Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
203/13.8TAMBR.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: LUÍS TEIXEIRA
Descritores: ACUSAÇÃO PARTICULAR
LEGITIMIDADE
ASSISTENTE
Data do Acordão: 02/08/2017
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: VISEU (JUÍZO LOCAL DE MOIMENTA DA BEIRA)
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTS. 18.º, N.º 2, DA CRP; ARTS. 283.º, 284.º, 285.º E 287 DO CPP; ARTS. 180.º E 184.º DO CP
Sumário: I - Perante a posição processual do Ministério Público de ordenar a notificação do assistente para, querendo, deduzir acusação, competia a este tomar uma de duas opções:
- Não se conformar com esta posição do Ministério Público quanto à qualificação do eventual crime de difamação (difamação simples) e requerer a abertura da instrução tendo em vista a sua integração numa difamação agravada; ou

- Deduzir acusação particular mas tão-somente pelo crime de difamação p. e p. pelo artigo 180.º, n.º 1, do CP (sem a agravação do artigo 184.º do mesmo diploma).

II - Não podia o assistente deduzir uma acusação particular por um crime que, segundo a sua própria qualificação ou integração jurídica, tem a natureza de crime semipúblico, a difamação agravada.

Decisão Texto Integral:




Acordam em conferência, na 4ª Secção (competência criminal) do Tribunal da Relação de Coimbra

I

1. Nos autos de processo supra identificados, o ora recorrente e assistente A... , residente no lugar da (...) , Sernancelhe, com o CC nº (...) , deduziu acusação particular contra B... , residente na (...) , Mangualde, imputando-lhe factos susceptíveis de preencherem os crimes de difamação e injúrias agravadas, pp e pp nos termos conjugados dos artigos 180º, nº1, 181º, nº1, 183º, nºs 1, alíneas a) e b) e 2 e 184º, todos do Código Penal.

Mais deduziu o assistente contra esta arguida, pedido de indemnização civil de 3000,00€ (três mil).

2. Por despacho judicial de 10.5.2016, foi rejeitada a acusação particular do assistente A... por falta de legitimidade para deduzir a acusação e foi declarada extinta a instância quanto ao pedido civil então também deduzido por impossibilidade superveniente da lide.

3.Deste despacho recorre o assistente que formula as seguintes conclusões:

            3.1. Nos presentes autos, decorrido o inquérito, o Ministério Público (MP) promoveu a notificação do assistente para, nos termos do disposto no n.º 1 do artigo 285.º do CPP, no prazo de 10 (dez) dias, querendo, deduzir acusação particular, tendo ainda informado que não acompanharia tal eventual acusação;

            3.2. O MP não proferiu despacho de arquivamento nesta parte, assim impossibilitando, desde logo, ao assistente a normal reacção impugnatória dessa eventual decisão.

            3.3. Agindo em conformidade, dentro do prazo legal, o assistente deduziu acusação particular e formulou pedido de indemnização cível quanto aos crimes de difamação e injúria.

            3.4. A douta Sentença a quo rejeitou a acusação particular e declarou extinta a instância cível, por falta de legitimidade do assistente.

            3.5. Porém, esta decisão é, salvo o devido respeito, injusta, ilegal e inconstitucional, por constituir uma restrição inaceitável ao direito à tutela jurisdicional efectiva do assistente, nos termos em que o mesmo é consagrado no artigo 20.º da Constituição da República Portuguesa (CRP).

            3.6. Nos processos em que estão em causa crimes de natureza pública ou semi-pública (com a respectiva apresentação de queixa), realizadas as respectivas e necessárias diligências de prova, o

Ministério Público: a) deduz despacho de arquivamento se se verificarem os pressupostos do artigo 277º, do CPP; b) ou deduz acusação se se verificarem os pressupostos do artigo 283º, do CPP;

            3.7. Se o MP proferir despacho de arquivamento, o assistente pode requer a abertura da instrução – artigo 287º, nº 1, alínea b), do CPP;

            3.8. Se o MP deduzir acusação, o assistente pode igualmente deduzir acusação, no prazo e nos termos do artigo 284º, do CPP;

            3.9. No caso vertente, o MP não adoptou qualquer das condutas referidas, quanto aos crimes de difamação e injúria, tendo promovido a notificação do assistente para, querendo, deduzir acusação particular;

            3.10. Desta atitude do MP resulta que o mesmo considerou não estarem preenchidos os pressupostos da agravação dos tipos legais em causa, pelo que, na sua óptica, os autos reconduziam-se à eventual prática dos crimes em causa na modalidade de crimes particulares;

            3.11. Era essa a única conclusão que o assistente poderia retirar, pois como diz a melhor Doutrina (Paulo Pinto de Albuquerque in Comentário do Código de Processo Penal, fls. 747, nota 1 (anotação ao artigo 285º do CPP) “No final do inquérito, o MP toma posição relativamente aos crimes públicos e semi-públicos indiciados nos autos. Em relação aos crimes particulares, o MP deve notificar o

assistente para, querendo, deduzir acusação particular. Portanto, havendo concurso de crimes públicos ou semi-públicos e particulares, o MP deve deduzir acusação ou arquivar os autos em relação aos

crimes públicos ou semi-públicos e, em simultâneo, notificar o assistente para os efeitos do artigo 285º O arguido é notificado conjuntamente do despacho do MP e da acusação do assistente”.

            3.12. Só por isto, e apesar de na queixa e na acusação particular ser referida a agravação dos tipos legais aplicáveis (referência que nunca poderia vincular o Tribunal), deveria ter sido reconhecida a

legitimidade do assistente para deduzir a acusação particular e formular o pedido de indemnização cível;

            3.13. Entender de modo diferente consiste em cercear em termos inadmissíveis a tutela dos bens jurídicos em causa por parte do assistente, pois em face da atitude do MP, o assistente ficou impedido de requerer a abertura de instrução (em caso de arquivamento) e, simultaneamente, impedido de deduzir acusação particular (porque, na óptica do Tribunal, carece de legitimidade para o efeito);

            3.14. Ou seja, o sistema penal, ao ter actuado, no caso vertente, como actuou, bloqueou ao assistente todas as possibilidades de continuar o processo penal e, assim, pugnar pela efectivação dos seus direitos constitucionalmente consagrados, concretamente, a sua honra e consideração;

            3.15. No caso em apreço, o MP entendeu uma coisa, e o assistente teve de agir processualmente, em conformidade. Já o Tribunal entendeu outra, e o assistente vê-se sem forma possível de reacção, pois os autos não retrocedem...

            3.16. A situação é ainda mais gravosa na medida em que a decisão de ilegitimidade que aqui é impugnada diz materialmente respeito a uma agravação dos crimes de difamação e injúria pelo facto de os mesmos terem sido praticados contra uma das pessoas referidas na

alínea l) do n.º 2 do artigo 132.º do Código Penal;

            3.17. Porque era autarca, o assistente tem que conformar-se com uma decisão de ilegitimidade, quando o MP, ao ter actuado como actuou, o impediu de prosseguir a tutela penal dos seus direitos;

            3.18. Dito de outra forma: a solução de ilegitimidade em que se escora a douta Sentença aqui colocada em crise tem, para cumprimento do artigo 20.º da CRP, que ser mitigada nos casos, como o presente, em que: a) por um lado, há uma divergência entre o MP e o Tribunal quanto ao preenchimento dos factos de que resulta a agravação dos tipos legais e, portanto, a qualificação dos crimes em causa como semi-públicos ou particulares, divergência essa que retira a possibilidade de recurso aos meios de reacção próprios por parte do assistente, ou seja, a utilização da fase da instrução

para procurar demonstrar uma perspectiva jurídica diferente da do MP; b) por outro lado, a qualificação de um crime como semipúblico ou particular resulta de uma agravação fundada na alínea l)

do n.º 2 do artigo 132.º do Código Penal, pois nesse caso, o sistema penal fecha-se prejudicialmente para o assistente em resultado de uma sua particular condição que é, afinal, motivo legal para

lhe conceder maior protecção. Dito de outra forma: o Direito Penal material procura proteger mais o assistente, e o Direito Penal adjectivo fecha-lhe a porta com estrondo, dizendo-lhe que os seus

interesses ficam à mercê exclusiva de mãos alheias (no caso o MP, cuja leitura subjectiva pode, como aconteceu no caso, cercear-lhe inadmissivelmente as pretensões de tutela);

            3.19. A douta Sentença a quo viola, assim, o direito do assistente à tutela jurisdicional efectiva, previsto no artigo 20.º da CRP;

            3.20. Consagra-se nesta norma o direito fundamental à tutela jurisdicional efectiva, que a doutrina considera uma “garantia imprescindível da protecção de direitos fundamentais, sendo, por

isso, inerente à ideia de Estado de direito”, de tal forma que “ninguém pode ser privado de levar a sua causa (relacionada com a defesa de um direito ou interesse legítimo e não apenas de direitos

fundamentais) à apreciação de um tribunal, pelo menos como último recurso” (CANOTILHO, Gomes / MOREIRA, Vital, Constituição da República Portuguesa Anotada, Vol. I, 4.ª Edição Revista, 2007, pp.

408 e 409);

            3.21. A tese defendida na douta Sentença, sem qualquer mitigação que permita considerar a especificidade de casos como o presente, traduz-se na interpretação e aplicação das normas dos artigos 48.º a 53.º e 285.º CPP em termos que negam aos cidadãos o direito a lograr a reparação do seu direito à honra e consideração;

            3.22. A interpretação das referidas normas do CPP no sentido de que o assistente não tem legitimidade, nos casos como o vertente, para deduzir acusação particular e formular o pedido de indemnização cível é inconstitucional por violação dos números 2 e 3 do artigo 18.º da CRP, porquanto: a) não visa salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos; b) e se traduz numa restrição desproporcional ao direito fundamental à tutela jurisdicional efectiva, consagrado no artigo 20.º do mesmo Diploma Básico.

            Normas violadas: artigos 20.º da Constituição da República Portuguesa e 48.º a 53.º e 285.º do Código de Processo Penal.

            Assim, sem menosprezo pela Douta Decisão de que se recorre e sempre com o mui douto suprimento de VV. Exa.s, espera-se que a mesma seja revogada, por ser, salvo o devido respeito, injusta, ilegal e inconstitucional, procedendo-se à sua substituição por outra que receba

a acusação particular e o pedido cível.

JUSTIÇA.

4. Respondeu o Ministério Público dizendo:

“Salvo melhor opinião, não assiste razão ao recorrente.

Senão vejamos.

No despacho datado de 19 de Maio de 2015, de fls. 65 e 66, refere-se que “os factos participados respeitam ao período de campanha eleitoral para as eleições autárquicas em que o queixoso integrou a lista do PSD candidata à Câmara Municipal de (...) , para a qual veio a ser eleito como presidente e onde já assumiu anteriormente as funções de vereador

Ora, os factos que alegadamente visaram atingir o queixoso na sua honra e consideração não lhe foram imputados na qualidade de vereador, no exercício das suas funções ou por causa delas mas sim, enquanto candidato a órgão de autarquia local, como membro de uma lista candidata às eleições autárquicas, o que aliás motivou a queixa à Comissão Nacional de Eleições.

Pelo exposto, entendo que a factualidade vertida na queixa apresentada poderá consubstanciar tão só a prática de um crime de difamação, p. e p. pelo artigo 180.º, n.º 1 do C. Penal.

Tal crime assume natureza particular (cfr. artigo 188.º, n.º 1 do C. Penal), havendo necessidade de o queixoso se constituir assistente para que o Ministério Público esteja legitimado para o exercício da acção penal – cfr. artigo 50.º, n.º 1 do C. P. Penal”.

No despacho de encerramento do inquérito de fls. 300 a 305, foi proferido despacho de arquivamento quanto ao crime de fraude e corrupção de eleitor e, no que respeita ao crime de difamação, previsto e punido pelo artigo 180.º, n.º 1 do Código Penal, o assistente foi notificado nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 285.º do Código Penal.

Certo é que, o assistente deduziu acusação particular pelos crimes de difamação e injúria agravadas, previstos e punidos nos termos conjugados dos artigos 180.º, n.º 1, 181.º, n.º 1, 183.º, n.º 1, alíneas a) e b) e n.º 2 e 184.º do Código Penal.

O Ministério Público não acompanhou a acusação particular.

Foi proferido despacho a rejeitar a acusação particular uma vez que os crimes imputados à arguida revestem natureza semi-pública, concluindo pela falta de legitimidade do assistente para dedução de acusação particular.

           

            Assim, cotejadas as conclusões das alegações de recurso, afigura-se-nos que não assiste razão ao assistente.

Com efeito, a decisão recorrida é, quanto a nós, exímia em todos os seus aspectos, analisando minuciosamente todas as questões suscitadas pelo assistente.

De mencionar que o assistente poderia ter deduzido acusação pela prática do crime de difamação, previsto e punido pelo artigo 180.º, n.º 1 do Código Penal, crime esse que reveste natureza particular e nunca pela prática de um crime de natureza semi-pública, por falta de legitimidade processual.  

            Assim, com a devida vénia e por razões de economia processual, aderimos por inteiro às considerações tecidas pelo Mmo. Juiz a quo e pugnamos pela manutenção da decisão ora colocada em crise.

            Pelo exposto, deve o presente recurso ser julgado improcedente.

5. Também a arguida B... veio responder, dizendo:
1. Não existe qualquer divergência entre o que foi decidido pelo MP e o que foi decidido pelo Tribunal a quo quanto ao preenchimento dos factos de que resulta a agravação dos tipos legais de crime.
2. O Ministério Público, ao encerrar o inquérito, entendeu «que dos autos não resultam indícios suficientes da prática, pela arguida, do crime de difamação participado pelo assistente» e concluiu não estarem preenchidos os pressupostos da agravação dos crimes participados, pelo que, em consonância com essa decisão, não deduziu acusação pública e promoveu a notificação do assistente, nos termos do disposto no n.º 1 do artigo 285º do CPP, para deduzir acusação particular.
3. Donde, se o assistente é notificado pelo Ministério Público, findo o inquérito, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 285º do CPP, apenas lhe é lícito deduzir acusação por crime particular.
4. Mas, ao contrário do que alega, o Recorrente não agiu em conformidade com notificação promovida pelo MP e, ao invés de deduzir acusação particular pelos crimes de difamação e injúria simples (p.p. pelos artigos 180º e 181º do Código Penal), deduziu acusação particular pelos crimes de difamação e injúria agravadas (p.p. pelos artigos 180º, 181º, 183 e 184º do CP).
5. Ora, o Tribunal a quo, perante aquela acusação, concluiu em consonância com o que havia decidido o Ministério Público: os crimes imputados na acusação particular do Recorrente são crimes de natureza semi-pública e, quanto a estes, apenas o Ministério Público tinha legitimidade para deduzir a acusação, uma vez que este não o fez (pelas razões supra referidas e que o MP consignou quando encerrou o inquérito) não restou outra alternativa ao Tribunal a quo senão rejeitar a acusação particular do Recorrente.
6. Também não é verdade que o Recorrente tenha ficado impossibilitado da normal reacção impugnatória contra aquele despacho de não acusação ou que tenha sido boqueado em todas as possibilidades de continuar o processo penal.
7. Caso considerasse estar suficientemente indiciada a prática de um ou mais crimes de natureza semi-pública, o Recorrente tinha a opção de arguir, perante o próprio Ministério Publico que ordenou aquela notificação (nos termos do n.º 1 do art. 285º do CPP), a omissão de acusação pelo crime de natureza semi-pública; tinha a opção de suscitar a intervenção do superior hierárquico do referido Ministério Público (nos termos do disposto nos n.ºs 1 e 2 do art. 278º do CPP); e tinha a opção de requerer a abertura de instrução (nos termos do disposto na alínea b) do n.º 1 do art. 287º do CPP).
8. O Recorrente não adoptou nenhuma daquelas opções: não pediu que os autos fossem apreciados pelo juiz de instrução, não pediu que fossem apreciados pelo superior hierárquico do titular do inquérito e não arguiu, junto do titular do inquérito, qualquer omissão de acusação ou qualquer outro vício.
9. Por que razão não fez? Porque sabia, através do despacho que encerrou o inquérito, que o Ministério Público tinha concluído não resultarem dos autos indícios suficientes da prática, pela arguida, do crime de difamação agravado e, em consequência disso, não estavam preenchidos os pressupostos da agravação pelo que, na sua óptica do MP (como o Recorrente reconhece em sede de recurso), os autos reconduziam-se exclusivamente à eventual prática de crimes particulares.
10. Além disso, o Recorrente podia ter feito prosseguir o processo penal quanto aos crimes de natureza particular, bastando, para tanto, que tivesse deduzido, nos 10 dias concedidos, a acusação em conformidade.
11. Deste modo, a decisão do Tribunal a quo [que rejeitou a acusação particular do Recorrente] é a única legalmente admissível, sendo irrepreensível e inatacável por não padecer de qualquer vício legal ou constitucional.
12. Porque é facto irrefutável que a acusação deduzida pelo Recorrente constitui uma usurpação dos poderes do MP [o único com legitimidade para prosseguir a acção penal quanto a crimes de natureza pública e semi-pública].
13. A generalidade da jurisprudência reconhece univocamente que o assistente, nos casos de crimes de natureza pública e semi-pública, não pode deduzir acusação sem prévia acusação do Ministério Público por falta de legitimidade daquele.
14. Decidir de forma diferente – substituindo a decisão recorrida por outra que receba a acusação particular do Recorrente quanto a crimes de natureza semi-pública – é decidir contra os mais elementares princípios jurídicos constantes do Código Penal, do Código de Processo Penal, contra a Constituição da República Portuguesa e contra a melhor doutrina e jurisprudência nacionais.

Concluindo: Pelo exposto, entendemos que o recurso interposto pelo Assistente não merece provimento, devendo a decisão recorrida ser integralmente confirmada.

Porém, Vossas Excelências melhor apreciarão, fazendo, como sempre, Justiça.

            6. Nesta instância, o Exmº Sr. Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer no sentido da improcedência do recurso.

            7. Foram os autos a vistos e procedeu-se a conferência.

II

            Questão a apreciar:

            A legitimidade do assistente A... para deduzir a acusação particular que deduziu e eventual violação de normas jurídicas.

III

É o seguinte o teor do despacho recorrido:

            II – Da legitimidade do assistente

            A legitimidade para o exercício da acção penal, enquanto pressuposto processual, constitui uma condição de procedibilidade e da sua verificação ou existência depende a possibilidade de conhecimento do mérito ou fundo da causa.

            Em matéria de legitimidade para o exercício da acção penal a regra é a de que ela cabe, em princípio, ao Ministério Público, enquanto titular da acção penal – art. 48.º do Código de Processo Penal (CPP).

            Daqui decorre, também, que quaisquer outras entidades carecem de legitimidade para, autonomamente e por si só, promoverem o procedimento criminal. As excepções a esta regra são apenas aquelas que, taxativamente, se prevêem na lei, nomeadamente no art. 49.º (relativamente aos crimes semi-públicos) e 50.º (relativamente aos crimes particulares), ambos do CPP.

            Da conjugação destes normativos podemos concluir que, se no que concerne aos chamados crimes particulares a lei comete aos titulares dos interesses que a lei quis especialmente proteger com a incriminação a legitimidade para o exercício da acção penal, acompanhados ou desacompanhados do Ministério Público, já quanto aos chamados crimes semi-públicos isso não sucede. Quanto a estes, apenas se exige que os titulares do direito de queixa (sob o ponto de vista do direito substantivo), exerçam, oportuna e formalmente esse direito. A legitimidade do Ministério Público para promover os termos ulteriores do processo (incluindo a acusação) fica, assim, assegurada.

            Nestes termos, nos crimes semi-públicos, pela própria natureza dos interesses em presença, a legitimidade para deduzir acusação pertence apenas e exclusivamente ao Ministério Público (salvaguardando evidentemente, a faculdade conferida ao assistente pelo art. 284.º, n.º 1 do CPP).

            Efectivamente, a lei apenas permite a “dedução de acusação por adesão” às entidades que, embora podendo também deduzir acusação, o fazem depois e na total dependência da acusação deduzida por quem tem legitimidade para tanto – é o que acontece em relação ao assistente, relativamente aos crimes públicos e semi-públicos pelos quais o Ministério Público tenha deduzido acusação – art. 284.º do CPP – e também em relação também em relação ao Ministério Público quanto aos crimes particulares – art. 285.º do CPP. Assim como sucede nos casos de crimes particulares, em que não tem o Ministério Público legitimidade para, por sua iniciativa, deduzir acusação, também o assistente não tem legitimidade para, independentemente da iniciativa processual do Ministério Público, introduzir a matéria do crime semi-público em julgamento.

            Feita esta breve exposição teórica, importa analisar se, no caso concreto, o pressuposto processual da legitimidade enquanto condição de procedibilidade da acção penal se encontra verificado.

            Descendo aos autos, do requerimento de acusação particular de fls. 319-326 apresentado pelo assistente A... , constam factos que aquele considera integrarem a prática de crimes de difamação e injúria agravadas, nos termos das disposições conjugadas dos arts. 180.º, n.º 1, 181.º, n.º 1, 183.º, n.º 1, als. a) e b) e n.º 2, e ainda 184.º, todos do Código Penal (CP).

Sucede porém que tais crimes revestem natureza semi-pública, e não particular.

            Com efeito, tanto o crime de difamação – art. 180.º, n.º 1 do CP – como o de injúria – art. 181.º, n.º 1 do CP – são agravados se a vítima for uma das pessoas elencadas no art. 132.º, al. l) do Código Penal no exercício das suas funções ou por causa delas, tal como decorre do art. 184.º do CP. Nestes termos, de harmonia com o art. 188.º do CP, “o procedimento criminal pelos crimes previstos no presente capítulo (dos crimes contra a honra) depende de acusação particular”, ressalvando-se, porém, duas excepções, entre as quais os casos previstos no art. 184.º do CP (difamação ou injúria agravada pela qualidade do agente), em que o procedimento criminal revestirá natureza semi-pública.

            Compreende-se que assim seja, na medida em que, tal como tem vindo a ser sublinhado pela jurisprudência, correspondendo tradicionalmente a participação à queixa, quando a sua titularidade caiba por força das normas gerais à autoridade pública e dada a natureza eminentemente pessoal do bem jurídico protegido no crime de injúrias – a honra só faz sentido dispensar a queixa para prosseguir o procedimento criminal quando é ofendido uma autoridade pública, no exercício dessa autoridade e não quando esse ofendido é o próprio agente cuja honra e consideração são atingidas, relativamente ao qual tem de haver uma manifestação própria e inequívoca de vontade de que pretende o procedimento criminal contra o agente, o que só é alcançado através da queixa – neste sentido, vide Ac. do STJ, de 05.12.2007, proc. n.º 07P3758, disponível em www.dgsi.pt.

            Aqui chegados, conclui-se pela falta de legitimidade do assistente para dedução de acusação particular, na medida em que, revestindo aqueles crimes natureza semi-pública, apenas o Ministério Público estaria investido com legitimidade para prosseguir com a acção penal relativamente aos factos descritos na acusação, o que não sucedeu in casu, pelo contrário, foi inclusivamente declarado pelo Ministério Público não acompanhar a acusação deduzida.

            Tudo conjugado, pelos fundamentos de facto e de direito supra enunciados, decide-se:

            i. Rejeitar a acusação particular deduzida pelo assistente A... , por falta de legitimidade processual.---

            ii. Declarar extinta a instância cível, por impossibilidade superveniente da lide – art. 277.º, al. e) do Código de Processo Civil (CPC).---

Custas na vertente criminal pelo assistente, fixando-se a taxa de justiça pelo mínimo legal – art. 515.º, al. f) do CPP.---

            Custas na vertente civil a cargo do demandante – arts. 4.º, al. n) a contrario do Regulamento das Custas Processuais (RCP) e art. 536.º, n.º 3 do CPC.---

Notifique”.

IV

Cumpre apreciar:

1. Resulta dos autos que:

1.1. O assistente (na altura apenas denunciante, queixoso ou ofendido) A... apresentou queixa[1] contra B... dando conta que, no dia 27 de Setembro de 2013, a arguida enviou uma queixa à Comissão Nacional de Eleições sobre alegadas “irregularidades” na campanha política do PSD à Câmara Municipal de (...) .

1.2. O assistente na altura era o candidato do PSD nas eleições para a Câmara Municipal de (...) .

1.3. Na respetiva queixa qualificou desde logo os factos imputados à arguida B... como integradores dos crimes de difamação e injúria agravadas, pp e pp nos termos conjugados dos artigos 180º, 181º, 183º e 184º, todos do Código Penal e do crime de fraude e corrupção de eleitor p e p pelo artigo 187º da Lei Orgânica nº 1/2001 de 14 de Agosto.

1.4. Realizado o inquérito, o Ministério Público proferiu despacho de arquivamento quanto ao crime de fraude e corrupção de eleitor.

1.5. E ordenou ainda, no mesmo despacho, a notificação do assistente nos termos e para os efeitos previstos no artigo 285.º do Código de Processo Penal, com a indicação de que deveria constar dessa mesma notificação que entendia que dos autos não resultam indícios suficientes da prática, pela arguida, do crime de difamação participado pelo assistente[2].

1.6. Na sequência desta notificação, o assistente A... , deduziu acusação particular contra a arguida B... , imputando-lhe factos susceptíveis de preencherem os crimes de difamação e injúrias agravadas, pp e pp nos termos conjugados dos artigos 180º, nº1, 181º, nº1, 183º, nºs 1, alíneas a) e b) e 2 e 184º, todos do Código Penal.

E deduziu ainda o pedido de indemnização civil contra a mesma arguida.

1.7. Sobre esta acusação particular e sobre o pedido de indemnização civil foi proferido o despacho judicial, ora despacho recorrido.

2. É neste contexto que o agora recorrente vem fazer determinadas afirmações na sua motivação de recurso, manifestando-se contra o teor da decisão que considera altamente lesiva do seu direito fundamental de recorrer ao Tribunal para o exercício legítimo do seu direito à Justiça. O que faz, dizendo nomeadamente:

            - Em face da atitude do MP, o assistente ficou impedido de requerer a abertura de instrução (em caso de arquivamento) e, simultaneamente, impedido de deduzir acusação particular (porque, na óptica do Tribunal, carece de legitimidade para o efeito).

            - No caso em apreço, o MP entendeu uma coisa, e o assistente teve de agir processualmente, em conformidade. Já o Tribunal entendeu outra, e o assistente vê-se sem forma possível de reacção, pois os autos não retrocedem...

- Se fosse qualquer outra pessoa, poderia ter deduzido a acusação particular e formulado o pedido de indemnização cível.

Porque era autarca, tem que conformar-se com uma decisão de ilegitimidade, quando o MP, ao ter actuado como actuou, o impediu de prosseguir a tutela penal dos seus direitos.

- a) por um lado, há uma divergência entre o MP e o Tribunal quanto ao preenchimento dos factos de que resulta a agravação dos tipos legais e, portanto, a qualificação dos crimes em causa como semipúblicos ou particulares, divergência essa que retira a possibilidade de recurso aos meios de reacção próprios por parte do assistente, ou seja, a utilização da fase da instrução para procurar demonstrar uma perspectiva jurídica diferente da do MP;

b) por outro lado, a qualificação de um crime como semi-público ou particular resulta de uma agravação fundada na alínea l) do n.º 2 do artigo 132.º do Código Penal, pois nesse caso, o sistema penal fecha-se prejudicialmente para o assistente em resultado de uma sua particular condição que é, afinal, motivo legal para lhe conceder maior protecção. Dito de outra forma: o Direito Penal material procura proteger mais o assistente, e o Direito Penal adjectivo fecha-lhe a porta com estrondo, dizendo-lhe que os seus interesses ficam à mercê exclusiva de mãos alheias (no caso o MP, cuja leitura subjectiva pode, como aconteceu no caso, cercear-lhe inadmissivelmente as pretensões de tutela).

- Estabelece o artigo 20.º, n.º 1, da CRP que “a todos é assegurado o acesso ao direito e aos tribunais para defesa dos seus direitos e interesses legalmente protegidos.

- A interpretação das referidas normas do CPP no sentido de que o assistente não tem legitimidade, nos casos como o vertente, para deduzir acusação particular e formular o pedido de indemnização cível é inconstitucional por violação dos números 2 e 3 do artigo 18.º da CRP, porquanto:

a) não visa salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos;

b) e se traduz numa restrição desproporcional ao direito fundamental à tutela jurisdicional efectiva, consagrado no artigo 20.º do mesmo Diploma Básico.

3. Decididamente não lhe assiste razão.

Vejamos algumas considerações que podem/devem ser feitas a propósito do exercício da ação penal, da dedução da acusação pública e particular e concretamente os direitos inerentes ao assistente nesta matéria.

3.1 É inquestionável que ao Ministério Público cabe exercer a ação penal orientada pelo princípio da legalidade e defender a legalidade democrática – artigo 219º, da CRP.

Por sua vez, nos termos do artigo 48º, do Código de Processo Penal, o Ministério Público tem legitimidade para promover o processo penal, com as restrições constantes dos artigos 49º a 52º.

Assim, o artigo 49º daquele diploma exige que, quando o procedimento criminal depender de queixa…é necessário que essas pessoas dêem conhecimento do facto ao Ministério Público para que este promova o processo. Ou seja, não havendo queixa, o Ministério Público não pode promover o processo, logo não pode investigar nem deduzir qualquer acusação por lhe faltar legitimidade processual para o fazer.

De igual modo, nos termos do artigo 50º, nº 1, do CPP, quando o procedimento criminal depender de acusação particular, do ofendido ou de outra pessoa, é necessário que os mesmos se queixem, se constituam assistentes e deduzam acusação particular. Ou seja, também aqui, a legitimidade processual do Ministério Público está dependente da verificação destes requisitos.

Acrescenta o nº 2 do artigo 50º que o Ministério Público procede oficiosamente a quaisquer diligências que julgar indispensáveis à descoberta da verdade e couberem na sua competência, participa em todos os actos processuais em que intervier a acusação particular, acusa conjuntamente com esta e recorre autonomamente das decisões judiciais.

Ora, o inquérito compreende o conjunto de diligências que visam investigar a existência de um crime, determinar os seus agentes e a responsabilidade deles e descobrir e recolher as provas em ordem à decisão sobre a acusação – artº. 262º, nº 1, do CPP.

Inquérito este que é efetivamente dirigido pelo Ministério Público – art. 263º, nº 1, do CPP – e que este (o MºPº) pratica os atos e assegura os meios de prova necessários à realização das finalidades referidas no nº 1 do artigo 262º, nos termos e com as restrições constantes dos artigos seguintes (nessas restrições cabem, desde logo, os atos a praticar pelo juiz de instrução – artigos 268º e 269º, do Código de Processo Penal).

3.2. Definidas estas linhas gerais da legitimidade de intervenção/investigação do Ministério Público quando o procedimento criminal depende de queixa (situação em que tem que existir queixa por parte do ofendido) ou de acusação particular(situação em que é necessário que exista queixa, constituição de assistente e dedução de acusação particular), importa agora analisar a tramitação processual depois de realizadas as diligências de prova.

- Nos processos em que estão em causa crimes de natureza pública ou semi-pública(com a respectiva apresentação de queixa), depois de realizadas as necessárias diligências de prova, o Ministério Público:

- Deduz despacho de arquivamento se se verificarem os pressupostos do artigo 277º, do CPP.

- Ou deduz acusação se se verificarem os pressupostos do artigo 283º, do CPP.

Se o Ministério Público proferir despacho de arquivamento, o assistente pode requer a abertura da instrução – artigo 287º, nº 1, alínea b), do CPP.

Se o Ministério Público deduzir acusação, o assistente pode igualmente deduzir acusação, no prazo e nos termos do artigo 284º, do CPP.

- Nos processos em que estão em causa crimes de natureza particular,ou seja, quando o procedimento depender de acusação particular, o Ministério Público notifica o assistente para que este deduza em 10 dias, querendo, acusação particular - artigo 285º, nº1, do Código de Processo Penal.

Nesta notificação, o Ministério Público indica ainda, se foram recolhidos indícios suficientes da verificação do crime e de quem foram os seus agentes - nº 2 do mesmo preceito.

                        Paulo Pinto de Albuquerque in obra cit., fls. 747, nota 1 (anotação ao artigo 285º do CPP), descreve deste modo a tramitação a seguir:

            “No final do inquérito, o MP toma posição relativamente aos crimes públicos e semi-públicos indiciados nos autos. Em relação aos crimes particulares, o MP deve notificar o assistente para, querendo, deduzir acusação particular. Portanto, havendo concurso de crimes públicos ou semi-públicos e particulares, o MP deve deduzir acusação ou arquivar os autos em relação aos crimes públicos ou semi-públicos e, em simultâneo, notificar o assistente para os efeitos do artigo 285º. O arguido é notificado conjuntamente do despacho do MP e da acusação do assistente”.

            4. Se aparentemente a tramitação processual desenvolvida correu os seus trâmites normais, como justificar toda esta incredibilidade do assistente, dizendo que nem pôde requer a abertura da instrução nem lhe é reconhecida legitimidade para deduzir acusação?

            A resposta está ou na viciação que o próprio assistente faz dos elementos fornecidos pelos autos, ou porque o mesmo não pretende interpretá-los na sua exata e verdadeira dimensão.

            Vejamos:

            Na queixa apresentada pelo assistente, o mesmo narra os factos e logo conclui pela qualificação dos mesmos[3] como difamação e injúria agravada.

O que levou a que o Ministério Público, por despacho datado de 19 de Maio de 2014 – v. fls. 65 e 66 – viesse aclarar a sua posição, referindo:

“Os factos participados respeitam ao período de campanha eleitoral para as eleições autárquicas em que o queixoso integrou a lista do PSD candidata à Câmara Municipal de (...) , para a qual veio a ser eleito como presidente e onde já assumiu anteriormente as funções de vereador

Ora, os factos que alegadamente visaram atingir o queixoso na sua honra e consideração não lhe foram imputados na qualidade de vereador, no exercício das suas funções ou por causa delas mas sim, enquanto candidato a órgão de autarquia local, como membro de uma lista candidata às eleições autárquicas, o que aliás motivou a queixa à Comissão Nacional de Eleições.

Pelo exposto, entendo que a factualidade vertida na queixa apresentada poderá consubstanciar tão só a prática de um crime de difamação, p. e p. pelo artigo 180.º, n.º 1 do C. Penal[4].

Tal crime assume natureza particular (cfr. artigo 188.º, n.º 1 do C. Penal), havendo necessidade de o queixoso se constituir assistente para que o Ministério Público esteja legitimado para o exercício da acção penal – cfr. artigo 50.º, n.º 1 do C. P. Penal”.

E já no parágrafo anterior o Ministério Público tinha exposto que:

”Compulsados os autos, entendo porém que a factualidade vertida na queixa é susceptível de consubstanciar a prática de um crime de difamação tout court sem a agravação prevista no artigo 184º, por referência ao artigo 132º, nº2, al. b), do Código Penal”.

No seguimento do teor deste despacho, realizado o inquérito e findo este, continuou o Ministério Público a ser consequente e esclarecedor quanto àquela sua posição, no despacho proferido a fls. 300 a 305 (de arquivamento e de notificação do assistente para os termos do artigo 285º, nºs 1 e 2, do Código de Processo Penal).

Diz o Ministério Público logo no início:

II –

Tais factos são susceptíveis de, em abstracto, consubstanciarem a prática de um crime de difamação, previsto e punido pelo artigo 180.º, n.º 1 do Código Penal e um crime de fraude e corrupção de eleitor, previsto e punido pelo artigo 341.º e 187.º da Lei Eleitoral dos Órgãos das Autarquias Locais, aprovada pela Lei Orgânica n.º 1/2011, de 14 de Agosto.

III –

No que respeita ao crime de difamação, uma vez que o mesmo reveste natureza particular, adiante será notificado o assistente nos termos do disposto no artigo 285.º do Código de Processo Penal.

Foi deste modo que o Ministério Público determinou o arquivamento dos autos quanto ao crime de fraude e corrupção de eleitor e ordenou a notificação do assistente para, querendo, deduzir a acusação particular (nos termos já supra expostos).

Segundo um raciocínio lógico, coerente e de acordo com as normais regras de interpretação de tudo o que vimos dizendo e se mostra reproduzido nos autos (que em nosso entender não suscitam dúvidas), se se estivesse perante a apreciação de um crime semipúblico quanto à difamação (que teria quer ser agravada), com certeza que o Ministério Público teria tomado posição quanto a este concreto crime, conforme era seu dever legal. E não o fazendo, incorreria numa omissão cuja natureza seria um vício que poderia ser invocado.

            Perante a posição processual do Ministério Público face à qualificação jurídica deste pretenso crime de difamação (difamação simples e não agravada pela qualidade do visado), o mesmo agiu processualmente de modo correto e conforme o legalmente exigido. Outro procedimento não seria exigível.

            Competia ao assistente, perante esta posição processual do Ministério Público, tomar uma de duas opções:

            - Não se conformar com esta posição do Ministério Público quanto à qualificação do eventual crime de difamação (difamação simples) e requerer a abertura da instrução tendo em vista a sua integração numa difamação agravada.

            - Ou deduzir acusação particular mas tão-somente pelo crime de difamação p e p pelo artigo 180º, nº 1 do Código Penal (sem a agravação do artigo 184º do mesmo diploma).

            Acontece que o assistente não tomou qualquer uma destas duas opções. Outrossim, deduziu uma acusação particular por um crime que, segundo a sua própria qualificação ou integração jurídica, tem a natureza de crime semipúblico, a difamação agravada.

            A opção foi sua (do assistente). E não pode dizer-se que existia falta de informação processual. Esta era explícita.

            Perante a acusação concretamente deduzida pelo assistente, conforme todos os considerandos já supra vertidos, é manifesto que inexiste legitimidade processual do assistente para deduzir, como deduziu, tal acusação. Esta acusação deduzida pelo assistente, com a qualificação jurídica dos factos como de difamação agravada, apenas cabe no âmbito de deduzir acusação ao abrigo do artigo 284º, do Código de Processo Penal.

            Desacompanhado do Ministério Público, o mesmo é dizer, sem acusação prévia do Ministério Público, não pode o assistente deduzir esta concreta acusação.

            Será esta solução uma solução com uma leitura inconstitucional, conforme defende o assistente? Com violação nomeadamente do disposto no artigo 18º da CRP?

            Entendemos que não.

            O sistema, através das regras jurídicas que regulam esta temática, dão resposta à pretensão do assistente. Basta seguir ou fazer as opções no momento processual adequado.

            Já se delinearam as duas posições que seria possível seguir perante a situação concreta que foi delimitada pelo Ministério Público com o teor do seu despacho, findo o inquérito.

            E se porventura uma dessas vias tivesse sido a opção do assistente, com certeza que não teria o mesmo nesta fase processual, motivos para invocar qualquer falha do sistema - sem resposta para a sua reclamada Justiça.

            A resposta existia e existe. A sinalização processual estava correta. Era bem visível. Bastava observá-la. O que manifestamente o assistente não fez.

                                                                                               IV

Decisão

Por todo o exposto, decide-se julgar improcedente o recurso do assistente/recorrente A... , mantendo-se a decisão recorrida.

Custas a cargo do recorrente com a taxa de Justiça que se fixa em 5 (cinco) UCs.

Coimbra, 8 de Fevereiro de 2017

(Luís Teixeira – relator)

(Vasques Osório - adjunto)


[1] Que deu entrada em Juízo no dia 28.11.2013.
[2] Adiantou desde logo o Ministério Público a razão por que em seu entender inexistiam indícios:

“Nas palavras de Paulo Pinto de Albuquerque - Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário do Código Penal à luz da Constituição da República e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, 2.ª edição actualizada, Universidade Católica Editora, pág. 569. 3 -, “o tipo objectivo inclui a imputação deum facto ofensivo da honra a outra pessoa, a formulação de um juízo ofensivo da honra deoutra pessoa ou a reprodução daquela imputação ou daquele juízo”. O tipo subjectivo admitequalquer modalidade de dolo.

Ora, in casu, a arguida efectuou uma participação à CNE dirigida à “Candidatura doPSD (...) ” nunca referindo o nome o denunciante, cabeça de lista da Candidatura doPSD à Câmara Municipal de (...) .

Para além disso, resultou indiciado que com a participação a arguida pretendia apenas
que a CNE averiguasse as situações que lhe tinham sido relatadas por vários eleitores.
[3] Restringimo-nos aos factos referentes aos crimes de difamação e injúria na medida em que é relativamente apenas quanto a estes crimes que o assistente se manifesta, não tendo reagido, como o poderia ter feito, quanto ao crime de fraude e corrupção de eleitor.
[4]Sublinhadonosso.