Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
554/06.8TBNLS.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: MARIA DOMINGAS SIMÕES
Descritores: DANO PRÉ-MORTE
ÓNUS DA PROVA
Data do Acordão: 10/07/2014
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: NELAS
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PARCIALMENTE REVOGADA
Legislação Nacional: Nº 3 DO ART.496º DO CC
Sumário: I. No que respeita ao denominado dano pré-morte, estão em causa os padecimentos sofridos pela vítima antes da sua morte, expressamente contemplados no segundo segmento do n.º 3 do art.º 496.º.

II. Tratando-se de danos que surgem e se radicam na titularidade da própria vítima, pressupõem sempre a morte não instantânea, variando “(…) em função de factores de diversa ordem, como sejam o tempo decorrido entre o acidente e a morte, se a vítima se manteve consciente ou inconsciente, se teve ou não dores, qual a intensidade das mesmas, a existirem, se teve consciência ou não de que ia morrer…”

III. Recaindo sobre o requerente da indemnização o ónus da prova do dano em causa, não se tendo apurado que a vítima sobreviveu ao embate, não há que arbitrar qualquer montante indemnizatório a este título.

Decisão Texto Integral: I. Relatório
A..., B... e C... instauraram contra a “Companhia de Seguros L..., S.A”, acção declarativa de condenação, a seguir a forma ordinária do processo comum, pedindo a final a condenação da ré no pagamento:

a) a todos os AA da quantia  global de €61.150,00;

b) à A. A... da quantia de € 95.200,00;

c) a cada um dos AA. B... e C.... da quantia de € 12.500,00.

Em fundamento alegaram, em síntese útil, que são, respectivamente, o cônjuge sobrevivo e os filhos de D..., falecido em consequência de acidente de viação ocorrido no dia 12/11/2003, na EN n.º 234, no concelho de Nelas, no qual foi interveniente quando tripulava o seu ciclomotor com motor com a matrícula 1-MGL-19-49, tendo sido embatido na parte traseira pelo veículo pesado de mercadorias com a matrícula NA0850BB, que circulava na sua retaguarda. O embate deveu-se a conduta culposa deste condutor que, pretendendo ultrapassar o ciclomotor, não adequou a velocidade a que circulava à manobra que intentava realizar, assim abalroando aquele veículo e provocando a queda do D....

A morte do cônjuge e pai dos autores foi causadora de danos de natureza patrimonial e não patrimonial que por esta via pretendem ver ressarcidos, sendo responsável a demandada seguradora, para a qual se encontrava transferida a responsabilidade civil emergente dos acidentes de viação em que o veículo pesado fosse interveniente, mediante contrato de seguro em vigor à data do acidente.

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Citada a Ré, apresentou contestação, na qual, defendendo-se por excepção, arguiu a sua ilegitimidade para a causa, uma vez que o veículo pesado se encontrava segurado na companhia de seguros “ L..., Compañia de Seguros e Reaseguros SA”, com sede em Barcelona, Espanha, sendo assim parte legítima o Gabinete Português da Carta Verde.

Em sede de impugnação alegou ter-se o falecido despistado sem a intervenção de terceiros, mais reputando em todo o caso de excessivos os valores peticionados.

Concluiu pela sua absolvição da instância, por ilegitimidade passiva, ou, caso assim se não entenda, pela sua absolvição do pedido.

Replicaram os AA., mantendo o alegado na petição inicial, tendo no entanto deduzido incidente de intervenção principal do Gabinete Português da Carta Verde, o qual foi admitido.

Regularmente citado, apresentou o GPCV contestação na qual impugnou igualmente os factos alegados pelos autores na petição inicial.

Requereu ainda a sua intervenção o Instituto da Segurança Social, IP (Centro Nacional de Pensões) que, com fundamento na versão do acidente apresentada pelos AA., pediu o reembolso do montante já pago à autora A... a título de subsídio por morte e pensão de sobrevivência, no valor de € 9.782,75, acrescido das pensões que se vencerem e sejam pagas na pendência da acção, até ao limite da indemnização a conceder, bem como nos juros de mora contados desde a citação até integral pagamento.

Também este pedido foi contestado, tendo a ré invocado mais uma vez a sua ilegitimidade passiva e impugnado os factos alegados no que concerne à dinâmica do acidente.

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Dispensada a realização da audiência preliminar, prosseguiram os autos com selecção dos factos assentes e organização da base instrutória.

Teve lugar audiência de discussão e julgamento, com observância do legal formalismo que da acta consta, tendo o Tribunal respondido a final à matéria de facto controvertida sem reclamação das partes.

Foi por fim proferida sentença que decretou:

“1. Absolver do pedido a Ré Companhia de Seguros L..., SA.

2. Condenar o Réu “Gabinete Português da Carta Verde” a pagar:

a) Aos Autores A..., B..., e C..., as seguintes quantias:

- € 4.000,00 (quatro mil euros), a título de danos não patrimoniais sofridos pela vítima, por sucessão, a que acrescem juros, à taxa legal, desde a presente decisão até integral pagamento;

- € 40.000,00 (quarenta mil euros), a título de danos não patrimoniais da vítima, pelo dano morte, a que acrescem juros, à taxa legal, desde a presente decisão até integral pagamento;

- € 100,00 (cem euros), a título de danos patrimoniais, a que acrescem juros de mora, à taxa legal, desde a citação até integral pagamento.

b) – Aos AA., individualmente: € 15.000,00 (quinze mil euros) à A. A..., por danos não patrimoniais próprios, a que acrescem juros, à taxa legal, desde a presente decisão até integral pagamento

- € 12.500,00 (doze mil e quinhentos euros) a cada um dos Autores B... e C..., num total de € 25.000,00, por danos não patrimoniais próprios, a que acrescem juros, à taxa legal, desde a presente decisão até integral pagamento;

c) - À Autora A...:

- € 40.000,00 (quarenta mil euros), a título de danos patrimoniais (lucro cessante), a que acrescem juros de mora, à taxa legal, desde a presente data até integral pagamento.

3. Condenar o Gabinete Português da Carta Verde a pagar ao Instituto da Segurança Social, IP (CNP), a quantia de € 9.782,75 (nove mil, setecentos e oitenta e dois euros, e setenta e cinco cêntimos), acrescida de juros contados desde a citação até integral pagamento, e ainda das pensões que se vencerem e forem pagas na pendência da acção, até ao limite da indemnização a conceder, acrescida de juros a partir da interpelação para o respectivo pagamento”.

Irresignado com o decidido, apelou o condenado GPCV e, tendo apresentado competentes alegações, rematou-as com as seguintes necessárias conclusões:

“1.ª No que concerne à apreciação da dinâmica do acidente, o Tribunal a quo fundou a sua convicção essencialmente nas declarações prestadas pela testemunha E..., tendo desconsiderado as declarações prestadas pela testemunha F..., prestadas em audiência de julgamento;

2.ª Porém, ambos os depoimentos são absolutamente coincidentes no que diz respeito à causa da queda isolada da motorizada tripulada pelo inditoso D..., e designadamente no que concerne ao embate do pesado no ciclomotor, ocorrência que nenhum confirma;

3.ª Para além da ausência de qualquer elemento de prova testemunhal que sustente a conclusão obtida pelo Tribunal “a quo” no que concerne ao embate entre tais veículos, temos ainda que nenhum outro elemento de prova objectivo sustenta tal conclusão;

4.ª Dos autos resulta ainda que a infeliz vítima mortal deste trágico acidente, conduzia a motorizada com uma taxa de álcool no sangue de 1,46 gr/litro, taxa esta que sempre determinaria deterioração marcada psicomotora e da fala, que condiciona de forma marcada a condução de veículos motorizados;

5.ª Deste modo, da prova produzida resulta, inequivocamente, a verificação de uma situação de queda inicial do ciclomotor, cenário com o qual o condutor do veículo pesado se deparou;

6.ª Assim, o Meritíssimo Juiz a quo julgou incorrectamente os pontos os pontos 15, 17 a 19 e 22, dos factos provado e, outrossim, os itens 39 e 42 da base instrutória.

7.ª Tendo por base o depoimento das testemunhas E... e F..., prestados na sessão de audiência de discussão e julgamento impunha-se decisão diversa sobre os supra aludidos pontos da matéria de facto controvertida;

8.ª Circunstância que implica a obtenção da conclusão de que a culpa na produção do acidente se ficou a dever, exclusivamente, ao falecido D...;

9.ª O Meritíssimo Juiz a quo julgou, também, incorrectamente os pontos 39º e 42º dos factos provados, que deveriam ser dados como provados, com base dos mesmos depoimentos testemunhais;

10.ª O Meritíssimo Juiz a quo julgou, ainda, incorrectamente o ponto 25. dos factos provados;

11.ª Na verdade, tendo em consideração o depoimento da testemunha E..., impunha-se decisão diversa quanto a esta matéria, concretamente quanto à verificação da morte instantânea por parte do inditoso;

12.ª Não sendo, por isso, devida qualquer indemnização pelo sofrimento da vítima, que não se apurou;

13.ª Por fim, Tribunal a quo errou na determinação do montante dos danos decorrentes dos lucros cessantes da Autora, ora Recorrida, que nunca serão superiores à quantia de €22.500,00.

14.ª A douta sentença recorrida fez errada interpretação e aplicação do preceituado nos artigos 483º, 496º, 562.º e 566º do CC do Código Civil”.

Com tais fundamentos conclui dever ser proferida decisão que, revogando a sentença impugnada, absolva o recorrente do pedido ou, no limite, reduza os montantes indemnizatórios em conformidade com o requerido.

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Contra alegaram os AA, pugnando pela manutenção do decidido.

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Indiscutido que pelo teor das conclusões se delimita e define o objecto do recurso, são as seguintes as questões submetidas à apreciação deste Tribunal:

i. da modificação da decisão da matéria de facto – erro de julgamento no que concerne aos factos assentes sob os n.ºs 15., 17., 18., 19., 21., 22. e 25. da sentença e ainda quanto aos vertidos nos art.ºs 39.º e 42.º;

ii. da errada interpretação e aplicação dos art.ºs 483.º, 496.º, 562.º e 566.º. todos do CC, no que concerne ao arbitramento dos montantes indemnizatórios destinados a compensar o dano não patrimonial sofrido pela própria vítima e dano patrimonial decorrente da perda de rendimento.

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i. da modificação da matéria de facto

Pretende o apelante ter ocorrido erro de julgamento no que concerne aos factos vertidos nos n.ºs 15., 17., 18., 19., 21., 22. e 25. da sentença, que, em seu entender, deveriam ter sido dados, todos eles, como não provados, ao invés do perguntado em 39.º e 42.º da base instrutória, aos quais, defende, deveriam ter sido dadas respostas positivas.

Argumenta, em sustento do invocado erro de julgamento, que razão não haveria para desconsiderar o depoimento prestado pelo condutor do pesado, a testemunha F..., em tudo coincidente àquele que antes prestara no decurso do inquérito que correu termos nos serviços do MP junto da comarca de Nelas e que findou com despacho de arquivamento. Acresce que a testemunha E..., determinante no processo formativo da convicção do Tribunal, não confirmou em parte alguma do seu depoimento ter visto o pesado embater no motociclo tripulado pela vítima mortal, cuja queda se deu sem intervenção de terceiro, ao que não terá sido seguramente alheia a apurada circunstância de ser então portador de uma TAS de 1,46 gr/l.

Mais defende que a morte da vítima foi imediata, não encontrando apoio em qualquer elemento de prova, e nomeadamente no depoimento do mesmo E..., o facto vertido em 25 da sentença recorrida.

Vejamos, pois, da razão que assiste (ou não) ao impugnante.

Os factos impugnados provêm das respostas dadas aos artigos 2.º, 5.º, 6.º, 7.º, 8.º, 10.º, 12.º e 15.º da base Instrutória, que se transcrevem, os quais foram respondidos como segue:

2.º) Nas circunstâncias de tempo e lugar descritas em A) e 1.º), o veículo 1-MGL (...) circulava dentro da sua faixa de rodagem a cerca de 50 centímetros da berma direita, atento o seu sentido de marcha descrito em B), a uma velocidade de cerca 40/50 Km hora?

Provado.

5.º) De forma inesperada, quando D... estava a descrever uma recta, atento o seu sentido de marcha descrito em B), dentro da sua faixa de rodagem e a cerca de 50 centímetros da berma do lado direito, foi abalroado pelo veículo NA0850BB, que circulava na sua retaguarda?

6.º) …tendo o veículo NA0850BB embatido com a sua parte frontal lateral direita na parte traseira direita do veículo 1-MGL-19-49?

Provado apenas que quando D... estava a descrever a recta referida em D), dentro da sua faixa de rodagem, o veículo 1-MGL-19-49, que tripulava, foi embatido na sua parte traseira pelo veículo NA0850BB, que circulava na sua retaguarda, e o pretendia ultrapassar.

7.º) Em consequência do descrito em 5.º) e 6.º) o veículo 1-MGL (...) e D... foram arrastados pela parte frontal lateral direita do veículo NA0850BB numa extensão de 15,30 metros?

Provado apenas que em consequência do descrito em 5º e 6º, o veículo MGL caiu, arrastando consigo D....

8.º) O condutor do veículo NA0850BB, quando se apercebeu que tinha embatido no veículo 1-MGL (...) e que arrastava consigo D... e o ciclomotor, desviou abruptamente o seu veículo para a faixa de rodagem esquerda, acabando por se imobilizar a mais de 50 metros do local do acidente, na faixa de rodagem esquerda atento o seu sentido de marcha descrito em B)?

Provado apenas que o condutor do veículo NA0850BB desviou o veículo para a faixa de rodagem esquerda, atento o sentido de marcha de ambos os veículos, imobilizando-se nessa faixa, uns metros à frente do local onde ocorreu o embate.

10.º) … ao passo que o corpo de D... se imobilizou junto ao eixo da faixa de rodagem, atento o sentido de marcha Nelas/Mangualde e a cerca de 2,5 metros do 1-MGL-19-49?

Provado.

12.º) Em consequência do descrito em A), 5.º) a 8.º) D... sofreu diversas feridas na cabeça, fractura pelo arco anterior da 4.ª, 5.ª e 6.ª costelas, fractura pelo arco posterior da 1.ª à 11.ª costelas, fractura da clavícula esquerda?

Provado.

15.º) … lesões que foram causa directa, necessária da sua morte, que ocorreu cerca de quinze minutos após o embate descrito em A), 1.º), 5.º) a 8.º)?

Provado.

39.º) Nas circunstâncias de tempo e lugar descritas em A) o ciclomotor e o seu tripulante, por razões que se desconhece, caíram no pavimento, sendo que o condutor do NA0850BB, perante tal queda, desviou o seu veículo para a hemi-faixa esquerda, atento o sentido de marcha descrito em B), de forma a evitar colher o ciclomotor e tripulante?

Não Provado.

[devido à TAS de que era portador o D... encontrava-se com a sua percepção das distâncias diminuída e tempo de reacção aos obstáculos normais retardado – art.º 41.º, respondido positivamente ]

42.º …e apresentava incoordenação motora e muscular que determinaram a sua queda?

Não Provado.

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Do elenco dos factos que, no entender do apelante, foram incorrectamente julgados, resulta claro que pretende ver sancionada a sua tese de que a vítima mortal caiu por si do motociclo que tripulava -facto justificado pela TAS de que era portador- recusando assim a versão, acolhida na decisão apelada, de que a queda se deu devido ao facto do pesado ter colidido com a traseira daquele outro veículo, que o precedia, na realização de descuidada manobra de ultrapassagem.

Destaca o apelante um excerto do depoimento do condutor do veículo pesado, no qual nega ter embatido no motociclo, e um outro, extraído do testemunho do dito E..., no qual reconhece não ter visto qualquer embate entre os dois veículos “porque levava um carro à sua frente”, assinalando ainda não ter visto esta testemunha qualquer dano na traseira do ciclomotor que denunciasse ter sido embatido.

Justificando a convicção alcançada, ponderou a Mm.ª juíza “a quo”:

“Quanto à forma como ocorreu o acidente, ponderou-se o fundamental depoimento dos condutores dos veículos que seguiam na retaguarda do motociclo, da seguinte forma:

- F..., condutor do pesado referido nos autos, que produziu um depoimento contraditório, afirmou ter visto um vulto na estrada, a 100 ou 150 metros de distância, virando o camião para a esquerda para o ultrapassar, admitindo poder ter embatido no corpo da vítima, quando este se encontrava já na estrada. Depois, mais à frente no seu depoimento, admitiu ter visto a motorizada passar à frente do restaurante situado antes da recta onde ocorreu o acidente, sem luzes, e que esta seguia à sua frente – não se percebendo como alega ter deixado de a ver, uma vez que declarou circular com os “médios” do camião ligados, e sendo certo que, atentas as características da mota, esta não seguiria a velocidade muito superior à do camião, de modo a que este a perdesse de vista. É que a testemunha declarou não ter visto a vítima cair, o que, na certeza que a vítima seguia à sua frente, se não aceita como verdadeiro.

- E..., viu passar em Nelas a motorizada, o camião e um Mitsubishi, seguindo atrás destes pela EN em direcção a Mangualde, descrevendo que, a seguir às bombas de gasolina que consabidamente antecedem a recta onde ocorreu o acidente, viu o camião desviar-se para a esquerda, o Mitsubishi a travar, tendo-lhe a testemunha embatido na traseira. Referiu ter visto, logo que saiu do seu veículo, a vítima na estrada, sem sinais de vida, e a motorizada, tombada sobre o lado esquerdo, com sinais de ter roçado, tendo o camião parado mais à frente do corpo. Esclareceu ter visto a mota a passar mesmo à frente do camião quando descreveram sucessivamente a curva que antecede a recta onde ocorreu o acidente (não sendo assim verdade o referido pelo condutor do camião – a saber, que perdeu a motorizada de vista -, que, como se disse, nem é consentâneo com a experiência comum, face às características dos veículos envolvidos), mais afirmando que aguardava aquela recta para ultrapassar a motorizada, já que todos seguiam ao seu ritmo, devagar, e ter ficado com a convicção de que o camião ia iniciar a ultrapassagem da mota, por não ter virado repentinamente para a esquerda, encontrando-se já a retomar o lado direito da faixa de rodagem quando parou.

Foi fundamental o depoimento desta testemunha para se concluir ter existido, de facto, um embate do camião na motorizada, que determinou a sua posterior queda, admitindo-se que o condutor nem tenha tido essa noção, face à dimensão do veículo que conduzia – poderá ter sido um pequeno toque, que seria o suficiente para fazer tombar e despistar-se a mota -, tendo passado algum do rodado sobre o corpo da vítima, após ter caído, conforme se admite na perícia elaborada no INML. Por outro lado, considerou-se a total isenção desta testemunha, sendo assim a sua credibilidade acrescida em relação ao condutor do camião interveniente no acidente, que, pese embora a sua entidade patronal não seja parte na acção, sempre poderá sofrer algum tipo de consequência laboral que se admite, e poderá determinar um depoimento que afaste uma sua culpa na produção de tão grave acidente”.

Ora, se não bastam à confirmação do julgado a mera consistência e coerência dos motivos enunciados pelo julgador, em ordem a fundamentar o processo formativo da sua convicção, não há dúvida que a Mm.ª juíza dele deu boa conta, apontando inequívocas inconsistências no testemunho prestado pelo condutor do pesado e as razões -atendíveis- pelas quais deu prevalência ao testemunho prestado por E.... E a verdade é que da audição dos aludidos depoimentos não se vê razão determinante para alterar a decisão proferida, isto no que à dinâmica do acidente diz respeito.

Com efeito, e pese embora o condutor do pesado não seja efectivamente parte na casa, em bom rigor não pode afirmar-se tratar-se de testemunha distanciada dos acontecimentos, tratando-se para além do mais de acidente de viação com tão graves consequências; ao invés, a testemunha E... surge claramente como desinteressada dos destinos da acção, por nenhuma responsabilidade nos factos lhe poder ser assacada, tratando-se de pessoa que não conhecia qualquer um dos intervenientes ou seus familiares. Por assim ser, surge como justificada a prevalência dada pela Mm.ª juíza “a quo” ao depoimento por esta última prestado, tanto mais que nele não foi detectada qualquer incoerência ou inconsistência.

Esta testemunha relatou que na rotunda que disse situar-se próxima do campo de futebol, na vila de Nelas, aguardou pela passagem do ciclomotor, seguido do camião com semi-trailer (o conjunto, segundo as declarações do seu condutor, a testemunha F..., media 18 mt), e de um veículo ligeiro de cor preta, da marca Mitsubishi, após o que prosseguiu a marcha, na retaguarda de todos aqueles veículos, seguindo no sentido Nelas-Mangualde, assim tendo prosseguido durante 1-2 Km, a uma velocidade que avaliou ser de 50 Km hora, aludindo depois a 40-50 Km. Referiu que, passadas as bombas de combustível ali existentes, descreveram todos os mencionados veículos a curva à direita ali existente, após o que entraram no troço de recta, na qual percorreram alguns metros, distância que não pôde precisar. E foi então que, segundo disse, viu o camião sair para o lado esquerdo da faixa de rodagem e parar de repente; o condutor que o precedia estacou também subitamente e a testemunha, embora tivesse guardado desta viatura uma distância prudente -precaução que diz ter tomado porque caía uma chuva miudinha e tinha conhecimento que o veículo que conduzia, um Fiat Punto, travava deficientemente- acabou por entrar em derrapagem em consequência da travagem que também efectuou, indo embater na viatura Mitsubishi. Esclareceu ter saído do veículo “para saber porque é que o outro senhor tinha travado de repente” e foi aí que olhou, viu a motorizada caída e o seu condutor estendido no chão, tendo-se dirigido para junto dele, constatando que não tinha sinais de vida. E se é verdade que, conforme o apelante destaca na transcrição, a testemunha respondeu francamente, a pergunta que nesse sentido lhe foi feita, que não tinha visto o camião colidir com o ciclomotor, não deixou de acrescentar “Não vi porque levava um carro à minha frente”.

Precisou ainda, quando perguntado, que a motorizada se encontrava junto à berma do lado direito, mas tombada sobre o seu lado esquerdo, não lhe tendo notado especiais danos, com excepção, disse, do punho e pedal do lado esquerdo, que tinham sinais de ter roçado. A vítima estava caída na faixa de rodagem, sensivelmente a meio, mas mais sobre o lado direito, próximo da mota, encontrando-se o camião parado sobre o lado esquerdo. Ressalvando não se recordar exactamente da posição do camião, aventou que estaria um bocadinho mais à frente (do corpo e da motorizada), não podendo precisar os metros.

A instâncias, reafirmou que desde a rotunda de Nelas a que fez referência, e até passarem as bombas, seguiram todos os mencionados veículos em fila, o ciclomotor seguindo junto à berma do lado direito, tendo-o avistado ainda quando descreveu a curva para a direita que precede a recta onde se deu o sinistro -curva ligeiramente ascendente- à frente do camião, altura em que os separava distância que não pôde precisar, mas disse ser inferior a 50 mt. Esclareceu ainda que antes dessa recta não é possível realizar a manobra de ultrapassagem, dada a existência de um traço contínuo desde a dita Rotunda, reconhecendo que estava ela própria, testemunha, à espera que os veículos que a precediam efectuassem manobra de ultrapassagem à motorizada, para a ultrapassar também e prosseguir viagem a uma velocidade mais elevada, uma vez que era aquele veículo, mais lento, que marcava a cadência dos demais.

Respondeu, a perguntas que lhe foram colocadas, que a sensação que teve foi que o camião tinha começado uma ultrapassagem, tendo-se imobilizado na faixa da esquerda, mas com o tractor a retomar já a faixa de rodagem do lado direito, acrescentando que “lá ao fundo vinha um pesado em sentido contrário”, que “depois do acidente chegou rapidamente ali”.

Já a testemunha F..., condutor do camião, declarou ter avistado o ciclomotor na zona mais iluminada das bombas de abastecimento, o qual circulava, segundo afirmou, sem luz traseira, tendo depois disso deixado de o ver. Descreveu a curva para a direita a que também a testemunha E... fez alusão, passou o cruzamento existente no troço da recta (no qual, disse, o ciclomotor poderia ter tomado destino diferente) e mais à frente, a cerca de 100 ou 150 mt, viu um vulto na estrada, sobre a metade direita da faixa de rodagem, não identificando do que se tratava. Travou, desviou-se para o lado esquerdo para ultrapassar o obstáculo, tendo-se então apercebido da motorizada na berma, motivo pelo qual, disse, “passei à frente e encostei”. Deu então conta de um choque entre os carros que seguiam à sua retaguarda, saiu e deparou-se “com aquele disparate ali na estrada”.

Perguntado sobre se tinha a noção de ter passado por cima do corpo, respondeu “O camião tem 18 mt de comprimento, ou eu passei com o desvio, com a traseira da galera, do reboque, aí não posso dizer se sim, se não, são 18 metros de comprimento...”

Esclareceu que circulava com as luzes médias acesas ligadas e a uma velocidade de 68-70 Km/hora. Mais declarou que a primeira vez que avistou o ciclomotor, na dita zona iluminada, este circularia uns 200 mt à sua frente, reiterando que quando avistou o vulto, que não identificou como sendo uma pessoa, este estaria a uma distância de 100-150 mt, negando ter em algum momento embatido no ciclomotor.

Afirmou -o que foi confirmado pela testemunha E...- que não deslocou o camião até à chegada das autoridades, só o tendo feito após ter sido autorizado, ficando assim por esclarecer qual o motivo pelo qual o participante fez constar do croquis que não mencionava o pesado por haver sido retirado do local. 

De referir, a propósito dos elementos constantes da participação policial, que o seu autor, a testemunha G..., advertiu para a circunstância do croquis não estar à escala e ainda para o facto de não poder assegurar o rigor das medições, uma vez que o ponto fixo inalterável encontrado distava cerca de 400 mt do local do sinistro, tendo ainda mencionado recordar-se de ser noite, estando muito escuro, tratando-se de local sombrio, sem visibilidade nenhuma, excepto a proporcionada pelas lanternas que usaram. Não deixou todavia de confirmar a existência de uma marca no asfalto, que atribuiu à queda do ciclomotor e seu posterior arrastamento, afiançando ser rigoroso o posicionamento deste veículo que ficou a constar do croquis.

Da conjugação destes depoimentos parece-nos evidente que as coisas se não passaram conforme relatou a testemunha F....

Antes de mais, atentas as características do ciclomotor tripulado pela vítima mortal e a velocidade a que o pesado seguia antes de se ter imobilizado -68-70 Km/h conforme referiu aquela testemunha, fazendo apelo ao disco do tacógrafo que na ocasião entregou à autoridade policial- configura-se como uma impossibilidade aquele primeiro veículo encontrar-se a uma distância tal que a queda ocorresse sem que o condutor do pesado de tal se apercebesse, ficando o corpo caído a uma distância de 100-150 metros.

Com efeito, seguindo o pesado e o ciclomotor a menos de 50 mt um do outro quando ambos descreveram a curva que antecede o troço de recta, e tendo o pesado aumentado a velocidade -note-se que, segundo a testemunha E... circulariam a uma velocidade de cerca de 40-50 Km/hora, determinada pelo andamento do ciclomotor- impõe-se concluir que a distância entre um e outro diminuiu drasticamente, resultando a versão apresentada pela testemunha F... numa impossibilidade. Aliás, a encontrar-se o obstáculo, o tal vulto que diz ter avistado, a uma distância de 100-150 mt, não se percebe qual a necessidade do condutor do pesado efectuar uma travagem brusca, já que tinha tempo e espaço para se desviar do obstáculo. E mesmo admitindo que o avistamento do veículo caído junto à berma o tivesse feito (só então) suspeitar de que o vulto que ultrapassava era o seu tripulante, razão não se vê para que não tivesse pura e simplesmente concluído a manobra, imobilizando o pesado mais à frente, junto à berma direita, sem causar entraves à circulação, para então se inteirar do que sucedera, de tudo decorrendo não poder aceitar-se como verdadeira a sua versão dos factos.

Inversamente, podemos assentar no facto de o pesado e ciclomotor seguirem a cerca de 40-50 Km/hora desde há cerca de 1-2 Km, este precedendo aquele, tendo descrito a curva que antecede o troço de recta onde ocorreu o sinistro separados por menos de 50 mt. Uma vez a circular na recta, o pesado aumentou a sua velocidade para 68-70 Km hora, tendo invadido a meia faixa da esquerda, em manobra que temos por correctamente lida pela testemunha E..., que seguia na sua retaguarda (com uma outra viatura de permeio embora), como sendo de ultrapassagem. É das regras da experiência ou presunções judiciárias que ao julgador não está vedado recorrer (cf. art.ºs 349.º e 351.º do CC-, que após 1-2 Km sem oportunidade de ultrapassar um veículo que circula a uma velocidade menor, o condutor do veículo mais rápido efectua a manobra de ultrapassagem tão logo tiver oportunidade de o fazer.

E foi nesta altura que o condutor do pesado efectuou uma travagem brusca (não se tratando portanto de travagem e desvio, ao contrário do que a testemunha F... afirmou), vindo a imobilizar o veículo sobre a hemi-faixa da esquerda, mas com o tractor a retomar já a metade direita da faixa de rodagem (posicionamento que indicia e confirma a realização daquela manobra), ficando o corpo caído sensivelmente e meio da faixa, mais para o lado direito, e o ciclomotor junto à berma desse mesmo lado, tal como figura no croquis cuja correcção, neste conspecto, foi assegurada pelo autor da participação.

Face aos referidos elementos probatórios, lícito se torna concluir que na realização da dita manobra de ultrapassagem o pesado colidiu com o ciclomotor, causando a queda deste e, por arrastamento, a do seu tripulante, acabando um ou mais dos rodados por passarem por cima do corpo, assim se secundando o juízo feito pela Mm.ª juíza “a quo”, não decorrendo deste relato que a taxa de alcoolemia de que o falecido era portador tivesse tido influência no acidente. E, por assim ser, mantém-se a decisão proferida no que se refere à factualidade vertida nos n.ºs 15., 17., 18., 19., 21., 22. da sentença apelada e, bem assim, no respeitante aos artigos 39.º e 42.º da BI, cujas respostas negativas igualmente se mantêm.

No que se refere ao ponto 25. dos factos assentes, pretende o apelante que se dê como provado que a vítima teve morte imediata, atento o teor do testemunho prestado pela testemunha E..., que declarou efectivamente não ter detectado no tripulante do ciclomotor sinais de vida quando dele se aproximou, sendo certo ainda que a gravidade das lesões sofridas sustentaria tal asserção. Sucede, porém, que, de seguro, sabemos apenas que a vítima chegou já cadáver ao Centro de Saúde de Nelas, altura em que foi certificado o seu óbito. Ora, aceitando-se que ocorreu antes desse momento, a verdade é que não foi o mesmo verificado e confirmado por quem detivesse competência para o efeito. Deste modo, e não podendo subsistir a resposta impugnada, inexiste igualmente prova com consistência bastante para dar como assente quanto pretende o impugnante. Daí que se altere o facto impugnado, dele passando a constar apenas que “25. As descritas lesões foram causa directa e necessária da sua morte”.

                                                                      *

II. Fundamentação

Estabilizada a matéria de facto, são os seguintes os factos a considerar (agora lógica e cronologicamente ordenados).

1. No dia 12 de Novembro de 2003, na Estrada Nacional n.º234, ao quilómetro 96,250, ocorreu um embate entre o ciclomotor de matrícula 1-MGL-19-49, conduzido por D..., seu proprietário, e o veículo pesado de mercadorias, de marca Mercedes, com reboque, com a matrícula NA0850BB, conduzido por F... (al. A).

2. O embate aludido em 1. ocorreu cerca das 18h40m (resposta ao art.º 1.º da BI).

3. Nas circunstâncias de tempo e lugar descritas em 1. estava a anoitecer, sendo que ambos os veículos já se encontravam com os médios ligados (resposta ao art.º 4.º da BI).

4. Nas circunstâncias de tempo e lugar descritas em 1., ambos os veículos circulavam no sentido Nelas/Mangualde, sendo que o veículo NA0850BB rodava à retaguarda do veículo 1-MGL (...) (al. B).

5. Nas circunstâncias descritas em 1., o tempo estava bom e o piso encontrava-se seco (al. C).

6. O local do embate descrito em 1. é uma recta com pelo menos 800 metros de comprimento (al. D).

7. Nas circunstâncias de lugar descritas em 1. e 6., a largura da faixa de rodagem, que permite a circulação nos dois sentidos, é de 6,70 metros, e no momento do embate não circulavam veículos no sentido contrário Mangualde/Nelas, existindo ainda uma berma de cada lado da estrada com um metro de largura (al. E).

8. Nas circunstâncias descritas em 1. e 6., F... circulava por conta e direcção da firma “ V..., S.A.”, com perfeito conhecimento desta (al. H).

9. Nas circunstâncias de tempo e lugar descritas em 1. e 6, o veículo 1-MGL (...) circulava dentro da sua faixa de rodagem, a cerca de 50 centímetros da berma direita, atento o seu sentido de marcha descrito em 4., a uma velocidade de cerca 40/50 Km hora (resposta ao art.º 2.º da BI).

10. Quando D... estava a descrever a recta referida em 6., dentro da sua faixa de rodagem, o veículo 1-MGL-19-49, que tripulava, foi embatido na sua parte traseira pelo veículo NA0850BB, que circulava na sua retaguarda, e o pretendia ultrapassar (resposta aos art.ºs 5º e 6º da BI).

11. Em consequência do descrito em 10., o veículo MGL caiu, arrastando consigo D... (resposta ao art.º 7.º da BI).

12. O condutor do veículo NA0850BB desviou o veículo para a faixa de rodagem esquerda, atento o sentido de marcha de ambos os veículos, imobilizando-se nessa faixa, uns metros à frente do local onde ocorreu o embate (resposta ao art.º 8.º da BI).

13. Na sequência do descrito, o 1-MGL (...) imobilizou-se perpendicularmente à faixa de rodagem, ficando a sua roda da frente a 6,10 metros da berma esquerda da faixa de rodagem contrária ao seu sentido de marcha (resposta ao art.º 9.º da BI).

14. Ao passo que o corpo de D... se imobilizou junto ao eixo da faixa de rodagem, atento o sentido de marcha Nelas/Mangualde e a cerca de 2,5 metros do 1-MGL (...) (resposta ao art.º 10.º da BI).

15. Em consequência do descrito em 1., e 10. a 14., D... sofreu diversas feridas na cabeça, fractura pelo arco anterior da 4.ª, 5.ª e 6.ª costelas, fractura pelo arco posterior da 1.ª à 11.ª costelas, fractura da clavícula esquerda (resposta ao art.º 12º da BI).

16. No coração sofreu laceração do ventrículo esquerdo na sua face posterior entre o bordo direito e o sulco interventricular posterior, na artéria pulmonar e seus ramos sofreu laceração da artéria pulmonar ao nível da bifurcação, na pleura parietal e cavidade da pleura direita sofreu laceração total do lobo inferior médio e parcial superior (resposta ao art.º 13.º da BI).

17. No pulmão esquerdo e pleura visceral sofreu laceração do lobo inferior, no diafragma apresentava laceração do centro frénico; feixes costais, esternais e lombares, laceração no cólon e no braço e fracturas na bacia, nos membros superiores e inferiores (resposta ao art.º 14.º da BI).

18. As descritas lesões foram causa directa e necessária da sua morte (resposta ao art.º 15.º da BI).

19. D... sofreu várias lesões que determinaram a sua morte (al. I).

20. Após o acidente, D... chegou já cadáver ao Centro de Saúde de Nelas (resposta ao art.º 22.º da BI).

21. Do relatório da autópsia realizada em 13.11.2003 ao falecido D... consta que das análises toxicológicas efectuadas naquela data revelaram no sangue a presença de álcool etílico na quantidade de um grama e quarenta e seis centigramas por litro (1,46 g/l) – al. G).

22. Nas circunstâncias de tempo e lugar descritas em 1., D... conduzia com a taxa de álcool no sangue descrita em 21. (resposta ao art.º 40.º da BI).

23. Devido a tal D... encontrava-se com a sua percepção das distâncias diminuída e tempo de reacção aos obstáculos normais retardado (resposta ao art.º 41.º da BI).

24. O falecido D... era uma pessoa com vigor, energia e força física, excepcionalmente activo, robusto, saudável e bem constituído (resposta ao art.º 17.º da BI).

25. O falecido tinha uma alimentação regrada (resposta ao art.º 18.º da BI).

26. Era uma pessoa equilibrada, feliz, dinâmica e sociável, trabalhadora, e dedicada à família e amigos (resposta ao art.º 19.º da BI).

27. E muito considerada no meio onde vivia (Moimenta do Dão) e no seu seio do seu círculo de conhecidos e colegas de trabalho (resposta ao art.º 20.º da BI).

28. Na altura do acidente, o falecido D... era trabalhador agrícola, desempenhando a sua actividade por conta e direcção de H..., na Q..., em Nelas, onde auferia uma retribuição anual de, pelo menos, € 3.990,38 (resposta ao art.º 23.º da BI).

29. Para além do descrito em 28., D... desenvolvia a criação de animais, tais como frangos, porcos, os quais aproveitava para fazer enchidos e presunto, e coelhos (resposta ao art.º 24.º da BI).

30. O falecido cultivava terras de familiares, das quais retirava vinho, azeite, grão-de-bico, alface, feijão, batatas, cenouras, tomates, cebolas, couves, além de fruta como laranjas, uvas, pêssegos e abrunhos (resposta ao art.º 25º da BI).

31. D... cultivava essas terras sozinho ou com a ajuda da mulher, aqui A., sendo sempre ele quem orientava, dirigia e planeava os trabalhos (resposta ao art.º 26.º da BI).

32. A maior parte dos produtos referidos em 29. e .30. eram levados por D... para casa, onde vivia em harmonia com a A., e por ambos consumidos, o que lhes permitia poupar mensalmente o que gastariam na mercearia na compra de tais produtos (resposta ao art.º 27º da BI).

33. A autora padece de dificuldades económicas (resposta ao art.º 29.º da BI).

34. O casal sobrevivia com o produto do trabalho de D... na Q..., e a agricultura de subsistência (resposta ao art.º 30.º da BI).

35. Não fora o acidente, D... continuaria a trabalhar por conta de outrem, e a prosseguir a sua actividade agrícola, até que a idade e a saúde lhe permitissem (resposta ao art.º 31.º da BI.

36. A autora era doméstica à data do óbito de D... (resposta ao art.º 34.º da BI).

37. Na altura do embate, D... e a autora formavam um casal feliz e unido, tendo a autora sofrido, e continua a sofrer, enorme mágoa, angústia, sentimento de perda e vazio pelo óbito daquele, tendo perdido a alegria de viver, sendo hoje uma pessoa triste, sem confiança e deprimida (resposta ao art.º 35.º da BI).

38. Em virtude do acidente, as roupas e relógio que D... trazia ficaram inutilizados (resposta ao art.º 28.º da BI).

39. Em consequência do acidente o motociclo 1-MGL (...) sofreu danos de valor aproximado a € 1.000,00, em 2003, e não foi reparado (resposta ao art.º 36º da BI).

40. Com base no óbito de D..., beneficiário n.º119031701 da Segurança Social, foram requeridas ao Instituto da Segurança Social, através do Centro Nacional de Pensões, as respectivas pensões por morte, tendo sido entregue à autora, a título de subsídios de morte, 2.139,60 €, e a título de pensões de sobrevivência no período de 2003.12 a 2007.04, o montante de 7.643,15 €, continuando aquele a entregar mensalmente à autora, enquanto esta se encontrar nas condições legais, a quantia mensal de 169,97 € (al. N) dos FA.

41. O veículo NA0850BB tinha a sua responsabilidade civil decorrente de danos causados a terceiros em virtude da sua circulação transferida para a “ L... – Compañía de Seguros y Reaseguros, SA”, sediada em Espanha, através da apólice n.º 012384197/00369, em vigor à data do acidente (fls. 302-303), de que a R. L... é correspondente (resposta ao art.º 44.º da BI).

42. D..., nascido no 02 de Novembro de 1950, filho de I...e de J..., contraiu casamento católico, na idade de 23 anos, sem convenção antenupcial, no dia 31 de Agosto de 1974, com A..., na altura.com 21 anos de idade (al. F).

43. B... nasceu no dia 06 de Junho de 1975, constando do respectivo assento de nascimento n.º194 que o seu pai é D... e a sua mãe A... (al. J).

44. C... nasceu no dia 28 de Abril de 1980, constando do respectivo assento de nascimento n.º3848 do ano de 2008 que o seu pai é D... e a sua mãe A... (al. L).

45. Correu termos pelos Serviços do Ministério Público deste Tribunal o Processo de Inquérito com o n.º203/03.6GBNLS, no qual era arguido F..., tendo o mesmo sido objecto de despacho de arquivamento (al. M).

    *

De Direito

Tratando-se de acção tendo em vista a efectivação de responsabilidade civil extracontratual emergentes de acidente de viação, mister é sindicar a verificação dos pressupostos consagrados no art.º 483.º do Código Civil[1].

Colocava o apelante em causa que o evento danoso tivesse ficado a dever-se a conduta culposa do condutor do pesado. Todavia, e como é bom de ver, o êxito desta sua pretensão em muito dependia da requerida modificação da decisão proferida sobre a matéria de facto, a qual não mereceu acolhimento por banda deste Tribunal.

A propósito, cumpre desde logo recordar que, tal como assinalado na sentença recorrida, sobre o condutor do pesado, atenta a factualidade descrita nos pontos 1. 6. e 8., impendia a presunção de culpa consagrada no n.º 3 do art.º 503.º. E a verdade é que o elenco dos factos assentes não permite concluir pela sua ilisão, antes resultando demonstrado que a colisão ficou a dever-se à realização de manobra de ultrapassagem em condições irregulares, por inobservância do comando contido no art.º 38.º, n.º 1 do Código da Estrada. E se é verdade que o condutor do ciclomotor era portador de uma TAS em muito superior à legalmente permitida, com prejuízo para a sua percepção das distâncias e tempo de reacção aos obstáculos normais, a verdade é que tal estado nenhuma influência teve no embate, atenta a apurada dinâmica do acidente.

Daí que se confirme o juízo de culpa formulado na sentença apelada, para cuja fundamentação aqui se remete.

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Dos montantes indemnizatórios

Em via subsidiária pretende a apelante a redução dos montantes indemnizatórios, reputando de indevido o atribuído para compensar o denominado dano pré-morte, e excessivo o atribuído à autora A... a título de “lucros cessantes”, que entende não dever ser fixado em montante superior a € 22 500,00.

Vejamos da justeza de tais pretensões.

No que respeita ao denominado dano pré-morte, estão em causa os padecimentos sofridos pela vítima antes da sua morte, expressamente contemplados no segundo segmento do n.º 3 do art.º 496.º. Trata-se de danos que surgem e se radicam na titularidade da própria vítima, pressupondo sempre a morte não instantânea, variando “(…) em função de factores de diversa ordem, como sejam o tempo decorrido entre o acidente e a morte, se a vítima se manteve consciente ou inconsciente, se teve ou não dores, qual a intensidade das mesmas, a existirem, se teve consciência de que ia morrer…”[2]

Ora, no caso vertente, não tendo resultado apurado que o condutor do ciclomotor, marido e pai dos demandantes, perdeu de imediato a vida, certo é também que não lograram estes demonstrar -ónus da prova que sobre eles inequivocamente recaía, consonante dispõe o n.º 1 do art.º 342.º- que a vida se prolongou para lá do sinistro e, sobretudo, que a vítima sofreu dores e se manteve em sofrimento. Face à ausência de factos relevantes, fica sem suporte a arbitrada compensação “pelas dores e sofrimento da vítima”, procedendo, nesta parte, o recurso interposto.

No que respeita à quantia de € 40 000,00, arbitrada à apelada A..., “a título de danos patrimoniais (lucro cessante)”, dispõe o n.º 3 do art.º 495.º que, em caso de morte ou lesão corporal, têm igualmente direito a indemnização os que podiam exigir alimentos ao lesado ou aqueles a quem o lesado os prestava no cumprimento de uma obrigação natural. Note-se que não está aqui em causa um qualquer direito genericamente concedido a um terceiro pela perda de rendimentos decorrente da morte de alguém, enquanto dano de natureza patrimonial futuro, quer atribuído directamente, quer por via sucessória, que a nossa lei em lado algum reconhece.

 “Com efeito, o problema da indemnização em caso de morte é tratado, de forma global e específica, quanto aos danos patrimoniais, pelo citado art.º 495.º, atribuindo-se a determinadas pessoas um direito próprio a serem reparadas. E sendo tal norma excepcional, como já visto, concedendo um direito à indemnização nela previsto, só os danos que aí se contemplam é que podem ser ressarcidos, sendo certo que as pessoas aí indicadas, terceiros em relação ao lesado, não podem pedir outros danos, quer por elas próprias, quer a título de sucessores da vítima mortal. Não podendo, assim, fora das hipóteses em tal preceito contempladas, serem peticionados outros danos patrimoniais pela morte da vítima.”[3]

Decorre do que vem de se expor que são titulares de direito a indemnização, a coberto desta disposição excepcional,[4] aqueles que podiam exigir alimentos ao lesado (ainda que ao tempo não estivessem a recebê-los).

No caso vertente, assente e aceite que os filhos da vítima não reuniam condições para exigirem alimentos ao falecido progenitor, resultou todavia apurado que a autora A..., cônjuge sobrevivo, era, à data do óbito do D..., doméstica, sobrevivendo o casal com o produto do trabalho assalariado daquele e da agricultura de subsistência que também praticava, de modo que se encontra agora em situação económica difícil, dispondo apenas da pensão de sobrevivência no valor de € 169,97 que lhe foi atribuída.

Mais se apurou que o falecido auferia da sua actividade por conta e direcção de H..., na Q..., em Nelas, a retribuição anual de, pelo menos €3.990,38, a que acrescia a poupança representada pela criação de animais, tais como frangos, porcos e coelhos, a que também se dedicava, tudo acrescido dos produtos que cultivava com a ajuda da esposa, tais como vinho, azeite, grão-de-bico, alface, feijão, batatas, cenouras, tomates, cebolas, couves, além de fruta como laranjas, uvas, pêssegos e abrunhos, que eram, na sua maior parte, consumidos pelo casal.

Face aos parcos rendimentos do trabalho auferidos pelo falecido, que careciam de ser complementados com a criação de animais e a prática de agricultura de subsistência, e não vindo embora quantificado este rendimento suplementar, parece contudo ser de aceitar sem contestação que metade dos proventos do D... eram destinados à satisfação das necessidades da demandante, que consigo vivia em economia comum. Igualmente indiscutido nos autos que o cônjuge é titular do direito a alimentos, nos termos do art.º 2009.º e encontrando-se a demandante A... em condições de os exigir ao seu falecido marido, integra esta a categoria dos titulares do direito a indemnização contemplados no citado n.º 3 do art.º 495.º.

Deste modo, estimando-se que o rendimento global do falecido atingia os € 5 500,00 anuais, fazendo acrescer aos proventos do trabalho por conta de outrém o valor estimado de € 1 500,00 provenientes das actividades de criação de animais e agrícola, era a autora beneficiária de € 2 750,00. Contando o falecido 53 anos de idade à data do óbito e sendo pessoa saudável e robusta, não custa aceitar, em juízo de normalidade, que desenvolvesse tais actividades por 17 anos mais, obtendo-se o valor de € 46 750,00. E se é certo que o recebimento de uma só vez de uma quantia que se receberia ao longo de 17 anos representa um benefício, dada a possibilidade de a rentabilizar, não pode olvidar-se que, com toda a probabilidade, o falecido viria a registar uma evolução salarial positiva que, a despeito da situação financeira que o país atravessa, não tem deixado de se verificar no que respeita ao salário mínimo. Daí que se conclua não merecer censura o valor encontrado de € 40 000,00.

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III. Decisão

Em face do exposto, e na parcial procedência do recurso, acordam os juízes da 1.ª secção cível deste Tribunal da Relação de Coimbra em revogar a sentença recorrida, no segmento em que condenou o Réu “Gabinete Português da Carta Verde” a pagar aos AA a quantia de € 4.000,00 (quatro mil euros), a título de danos não patrimoniais sofridos pela vítima, por sucessão, acrescidos de juros, subsistindo quanto ao mais.

Custas do recurso a cargo de apelante e apelados na proporção dos seus decaimentos.

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Maria Domingas Simões (Relatora)

Nunes Ribeiro

Helder Almeida

[1] Diploma ao qual pertencerão as demais disposições legais que vierem a ser citadas sem menção da sua origem.

[2] Ac. STJ de 28/11/2013, processo n.º 177/11.0TBPCR.S1, acessível em www.dgsi.pt.

[3] Do aresto citado na nota anterior.

[4] Enquanto excepção ao princípio geral de que apenas o titular do direito violado ou do interesse imediatamente lesado, tem direito a ser indemnizado.