Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
2560/10.9TBPBL-A.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: FONTE RAMOS
Descritores: PROCEDIMENTO CAUTELAR
CASO JULGADO
Data do Acordão: 09/08/2015
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DE LEIRIA - LEIRIA - INST. CENTRAL - SECÇÃO CÍVEL - J1
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTS362, 368, 581 CPC
Sumário: 1. Verifica-se a repetição de providência cautelar quando ocorra semelhança essencial, pelo que importará analisar se o receio é o mesmo, se é a mesma a possibilidade de lesão do direito e a mesma dificuldade de reparação e, ainda, se é o mesmo o direito provavelmente existente - art.º 362º, n.º 4, do CPC.

2. Com a referida estatuição pretende-se, por um lado, afirmar/concretizar os princípios da economia e da celeridade processuais e, por outro lado, a autoridade e prestígio das decisões (prevenção de eventuais pronúncias de sinal contraditório ou de conteúdo repetitivo sobre o mesmo objecto).

3. A proibição que dela decorre assenta, pois, em fundamentos algo semelhantes aos subjacentes ao instituto do caso julgado, traduzidos na repetição de uma causa, para a qual a lei exige a verificação da chamada tripla identidade plasmada no art.º 581º, do CPC

4. Indemonstrada a aparência/verosimilhança do direito feito valer em juízo, fica necessariamente prejudicada a demonstração do perigo de insatisfação desse direito aparente (art.º 368º, n.º 1, do CPC).

Decisão Texto Integral:
            Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra:         

            I. Em 22.01.2015, M (…) Lda., instaurou na Instância Central/ Secção Cível do Tribunal Judicial da Comarca de Leiria o presente procedimento cautelar (por apenso à acção n.º 2.560/10.9TBPBL) contra J (…) e mulher M (…) pedindo que, sem audição prévia dos requeridos, seja ordenada a imediata restituição das partes integrantes da fracção “B” do imóvel identificado no art.º 1º da petição inicial (p. i.) “aos requerentes para que estes possam” (sic) repor a configuração das divisões de acordo com o licenciamento camarário e da segurança social e assim poder efectuar o averbamento da titularidade do alvará e assim evitar-se o iminente[1] encerramento compulsivo, bem como, ao abrigo do art.º 365º do Código de Processo Civil (CPC), a fixação de uma sanção acessória compulsiva que se mostre adequada a assegurar a efectividade da providência decretada, nunca inferior a € 300 diários.

            Alegou, em síntese:

            - É locatária financeira da fracção autónoma designada pela letra “B” do imóvel inscrito na matriz predial urbana da freguesia de (...) sob o art.º 5478-B e descrito na Conservatória do Registo Predial (CRP) de Pombal sob o n.º 3539/ (...) (aludido no art.º 1º da p. i.), correspondente ao rés-do-chão esquerdo, destinada a lar ou serviços e com a composição referida no art.º 5º do mesmo articulado, que foi determinante para o seu licenciamento e respectiva afectação a lar de terceira idade por parte da Segurança Social e da Câmara Municipal de Pombal;

            - Os requeridos são proprietários da fracção “A”, afecta a habitação e que corresponde ao Rés-do-Chão direito;

            - Foram os requeridos que constituíram a propriedade horizontal do prédio urbano, destinando a fracção “A” à sua habitação e a fracção “B” a lar de terceira idade, tendo igualmente instruído os respectivos processos de licenciamento junto da Câmara Municipal de Pombal e da Segurança Social para obtenção das respectivas licenças e alvarás necessários à actividade de lar de terceira idade;

            - O exercício da actividade de lar constitui também o objecto social da Requerente;

            - O imóvel está afecto a actividade de lar de terceira idade, tendo sido regularmente licenciado pela Câmara Municipal de Pombal e pelo Instituto de Segurança Social;

            - Entre requerente e requeridos tem-se evidenciando um litígio permanente, concretizado por diversas acções judiciais, em virtude de estes ocuparem ilicitamente divisões que integram a fracção “B”, essenciais ao pleno e legal funcionamento do lar de terceira idade;

            - Actualmente, os requeridos ocupam as divisões do rés-do-chão da fracção “B”, situadas por baixo da Fracção “A”, que constituem nomeadamente sala de pessoal, sala de refeições, casas de banho, salas de arrumos;

            - Face a tal ocupação indevida, a requerente não consegue a transferência da Titularidade do Alvará junto da Segurança Social;

            - Recentemente é frequente ouvir sons de martelos pneumáticos e paredes a cair vindos precisamente da localização de tais divisões;

            - As obras que agora estão indubitavelmente a ser executadas sem o consentimento da requerente ou de qualquer organismo oficial responsável por esta área de actividade, nas ditas partes da fracção, alteram a sua configuração e afectação, pelo que o imóvel não pode oferecer as condições necessárias para os utentes e funcionários com as quais foi licenciado;

            - Face às alterações concretizadas pelos requeridos na fracção “B”, jamais poderá a requerente averbar a titularidade do Alvará, e o Alvará emitido e que constituía o exercício regular da actividade de lar de terceira idade poderá caducar;

            - O facto de não conseguir averbar a titularidade do alvará condiciona a requerente na sua actividade, pois fica impedida de celebrar protocolos com a Segurança Social e outras associações de cariz social, com vista ao acolhimento de mais utentes;

            - O Lar foi licenciado e tinha capacidade para acolher 25 pessoas, situação que não se verifica actualmente, dada a ocupação indevida pelos requeridos de parte da fracção “B”, o que impede o uso pleno das instalações, bem como a própria transferência de Alvará, diminuindo por este motivo a capacidade de divulgação, procura e de receita que se cifra em pelo menos € 200 por mês a menos por cada utente;

            - A requerente jamais teria feito o negócio de locação se outra fosse a configuração do imóvel, pois esta sempre foi e é condição essencial para o exercício da actividade de exploração do lar de terceira idade;

            - E poderá estar na iminência de ver as instalações compulsivamente encerradas pela Segurança Social, em virtude das condições que foram inicialmente observadas aquando do licenciamento do edifício estarem a ser alteradas pela ocupação e obras que estão a ser levadas a cabo pelos requeridos.

            Depois de a requerente se ter mostrado contrária à apensação do procedimento cautelar ao processo n.º 958/10.1TBPBL - referindo que havia requerido a apensação da presente providência ao processo n.º 2 560/10.9TBPBL, ao abrigo do n.º 3 do art.º 364 do CPC, por considerar que nesta acção se discute a matéria controvertida que se pretende acautelar com a presente providência - (fls. 58 e 91 verso), o Mm.º Juiz a quo, ponderados, ainda, os elementos dos demais processos (designadamente, os processos 958/10.1TBPBL e 1580/12.3TBPBL) e tendo concluído ser possível conhecer, de forma definitiva, do mérito da causa, atentas as várias soluções plausíveis de Direito, julgou improcedente o presente procedimento cautelar, rejeitando-o liminarmente.

            Inconformada, a requerente interpôs a presente apelação, formulando as seguintes conclusões:

            1ª - O tribunal a quo fundamenta a inexistência do fumus boni iuris na sentença proferida no âmbito do processo n.º 1 580/12.3TBPBL, ainda não transitada em julgado, mas que julgou improcedente o pedido de anulação do contrato de compra e venda da fracção “B” formulado pelos AA. ora requeridos.

            2ª - O tribunal a quo não atendeu os documentos autênticos e que fazem prova plena, que acompanham a petição da presente providência, tais como, a escritura de constituição de propriedade horizontal, os títulos de compra e venda, de locação financeira, bem como o próprio processo de licenciamento do lar de terceira idade.

            3ª - A factualidade respeitante à composição das fracções “A” e “B” foi dada como provada na sentença proferida no âmbito do processo 958/10.1PBPBL e que constitui caso julgado e na sentença proferida no âmbito do processo 1580/12.3TBPBL.

            4ª - O tribunal a quo não apreciou a factualidade alegada pelos requerentes que fundamentam o seu receio de lesão grave, nem o alegado relativamente ao prejuízo pelo não decretamento da presente providência.

            5ª - Existe clara violação do princípio do dispositivo, na medida em que o tribunal a quo pronuncia-se sobre questões que não podia tomar conhecimento e deixa de pronunciar-se sobre questões que devia conhecer, configurando tal circunstância uma causa de nulidade da decisão (art.º 615º, n.º 1, al. d) do CPC).

            6ª - A decisão da não existência de periculum in mora carece de fundamentação, pois assenta numa alusão vaga a acções e procedimentos, sem conhecer a factualidade apresentada pela requerente[2];

            7ª - Considerando os prazos de recurso, a própria morosidade de um processo desta complexidade, até ao trânsito em julgado da sentença proferida no âmbito do processo n.º 1 580/12.3TBPBL, a requerente verá seguramente o lar encerrado pela Segurança Social ou Câmara Municipal de Pombal, na medida em que também os autos principais ficarão suspensos até essa decisão se tornar definitiva.

            8ª - Impunha-se ao tribunal a quo apreciar a matéria de facto respeitante às obras encetadas pelos requeridos que alteram a configuração das divisões da fracção “B” e que conduzem à caducidade do alvará de exploração do lar e ao seu encerramento compulsivo.

            Notificados para os termos do procedimento e do recurso, os requeridos apresentaram a “oposição” de fls. 211 verso e a “contra-alegação” de fls. 277, concluindo, aqui, pela rejeição (em razão da repetição da providência cautelar) ou a improcedência do recurso.

            O Mm.º Juiz a quo pronunciou-se sobre a apontada “nulidade da decisão” e concluiu pela sua inexistência.

Atento o referido acervo conclusivo, delimitativo do objecto do recurso, relevam as seguintes questões: a) nulidade da sentença; b) repetição de providência; c) [independentemente da resposta a dar à problemática da alínea anterior] se estão preenchidos os requisitos da providência.

*

II. 1. A 1ª instância considerou e ponderou, nomeadamente:

            a) Nos autos principais (acção n.º 2560/10.9TBPBL) foi proferida decisão de suspensão da instância, com fundamento em acção prejudicial (a fls. 712, em 11.12.2013), nos seguintes termos: “determino a suspensão destes autos ao abrigo do disposto no artigo 272º n.ºs 1 e 2 do Código de Processo Civil, enquanto não for proferida decisão transitada em julgado no processo 1 580/12.3TBPBL, que corre termos no 3º Juízo deste Tribunal”; esta decisão transitou em julgado.

            b) Entretanto, foi proferida sentença em 15.7.2014 no processo 1 580/12.3TBPBL, ainda não transitada em julgado, de cujo resultado se encontra dependente a acção principal 2 560/10.9TBPBL de que este procedimento cautelar se encontra apenso.

            c) Na sentença proferida no processo n.º 1 580/12.3TBPBL (da qual a acção 2.560/10.9TBPBL e este procedimento cautelar se encontram igualmente dependentes), apesar de julgar improcedentes (por ora), os pedidos de anulação do contrato de compra e venda da fracção B formulados por J (…) e mulher, sempre julgou, no confronto das mesmas partes (deste procedimento cautelar), que as demais divisões agora em causa neste procedimento cautelar pertencem à fracção A (de J (…) e M (…)), e não da fracção B (da requerente) – v. g., aí se diz que “31. A parte restante do rés-do-chão, discutida em 11., mesmo após a edificação do Lar, foi sempre utilizada pelos autores como habitação”, o que fará caso julgado formal e material no âmbito do processo n.º 1 580/12.3TBPBL, caso se mantenha a decisão aí proferida em 1ª instância, e – pelo menos, e no que agora interessa – faz perder o fumus boni iuris da requerente no âmbito deste procedimento cautelar proposto.

            d) Foi dado como provado no processo n.º 1580/12.3TBPBL:

            - “10. Pendeu no 2º Juízo deste Tribunal procedimento cautelar não especificado, intentado pela ré M (…) contra os autores, no qual pedia a imediata restituição de três divisões destinadas a arrumos, sala de pessoal, sala de refeitório de pessoal, casa de banho, dispensa, vestiário e arrecadação, situadas na ala poente do Lar, que alegam ser pertença da fracção B, o qual foi julgado improcedente por não provado por decisão proferida em 13.7.2011[3] (pelo que o presente procedimento cautelar não é admissível, atenta a repetição de providência que haja sido julgada injustificada – art.º 362º, n.º 4, do NCPC).

            - 24. Os autores haviam acordado com os legais representantes da 1ª ré, que esta utilizaria a zona da cozinha, despensa e casa de banho, que integram o rés-do-chão da sua vivenda (fracção «A»), enquanto procedia à construção de uma cozinha no Lar (fracção «B»), assumindo todos encargos necessários.

            - 29. As divisões reclamadas na acção descrita em 11.[4] nunca fizeram parte do Lar porquanto apesar de projectadas nunca passaram do papel.

            - 30. Das divisões planeadas para o Lar, discutidas nas duas acções, de facto, só foi construída a cozinha, que resultou da transformação de um dos quartos que já existia no rés-do-chão da vivenda dos autores.

            - 31. A parte restante do rés-do-chão, discutida em 11., mesmo após a edificação do Lar, foi sempre utilizada pelos autores como habitação;         

            - 35. A 1ª ré [requerente] tinha conhecimento do acabado de descrever e comprometeu-se a comprar o edifício nos termos propostos pelos autores, ou seja, o edifício autónomo e independente da vivenda.

             - 36. A 1ª ré constatou, em momento exacto não apurado a discrepância existente entre a composição de facto de cada fracção, as telas finais e a escritura de constituição da propriedade horizontal;

            - 40. Os legais representantes da 1ª ré, pelas conversas tidas com os autores, durante todo o período negocial, tinham perfeito conhecimento (…) que caso os autores soubessem ou se apercebessem que as divisões do rés-do-chão da fracção «A», de acordo com a planta e com título de constituição da propriedade horizontal, faziam parte da fracção «B», não teriam emitido aquela declaração de vontade, ou seja, expressado vender o Lar.

            - 41. A 1ª ré sabia que, à excepção da zona da cozinha, os autores sempre usaram e fruíram da parte restante do rés-do-chão da vivenda como habitação, o que sempre pretenderam continuar a fazer, sendo que os seus legais representantes exploravam o Lar, enquanto arrendatários, desde o verão de 2008, nunca tiveram acesso àquela parcela do rés-do-chão da casa dos autores”.

            e) No âmbito da acção n.º 958/10.1TBPBL, a sentença aí proferida fez caso julgado material de que a cozinha em discussão entre as partes pertence à “fracção B” adquirida pela requerente, sendo certo que, ainda assim, os pedidos da requerente foram julgados improcedentes de mérito nessa acção – contudo, no âmbito da acção n.º 2 560/10.9TBPBL e presente procedimento cautelar discutem-se outras divisões (que não a referida cozinha), situadas por baixo da “fracção A”, nomeadamente sala de pessoal, sala de refeições, casas de banho, salas de arrumos melhor assinaladas na planta de fls. 66; ou seja, quanto às demais divisões agora em causa neste procedimento cautelar, prevalece, por ora, o dispositivo e fundamentação, de facto e de Direito, da sentença proferida no processo n.º 1 580/12.3TBPBL, a qual decidiu que as demais divisões agora em causa neste procedimento cautelar pertencem à fracção A e não à fracção B (da requerente), o que fará caso julgado (formal e material) no âmbito do processo n.º 1 580/12.3TBPBL, caso se mantenha a decisão aí proferida em 1ª instância, e – pelo menos, e no que agora interessa – faz perder o fumus boni iuris da requerente no âmbito deste procedimento cautelar, determinando a sua improcedência.

            f) Também não existe, neste momento, periculum in mora, atendendo ao tempo já decorrido, porquanto já no decorrer das várias acções e procedimentos cautelares, supra referidos, foram invocados pela requerente o mesmo tipo de prejuízos também agora invocados no presente procedimento cautelar, aguardando-se, inclusive, neste momento, o resultado final do processo n.º 1 580/12.3TBPBL.

            g) As descritas conclusões de facto e de Direito não se alteram, ainda que se fizesse julgamento, o que determina o indeferimento liminar de mérito do procedimento cautelar proposto.

            2. Cumpre apreciar e decidir com a necessária concisão.

            Não obstante se afigurar correcta, e porventura suficiente (para a dilucidação do caso), a perspectiva factual mencionada em II. 1., supra, indicam-se ainda, tendo em vista o integral esclarecimento da realidade, os seguintes factos:

            a) Esta Relação, por acórdão de 24.3.2015[5], confirmou a sentença proferida no processo 1580/12.3TBPBL[6], inclusive, quanto à decisão de facto (sendo que apenas fora impugnado o respectivo “ponto 50”).

            b) Na p. i. do procedimento cautelar comum n.º 2284/10.7TBPBL, aludido em II. d), ab initio, instaurado pela requerente contra os requeridos, foi alegado, designadamente:

            - A requerente é locatária financeira da fracção autónoma designada pela letra “B” do prédio inscrito na matriz predial urbana da freguesia de (...) sob o art.º 5478-B e descrito na CRP de Pombal sob o n.º 3539/ (...):

            - Os requeridos nunca entregaram à requerente o trato e uso das seguintes partes integrantes do referido imóvel: arrumos (três divisões), sala de pessoal, sala de refeitório do pessoal; casa de banho, vestiário, arrecadação e despensa;

            - O imóvel está afecto a actividade de lar de terceira idade e dispõe para o efeito das necessárias licenças camarárias e do Instituto de Segurança Social IP;

            - Naquela parte do imóvel ocupado pelos requeridos, estes, sem qualquer licenciamento camarário, têm vindo a fazer obras, alterando a sua configuração e afectação;

            - Teme a requerente que a manutenção desta situação lhe possa causar prejuízos porquanto o licenciamento do uso e suas condicionantes seja alterado ou retirado pelas instituições próprias.[7]

            3. No arrazoado da alegação de recurso e respectivas “conclusões”, a recorrente afirma, designadamente, que o Tribunal a quo não atendeu à prova documental junta aos autos, nem à factualidade dada como provada nas sentenças dos processos 958/10.1PBPBL (que constitui caso julgado) e 1580/12.3TBPBL, e também não apreciou a factualidade alegada sobre o seu receio de lesão grave e relativamente ao prejuízo pelo não decretamento da presente providência, existindo clara violação do princípio do dispositivo, na medida em que o tribunal a quo pronuncia-se sobre questões que não podia tomar conhecimento e deixa de pronunciar-se sobre questões que devia conhecer, configurando tal circunstância uma causa de nulidade da decisão (art.º 615º, n.º 1, al. d) do CPC[8]).

Preceitua o referido normativo que “é nula a sentença quando o juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento”.

A dita previsão relaciona-se com o dispositivo do art.° 608°, n.° 2, do mesmo Código[9], e por ele se tem de integrar. A primeira modalidade (omissão de pronúncia) tem a limitação aí constante quanto às decisões que devam considerar-se prejudicadas pela solução dada a outras; a segunda (excesso de pronúncia) reporta-se àquelas questões de que o tribunal não pode conhecer oficiosamente e que não tenham sido suscitadas pelas partes, devendo a palavra “questões” ser tomada em sentido amplo: compreenderá tudo quanto diga respeito à concludência ou inconcludência das excepções e da causa de pedir e às controvérsias que as partes sobre elas suscitem.

Contudo, é incorrecto inferir-se que a sentença deverá examinar toda a matéria controvertida, ainda que o exame de uma só parte impuser necessariamente a decisão da causa, favorável ou desfavorável – neste sentido haverá que compreender-se a fórmula da lei “exceptuadas aquelas questões cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras” (art.º 608º, n.º 2).[10]

Perante o descrito enquadramento normativo e analisada a sentença sob censura, concluiu-se que o Mm.º Juiz a quo indicou adequadamente (de forma clara e com desenvolvimento bastante) os fundamentos de facto e de direito subjacentes à decisão proferida, e foram conhecidas todas as questões em discussão nos autos, decidindo-se em conformidade com a fundamentação tida por adequada [cf., sobretudo, II. 1., supra], sendo que, como também, e bem, se diz no despacho de fls. 297 e seguintes:

            - Não há outros documentos a considerar (já foram, aliás, considerados no processo 1 580/12.3TBPBL, em sentido inverso ao pretendido pela recorrente), nem mais questões principais e/ou acessórias a conhecer, pois estão irremediavelmente prejudicadas pela falta de ´fumus boni iuris` e ´periculum in mora`, em face de se considerar indiciariamente provada a propriedade dos réus sobre as divisões em causa;

- Tendo-se decidido pela falta de ´fumus boni iuris` e de ´periculum in mora`, não tinha o Tribunal de se pronunciar sobre o requisito do prejuízo de não decretamento da providência, uma vez que a providência não podia proceder;

            - O Tribunal não podia conhecer de qualquer outra factualidade porquanto – indiciariamente provada a propriedade das divisões em causa em favor dos requeridos, por efeito da sentença proferida no processo 1 580/12.3TBPBL – nada mais há a discutir, ainda que alegado, pois torna-se de todo irrelevante.

            Por conseguinte, não ocorre o aludido vício na sentença recorrida, o qual, como se sabe, não se confunde com eventuais falhas/erros da decisão de facto ou “erros de julgamento”.

            4. Preceitua o art.º 362º (sob a epígrafe “âmbito das providências cautelares não especificadas”) que sempre que alguém mostre fundado receio de que outrem cause lesão grave e dificilmente reparável ao seu direito, pode requerer a providência conservatória ou antecipatória concretamente adequada a assegurar a efectividade do direito ameaçado (n.º 1) e que não é admissível, na dependência da mesma causa, a repetição de providência que haja sido julgada injustificada ou tenha caducado (n.º 4).

            Para que haja repetição de providência necessário é que ocorra semelhança essencial, o que se verificará, naturalmente, se as partes, os fundamentos e o pedido foram os mesmos. Mais concretamente, importará analisar se o receio é o mesmo, se é a mesma a possibilidade de lesão do direito e a mesma dificuldade de reparação e, ainda, se é o mesmo o direito provavelmente existente.[11]

            Com a referida estatuição pretende-se, por um lado, afirmar/concretizar os princípios da economia e da celeridade processuais e, por outro lado, a autoridade e prestígio das decisões (prevenção de eventuais pronúncias de sinal contraditório ou de conteúdo repetitivo sobre o mesmo objecto).

            A proibição que dela decorre assenta, assim, em fundamentos algo semelhantes aos subjacentes ao instituto do caso julgado, traduzidos na repetição de uma causa, para a qual a lei exige a verificação da chamada tripla identidade plasmada no art.º 581º do CPC.[12]

            Ou então, dir-se-á que a proibição de repetição de providência julgada injustificada ou cuja caducidade foi declarada, obsta a que o requerente possa apresentar “nova pretensão de conteúdo idêntico dentro da mesma acção, ainda que sejam outros os factos alegados como fundamento. Mas já não existe impedimento legal a que seja solicitada outra providência de conteúdo diferente ou destinada a tutelar interesses diferentes daqueles que se visaram com a providência anterior“.[13]

            5. Ora, ante os elementos disponíveis, dúvidas não restam de que estamos perante a repetição de providência anteriormente requerida.

            Na verdade, cotejando a providência dita em II. 1. d), ab initio, e 2. b), supra, com a presente providência, dúvidas não restam de que aquela surgiu entre as mesmas partes como preliminar de acção a propor (mais propriamente, da acção principal 2560/10.9TBPBL, à qual foi apenso o procedimento cautelar objecto do presente recurso), teve pedido e fundamento essencialmente idênticos aos da presente providência [visando-se a “restituição” das mesmas divisões; tinha o mesmo conteúdo e visava os mesmos objectivos]; o receio era o mesmo, a mesma ou idêntica era a possibilidade de lesão do direito e a dificuldade de reparação, o mesmo era o direito provavelmente existente [cf. pontos I., II. 1. d) e II. 2. b), supra].

            Por conseguinte, apenas se poderá concluir estarmos perante uma situação de repetição de providência cautelar, o que, de per si, poderia conduzir à rejeição do procedimento em análise, tal como, de resto, foi suficientemente evidenciado na fundamentação da decisão sob censura [cf. II. 1. d), ab initio, supra], sem que a recorrente o tenha concreta e especificamente impugnado no corpo e/ou nas conclusões da alegação de recurso de fls. 197.

            6. Ainda que se propendesse para a não verificação da identidade referida nos pontos anteriores e/ou para uma insuficiente/inadequada caracterização da sua afirmação no contexto da decisão sob censura, sempre se deveria concluir pelo não preenchimento dos requisitos necessários ao decretamento da pretendida providência cautelar comum.

            Na verdade, estabelecendo a lei, designadamente, que a providência é decretada desde que haja probabilidade séria da existência do direito e se mostre suficientemente fundado o receio da sua lesão (art.º 368º, n.º 1), e sabendo-se que o decretamento de uma providência cautelar comum depende da concorrência de diversos requisitos, entre os quais, a probabilidade séria da existência do direito invocado [o requerente deve alegar e provar que tem um direito ou interesse juridicamente relevante relativamente ao requerido, embora no procedimento cautelar não seja necessário um juízo de certeza, mas apenas de verosimilhança ou de aparência do direito - fumus boni juris][14], antolha-se evidente não ser possível concluir pela probabilidade séria da existência do direito invocado, porquanto se encontra provado, precisamente no processo que determinou a suspensão dos autos principais, designadamente, que as divisões reclamadas nesta acção nunca fizeram parte do Lar porquanto apesar de projectadas nunca passaram do papel e que das divisões planeadas para o Lar, discutidas nas duas acções, de facto, só foi construída a cozinha, que resultou da transformação de um dos quartos que já existia no rés-do-chão da vivenda dos autores, sendo que a parte restante do rés-do-chão, mesmo após a edificação do Lar, foi sempre utilizada pelos autores como habitação [cf. II. 1. d), supra].

            E, indemonstrada a aparência/verosimilhança do direito feito valer em juízo, fica necessariamente prejudicada a demonstração do perigo de insatisfação desse direito aparente (requisito que implica um juízo, senão de certeza e segurança absoluta, ao menos de probabilidade mais forte e convincente).[15]

            Compulsados os autos, verifica-se que, se, no procedimento cautelar n.º 2284/10.7TBPBL, foi possível concluir, apenas, que “apesar de do título de constituição da propriedade se mostrarem descritas as divisões que fazem parte de uma ou outra fracção, verifica-se que quer da fracção ´A`, quer da fracção´B` fazem parte divisões designadas como cozinha, arrumos, casas de banho e quartos, pelo que de tal título não é possível retirar quais, em concreto, são as divisões que fazem parte da casa de habitação dos requeridos e quais fazem parte do lar./Assim, não é possível concluir pelo preenchimento da condição consistente na existência do direito invocado pela requerente.”[16], já no âmbito da aludida acção prejudicial (processo n.º 1 580/12.3TBPBL) ficou demonstrada, como vimos, realidade que aponta, claramente, para o afastamento do dito primeiro requisito do decretamento da providência requerida (a probabilidade séria da existência do direito invocado).

            Neste circunstancialismo, apenas se poderia concluir pelo não preenchimento do primeiro ou principal requisito do decretamento da providência requerida, ficando prejudicada qualquer indagação complementar da realidade eventualmente conducente à afirmação dos demais pressupostos (nomeadamente, a demonstração do perigo de insatisfação desse direito aparente - art.º 368º, n.º 1).

            7. Neste multiplicar e entrecruzar de acções e procedimentos cautelares que as partes decidiram instaurar, quiçá, com reduzidas consequências no plano do reconhecimento das pretensões sucessivamente invocadas, queda também prejudicada ou desnecessária a ponderação das restantes “peças” trazidas aos autos [v. g., a sentença de 19.4.2010 proferida no procedimento cautelar n.º 716/10.3TBPBL; a sentença de 21.6.2010 proferida na oposição à providência ali decretada (já com o n.º 958/10.1TBPBL-A) e o acórdão desta Relação de 05.4.2011, que revogou o decidido, etc.].[17]

            8. Resta, pois, concluir que a decisão sob censura, ao julgar improcedente o procedimento cautelar, rejeitando-o liminarmente, não merece qualquer reparo, soçobrando, desta forma, ou mostrando-se deslocadas e insubsistentes as restantes “conclusões” da alegação de recurso.

*

III. Face ao exposto, julga-se improcedente a apelação, confirmando-se a decisão recorrida.        

            Custas pela requerente/apelante.       

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08.9.2015

Fonte Ramos ( Relator)

Maria João Areias

Fernando Monteiro


[1] Rectificou-se.
[2] Rectificou-se.
[3] A sentença em causa encontra-se reproduzida a fls. 224 verso e seguintes (documento junto com a “oposição” de fls. 211 verso).
[4] Ponto da matéria de facto com a seguinte redacção [sublinhado e itálico nossos]: “No seguimento da providência [dita no ponto anterior], a 1ª Ré (requerente) propôs acção declarativa de condenação, sob a forma ordinária, processo n.º 2560/10.9TBPBL, que cursa no 2º Juízo desta Comarca, pedindo que os ora autores sejam condenados na entrega das referidas divisões, tendo sido proferido Saneador Sentença, absolvendo os réus, ora autores, da instância, decisão que ainda não transitou em julgado.”
[5] Reproduzido a fls. 253 e seguintes e publicado no “site” da dgsi.
[6] Acção que deu entrada em juízo em 24.7.2012, conforme ficou consignado no ponto 12. da “factualidade provada” (cf. fls. 169 e 263).
[7] Cf. a p. i. reproduzida a fls. 218 verso e seguintes (documento junto com a “oposição” de fls. 211 verso).
[8] Diploma a que pertencem as disposições doravante citadas sem menção da origem.
[9] Preceitua-se no referido normativo: “O juiz deve resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, exceptuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras. Não pode ocupar-se senão das questões suscitadas pelas partes, salvo se a lei lhe permitir ou impuser o conhecimento oficioso de outras.”
[10] Vide, de entre vários, A. Anselmo de Castro, Direito Processual Civil Declaratório, Vol. III, Almedina, 1982, págs. 142 e seguinte e Lebre de Freitas, e Outros, CPC Anotado, Vol. 2º, Coimbra Editora, 2001, pág. 670.
[11] Cf. o acórdão do SJ de 29.02.1996, in BMJ, 454º, 663.
[12] Cf. o acórdão do STJ de 07.7.1999-processo 99B563, publicado no “site” da dgsi.
   E defendeu-se no acórdão do STJ de 12.6.1997 (publicado no BMJ, 468º, 335) que nada obsta a que a excepção do caso julgado se coloque entre dois processos de natureza cautelar - o instituto do caso julgado, incluindo o aspecto “excepção”, não repugna à natureza própria dos procedimentos cautelares.
   Em idêntico sentido, vide Lopes do Rego, Comentários ao CPC, Vol. I, 2ª edição, 2004, Almedina, pág. 344, ao referir que a dita norma apenas inviabiliza “a nova dedução de pretensão idêntica (ainda que alicerçada em factos diferentes)” e que a figura da excepção de caso julgado, aplicável, “sempre obstaria a sucessiva repetição de providências idênticas, alicerçadas numa mesma causa de pedir”, bem como Abrantes Geraldes, Temas da Reforma do Processo Civil, Vol. III, 3ª edição, 2004, pág. 125, que aponta situações fora do âmbito de aplicação da norma do art.º 362º, n.º 4, do CPC, sem que, cremos, fique claramente estabelecida a diferença entre o respectivo campo de aplicação e o domínio em que deverá vingar o instituto do caso julgado.
[13] Nesta perspectiva, vide Abrantes Geraldes, ob. cit., pág. 124 e o acórdão da RL de 03.5.2012-processo 2737/11.0TBSXL-B.L2-6, publicado no “site” da dgsi.

[14] Além daquele primeiro requisito, temos ainda três pressupostos principais do decretamento, a saber, o fundado receio de que outrem, antes de a acção ser proposta ou na pendência dela, cause lesão grave e dificilmente reparável a tal direito [o procedimento cautelar tem por fim obviar ao perigo da demora da declaração e execução do direito, afastando o receio do dano jurídico, através de medidas que limitam os poderes ou impõem obrigações àqueles que se encontram em conflito com o requerente da providência - periculum ín mora], a adequação da providência à situação de lesão iminente [que a providência requerida seja adequada a remover o periculum in mora concretamente verificado e a assegurar a efectividade do direito ameaçado] e a não existência de providência específica que acautele aquele direito [tipificadas nos art.ºs 377º a 409º], e acresce, como derradeira exigência, que o prejuízo resultante da providência não exceda o dano que com ela se quis evitar.
   Vide, entre outros, Abrantes Geraldes, ob. cit., pág. 97 e seguinte e o acórdão do STJ de 28.9.1999, in CJ-STJ, VII, 3, 42.
[15] Vide Alberto dos Reis, CPC Anotado, Vol. I, 3ª edição (reimpressão), Coimbra Editora, 1982, págs. 621 e 682 e seguintes.
[16] Cf. a decisão reproduzida a fls. 224 verso e seguintes, maxime, a fls. 229 verso e 230.
[17] Cf. a certidão de fls. 103 e seguintes (maxime, a fls. 122, 131 e 139).
   O referido aresto foi publicado na CJ, XXXVI, 2, 35.