra
I – RELATÓRIO

         1.1. - A Autora – C… – instaurou (31/10/2008) na Comarca de Coimbra acção declarativa com forma de processo sumário (posteriormente seguindo a forma ordinária) contra os Réus:
1º) M… e mulher N…;
2º) – A...
         Alegou, em resumo:
         A Autora é proprietária de um prédio urbano, sito na Rua das Padeiras, Coimbra.
         Os anteriores proprietários, em 1 de Janeiro de 1960, deram de arrendamento aos antecessores dos 1ºs Réus o referido prédio para o exercício do arrendamento comercial de ourivesaria, oficina de reparação, mercearia, retrosaria.
         Em Julho de 2008, o 1ºs Réu subarrendou o locado ao 2º Réu, sem autorização da Autora, pese embora houvessem designado de contrato de cessão de exploração.
         O 2º Réu instalou no locado um novo estabelecimento comercial de peças de bijutaria.
         A sublocação, não autorizada, pelos 1ºs Réus, com uma renda que ultrapassa em 20% o valor pago à Autora, confere-lhe o direito de resolução do contrato de arrendamento (art. 1083 nº2 e) CC).
         Pediu:
a) - Que seja declarado que entre os Réus foi celebrado um contrato de subarrendamento e não um contrato de cessão de exploração;
b) - Que seja resolvido o contrato celebrado entre C… e M… e esposa, com o consequente despejo;
b) - A condenação dos Réus a entregar, imediatamente, o locado à Autora, devoluto de pessoas e bens.

         Contestaram os 1ºs Réus, defendendo-se, em síntese:
         O contrato celebrado com o 2º Réu é de cessão de exploração de estabelecimento e não de subarrendamento, tendo por objecto uma actividade complementar da exercida pelos 1ºs Réus no seu estabelecimento, pelo que inexiste fundamento para a resolução do contrato.
         Em reconvenção, alegaram:
         Como o prédio é muito antigo e de construção rudimentar, realizaram ao longo dos anos várias obras, no valor global de € 39.129,69.
         Muito embora no contrato de arrendamento se convencionasse não haver lugar a indemnização por benfeitorias efectuadas pelo arrendatário, justifica-se a ressarcibilidade com base na equidade, tendo em conta a duração do contrato, a qualificação e melhoramentos realizados.
Para a hipótese da acção ser julgada procedente, pediram a condenação da Autora a pagar-lhes a quantia de € 39.129,69.
Contestou o Réu A… defendendo-se nos mesmos termos, ou seja, que foi celebrado um contrato de cessão de exploração de estabelecimento e não de sublocação.

A Autora replicou, contraditando a reconvenção.

No saneador afirmou-se a validade e regularidade da instância.

         1.2. - Realizada audiência de julgamento, foi proferida sentença (fls.265 e segs.) que decidiu:

         a) - Julgar procedente a acção e declarar que entre os 1ºs e 2ºs réus foi celebrado um contrato de subarrendamento, bem como a resolução do contrato celebrado entre C… e M… e esposa; condenando-se os réus a entregarem imediatamente o locado à autora devoluto de pessoas e bens.
         b) - Julgar improcedente a reconvenção e absolver a autora do pedido reconvencional.

         1.3. - Inconformados, os 1ºs Réus recorreram de apelação (fls. 283 e segs.), com as seguintes conclusões:

         Não foram apresentadas contra-alegações.


II – FUNDAMENTAÇÃO

2.1. – O objecto do recurso

         A impugnação de facto (quesitos 2º, 4º e 10º);

         A resolução do contrato (cessão de exploração ou sublocação);

O pedido reconvencional (as obras realizadas no locado).

2.2. – Os factos provados (descritos na sentença)


2.3. – 1ª QUESTÃO

Com efeito, o caso julgado incide sobre a decisão e não abrange os fundamentos de facto, conforme orientação doutrinária e jurisprudencial prevalecente.

Neste sentido, elucida ANTUNES VARELA ( Manual de Processo Civil, 1984, pág 697) - "Os factos considerados como provados nos fundamentos da sentença não podem considerar-se isoladamente cobertos pela eficácia do caso julgado, para o efeito de extrair deles outras consequências, além das contidas na decisão final".
Também TEIXEIRA DE SOUSA (Estudos sobre o Novo Processo Civil, pág. 577), para quem "os fundamentos de facto não adquirem, quando autonomizados da decisão de que são pressuposto, valor de caso julgado".

No âmbito jurisprudencial, por ex. Ac do STJ de 2/03/2010, (proc. n.º 690/09.9) , disponível em www.dgsi.pt/jstj, onde se afirma - "(…) a problemática do respeito pelo caso julgado coloca-se sobretudo ao nível da decisão, da sentença propriamente dita, e, quando muito, dos fundamentos que a determinaram, quando acoplados àquela. Os fundamentos de facto, nunca por nunca, formam, por si só, caso julgado, de molde a poderem impor-se extraprocessualmente: prova evidente do que acaba de ser dito é o que está estipulado no n.º 2 do artigo 96 do Código de Processo Civil - "A decisão das questões e incidentes suscitados não constituem, porém, caso julgado fora do processo respectivo, excepto se alguma das partes requerer o julgamento com essa amplitude e o tribunal for competente do ponto de vista internacional e em razão da matéria e da hierarquia".
Daqui resulta inexistir fundamento para alterar a resposta ao quesito 10º.
Improcede o recurso de facto, mantendo-se incólume a factualidade descrita na sentença.

2.4. – 2ª QUESTÃO
A sentença recorrida declarou a resolução do contrato de arrendamento para o exercício do comércio, com fundamento no art. 1083 nº 2 e) CC, porque os 1ºs Réus (arrendatários) subarrendaram o locado sem autorização da Autora (senhoria)(arts.1038 al. f), 1060 CC), com gravidade suficiente, porque a desproporção dos valores das rendas torna inexigível a manutenção do contrato.
Para tanto, justificou que, pese embora o nome atribuído ao contrato, a verdade é que não se está perante uma cessão de exploração, mas antes uma sublocação, não consentida, argumentando, em síntese:

 “ Em face do exposto, aos autores apenas cabia alegar e provar a cedência a terceiros do prédio (o que se verificou) e aos réus a existência de cessão de (…). Para o efeito teriam os réus que alegar quais os elementos efectivamente abrangidos pelo negócio, de modo a que o Tribunal pudesse concluir pela existência de uma cessão de exploração do estabelecimento comercial, não bastando a alegação genérica e conclusiva da sua existência, por referência ao documento subscrito pelos réus.

“ (…)

“ Ainda que o ramo de negócio que passou a ser exercido no locado seja consentido pelo contrato de arrendamento, se não foi transmitido o estabelecimento comercial não fica dispensada a autorização do senhorio”.
Em contrapartida, os Réus/apelantes rejeitam o fundamento da resolução, dizendo que a cedência do locado insere-se no âmbito do contrato de cessão de exploração de estabelecimento.

O legislador de 2006 (Lei nº6/2006 de 27/2) postergando o princípio da tipicidade das causas de resolução do contrato de arrendamento, estabeleceu agora ( art.1083 nº2 CC) uma cláusula geral – “ É fundamento de resolução o incumprimento que, pela sua gravidade ou consequências, torne inexigível à outra parte a manutenção do arrendamento”.

         E quanto à resolução do senhorio, enuncia, de forma exemplificativa ( “designadamente”), diversos fundamentos de resolução nas alíneas a) a e), sendo que a Autora invocou como fundamento a causa prevista na alínea e) – “ A cessão, total ou parcial, temporária ou permanente e onerosa ou gratuita, quando ilícita, inválida ou ineficaz perante o senhorio”.

Tendo em conta a técnica legislativa, discute-se se as causas previstas em cada uma das alíneas faz operar automaticamente a resolução, constituindo presunções ilidíveis de inexigibilidade da manutenção do arrendamento pelo senhorio, competindo ao arrendatário o ónus de elisão, ou seja, de provar de que, não obstante a objectividade do facto-índice, é razoável a manutenção ( cf., por ex., PINTO FURTADO, Manual do Arrendamento Urbano, vol.2º, 4ª ed., pág.1001, Ac RP de 6/5/2010, proc. nº 451/09, em www dgsi.pt ) ou se é necessária a demonstração ( a cargo do senhorio) de que cada um desses fundamentos preenche a cláusula geral, segundo o critério da não exigibilidade, como parece dogmaticamente mais consistente ( cf., por ex., GRAVATO MORAIS, Novo Regime do Arrendamento Comercial, 2ª ed., pág.209, MARIA ONDINA, A Nova Disciplina do Arrendamento Urbano, pág.25, BAPTISTA OLIVEIRA, A Resolução do Contrato no Novo Regime do Arrendamento Urbano, pág.29, Ac RP de 17/4/2008, proc. nº 0831655, Ac RC de 17/11/2009 proc. nº 1737/06, em www dgsi.pt).

Conforme se refere na sentença recorrida, seguindo o critério da “teoria da norma”, ao senhorio cabe o ónus da alegação e prova do contrato de arrendamento e da cedência, não autorizada, do locado a terceiro, como factos constitutivos do direito, e ao réu (arrendatário) a prova de uma causa que legitime a cedência, o título da cedência, designadamente, a existência da locação de estabelecimento comercial ou de trespasse ( cf., por ex., Ac RP de 26/1/2006, e de Ac RL 15/1/2008, disponível em www dgs.pt ).
Perante a factualidade apurada, o Autor demonstrou ( art.342 nº1 CC ) a cedência, não autorizada, do locado feita pelos 2ºs Réus ao 3º Réu. Competia aos Réus o ónus de alegar e demonstrar a existência do contrato de cessão de exploração ou locação de estabelecimento comercial.
Como se sabe, o estabelecimento comercial tem sido concebido como uma unidade económico-jurídica, um complexo de elementos organizados, de índole diversa, destinado à prossecução do exercício comercial, nos quais se incluem o nome comercial, o local, as mercadorias, os créditos e débitos, as matérias primas, os meios tecnológicos, etc., ou seja, “ uma organização concreta de factores produtivos como valor de posição de mercado “ ( cf. BARBOSA DE MAGALHÃES, Do Estabelecimento Comercial, pág.122 e segs, ORLANDO DE CARVALHO, Critério e Estrutura do Estabelecimento Comercial – O problema da Empresa Como Objecto De Negócios, 1967, pág.8 a 11).
Enquanto unidade económico-jurídica, o estabelecimento comercial pode ser objecto de direito de propriedade ( e de outros direitos reais ), e, nesta medida, negociado. Quando se dá a transferência temporária e onerosa do estabelecimento comercial, o negócio designa-se de cessão de exploração ou locação de estabelecimento (art.1109 do CC), conservando o cedente a respectiva titularidade, ao contrário do trespasse que envolve a transferência definitiva, sendo que o uso do prédio arrendado por parte do locatário do estabelecimento emerge do próprio contrato, como reflexo puro e simples do gozo temporário do estabelecimento. Daí que a lei exija apenas a comunicação ao senhorio, mas já não a autorização.
         Não ficou factualmente demonstrada a transferência do estabelecimento comercial pertencente aos 1ºs Réus, na acepção referida, com a mesma unidade económica, provando-se antes que o 2º Réu instalou no local um estabelecimento dedicado à comercialização de peças de bijuteria e joalharia, ou seja, um outro estabelecimento, tanto assim que alterou o nome comercial do anterior para “Bijou Éden”
         Neste contexto, sabido que a qualificação que as partes dão ao contrato não vincula o tribunal, tendo o 2º Réu instalado no local arrendado um outro estabelecimento comercial, sendo, de resto, bem significativa a alteração do próprio nome, já que o nome de estabelecimento é um sinal nominativo que designa e individualiza o estabelecimento, conclui-se não se estar perante locação de estabelecimento, mas de sublocação.
         Sendo assim, como se justificou na sentença, existe fundamento para a resolução do contrato.

         2.5. – 3ª QUESTÃO
         A sentença julgou improcedente o pedido reconvencional, absolvendo o Autor quanto ao pagamento do valor das obras realizadas pelos Réus no locado.
         Argumentou-se que as partes convencionaram na alínea d) do contrato de arrendamento (referido nas alíneas C) a J)) ser do arrendatário a obrigação de proceder à realização das obras (“reparações, beneficiações, concertos e pinturas”), não podendo o tribunal socorre-se da equidade (art.4 CC ) havendo norma que legitima tal acordo (art.1111 do CC ), e não ocorre uma situação de abuso de direito ( art.334 CC ) porque “ (…) tendo em consideração o período de tempo a que se prolonga o contrato de arrendamento, o valor da renda anual paga pelos 1ºs réus e o custo das obras em questão nos autos (não menos do que €19.000), não se pode considerar ilegítimo o exercício do direito de resolução sem que os réus sejam indemnizados pelo custo das obras. Estamos a discutir um valor que se dilui no período de tempo em que se prolongou o arrendamento e no valor de renda que os 1ºs réus pagam (tanto mais se compararmos com o valor que actualmente auferem dos 2ºs réus) “.
         Os Réus/apelantes objectaram com a alteração da resposta ao quesito 10º, mas que não lograram, e reeditaram o abuso de direito.
         Como a sentença refutou de forma desenvolvida e convincente tanto o tópico da equidade, como o do abuso de direito, remete-se para a respectiva fundamentação.
            Refira-se que mesmo nos casos em que a obrigação de proceder à reparação da coisa locada compete ao senhorio, se entende que ela deve compaginar-se com o princípio da boa-fé ( art.762 nº2 do CC ) e com o princípio geral do equilíbrio das prestações. Assim, quando o custo das obras de reparação do locado se encontra em manifesta e clamorosa desproporção com o rendimento que propiciam ao locador, faz-se intervir o instituto do abuso do direito (cf., por ex., Ac do STJ de 3/4/86, BMJ 356, pág.315, de 7/10/98, BMJ 380, pág.362, Ac RC de 27/1/98, C.J. ano XXIII, tomo I, pág.16 ).
O núcleo essencial da argumentação assenta no princípio da proporcionalidade ou do equilíbrio das prestações, aflorado no art.237 do CC, já que sendo um princípio geral de direito é também aplicável ao contrato de arrendamento. Com efeito, dado o carácter sinalagmático do contrato de arrendamento, a sua onerosidade, como elemento essencial, postula uma “ equivalência de atribuições patrimoniais “, de tal forma que o ostensivo rompimento desse equilíbrio torna abusivo o exercício direito do arrendatário à realização das obras por parte do senhorio.
         Ora, se isto é assim para a efectivação das obras, por identidade de razão se deve acolher os mesmos princípios quanto ao reclamado valor das obras realizadas pelo arrendatário, sabido que a renda anual é de € 137,76, ou seja, se os Réus não poderiam exigir judicialmente ao senhorio a sua realização, também não poderão agora obter o respectivo custo, logo falta-lhes o direito.

         2.6. – Síntese conclusiva
1. Os fundamentos de facto, constantes da sentença, por si só não formam caso julgado material, de forma a imporem-se extraprocessualmente.
         2. Pedida judicialmente a resolução de um contrato de arrendamento com fundamento na sublocação não autorizada ( art.1083 nº2 e) CC ), ao senhorio, como factos constitutivos do direito, cabe o ónus da alegação e prova do contrato de arrendamento, da cedência do locado a terceiro e da sua não autorização, e ao réu ( arrendatário ) a prova de uma causa que legitime a cedência.
         3. Convencionando-se no contrato que as obras de reparação e beneficiação são da responsabilidade do arrendatário, não pode invocar-se a equidade, nem o abuso de direito, para impor ao senhorio o reembolso do custo das efectivamente realizadas.

III – DECISÃO
         Pelo exposto, decidem.
1)
         Julgar improcedente a apelação e confirmar a sentença recorrida.
2)
Condenar os Apelantes nas custas.
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Jorge Arcanjo (Relator)
Isaías Pádua
Teles Pereira