Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
798/11.0TBCNT-A.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: MARIA DOMINGAS SIMÕES
Descritores: OBTENÇÃO DE PROVA
DOCUMENTO
TRIBUNAL
PRINCÍPIO DO DISPOSITIVO
PRINCÍPIO INQUISITÓRIO
PRINCÍPIO DA COOPERAÇÃO
Data do Acordão: 12/11/2012
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: CANTANHEDE 2º J
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PARCIALMENTE REVOGADA
Legislação Nacional: ART.ºS 528º, 531.ºE N.º 4 DO ART.º 266.º DO CPC
Sumário: I- Sem embargo das disposições atinentes à repartição legal do ónus da prova, há-de o Tribunal deferir requerimento da parte em ordem a obter documentos em poder de terceiro ou da parte contrária, desde que se mostre relevante para a boa decisão da causa e o requerente enfrente dificuldade séria na sua obtenção;

II- Tal solução é imposta pela finalidade última do processo -obtenção de uma justa composição do litígio- e nasce da conciliação do princípio do dispositivo com os princípios do inquisitório e da cooperação.

Decisão Texto Integral: I- Relatório
No Tribunal Judicial da comarca de Cantanhede, A... veio instaurar contra B... Seguros, SA., acção declarativa de condenação, a seguir a forma ordinária do processo comum, tendo em vista obter a condenação da ré no pagamento de uma indemnização para reparação dos danos sofridos em virtude de acidente de viação no qual interveio veículo cuja proprietário havia transferido para a demandada a responsabilidade civil emergente de tais eventos.
Contestando, a ré seguradora alegou, para além do mais, que na altura do acidente o autor se encontrava ao serviço da sua entidade patronal, motivo pelo qual foi o sinistro dos autos igualmente considerado acidente de trabalho, tendo o sinistrado, em consequência, recebido assistência por banda da C..., C.ª de Seguros, SA, na qualidade de seguradora do ramo acidentes de trabalho.
Mais impugnou que o autor auferisse os rendimentos agora alegados, tanto mais que, tendo enxertado no processo de natureza criminal pretensão indemnizatória -tendo sido remetido para os meios comuns- os valores aí reclamados eram substancialmente inferiores.
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Saneado o processo, selecionados os factos assentes e organizada a base instrutória, no requerimento probatório apresentado, requereu a ré:
- a notificação do autor para vir juntar aos autos, para prova e contra prova dos prejuízos salariais que alega ter sofrido em consequência do acidente dos autos, as declarações de IRS desde o ano de 2006 até ao presente;
- a notificação da sua congénere C..., Companhia de Seguros, na qualidade de seguradora de acidentes de trabalho da entidade patronal do autor, para juntar aos autos todos os elementos constantes do processo interno a que o acidente dos autos deu origem.
Apreciando o requerido, a Mm.ª juíza “a quo” despachou no sentido do seu indeferimento, com fundamento no facto de o ónus da prova caber ao autor.
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Inconformada com o assim decidido, interpôs a ré o presente recurso, cujas alegações rematou com as seguintes conclusões:
1.ª- A ora recorrente interpõe o presente recurso por entender que o Tribunal recorrido não fez a melhor e mais correcta interpretação do Direito aplicável ao indeferir o requerido pela recorrente nos pontos B de fls. 57 e C de fls. 122.
2.ª- A recorrente requerera que o Tribunal notificasse o Autor para vir juntar aos autos as suas declarações de IRS.
3.ª- A recorrente requerera também que o Tribunal notificasse a Seguradora de acidentes de Trabalho da entidade patronal do Autor, mais concretamente a C..., S.A., para vir juntar aos autos a documentação do seu processo da qual constasse o valor do salário, as lesões de que padeceu em consequência do acidente dos autos, os valores que, por força deste, pagou ao Autor e a que título, ainda, o relatório pericial do Boletim de Alta, com o respectivo valor da eventual capacidade que lhe terá sido atribuída, requerimento que fez para prova e contra prova das lesões e prejuízos que o Autor alega ter sofrido.
4.ª Com o argumento de que o ónus de prova dos rendimentos e da perda de rendimentos cabia ao Autor o Tribunal recorrido, sem invocar um normativo legal que fosse, indeferiu esses requerimentos da ora recorrente.
5.ª Se bem que se aceite que, de acordo com o disposto no art. 342.º, n.º 1 do Código Civil, caiba ao Autor a prova dos factos constitutivos do seu direito e, consequentemente, dos factos que a ora recorrente pretendia contraprovar com os elementos requeridos, a verdade é que a prova dos factos impeditivos, modificativos ou extintivos do direito invocado pelo recorrido, compete à ora recorrente, face ao disposto no n.º 2 desse mesmo dispositivo.
6.ª Acresce que à prova que for produzida pela parte sobre quem recai o ónus probatório, pode a parte contrária opor contraprova a respeito dos mesmos factos, destinada a torná-los duvidosos, sendo que se o conseguir, é a questão decidida contra a parte onerada com a prova, como dispõe o art.º 346.º do Cód. Civil.
7.ª Vigora, ainda, no Direito Português, o princípio do contraditório, por via do qual a parte contra a qual determinada prova é produzida tem o direito de a contraditar e, consequentemente, de pôr em causa a sua validade e a sua eficácia.
8.ª A ora recorrente alegara que a seguradora C..., no cumprimento das obrigações assumidas enquanto seguradora de acidentes de trabalho da entidade patronal do Autor, suportara os custos do tratamento do recorrido e pagara a este as indemnizações que lhe eram devidas até à data da sua alta, seja em consequência das incapacidades temporárias de que terá padecido, seja por força da eventual desvalorização funcional que, à data da alta, poderia padecer.
9.ª- O Autor alegou na sua douta petição que auferia, à data do acidente dos autos, determinados rendimentos do seu trabalho, não estando impedido à ora recorrente fazer a contraprova desses factos e designadamente requerer, ao abrigo do disposto nos art.º 519.º e 528.º do Cód. de Processo Civil, que o recorrido juntasse aos autos os documentos relativos ao Imposto sobre os Rendimentos de Pessoas Singulares, vulgo IRS, dos quais por força da Lei Fiscal devem constar todos os rendimentos auferidos pelo Autor, para que desse modo seguro ficasse a constar dos autos quais, na realidade, eram os rendimentos que, antes do acidente, auferia e quais passou a auferir depois deste.
10.ª Cabendo efectivamente ao autor a prova dos prejuízos que sofreu em consequência do acidente dos autos, cabe à ora recorrente a prova dos factos modificativos do direito do Autor a ser indemnizado e, consequentemente, a prova de todos os factos que sejam susceptíveis de conduzir à diminuição do valor dos pedidos, ou seja, in casu, que o Autor não auferia, à data do acidente, os rendimentos que alegou auferir e que o autor não deixou, em consequência das lesões de que padeceu em consequência do acidente, de receber e auferir os rendimentos que alega ter deixado de receber por causa do acidente dos autos. Cabe, também, à ora recorrente provar que, dos valores que eventualmente o Autor tenha deixado de receber em consequência do acidente dos autos, já foi indemnizado total ou parcialmente pela seguradora de acidente de trabalho da sua entidade patronal.
11.ª Entende, pois, a ora recorrente, que o Tribunal recorrido decidiu erradamente ao não admitir os méis de prova requeridos pela Ré, tendo violado, entre outros, os preceitos legais acima referidos, ou seja o disposto nos art. 342.º, n.º 2 e 346.º do Cód. Civil e os dos art.º 519.º e 528.º do Cód. de Processo Civil”.
Com tais fundamentos pretende a revogação do despacho recorrido e sua substituição por outro que determine a junção dos documentos, conforme requerido.
Não houve contra alegações.
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Como se vê das conclusões que, conforme é sabido, delimitam o objecto do recurso (art.ºs 684.º n.º 3 e n.º 1 do art.º 685.º-A do CPC), constitui única questão a decidir saber se o Tribunal deveria ter ordenado a notificação do autor e também da C..., entidade estranha ao processo, para proceder à junção dos documentos identificados, tal como fora requerido pela ré aqui apelante.
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II. De Direito
O princípio do dispositivo, consagrado no art.º 3.º do CPC, “além de fazer impender sobre os interessados o ónus da iniciativa processual, estende-se à conformação do objecto do processo integrado, não só pela formulação do pedido, como ainda pela alegação da matéria de facto que lhe sirva de fundamento”[1].
Emanação ainda do mesmo princípio, a lei faz recair sobre a parte onerada com o ónus da prova os meios necessários a convencer o Tribunal da realidade dos factos alegados.
Todavia, e com maior enfoque na sequência da reforma de 95/96, a lei veio atribuir mais e maiores poderes ao julgador, formulando exigências de cooperação entre as partes entre si e entre estas e o Tribunal, em ordem a alcançar a verdade e uma decisão justa. A prova dos factos, nas sugestivas palavras de Lebre de Freitas, “deixou, no processo civil actual, de constituir monopólio das partes (…)
(…) O juiz pode amplamente determinar a junção de documentos ao processo, quer estejam em poder da parte contrária, de terceiro ou de organismo oficial (art.º 535.º)”.
 Não é alheia a este alargamento de poderes a progressiva alteração da fisionomia do nosso processo civil, “que tem como objectivo alcançar a solução judicial que mais se ajuste à real situação litigiosa que é objecto de disputa.
Por isso as regras do ónus da prova contidas no art.º 342.º do CC têm, como ensina A. Varela, uma feição marcadamente objectiva., significando que ao exercício da actividade jurisdicional do juiz interessa acima de tudo saber se determinado facto está ou não provado, após concluída a fase de instrução, e não tanto averiguar qual das partes estava onerada com o ónus da prova.
O art.º 515.º não deixa quaisquer dúvidas a este respeito”.[2]
Deste modo, e como se ponderou no aresto da Rel. do Porto de 19/9/2011 (proc. n.º 6074/09.1 TBMAI-A.P1, disponível em www.dgsi.pt), “Sem descurar as regras dos ónus da prova emergentes do artigo 342.º do Código Civil, o que releva em face dos mencionados princípios processuais da colaboração, do inquisitório e da boa-fé processual, é se os documentos ou as informações solicitadas pela parte à outra (ou a terceiro), por intermédio do tribunal, são ou não relevantes e adequadas à prova dos factos. E se o forem, deve ser deferido o requerido, sendo que não é indiferente em termos probatórios a recusa de colaboração conforme decorre dos artigos 530.º a 533.º do CPC e 344.º, n.º 2 do Código Civil (sem prejuízo, ainda, da possibilidade de sancionamento da conduta omissiva, se injustificada, por aplicação n.º 2 do artigo 519.º do CPC)”.
Acresce que, como bem observa o recorrente, nos termos do art.º 346.º do Código Civil, a parte não onerada com a prova de determinados factos pode opor contraprova a respeito dos mesmos factos, destinada a torná-los duvidosos.
Do exposto se extrai que não colhe o argumento invocado pela Sr.ª Juíza “a quo” para recusar o requerido, tanto mais que, no que concerne aos danos sofridos pelo autor e já ressarcidos (segundo alegação da ré recorrente) ao abrigo do contrato de seguro celebrado entre a entidade patronal e a seguradora C..., situamo-nos mesmo no domínio dos factos extintivos do direito invocado, encontrando-se a ré onerada com a respectiva prova (n.º 2 do art.º 342.º do Código Civil).
Diferente é saber se deve o tribunal substituir-se à parte tão logo esta o requeira, posto que o citado art.º 528.º -e também o art.º 531.º- hão-de ser conjugados com o preceituado no n.º 4 do art.º 266.º. Nos termos desta disposição legal “Sempre que alguma das partes alegue justificadamente dificuldade séria em obter documento ou informação que condicione o eficaz exercício de faculdade ou o cumprimento de ónus ou dever processual, deve o juiz, sempre que possível, providenciar pela remoção do obstáculo”.
Resulta do que vem de se transcrever que a parte interessada na obtenção do documento há-de justificar o requerimento que dirige ao Tribunal, invocando obstáculo na sua obtenção[3].
Revertendo ao caso em apreço se, no que tange às declarações fiscais, dada a sua natureza de factos atinentes à vida privada e familiar dos contribuintes, são inacessíveis a terceiros, assim justificando, sem necessidade de complementar fundamentação, a intervenção do juiz, já no que respeita aos elementos em poder da congénere da recorrente afigura-se-nos não ter sido invocado fundamento bastante para desencadear -por ora- a iniciativa do Tribunal, em ordem a obter os documentos em causa, uma vez que a requerente omitiu a invocação de qualquer entrave à obtenção, por si, de tal documentação. Daí que, nesta parte, e embora com outros fundamentos, mereça confirmação a decisão recorrida.
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III Decisão
À luz do que se deixou exposto, acordam os juízes da 1.ª secção do Tribunal da Relação de Coimbra em revogar parcialmente o despacho recorrido, o qual deverá ser substituído por outro que determine a notificação do autor para juntar aos autos as declarações de IRS nos precisos termos requeridos, confirmando-se quanto ao mais.
Custas a cargo da apelante e apelados, na proporção de metade para cada.
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Relator: Maria Domingas Simões
Adjuntos:
1º - Nunes Ribeiro
2º - Helder Almeida


[1] Abrantes Geraldes, “Temas da Reforma do Processo Civil”, I vol., 2.ª ed. Revista e ampliada, pág. 50.
[2] Abrantes Geraldes, ob. cit., págs. 101/102.
[3] Tal como foi decidido no recente acórdão desta Relação datado de 22 de Março de 2011, proferido no processo n.º 1279/08.5TBGRD-H.C1, disponível no citado sítio.