Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
83/12.0GCGRD.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: BELMIRO ANDRADE
Descritores: VIOLÊNCIA DOMÉSTICA
CASAMENTO
RELAÇÃO ANÁLOGA À DOS CÔNJUGES
Data do Acordão: 02/27/2013
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: 2º JUÍZO DO TRIBUNAL JUDICIAL DE GUARDA
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTIGO 152º Nº 1 B) CP
Sumário: O arguido, casado com outra mulher, com quem vive, mas que mantém, há mais de dez anos, paralelamente, um relacionamento amoroso com a ofendida, ainda que sem coabitação, consubstancia com esta uma relação análoga à dos cônjuges e por essa razão susceptível de integrar o núcleo das vitimas de violência doméstica.
Decisão Texto Integral: I.

Recorre o MºPº, da decisão instrutória em que foi decidido:

- Não pronunciar o arguido, A..., identificado nos autos, pelo crime de violência doméstica que lhe vem imputado, previsto e punido pelo artigo 152°/1-b) do Código Penal; MAS (…)

- Pronunciar o mesmo arguido, A..., pela prática de:

- um crime de ofensa à integridade física simples previsto e punido pelo artigos 143°/1 do C. Penal; e

- um crime de ameaça previsto e punido pelos artigos 153°/1 e 155°/a) do Código Penal”.

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Na motivação do recurso são formuladas as seguintes CONCLUSÕES:

1 – (reproduz a parte decisória do despacho recorrido já descrita supra).

2 – O facto de estarmos perante uma relação de concubinato não impede o preenchimento do tipo de ilícito do crime de violência doméstica e a conclusão de que esta é uma relação semelhante à dos cônjuges, pela sua estabilidade duradoura, publicidade, dependência económica, comunhão de cama e mesa, partilha de decisões e actividades sociais, ligação afectiva e de domínio do arguido sobre a ofendida.

3 – O legislador penal, em 2007, ao considerar que pode ser agente do crime de violência doméstica aquele que vive em condições análogas ás dos cônjuges, ainda que sem coabitação, pretendeu inovar, trazendo à tutela penal relacionamentos que, não obstante não se encontrarem motivados pelo matrimónio ou a intenção de constituir família, estivessem comprometidos pelo vínculo do afecto, com carácter estável e duradouro.

4. Face à prova produzida em inquérito e instrução, é evidente que a conduta do arguido, perpetuada no tempo, pela sua gravidade e reiteração, pôs em causa a dignidade da ofendida, afectou o seu bem-estar e saúde física e psíquica, sendo distinto o desvalor da conduta do arguido, neste caso, daquele em que o mesmo se limita a agredir esta mulher, com quem manteve uma relação afectiva durante tantos anos, numa única ocasião, não existindo qualquer motivo para excluir a concubina do direito à dignidade humana.

5. Nestes termos, deve o arguido ser pronunciado pela prática de um crime de violência doméstica previsto e punido pelo artigo 152° n.º1 al. b) e 2 do Código Penal, por todos os factos descritos na acusação de fls. 209 e ss., revogando-se assim a decisão recorrida.

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Notificado, o recorrido não apresentou resposta.

No visto a que se reporta o art. 416º do CPP o Exmo. Procurador-Geral Adjunto emitiu douto parecer no qual aduz argumentação no sentido de que o recurso merece e deve proceder.

Cumprido o disposto no art. 417º do CPP não houve resposta.

Corridos vistos, cumpre conhecer.


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II.

Está em causa a qualificação jurídica da matéria de facto da acusação levada à pronúncia - um único crime de violência doméstica, como proposto na acusação; ou - dois crimes (ofensa à integridade física e ameaça) como foi entendido no despacho recorrido.

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Sob a epígrafe “Violência doméstica”, dispõe o artigo 152.º do Código Penal (redacção da Lei n.º 59/2007):

1 – Quem, de modo reiterado ou não, infligir maus tratos físicos ou psíquicos, incluindo castigos corporais, privações da liberdade e ofensas sexuais:
a) Ao cônjuge ou ex-cônjuge;
b) A pessoa de outro ou do mesmo sexo com quem o agente mantenha ou tenha mantido uma relação análoga à dos cônjuges, ainda que sem coabitação;
(…)
é punido com pena de prisão de um a cinco anos, se pena mais grave lhe não couber por força de outra disposição legal.

Trata-se de um crime específico, que impõe ao agente uma determinada relação com o agente passivo, e de execução não vinculada, podendo os maus tratos físicos e psíquicos consistir nas mais variadas acções ou omissões. Protegendo a saúde, enquanto bem jurídico complexo que abrange a saúde física, psíquica e mental que podem ser ofendidos por uma multiplicidade de comportamentos que afectam a dignidade pessoal da vítima.

O fundamento último das acções e omissões abrangidas pelo tipo reconduz-se ao asseguramento das condições de livre desenvolvimento da personalidade de um indivíduo no âmbito de uma relação interpessoal próxima de tipo familiar ou análogo – cfr. André Lamas Leite (A violência Relacional Íntima, Revista Julgar, Setembro/Dezembro de 2010, p.49.

O que está em causa é a relação de proximidade existencial de afectividade e convivência, cumplicidade, confiança, conhecimento mútuo, exposição da intimidade, gestão dos interesses inerentes à partilha da vida em comum, com as fragilidades daí decorrentes para com o outro parceiro, sobretudo para aquele que constitui “o elo mais fraco” dessa relação e que o inibem/ limitam, na capacidade de denúncia e de defesa, pela teia laços objectivos e subjectivos inerentes à partilha da vida em comum.

O tipo de crime em questão tutela a protecção da dignidade da pessoa humana, nas múltiplas vertentes da saúde física, psíquica e mental, da honra, da liberdade, que de alguma forma saem condicionados e/ou comprimidos em função das limitações decorrentes da especial relação de comunhão de vida, intimidade, proximidade/ (inter)dependência inerentes à vida em comum.

O contexto típico do crime é o da relação presente ou passada em que existe um desequilíbrio dos deveres de solidariedade e de respeito recíprocos inerentes aquela relação de tipo familiar, numa relação de vivencialidade de subordinação.

É o contexto de uma relação interpessoal dominada por vínculos familiares ou de tipo familiar, de partilha de espaçoso, afectos, interesses, rendimentos, confiança, exposição e preservação da intimidade, criadores de compromissos, dependências, subordinação, entre o agente a vítima, que, sendo violada, torna mais reprovável a conduta prevista no art. 152º. Criando, nessa medida, uma relação de especialidade com outros tipos de crime onde também está em causa a degradação da dignidade da pessoa.

Devendo, pois, essa relação de tipo familiar, criadora de dependência, surgir como relevante no processo causal da actuação do agente, na violação dos específicos deveres e vulnerabilidades que encerra. E não aparecer como de estranha ou irrelevante no processo causal da actuação do agente.

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A decisão recorrida tem por indiciada a seguinte matéria de facto:

1. O arguido e a ofendida B... mantiveram um relacionamento amoroso desde o dia 13 de Abril de 1991, até ao dia 20 de Abril de 2012.

2. Em data não concretamente apurada, mas que se sabe ter sido por diversas vezes, desde o dia 15 de Setembro de 2007 e até ao final do relacionamento, geralmente na casa de habitação da ofendida, arguido dirigiu-se a esta e disse, em tom sério, "se me deixas mato-te", "se não fores minha não serás de mais ninguém" e "quem com putas se mete e com elas faz cabedal, ou acaba na cadeia ou no hospital".

3. No dia 20 de Abril de 2012 pelas 21h20m, na casa de habitação da ofendida, iniciou-se uma discussão entre ambos, tendo o arguido desferido diversas estaladas na cara da ofendida, acertando-lhe junto à boca, fazendo com que o seu lábio ficasse a sangrar.

4. A ofendida perdeu o equilíbrio, por força das bofetadas, bateu com as costas no sofá e caiu, altura em que o arguido se debruçou sobre esta, agarrou-a os seus cabelos, que puxou com força, tendo a ofendida empurrado o arguido, arranhando-o na face.

5. Nessa altura, o arguido libertou a ofendida, que tentou fugir, mas o arguido volta a agarrar com as mãos os cabelos da ofendida, que puxou com força, arrastando-a pelo chão, durante cerca de três metros, até junto do balcão da varanda, provocando-lhe, além do mais, lesões nos joelhos e arrancando parcialmente os seus cabelos.

6. Aí, o arguido sentiu sangue no rosto, dirigiu-se à casa de banho e apercebeu-se que ficou com arranhões na cara.

7. Quando regressou, o arguido agarrou novamente na ofendida, pelos cabelos, e arrastou-a até à casa de banho, local onde a abanou, com força, sempre puxando os seus cabelos, fazendo com que a ofendida batesse com a cabeça no lavatório e com as costas no rebordo da banheira.

8. Em consequência da actuação do arguido, nessa data, a ofendida sofreu escoriação no lábio inferior e duas escoriações no joelho direito, escoriação e pequeno hematoma na região temporal direita e equimose na região dorsal esquerda, o que lhe demandou directa e necessariamente para a sua cura um período de 6 dias de doença, sendo 4 com afectação da capacidade de trabalho geral e profissional.

9. A actuação do arguido, nessa data, só cessou por intervenção dos vizinhos da ofendida, as testemunhas … , que acorreram ao local em virtude de esta gritar por auxílio.

10. Com tal conduta, quis o arguido agredir a denunciante, causando-lhe as lesões supra descritas.

11. O arguido, ao actuar da forma descrita em 2), fê-lo ainda com o propósito de provocar medo e inquietação na ofendida, bem como de lhe prejudicar a sua liberdade de determinação, o que conseguiu.

12. O arguido agiu sempre de vontade deliberada, livre e consciente, bem sabendo que tais condutas são proibidas e punidas por lei penal.

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Embora remetendo para a “matéria de facto da acusação de fls. 209 e ss.”, certo é que o MºPº na motivação do recurso dá como pressuposta a aludida matéria de facto, dada como indiciada no despacho de pronúncia – supra reproduzida.

Partindo dessa matéria, o MºPº pretende ver alterada a qualificação jurídica da pronúncia (um crime de ofensa à integridade física + um crime de ameaça) para um único crime - violência doméstica - que englobe toda a matéria da acusação, finalisticamente aglutinada e enquadrada na relação afectiva, duradoura, existente entre arguido e ofendida.

Com efeito, a matéria de facto típica descrita no despacho de pronúncia (termos supra reproduzidos) é situada no âmbito logo definido no ponto 1:

O arguido e a ofendida mantiveram um relacionamento amoroso desde o dia 13 de Abril de 1991, até ao dia 20 de Abril de 2012”.

Relacionamento amoroso que, na economia da própria decisão recorrida constitui a causa/enquadramento/motivo dos episódios de ofensa à integridade física e de ameaça.

Tal resulta ainda da matéria descrita no despacho recorrido quando:

- situa os factos “desde o dia 15 de Setembro de 2007 e até ao final do relacionamento”;

- situando ainda o lugar da prática dos factos “geralmente na casa de habitação da ofendida”.

O mesmo se conclui do teor da ameaça imputada ao arguido, claramente motivada pela aludida relação duradoura.

Veja-se o teor da ameaça: "se me deixas mato-te", "se não fores minha não serás de mais ninguém".

Portanto expressões com carácter de ameaça, claramente relacionadas com a afectividade e vivência em comum “more uxorio”.

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De qualquer forma, a motivação do recurso especifica outros pontos de facto, descritos na acusação, complementares dos descritos na pronúncia e que esclarecem melhor o tipo de relação existente entre a vítima e o arguido e surgem como condicionadores dos factos praticados.

Assim para além da matéria de facto tida por indiciada no próprio despacho de pronúncia, resulta ainda da prova indiciária, com relevo (cfr. depoimento do arguido fls. 148, depoimentos gravados de J...; C..., E..., A... L... ):

- “existia afecto entre ambos” - aliás tal não podia deixar de deixar existir numa relação amorosa tão duradoura.

- encontravam-se repetida e  assiduamente na casa de habitação da ofendida;

- nessa casa “partilhavam a mesma cama e tomavam refeições em conjunto” – o próprio arguido o reconhece mais uma vez e é confirmado pela prova testemunhal referida.

- o relacionamento era “assumido publicamente, sendo conhecido de familiares e amigos”;

- o arguido tinha “ascendente psicológico sobre a ofendida;

- existia “apoio económicodo arguido à ofendida – embora ela trabalhasse ele suportou “despesas com a casa de habitação da ofendida” -  o próprio o diz;

 - o arguido tinha a chave da casa – servindo-se dela quando bem entendia;

- partilhavam em conjunto actividades sociais, trabalhos agrícolas, telefonavam-se, adquiriam bens em conjunto;

- o arguido mantinha roupas sua em casa dela, que as lavava e passava a ferro.

- Tudo isto durante os mais de 10 anos do “relacionamento amoroso” descrito no despacho de pronúncia.

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Está em causa, no recurso, o preenchimento do elemento descritivo do tipo objectivo do crime “com quem o agente mantenha ou tenha mantido uma relação análoga à dos cônjuges, ainda que sem coabitação”.
Ora, verifica-se que, na economia da decisão recorrida, ali de conclui pela inexistência “violência doméstica” com o fundamento nuclear de que o relacionamento amoroso entre arguido e ofendida - referido no ponto 1 da matéria de facto indiciada - não constitui uma “relação análoga à dos cônjuges” mas antes uma relação de “concubinato adulterino”.
Ancora o referido entendimento na asserção de que “o arguido era casado com outra mulher que não a denunciante, da qual tinha filhos e era com aquela que vivia”.
No entanto a letra da lei (epígrafe do preceito – violência “dóméstica”) e o seu enuncido (“relação análoga à dos cônjuges, ainda que sem coabitação”) apontam claramente no sentido de que não é a cobertura da relação pelo vínculo do casamento que molda o tipo de crime – se a lei aceita a “relação análoga”.
Do mesmo modo que afasta, claramente, a exclusividade da relação ou até a necessidade de uma habitação comum – “ainda que sem coabitação”, enuncia o tipo legal de crime
No mesmo sentido aponta a evolução histórica do preceito, alargando sucessivamente o conceito de “relação análoga” – a culminar veja-se a recente 29ª alteração ao C. Penal, operada pela Lei 19/2013 de 21.02, que, embora não apliável ao caso, aponta o aludido caminho, incluindo agora no tipo do art. 152º a mera relação de “namoro”.
 Bem como a natureza do bem jurídico tutelado pelo tipo de crime – a integridade física e moral, no quadro de uma relação afectiva, de proximidade existencial e interdependência mútua, de aspecto matrimonial, que confere o lastro aglutinador da ou das multiplas acções praticadas no âmbio dessa relação, pela dependência mútua e consequente fragilidade/exposição daí decorrente, susceptível de aproveitamento pelo outro parceiro.

Ora, no caso, resulta claramente do quadro factual indiciado, a existência de uma relação afectiva duradoura (mais de 10 anos), na casa de morada da ofendida, assumida reciprocamente, que, claramente motiva e condiciona a actuação do arguido descrita na acusação, potenciando o seu efeito pela fragilização da posição da vítima, por efeito da diminuição da sua liberdade/capacidade de reacção causada pelo vínculo afectivo e de convívio existente, pela exposição da privacidade e da intimidade perante o agente, decorrentes da relação da vida em comum.

Quadro factual que, materialmente, a circunstância de o arguido manter a “aparência” do casamento – só pode ser de aparência porquanto dos deveres de coabitação, respeito, fidelidade inerentes fica apenas a miragem, em face da aludida relação amorosa com a ofendida, continuada e publicamente assumida, por mais de 10 anos – não descaracteriza.

Devendo, pois o arguido ser pronunciado pelo crime da acusação.

Além da estrita matéria de facto descrita no despacho de pronúncia estão indiciados pontos complementares descritos na acusação (cfr. nomeadamente aqueles a que se fez referência descriminada supra) que devem ser levados ao despacho de pronúncia.


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III.

Nos termos e com os fundamentos expostos, decide-se conceder provimento ao recurso, revogando a decisão recorrida e determinado a sua substituição por outra que, tendo por base a matéria de facto descrita na acusação, pronuncie o arguido, A..., como autor de um crime de violência doméstica previsto e punido pelo artigo 152° n.º1 al. b) e 2 do Código Penal. ----

Sem tributação. 

Belmiro Andrade (Relator)

Abílio Ramalho