Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
4648/17.6T8LRA-C.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: BARATEIRO MARTINS
Descritores: RESOLUÇÃO EM BENEFÍCIO DA MASSA INSOLVENTE
ACÇÃO DE IMPUGNAÇÃO
DAÇÃO EM CUMPRIMENTO
PRESUNÇÃO DE PREJUDICIALIDADE
PRESUNÇÃO DE MÁ FÉ
Data do Acordão: 07/10/2019
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE LEIRIA - LEIRIA - JUÍZO COMÉRCIO - JUIZ 1
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTS. 49, 120, 121, 123, 125 CIRE, 343 CC
Sumário: 1.- A acção/impugnação judicial da resolução em benefício da massa insolvência assume a natureza duma acção declarativa de simples apreciação negativa, competindo assim ao réu a alegação e prova dos factos constitutivos dos fundamentos invocados para efeitos de resolução em benefício da massa insolvente.

2 - O pagamento de dívida vencida após o devedor estar já em situação de insolvência não é ilegal, porém, caso não corresponda a um padrão usual no comércio jurídico, é impugnável.

3 - É o que sucede quando a globalidade dos bens do devedor é entregue ao credor em dação em cumprimento, o que produz a suspeita do credor pretender pagar-se fora do concurso e do devedor o querer beneficiar, hipótese que configura uma verdadeira liquidação antecipada e instantânea do património do devedor em benefício de um único credor, o que constitui o acto referido no art. 121.º/1/g) do CIRE e preenche a presunção de prejudicialidade constante do art. 120.º/3 do CIRE.

4 – Tendo sido o acto resolvido – dação em cumprimento – celebrado pela mesma pessoa singular, na dupla veste de gerente único da devedora/insolvente e da impugnante (ambas sociedades por quotas), nele participou (como representante da impugnante) pessoa especialmente relacionada com a insolvente, o que preenche, por presunção (cfr. art. 121.º/4 e 49.º/2/c) do CIRE), o requisito da má-fé.

Decisão Texto Integral:





Acordam na 1.ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra

I – Relatório

“D (…), Lda.”, com os sinais dos autos, intentou (por apenso ao processo de insolvência de “S (…) Lda.”) a presente acção declarativa com processo sumário contra a Massa Insolvente da “S (…)Lda.”, impugnando a declarada (pelo A. I.) resolução em benefício da massa do acto, designado como de “compra e venda”, celebrada no dia 04/03/2016 (entre a insolvente, como vendedora, e a impugnante, como compradora) e referente aos seguintes bens: 1 computador Asus X555LD; 1 computador Pentium I3 4000; 1 câmara de vídeo RID47163; 1 localizador/esgoto RID 19243; 1 veículo marca Citroën, modelo Berlingo, 1,6 HDI, matrícula (...) ; 1 máquina de desentupir de alta pressão ROM Economic 200/72; 1 veículo da marca Ford, modelo Transit, matrícula (...) .

Alegou que, tendo decorrido mais de 1 ano entre a data do acto e o início do processo de insolvência, “deve ser declarado caducado o direito de resolução incondicional do negócio em apreço e ineficaz a resolução declarada pelo Sr. AI[1]”; e que não estando preenchidos “os pressupostos previstos para a resolução da compra e venda de bens móveis realizada em 04/03/2016, (…) padece a declaração de resolução de nulidade[2], acrescentando que, “ainda que assim se não entenda, sempre a declaração de resolução deve ser revogada, por ausência da verificação dos respectivos pressupostos, devendo manter-se válida e eficaz a venda de 04/03/2016[3].

Mais alegou/explicou que o gerente da insolvente decidiu, em 04/03/2016, vender à impugnante, pelo preço global de € 32.150,00, os móveis em questão para liquidar parte do empréstimo, de € 60.000,00, que a impugnante lhe (à insolvente) havia feito (em 17/04/2014 e em 10/07/2014); dinheiro de tal empréstimo com que a insolvente havia comprado os móveis (máquinas e ferramentas), agora (em 04/03/2016) vendidos à impugnante, sendo que os mesmos foram vendidos pelo seu valor real de mercado, o que, tudo junto, demonstra que a compra e venda em causa “em nada prejudica ou impede a satisfação dos direitos dos credores da insolvente[4] e que “não houve má-fé da parte da impugnante[5].

A Massa Insolvente contestou

Alegou, em síntese e de mais relevante, que o negócio efectuado entre a insolvente e a aqui A. teve natureza gratuita, tendo sido a forma encontrada (por ambas, insolvente e aqui A.) de dissipar os bens da insolvente, colocando-os no património duma sociedade com esta especialmente relacionada, de forma a prejudicar a garantia dos seus credores; razão porque foi prejudicial para a massa insolvente, que ficou privada de bens móveis de valor materialmente relevante.

Mais alegou que era do conhecimento directo da A. a situação de insolvência em que se encontrava a sociedade agora insolvente, uma vez que os sócios e gerente de ambas as sociedades são os mesmos; que o valor de mercado dos bens em causa é manifestamente superior ao valor constante da factura da alegada compra e venda; e que a A. é pessoa especialmente relacionada com a insolvente, nos termos do disposto no artigo 49.º do CIRE.

Concluiu pois “que se verificam não só todo os requisitos da resolução condicional do artigo 120.º do CIRE, como também o requisito da resolução incondicional de tal negócio por se tratar de um acto celebrado pelo devedor a título gratuito dentro dos dois anos anteriores à data do início do processo de insolvência[6].

Termina pedindo a improcedência da acção.

Foi realizada audiência prévia, elaborado o despacho saneador – em que se julgou improcedente a invocada caducidade da resolução e em que se declarou a instância regular, estado em que se mantém – identificado o objecto do litígio e enunciados os temas de prova

Designada e realizada a audiência de discussão e julgamento, a Exma. Juíza proferiu sentença, em que julgou “a presente acção improcedente, mantendo válida a resolução efectuada pelo Sr. Administrador da Insolvência”.

Inconformada, interpõe a A. o presente recurso de apelação, visando a sua revogação e a sua substituição por decisão que revogue o decidido e que julgue a acção totalmente procedente.

Terminou a sua alegação com as seguintes conclusões:

“(…)

(…)

A R. respondeu, sustentando, em síntese, que a sentença recorrida deve ser mantida nos seus precisos termos.

Obtidos os vistos, cumpre, agora, apreciar e decidir.


*


II – “Reapreciação” da decisão de facto

Como “questão prévia” à enunciação dos factos provados, importa – atento o âmbito do recurso da A./apelante – analisar as questões a propósito da decisão de facto colocadas a este Tribunal.

Pretende a A/apelante:

Que a alínea e) dos factos não provados – em que se deu como não provado que "os automóveis, máquinas e ferramentas vendidos pela Insolvente à " D (...) , Lda." foram-no por valor real de mercado" – passe a integrar os factos provados; e

Que se dê como provado que, "à data da venda referida no ponto 19 dos factos provados (04/03/2016), a insolvente ainda não tinha pago à autora a quantia de € 60.000, que esta lhe tinha emprestado através dos depósitos mencionados no ponto 17 dos factos provados".

Não tem razão em tais pretensões.

Quanto a este último facto, quer por o mesmo já decorrer dos factos provados (como resulta do ponto 19 dos factos provados, em que se diz que os bens foram entregues “por conta do montante de € 60.000,00”), quer por o “não pagamento” não ser um facto que seja necessário dar como provado, uma vez que é o pagamento (facto extintivo que é do ónus da prova de quem o invoca) que interessa, sucedendo que este não foi sequer invocado (ou seja, em termos jurídico-processuais, provado o facto constitutivo duma obrigação, o pagamento tem-se como não verificado se este não estiver alegado/provado).

Quanto à alínea e) dos factos não provados – cuja prova, como se verá na fundamentação jurídico substantiva, não é juridicamente relevante – por não se haver feito prova bastante dos bens haverem sido transmitidos pelo valor real de mercado; assim como não se fez prova bastante do contrário (daí que se também haja dado como não provado o facto constante da alínea f)). Ou seja, a propósito do valor real de mercado dos bens, a prova produzida coloca-nos perante uma situação de “non liquet”.

O contabilista – (…) – “abonou” o valor contabilístico dos bens, não se referindo verdadeiramente a valores reais de mercado; o confronto entre os valores de aquisição e os declarados como de transmissão também não permitem qualquer conclusão (daí, repete-se, ter-se dado como não provado quer o que consta da alínea e) quer o que consta da alínea f)), uma vez que, aludindo às 3 verbas mais importantes, temos que, no espaço de 16 meses, o que foi comprado por € 9.586,01 foi transmitido por € 5.500,00, o que foi comprado por € 30.750,00 foi transmitido por € 19.000,00 e o que foi comprado por € 9.500,00 foi transmitido por € 5.000,00; e o depoimento do Nuno Carreira (canalizador de profissão) também foi um pouco vago, limitando-se a aludir ao uso que os bens transmitidos já tinham.

Portanto, em face de tal prova, bem andou a decisão recorrida ao dar como não provado o facto constante da alínea e) dos factos não provados.

Julga-se pois totalmente improcedente o “recurso de facto”.


*

III – Fundamentação de Facto

III – A – Factos provados

1. Por acção entrada em juízo a 23 de Novembro de 2017, A (…)requereu a insolvência de “S (…), Lda.”.

2. A sociedade “S (…), Lda.” tinha como objecto social a actividade da colocação e reparação de canalizações e a compra e venda dos respectivos materiais.

3. Por sentença proferida a 31.01.2018, já transitada em julgado, foi declarada a insolvência de “S (…), Lda.” e nomeado Administrador da Insolvência o Sr. (…)com domicílio profissional (…)

4. Apresentada a lista definitiva de credores, nos termos do disposto no artigo 129.º, do CIRE, pelo Sr. Administrador da Insolvência foram reconhecidos créditos a 20 credores, ascendendo os respectivos créditos ao valor global de € 150.876,95.

5. O relatório elaborado pelo Sr. Administrador da Insolvência nos termos do disposto no artigo 155.º, do CIRE, foi apresentado nos autos a 19.03.2018.

6. A assembleia de credores para apreciação do relatório teve lugar no dia 26.03.2018, na qual foi deliberado o prosseguimento dos autos para liquidação e o encerramento da actividade do estabelecimento da insolvente.

7. O Administrador da Insolvência enviou à Autora, por via postal registada com aviso de recepção, que a Autora recebeu, a carta datada de 12.07.2018, de cujo teor consta, nomeadamente, o seguinte:

“ Venho, na qualidade de representante da Massa Insolvente “S (…), Lda.” e ao abrigo do disposto nos artigos 120.º a 127.º, do CIRE, notificar V/Exa. do seguinte:

1. Tive conhecimento, que no passado, dia 4 de Março de 2016, foi celebrado um contrato de compra e venda, na qual a sociedade “S (…)Lda.” vendeu a Vª. Ex.ª vários bens móveis, nomeadamente, 2 computadores, 1 câmara de vídeo, 1 localizador de esgoto, 1 máquina de desentupir alta pressão, e 2 veículos de mercadorias, que compunham o imobilizado e o equipamento de transporte da sociedade insolvente.

2. De acordo com os elementos da contabilidade e na sequência do referido contrato a empresa insolvente emitiu uma fatura com o n.º 02/707, datada de 4 de Março de 2016, cujo valor aponta os 32.150,00 €.

3. E foi ainda emitida uma declaração, com data de 4 de Julho de 2016, fazendo nela constar que foi recebida a quantia de 32.150,00 €, inexistindo contudo qualquer comprovativo de pagamento de tal montante.

4. O valor indicado no contrato de compra e venda (32.150,00) dificulta ou impede a satisfação dos direitos dos credores, dada a inexistência de qualquer contrapartida para a insolvente em virtude de não ter entrado na conta bancária da insolvente o valor atribuído à venda que “supostamente” havia sido celebrada.

5. Assim, é manifesta a prejudicialidade de tal alienação para a massa insolvente, como consequência da ausência da alegada contrapartida prestada, sendo certo que o valor dos referidos bens indicados na factura, são manifestamente inferiores ao valor de mercado dos mesmos.

6. Nesse sentido, V.Exª. obteve da sociedade “D (…), Lda.” vários bens que compunham o imobilizado da sociedade de valores materialmente relevantes, melhor descriminados na Fatura 02/207, propriedade da ora insolvente, a título gratuito.

7. Sucede que, à data da respectiva alienação, já a insolvente sabia que detinha dívidas em montantes elevados, que já era notório o seu estado de insolvência, pelo que, desta forma, ao celebrar o negócio supra, entendeu a insolvente forma de dissipar os seus bens para se furtar às suas obrigações.

8. Acresce ainda que, o contrato de compra e venda dificulta ou impede a satisfação dos direitos dos credores, dada a natureza volátil da contrapartida, sendo que, no caso em concreto não foi realizado qualquer pagamento, sendo manifesto o desfasamento ostensivo entre o valor dos bens e a contrapartida prestada (inexistente).

9. Tais factos eram do conhecimento directo de V/Exª., tanto mais que com aquela sociedade insolvente é especialmente relacionada – o gerente da sociedade “D (…) Lda.” é o mesmo da sociedade Insolvente, tem a mesma identidade de sócios, e até Fevereiro de 2018, a mesma sede da sociedade, sendo certo que, essa relações subsistiam no momento da aquisição.

10. Porquanto era do conhecimento de V/Exa. e estado da insolvência em que se encontrava a sociedade ora insolvente – “S (…) Lda.” – sendo V/Ex.ª pessoa especialmente relacionada nos termos do artigo 49.º, n.º2, al.a) e d), do CIRE.

11. Assim sendo, como é, bem sabia V/Ex.ª que a Insolvente não seria capaz de assumir as suas obrigações já constituídas, sendo apenas uma questão de tempo até à sua insolvência, a qual, em bom rigor, já deveria ter ocorrido em momento anterior.

12. Por tudo quanto se descreveu, no momento em que o negócio em crise foi celebrado, encontrava-se V/Ex.ª de má-fé nos termos do disposto no artigo 120.º, n.º5 do CIRE, porquanto, além de ter conhecimento directo que a sociedade insolvente “S (…), Lda.”, não tinha capacidade para cumprir com as suas obrigações e que a sua insolvência era iminente, também sabia que a respectiva alienação/transmissão, sem a concernente contrapartida, era prejudicial porque diminuía, frustrava, dificultava, punha em perigo ou retardava a satisfação dos credores da insolvência.”

(…)

Declaro, com efeitos imediatos, resolvido o contrato celebrado a 4 de Março de 2016, em benefício da massa insolvente.

8. A presente acção de impugnação da resolução em benefício da massa deu entrada em juízo em 1 de Agosto de 2018.

9. Até ao dia 19/03/2014, o Requerente da insolvência, A (…)e ex-mulher eram os únicos da insolvente e o primeiro o único gerente da mesma.

10. Em 19.03.2014 A (…) e M (…)  cederam a totalidade das suas quotas aos actuais sócios (…).

11. A (…) renunciou à gerência e foram nomeados gerentes N (…) e os sócios F (…) e S (…), tendo estes dois últimos renunciado ao cargo em 10/04/2014.

12. Quando os actuais sócios tomaram posse das instalações e do activo da insolvente esta detinha apenas uma carrinha marca Citroen, com a matrícula (...) e um veículo Ford Transit, com a matrícula (...) , com cerca de 250.000Km e 13 anos de idade.

13. A carrinha marca Citroen, com a matrícula (...) ficou na posse do cedente das quotas, A (…).

14. Os stocks eram apenas constituídos por material obsoleto, ultrapassado e fora de uso, sem qualquer valor comercial.

15. A sociedade insolvente não tinha dinheiro, nem crédito bancário.

16. A Autora, por intermédio do seu gerente N (…), em 14.04.2014, solicitou junto da C (…), S.A. um empréstimo no valor de € 75.000,00.

17. A Autora procedeu ao depósito da quantia global de € 60.000,00 na conta da insolvente, que se processou da seguinte forma:

a. Em 17.04.2014, a Autora depositou na conta bancária da insolvente, com o n.º (...) , do M (…) a quantia de € 40.000,00, através do cheque n.º (...) da CGD;

b. Em 07.07.2014, a Autora depositou na mesma conta da insolvente a quantia de € 20.000,00, através do cheque n.º (...) .

18. Com tais quantias, entre 31.07.2014 e 05.11.2014 a insolvente procedeu à aquisição do veículo, máquinas e ferramentas constantes das facturas juntas aos autos como doc.9-11.

19. Em 4.03.2016 o gerente da insolvente, por conta do montante de € 60.000,00, decidiu entregar à Autora, da qual também é gerente, o veículo da marc Ford, modelo Transit, matrícula (...) , bem como os bens referidos em 17., designadamente,

a. 1 computador Asus X555LD;

b. 1 computador Pentium I3 4000;

c. 1 câmara de vídeo RID47163;

d. 1 localizador/esgoto RID 19243;

e. 1 veículo marca Citroen, modelo Berlingo 1,6 HDI, matrícula (...) ;

f. 1 máquina de desentupir de alta pressão ROM Economic 200/72;

20. Em consequência, e para efeitos contabilísticos, pela insolvente foi emitida em nome da Autora a factura n.º FT 02/707, no valor de € 32.150,00, relativa aos bens identificados em 19., tendo ainda emitido o recibo com o n.º RC 02/745, no valor de € 32.150,00.

21. À data da transmissão dos bens para a Autora, nos termos consignados a 19., a insolvente era devedora de quantias a vários credores.

22. A Autora conhecia a situação económico-financeira em que se encontrava a sociedade insolvente.


*

III – B – Factos não Provados

Não se provou que:

a) Quando os actuais sócios tomaram posse das instalações e do activo da insolvente, constataram uma situação que nada tinha a ver com o que lhes tinha sido anunciado por A (…).

b) O anterior sócio tinha levado todas as máquinas e ferramentas.

c) Só após terem tomado posse da sociedade insolvente é que os sócios se aperceberam da situação, pois acreditaram no que lhes dissera Agostinho da Conceição Antunes, no sentido de que a sociedade só precisava de um novo impulso para ser lucrativa, pois tinha stock e clientes.

d) A carrinha de marca Citroen, com a matrícula (...) valia cerca de € 8.000,00.

e) Os automóveis, máquinas e ferramentas vendidos pela insolvente à “D (…), Lda.” foram-no por valor real de mercado.

f) O valor constante da factura referida em 19. encontra-se completamente desfasado, sendo manifesta a diferença existente entre o valor real e o valor pelo qual constam ter sido alienados.


*

IV – Fundamentação de Direito

Estamos, como resulta de tudo o que já foi dito, na acção de impugnação da resolução (de actos, segundo o AI, prejudiciais à massa insolvente) prevista no art. 125.º do CIRE.

Acção/impugnação judicial da resolução (operada pelo AI) que, é pacífico, assume a natureza duma acção declarativa de simples apreciação negativa, competindo assim à R. a alegação e prova dos factos constitutivos dos fundamentos invocados para efeitos de resolução em benefício da massa insolvente.

Significa isto – competindo à R. a prova dos fundamentos da resolução declarada (cfr. 343.º/1 do C. Civil) – que os fundamentos (factos constitutivos da resolução) que tem que provar são os que já fez constar da própria declaração resolutiva, pelo que, revestindo a declaração resolutiva (em benefício da massa insolvente) forma extrajudicial (cfr. 123.º/1 do CIRE), é na carta registada a que se reporta o art. 123.º do CIRE que os factos constitutivos da resolução devem constar e estar invocados[7].

É o caso: estamos, antecipando o desfecho do recurso, perante uma situação em que a carta registada contém os fundamentos (factos constitutivos) para a resolução em benefício da massa; não se mostram verificados, é certo, todos os fundamentos invocados na carta registada – como bem se expôs na decisão recorrida, apenas os fundamentos da “resolução condicional” do art. 120.º do CIRE se verificam – porém, o que se mostra verificado constitui fundamento suficiente para a declaração resolutiva efectuada.

E dizemos que existe fundamento para a resolução em benefício da massa pelo seguinte:

Institui o CIRE, por meio do instituto da “resolução em benefício da massa insolvente”, um mecanismo de reconstituição do património do devedor (a massa insolvente); permite o mesmo, de forma expedita e eficaz, a destruição de actos prejudiciais a esse património, com vista a apreender para a massa insolvente aqueles bens que nela se manteriam caso não houvessem sido pelo devedor/insolvente praticados ou omitidos actos que se mostram prejudiciais à massa.

“Destruição”, de actos prejudiciais a esse património, que pode ocorrer, de acordo e nos termos dos art. 120.º e 121.º do CIRE, por via quer da “resolução condicional” quer da “resolução incondicional”.

Assim:

 - pela resolução condicional podem ser resolvidos em benefício da massa insolvente, nos termos do art. 120.º do CIRE, (1) os actos prejudiciais à massa (2) que tenham sido praticados dentro dos 2 anos anteriores à data do início do processo de insolvência, (3) com terceiro de má-fé; actos prejudiciais à massa que são aqueles que diminuem, frustram, dificultam ou colocam em perigo ou retardam a satisfação dos credores da insolvência (art. 120.º/2), presumindo, porém, a lei, inilidivelmente, terem caracter prejudicial para a massa todos os actos elencados no art. 121.º (ex vi art. 120.º/3 do CIRE); actos que têm que ser praticados dentro dos 2 anos anteriores à data do início do processo de insolvência; e que têm que ser praticados com um terceiro de má-fé, presumindo, porém, a lei a má-fé quanto aos actos praticados ou omitidos em que tenha participado ou de que tenha aproveitado pessoa especialmente relacionada com o insolvente, sendo havidos como especialmente relacionados com o devedor pessoa colectiva aqueles que preencham algum dos factos elencados no art. 49.º/2 do CIRE.

 - pela resolução incondicional apenas se exige, para os actos serem resolvidos, que os mesmos integrem algum das concretas hipóteses normativas previstas na várias alíneas do art. 121.º/1 do CIRE, ou seja, não se exige a alegação e prova da prejudicialidade e da má-fé do terceiro interveniente.

Sendo assim:

Uma vez que, quando o processo de insolvência se iniciou (em 23/11/2017), já havia decorrido mais de 1 ano e menos de 2 anos sobre a data (04/03/2016) do acto resolvido, temos que, em face dos prazos constantes das várias alíneas do art. 121.º/1 do CIRE, apenas a resolução incondicional da alínea b) poderia ser tempestivamente invocada; porém, uma vez que – quer qualifiquemos juridicamente o ocorrido (entre impugnante e insolvente) como uma mera compra e venda (como pretende a A/apelante), quer o qualifiquemos como uma dação em cumprimento (como fez a sentença recorrida) – é seguro que não estamos perante um “acto celebrado pelo devedor a título gratuito”, também esta alínea b) é liminarmente de afastar.

É pois na “resolução condicional” do art. 120.º do CIRE – como bem, a nosso ver, se concluiu e decidiu na sentença recorrida – que está o fundamento para a resolução declarada e aqui impugnada.

Expendeu-se na sentença recorrida:

“ (…) ainda que celebrado fora do prazo contemplado para a resolução incondicional, o acto jurídico em causa poderá presumir-se prejudicial à massa, sem admissão de prova em contrário (presunção iure et de iure, inilidível), por força do prescrito no n.º 3 do artigo 120.º do CIRE, conjugado com o disposto no artigo 350.º, n.º s 1 e 2 do Código Civil, caso se verifique integrar um acto de qualquer dos tipos referidos no artigo 121.º (resolução incondicional)”.

E, nesta linha de raciocínio, considerou-se ao caso aplicável a alínea g) do art. 121.º/1 do CIRE pelo seguinte:

“Sobre o sentido dessas expressões legais [contidas em tal alínea g)], afirmam Carvalho Fernandes e João Labareda que “esta fórmula legal envolve uma anormalidade do ato extintivo que tem de ser aferida em função da natureza da obrigação. Por outras palavras, a obrigação que concretamente se extinguiu não é usualmente extinta pelo modo por que o foi. Este modo não é usual em si mesmo ou atendendo às circunstâncias que o rodearam. Além disso, pois estamos em presença de requisitos cumulativos, o modo não usual de extinção não podia ser exigido pelo credor. Do nosso ponto de vista, o legislador teve aqui em mente a hipótese de, por força de lei especial ou excepcional ou de convenção, esse modo anormal estar previsto no caso concreto em que ocorrer. Mais uma vez, a feição anormal que o ato reveste, justifica a sua resolubilidade incondicional, pois revela que ele se prende com o presuntivo favorecimento dos credores.

Como sublinha Gravato Morais “são os modos atípicos do cumprimento da obrigação que geram a desconfiança do legislador quanto ao acto extintivo em causa. Presume-se assim que a actuação atípica do devedor insolvente gera dano aos credores da insolvência”.

(…)

Como já referimos, a dação em pagamento consiste na realização de uma prestação diferente da que é devida, com o fim de, mediante acordo do credor, extinguir imediatamente a obrigação – cfr. artigo 837.º.

Tem assim como efeito a extinção da obrigação, mediante a realização, com o acordo do credor, de uma prestação diferente da devida; envolve, de forma simultânea e recíproca, um efeito transmissivo de um bem para o património do credor e o efeito extintivo de um crédito de que este era titular no confronto com o devedor.

Constituindo a dação em pagamento um modo normal de extinção de obrigações, será de notar, contudo, que o credor não pode forçar o devedor a prestar algo diverso daquilo que deve. O devedor não tem a obrigação de efectuar essa prestação de substituição.

A dação em pagamento tem natureza contratual: o devedor e o credor acordam em fazer extinguir o crédito deste através de uma prestação diferente da devida. Esta prestação, diferente (aliud pro alio), não pode ser assim imposta unilateralmente por qualquer das partes.

Parece-nos porém que a dação em pagamento de todo o património do devedor, no circunstancialismo provado, não é evidentemente conforme aos usos dos negócios.

Com efeito, no caso dos autos resultou a prova de que a sociedade insolvente se dedicava à actividade da colocação e reparação de canalizações e a compra e venda dos respectivos materiais.

(…)

De [toda a] factualidade extrai-se que praticamente todos os bens da insolvente (com exceção material obsoleto, ultrapassado e fora de uso, sem qualquer valor comercial), foram dados em cumprimento da dívida que sobre ela a Autora detinha. Tal mais não configura que uma liquidação antecipada e instantânea do património da insolvente em benefício de um único credor, a Autora. Ao actuar como actuou o legal representante da insolvente quis assegurar-se de que todos aqueles instrumentos de trabalho continuariam na empresa de que era igualmente gerente, sem qualquer cautela ou salvaguarda para os demais credores.

Tal dação em pagamento de praticamente todo o património da insolvente em proveito de um único credor, em que inviabilizou a continuidade da própria actividade que constituía o objecto social da insolvente, não pode considerar-se normal, i.e., usual no comércio jurídico. Para mais, constituindo uma liquidação em benefício de apenas um credor (a aqui Autora) e que esta, por isso, também nesta perspectiva, não poderia exigir, por ser evidente o prejuízo que daí decorreria para os demais credores, com violação do princípio da par conditio creditorum.

Concluímos pois que a referida dação em pagamento, em benefício apenas da Autora, não é usual no comércio jurídico, nem poderia ser exigida por esta.

Assim, e ainda que celebrado fora do prazo contemplado para a resolução incondicional, o acto jurídico em causa foi celebrado no período estipulado no n.º1, do artigo 120.º, do CIRE e presume-se inilidivelmente prejudicial à massa, por força do prescrito no n.º 3, do artigo 120.º do CIRE, conjugado com o disposto no artigo 350.º, n.º s 1 e 2 do Código Civil. (…)”

Passando à análise do requisito da má-fé, exigido pelo art. 120.º/4, do CIRE, considerou-se que a má-fé é de presumir (presunção que não foi ilidida) por a A. ser “pessoa especialmente relacionada com a insolvente” na acepção definida no artigo 49.º do CIRE.

E concluiu-se que, tendo-se provado quer a prejudicialidade do acto resolvido, quer a má-fé do A., em ambos os casos por presunção legal, se provaram todos os requisitos [já que o acto resolvido tinha sido praticado dentro dos 2 anos anteriores à data do início do processo de insolvência] da “resolução condicional”, devendo assim manter-se a resolução efectuada pelo AI e sendo improcedente a presente acção.

Concordamos, como antecipámos.

Quer na qualificação/configuração jurídica do acto resolvido, quer na aplicação/funcionamento das duas presunções legais (de prejudicialidade e de má-fé), importa não perder de vista que quer a impugnante quer a insolvente são sociedades comerciais por quotas; pelo que, não sendo as sociedades comerciais pessoas físicas, necessitam, quanto à capacidade de exercício, de quem as represente, isto é, de alguém que pratique actos que, mediante certo condicionalismo, produzam efeitos na esfera jurídica da sociedade, de alguém que intervenha por elas e no seu interesse, formando e manifestando a vontade social, o que – formação e manifestação da vontade social – nas sociedades por quotas cabe, quanto à administração e representação, à gerência nos termos do art. 252.º/1 do CSC (sendo os gerentes designados no contrato de sociedade ou eleitos posteriormente por deliberação dos sócios – cfr. 252.º/2 do CSC[8]).

Ora, em 04/03/2016, na data do acto resolvido, impugnante e insolvente tinham, como resulta dos factos e das certidões da matrícula juntas com a PI, um único gerente e tal único gerente – é o aspecto que cumpre enfatizar – era uma e a mesma pessoa: N (…)

Foi pois tal N (…), gerente único das duas sociedades e representando ambas ao mesmo tempo, que celebrou o acto/negócio resolvido, ou seja, tudo o que ele sabia (e/ou não podia ignorar), enquanto gerente da devedora, sobre a situação económica difícil ou de iminente/consumada insolvência desta, ele também sabia (e/ou não podia ignorar) enquanto gerente da impugnante.

Não deve pois confinar-se a apreciação do acto/negócio resolvido à diferente identidade jurídica das partes; há que incluir em tal apreciação que foi a mesma pessoa singular que formou e manifestou a vontade de ambas as partes.

E a esta luz o acto/negócio resolvido – em que a devedora entrega praticamente todos os seus bens (incluindo os estritamente indispensáveis para a sua actividade e prossecução do seu objecto) à impugnante e em que não recebe qualquer fluxo financeiro desta – só poderia ser configurado de duas maneiras: ou como um desvio, a título gratuito, de bens da devedora ou, havendo, como é caso, um crédito da impugnante sobre a devedora, como uma forma de pagar/reduzir tal crédito.

É que – importa ter presente – a pessoa singular que concebeu e representou ambas as partes em tal acto/negócio conhecia a situação económico-financeira da devedora, ou seja, como a A/apelante alegou na PI (e repetiu na conclusão 4.ª deste recurso), que “ (…), em Março de 2014, a insolvente tinha apenas uma carrinha velha, material obsoleto, fora de uso e sem valor comercial, ou seja, não tinha qualquer património e não tinha dinheiro, nem crédito bancário, estando, assim, já em situação de insolvência”.

Foi pois com uma sociedade em situação de insolvência em Março de 2014 que o N (…), na veste de gerente da impugnante, celebrou, em 04/03/2016, o negócio resolvido/impugnado; e, neste negócio, o N (…), conhecendo na sua dupla veste todo o histórico/situação da insolvente, transmitiu da sociedade ora insolvente para a sociedade aqui impugnante a globalidade dos bens da ora insolvente[9], designadamente aqueles que esta havia adquirido com um empréstimo que naquele ínterim (entre 2014 e 04/03/296) lhe havia sido concedido pela sociedade aqui impugnante.

E tudo isto – este “passar” de bens duma sociedade para outra sociedade, como os mesmos sócios e o mesmo gerente único – sendo a transmissária credora da transmitente e não havendo qualquer fluxo financeiro, deve ser juridicamente configurado como uma dação em cumprimento, por ser esta, clara e verdadeiramente, a intenção negocial das partes.

A melhor interpretação dos factos – transmissão da globalidade dos bens (com o consequente, por certo, encerramento da actividade da devedora), feita numa espécie de “negócio consigo mesmo” – não autoriza que se fraccione juridicamente o ocorrido e que os factos sejam qualificados como uma inicial compra e venda, seguida duma posterior compensação.

Mais, sendo-se rigoroso, a compensação, em face do alegado, nem terá sido inteiramente bem feita. O empréstimo mercantil (era isso que eram os empréstimos referidos no ponto 17 dos factos provados) não está, é certo, sujeito às exigências de forma do mútuo civil constantes do art. 1143.º do C. Civil, “admitindo, seja qual for o seu valor, todo o género de prova” (art. 396.º do C. Com.), mas, sendo mercantil, é sempre retribuído (art. 395.º do C. Civil), o que significa, não tendo sido estipulado prazo, que a aqui impugnante podia colocar termo aos empréstimos e exigir a restituição dos montantes emprestados, porém, para tal, tinha que começar por os denunciar com uma antecedência mínima de 30 dias (cfr. art. 1148.º/2 do Civil), ou seja, a impugnante, para declarar validamente a compensação, tinha que começar por tornar o seu crédito exigível (por a exigibilidade ser um dos requisitos da compensação – cfr. art. 847.º/1/a) do C. Civil) e isto só aconteceria após as denúncias dos empréstimos, o que a impugnante não alegou alguma vez ter feito.

E a dação em cumprimento da globalidade dos bens não é normal e usual em termos de comércio jurídico (dum são comércio jurídico) e não é algo que a aqui impugnante/credora pudesse exigir.

Quando uma empresa está em situação económica difícil, não faz parte dos sãos usos normais escolher um credor, entregar-lhe a totalidade dos bens e a seguir ficar sem nada para os restantes credores.

O pagamento, mesmo duma obrigação vencida, quando o devedor está já em situação de insolvência iminente, representa um desrespeito pelo princípio “par conditio”, uma vez que vem a receber por inteiro quem devia sujeitar-se ao rateio resultante da concorrência dos restantes credores.

Importa não esquecer que quando o devedor/empresa se encontra impossibilitado de cumprir as suas obrigações vencidas, a sua apresentação à insolvência não é uma faculdade, tendo sim carácter obrigatório (cfr. art. 18.º do CIRE); tendo a falta de cumprimento deste dever como sanção a presunção de culpa.

“É justa esta suspeita. O comerciante honesto é o primeiro a procurar remédio para a sua situação, confessando as suas dificuldades e dando-as a conhecer aos credores para estes garantirem os seus direitos e todos, em conjunto, procurarem a solução que importe menos prejuízo[10].

E se porventura não se pode ir ao ponto de considerar ilegal – com o argumento de que se o devedor cumprisse o seu dever ter-se-ia apresentado antes e a tal credor só ficaria o caminho de vir a reclamar o seu crédito na insolvência falência – o pagamento de dívida vencida após o devedor estar já em situação de situação de insolvência, o certo é que sempre se entendeu que, caso não corresponda tal pagamento a um padrão normal, era tal pagamento impugnável.

Daí o que antes se dispunha no art. 1202.º/b) do CPC e que hoje se dispõe na alínea g) do art. 121.º/1 do CIRE.

“A presunção do art. 1202.º/b) do CPC – presumem-se celebrados de má-fé os pagamentos ou compensações convencionais de dívidas vencidas, quando tiverem tido lugar dentro do ano anterior à data da sentença de declaração de falência e o foram em valores que usualmente a isso não sejam destinados – resulta da anormalidade do meio de pagamento utilizado, o que produz a suspeita do credor pretender pagar-se fora do concurso e do devedor o querer beneficiar. Por outro lado significa que este lutava com falta de meios líquidos, disso se apercebendo o terceiro que recebeu.[11]

É justamente o caso dos autos/recurso.

Anormalidade/suspeita/benefício que aqui são revelados de forma ostensiva pela circunstância da dação em pagamento/cumprimento ter sido concebida e celebrada pelo N (…), na sua dupla veste de gerente único de devedora e impugnante.

Enfim, o que verdadeiramente aconteceu, como se refere na sentença recorrida, foi “uma liquidação antecipada e instantânea do património da insolvente em benefício de um único credor”, o que configura o acto referido no art. 121.º/1/g) do CIRE e preenche a presunção de prejudicialidade constante do art. 120.º/3 do CIRE.

E, claro está, tendo o acto resolvido – dação em pagamento – sido concebido e celebrado pelo N (…), na sua dupla veste de gerente único de devedora e impugnante, nele participou (como representante da impugnante) pessoa especialmente relacionada com a insolvente, o que preenche, por presunção (cfr. art. 120.º/4 do CIRE), o requisito da má-fé.

O acto resolvido, é certo, foi celebrado entre sociedades e não entre os seus sócios e/ou o gerente único de ambas, razão pela qual, em termos estritamente literais, dir-se-á que não se verifica alguma das alíneas do art. 49.º/2 do CIRE, ou seja, argumentar-se-á que o terceiro a que alude o artigo 120.º/4 (e sobre o qual incide a presunção de má fé) tem de ser, ele próprio, pessoa especialmente relacionada com o insolvente (e no caso, argumentar-se-á, o terceiro seria uma sociedade, a aqui impugnante).

Nesta linha de raciocínio/interpretação, ocorrendo o acto resolvido entre duas sociedades, só na hipótese do art. 49.º/2/b) do CIRE poderia haver pessoas especialmente relacionadas com o devedor, uma vez que os representantes/administradores das sociedades (não sendo eles próprios o terceiro) não “contariam” para tal efeito; e teríamos, como é caso, um acto concebido e celebrado pela mesma pessoa, em representação orgânica de ambas as sociedades, e ainda assim não poderia tal pessoa ser havia como pessoa especialmente relacionada com a devedora/insolvente (numa hipótese em que o relacionamento está no seu auge).

A nosso ver, com todo o respeito por opinião diversa, não pode ser.

Por interpretação, se necessário extensiva, sendo os intervenientes no acto sociedades (pessoas colectivas), o relacionamento especial de que fala o art. 49.º/2 do CIRE tem que se haver por estabelecido se ocorrer (nos termos referidos em tal art. 49.º/2 do CIRE) com sócios e administradores de tais sociedades.

Está em causa saber se a sociedade impugnante deve ser considerada pessoa especialmente relacionada com a devedora/insolvente por o seu (da impugnante) administrador/gerente único, sendo também administrador/gerente único da devedora/insolvente, ser pessoa especialmente relacionada com a devedora insolvente, nos termos do art. 49.º/2/c) do CIRE; e por detrás disto está a questão (de direito) que consiste em saber se uma sociedade, cujo gerente/administrador é ele próprio pessoa especialmente relacionada com a devedora/insolvente, deve considerar-se sujeita à presunção de má-fé e à resolução em benefício da massa insolvente por actos cuja prática ocorreu dentro dos dois anos anteriores ao início do processo de insolvência e em que houve participação desse gerente/administrador.

E, repetindo, entendemos que incorre em presunção de má fé, nos termos dos artigos 120.º/4 e 49.º/2/c) do CIRE, a sociedade por quotas (aqui impugnante) que recebeu em pagamento praticamente a totalidade dos bens da sociedade por quotas insolvente, uma vez que é pessoa especialmente relacionada com tal devedora/insolvente o gerente, comum e único, de ambas as sociedades[12].


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Em conclusão, improcede o que em sentido diverso a A/apelante invocou e concluiu na sua alegação recursiva, o que determina o naufrágio do recurso e a confirmação do decidido na 1ª instância, que não viola os artigos do CIRE referidos pela A/apelante.

Não representando a resolução do acto nem um abuso de direito dos demais credores da insolvente, nem um enriquecimento sem causa dos demais credores da insolvente (ao contrário do que se invoca nas conclusões 26 e 27), uma vez que, como se referiu, o comerciante honesto, quando fica em situação de insolvência iminente, deve dá-lo a conhecer a todos os seus credores (para estes, em conjunto, procurarem a solução que importe menos prejuízo para todos) e não escolher um credor, entregar-lhe a totalidade dos bens e deixar os restantes credores sem nada.

A subsistir esta hipótese/situação é que haveria um benefício indevido, mas do credor escolhido, que, em face da vantagem que retiraria da escolha/pagamento de que beneficiou, não sofreria o sacrifício dos restantes credores (aumentando até o sacrifício destes).


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V – Decisão

Nos termos expostos, decide-se julgar totalmente improcedente a apelação e confirma-se a decisão recorrida.

Custas pela A/apelante.


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Coimbra, 10/07/2019

Barateiro Martins ( Relator )

Arlindo Oliveira

Emídio Santos



[1] Art. 6.º da PI.
[2] Arts. 42.º e 43.º da PI.
[3] Art. 44.º da PI.
[4] Art. 39.º da PI.
[5] Art. 40.º da PI
[6] Art. 26.º da Contestação.

[7] Se na acção/impugnação do art. 125.º do CIRE está em causa a impugnação dos factos/fundamentos da carta/declaração resolutiva, tais factos/fundamentos têm, logicamente, que estar invocados pelo AI na carta/declaração resolutiva, sendo tais factos/fundamentos que, aqui, a R. terá que provar (por estarmos numa acção de simples apreciação negativa).

[8] Gerentes que têm poderes e competência para praticar todos os actos – de administração e de disposição – pertinentes à realização do escopo social (cfr. 259.º do CSC); que dispõem duma competência genérica e indefinida para realizar todas as operações sociais, só não podendo praticar os actos que a lei ou o contrato social reservam à competência de outros órgãos (assembleia-geral ou ao órgão fiscalizador).
[9] Deixando-a sem qualquer garantia patrimonial para oferecer aos restantes credores.

[10] Pedro Macedo, Manual do Direito das Falências, Vol. I, pág. 317.

[11] Pedro Macedo, Manual do Direito das Falências, Vol. II, pág. 208.

[12] A propósito do que deve entender-se por pessoas especialmente relacionadas com o devedor, o STJ, no AUJ 15/2014, de 13/11/2014, já uniformizou/fixou (em termos extensivos) a seguinte jurisprudência: “Nos termos e para os efeitos dos artigos 120.º, n.º4 e 49.º, n.ºs 1 e 2, alíneas c) e d) do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, presume-se que age de má fé a sociedade anónima que adquire bens a sociedade por quotas declarada insolvente, sendo de considerar o sócio-gerente desta e seu filho, interveniente no negócio de aquisição como representante daquela, pessoas especialmente relacionadas com a insolvente.”