Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
479/10.2TBMGL-A.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: CARLOS MOREIRA
Descritores: INSOLVÊNCIA
EXONERAÇÃO DO PASSIVO RESTANTE
INDEFERIMENTO
Data do Acordão: 05/17/2011
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: MANGUALDE - 1º J
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTS.235, 236, 238 CIRE
Sumário: 1- No pedido de exoneração do passivo restante, a genérica declaração imposta pelo nº3 do artº 236º do CIRE não assume, substancialmente, cariz determinante para se aferir da (in)existência dos legais requisitos e condições, o que, em última análise, compete ao juiz averiguar e decidir.

2 - Assim se o requerido apresentou tal pedido em requerimento dentro dos 10 dias posteriores à citação sem tal declaração e, depois, ainda no «período intermédio», apresenta novo requerimento já com a mesma, este deve ser considerado aperfeiçoamento e complemento daquele, pelo que a pretensão não pode ser liminarmente indeferida por extemporânea.

Decisão Texto Integral: ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇAO DE COIMBRA

1.

 C (…) requereu, em processo de insolvência contra si instaurado, a exoneração do passivo restante.

Num primeiro requerimento, efectuado ainda dentro do prazo de dez dias após a sua citação, efectivou, singelamente, tal pretensão, sem mais.

Posteriormente, num segundo requerimento, apresentado, - tanto quanto emerge dos autos - ainda antes da data da assembleia para apreciação do relatório, e depois de pelo requerente ter sido peticionado o seu indeferimento por não ter cumprido as especificações do artº 236º nº3 do CIRE, apresentou outro requerimento no qual já constavam estas exigências legais.

 

2.

Tal pretensão foi-lhe indeferida por despacho com o seguinte teor:

“A fls. 98 veio o requerido requerer que nos presentes autos se proceda à exoneração do passivo restante.

A fls. 102 veio o requerente opôr-se a tal pretensão. A fls. 106 veio o requerido apresentar requerimento em complemento do apresentado anteriormente

Em nosso entender, o que está em causa não é o facto de o requerido ter apresentado o pedido de exoneração fora de prazo, porque tal não sucedeu visto que o mesmo foi formulado no prazo de 10 dias a contar da citação, está sim em causa o facto de tal pedido não ter preenchido o requisito exigido pelo n.º 3 do art. 236.º do CIRE. E quanto a isto, dúvidas não nos restam que efectivamente tal sucedeu, visto que no requerimento de fls. 98 o requerido não declarou expressamente que preenchia os requisitos e que se dispunha a observar todas as condições exigidas nos artigos seguintes. Tal apenas sucedeu posteriormente, no dia seguinte a ter sido notificado do requerimento apresentado pelo requerente nesse sentido, tendo vindo apressadamente um requerimento “em complemento” do anterior onde agora sim veio declarar que “preenche os requisitos e que se dispõe a observar todas as condições exigidas nos artigos seguintes”

Salvo o devido respeito por opinião contrária, o pedido de exoneração do passivo a que o Tribunal tem que atender foi o que em primeiro lugar foi apresentado e nos termos em que foi apresentado, e esse não cumpriu o requisito exigido pelo n.º 3 do art. 236.º do CIRE.

Pelo exposto não se admite o pedido de exoneração do passivo formulado pelo requerido a fls. 98.”

3.

Inconformado recorreu o impetrante.

Rematando as suas alegações com as seguintes conclusões:

a) Ao recorrente, por ser pessoa singular, assiste o direito de requerer nos presentes autos que lhe seja concedida a exoneração do passivo restante;

b) Tendo formulado a pretensão de exoneração do passivo restante no prazo de dez dias após a citação, não tendo sido proferido despacho de indeferimento assiste-lhe o direito de completar o pedido formulado por ainda não ter ocorrido a assembleia de apreciação do relatório;

c) A pretensão de exoneração do passivo restante poder ser formulado até dez dias depois da assembleia de apreciação do relatório;

d) Constando dos autos pretensão de exoneração do passivo restante, complementada com a referência prevista no artigo 236.º, n.º 3, deveria o Juiz na sentença ter deferido liminarmente a pretensão e determinado que a mesma fosse apreciada pelos credores e administrador de insolvência na assembleia de apreciação do relatório;

e) Deverá ser revogado o despacho que não admitiu o pedido de exoneração do passivo, admitir-se liminarmente o mesmo, e determinado a sua apreciação pelos credores e administrador de insolvência na assembleia de apreciação do relatório, revogando nesta parte a sentença proferida.

f) Ao decidir-se pela forma constante da decisão “a quo” violaram-se, por erro de interpretação e aplicação, os artigos 235.º, 236.º e 238.º do CIRE.

4.

Sendo que, por via de regra: artºs 684º e 685º-A do CPC - de que o presente caso não constitui excepção - o teor das conclusões define o objecto do recurso, a questão essencial decidenda é a seguinte:

(In)tempestividade da apresentação do requerimento de exoneração do passivo restante.

5.

Os factos a considerar são os dimanantes do relatório supra, a saber:

1 - O recorrente apresentou nos autos requerimento com o seguinte teor: “ Vem, nos termos dos artigos 235.º e ss do CIRE, requerer que nos presentes autos se proceda à exoneração do passivo restante. Por ser tempestivo o pedido e formulado por quem tem legitimidade requer seja proferido despacho deferindo o mesmo.”

2 - O recorrido apresentou nos autos requerimento com o seguinte teor: “1º Para que V. Exa se possa pronunciar relativamente a um “pedido de exoneração do passivo restante” é necessário, desde logo, que o respectivo requerimento reúna os requisitos legalmente previstos, pois que só nesse caso é que o insolvente pode(rá vir a) beneficiar de tal medida . 2º Ou seja, só depois de se estar perante um pedido formulado nos termos do artigo 236º do C.I.R.E. e que o Tribunal curará de aplicar os artigos 237º e seguintes daquele Código. 3º Da leitura da peça processual apresentada pelo requerido, resulta, por directa e segura inferência, que aquele requerimento não cumpre o disposto no artigo 236º nº 3 do C.I.R.E., na medida em que nele o requerido não declarou expressamente que preenche os requisitos nem que se dispõe a observar todas as condições exigidas nos artigos seguintes. 4º Como é evidente, tal peça processual não cumpre os requisitos legalmente previstos para poder ser considerada pelo Tribunal, razão pela qual, e sem sequer haver necessidade de considerar o disposto nos artigos 237º e segs. Do C.I.R.E., deve ser indeferido, por falta de requisitos essenciais, o requerimento apresentado pelo requerido”.

3 – Na sequência do requerimento do recorrido o recorrente apresentou nos autos requerimento com o seguinte teor: “ Vem, na sequência do pedido de exoneração do passivo restante, e em complemento a este, declarar que preenche os requisitos e se dispõe a observar as condições exigidas pelos artigos 237.º e ss do CIRE (art. 236.º, n.º 3 CIRE). O presente requerimento é tempestivo já que o pedido de exoneração do passivo restante pode ser apresentado até à assembleia  de apreciação do relatório do administrador insolvência.”

6.

Apreciando.

6.1.

Estatui o artº 235º do CIRE:

«Se o devedor for uma pessoa singular, pode ser-lhe concedida a exoneração dos créditos sobre a insolvência que não forem integralmente pagos no processo de insolvência ou nos cinco anos posteriores ao encerramento deste…».

E prescreve o artº 236º:

«1. O pedido…é feito pelo devedor no requerimento de apresentação à insolvência ou no prazo de dez dias posteriores á citação e será sempre rejeitado se for deduzido após a assembleia de apresentação do relatório; o juiz decide livremente sobre a admissão ou rejeição do pedido apresentado no período intermédio.

3. Do requerimento consta expressamente a declaração de que o devedor preenche os requisitos e se dispõe a observar todas as condições exigidas nos artigos seguintes.»

Finalmente dispôe o artº 238º nº 1 al. a) que:

 O pedido de exoneração é liminarmente rejeitado se for apresentado fora de prazo.

O pedido de exoneração do passivo restante constitui uma especialidade do processo de insolvência relativamente ao direito substantivo comum e assume-se como uma medida de protecção do devedor singular.

Assim: «apurados os créditos da insolvência e uma vez esgotada a massa insolvente sem que tenha conseguido satisfazer totalmente ou a totalidade dos credores, o devedor pessoa singular fica vinculado ao pagamento aos credores durante cinco anos, findos o quais, cumpridos certos requisitos, pode ser exonerado pelo juiz do cumprimento do remanescente…trata-se de uma solução inspirada no modelo fresh start: o devedor pessoa singular liberta-se daquele peso e pode recomeçar de novo a sua vida» - Assunção Cristas, Exoneração do Passivo Restante in Revista Themis da FDUNL, 2005, p.167.

Relativamente ao pedido podem ser proferidos três despachos, a saber:
a) O despacho liminar de indeferimento – artº 238º.
b) O despacho inicial que se destina a aferir de condições mínimas, previstas no artº 239º, a proferir na data da assembleia de apreciação do relatório ou nos 10 dias subsequentes, para aceitar o requerimento e submeter o requerente ao regime de prova durante os cinco anos seguintes;
c) O despacho de exoneração definitiva, após o terminus dos cinco anos, se cumpridas as exigências legais – artºs 244º e 245º.

6.2.

In casu interessa-nos apenas o primeiro despacho.

Como emerge do artº 238º, o pedido pode ser liminarmente indeferido por razões substanciais e por um único motivo formal, a apresentação extemporânea.

 Que é a que ora nos ocupa.

Da interpretação concatenada dos segmentos normativos supra mencionados e considerando os elementos literal, lógico e teleológico da hermenêutica jurídica, podemos retirar as seguintes ilações:

A data determinante e a diligencia referencial  para a admissão, ou não, do pedido, é a da apreciação do relatório do administrador  a que se reporta o artº 156º.

Se deduzido após esta data ele é sempre, em qualquer circunstância e independentemente do motivo aduzido, inelutavelmente indeferido.

O que bem se compreende pois que se fosse admitido quedava vedado aos principais “actores” do processo, a saber, os credores e  o administrador da insolvência, pelo menos na legal diligencia para o efeito, a sua legal e imperativa análise e pronuncia -artº 236º nº4.

Se deduzido anteriormente a esta data duas situações podem sobrevir.

A primeira ocorre quando ele é formulado no requerimento de apresentação à insolvência ou nos dez dias posteriores á sua citação.

Neste caso: «o juiz tem sempre de admitir o pedido de exoneração: o devedor pessoa singular tem o direito potestativo a que o pedido seja admitido e submetido à assembleia de apreciação do relatório…» - Autora e ob. Cits. p.168  e Carvalho Fernandes e João Labareda,  CIRE Anotado, 2006, 2º, p186.

A segunda emerge quando é formulado no legalmente designado período intermédio, o qual medeia entre a data do requerimento de apresentação ou a data do termo do prazo de dez dias posteriores à citação e a data da assembleia de apreciação do relatório.

Este caso alcança-se como de índole não absoluta, mas antes mitigada ou relativa.

Ou seja, aqui o pedido não tem de ser, necessariamente, admitido ou rejeitado como naqueles outros, antes podendo, ou não, ser aceite, por decisão do juiz que a lei taxa de livre.

Sendo, todavia, de considerar, como é comummente aceite em geral, que esta decisão livre não pode confundir-se com  juízo arbitrário, mas antes devendo conter-se dentro de limites de fundamentação e consonância legal e/ou critérios de sensatez aceitáveis.

Acresce que a liberdade da decisão se confina à vertente substancial que não meramente formal, ou seja: «o juiz decidirá com base na sua convicção pessoal…e com recurso a um juízo de prognose: na base da sua decisão pesará a convicção que venha ou não a formar acerca da vontade e capacidade do devedor para cumprir as exigências legais o que permitirá o bom aproveitamento deste mecanismo» … pelo que …«o requerimento contém expressamente uma declaração de que o requerente preenche os requisitos e condições exigidas por lei para vir a obter a exoneração sendo estes requisitos essenciais para que o juiz aceite dar continuidade ao incidente…»-  Autora e ob. cits. p.168/69.

6.3.

Não há dúvida pois que no requerimento devem constar as menções impostas pelo nº3 do artº 236º.

A questão nuclear reside em concluir se, in casu, tal se verificou, ou não.

E a resposta é afirmativa.

Na verdade e tanto quanto se alcança do teor do processo, o recorrente apresentou o seu pedido com alusão expressa às menções exigidas pelo nº3 do artº 236º, ainda dentro do legalmente designado período intermédio.

A apresentação, ainda nos dez dias posteriores à sua citação, de requerimento afim sem cumprir tal imposição legal, é irrelevante, ou no mínimo, inócuo.

Na verdade mesmo que não tivesse apresentado em tal prazo inicial nenhum pedido de exoneração poderia ainda fazê-lo posteriormente até à realização da assembleia de apreciação do relatório, no legalmente apelidado período intermédio.

Assim, a tese da Julgadora apenas poderia ser defensável se o direito ao pedido de exoneração se esgotasse temporalmente com o decurso do prazo da citação.

Tal não acontecendo e podendo o pedido ser ainda formulado posteriormente a este prazo, o seu segundo pedido já em conformidade com os ditames legais, alcança-se como mera decorrência ou desenvolvimento, com regularização, aperfeiçoamento e correcção, do pedido primeiro.

Ou seja, não se vislumbra como conforme aos princípios legais gerais, à ratio legal, à teleologia do instituto e, até, intuitivo e sensato, negar-se um direito ao recorrente com fundamento de que ele, anteriormente, tendo já pretendido exercê-lo, o não exercitou curialmente, quando tal direito lhe pode ainda ser concedido em fase processual posterior (o dito período intermédio) mesmo que antes não tivesse despoletado, de todo em todo, qualquer iniciativa no sentido de pedir a exoneração do passivo restante.

O que no caso vertente pode acontecer, na consideração de que o segundo requerimento não é a decorrência aperfeiçoada do primeiro, é que o pedido, porque já feito no “período intermédio”, pode, - versus se se considerasse o primeiro requerimento-, ser livremente apreciado nos termos supra aludidos.

6.4.

Acresce que, bem vistas as coisas, a declaração do nº3 do artº 236º não assume a relevância substancial que, esta sim, imporia a sua obrigatória e expressa presença no requerimento.

Primus porque, tanto quanto se alcança, a lei se contenta com uma declaração genérica, do jaez da plasmada no segundo requerimento pelo recorrente, não obrigando a uma discriminação de factos concretos consubstanciadores dos legais requisitos e condições.

Secundus porque, não obstante a existência de tal declaração, o juiz pode e deve produzir prova  para decidir sobre a efectiva presença de tais requisitos substanciais, o que implica a emissão de um juízo de mérito sobre os mesmos.

E é por isso que: «o indeferimento liminar a que a lei se refere não corresponde a um verdadeiro e próprio indeferimento liminar, mas a algo mais…aqui…está em aferir o preenchimento de requisitos substantivos que se destinam a perceber se o devedor que uma nova oportunidade lhe seja dada»- Autora e ob. cits. p.169.

Podendo assim concluir-se que a declaração do nº3 do artº 236º, ainda que no rigor dos princípios tenha de constar no requerimento, não se apresenta tanto, substantivamente, como conditio sine qua non para o deferimento da pretensão.

 Antes se alcançando como uma mera exigência formal com vista a adstringir o requerente a uma posição de princípio e um início de vinculação quanto à presença dos legais requisitos e condições para o deferimento da pretensão, maxime aqueles que ele, mais do que ninguém, tenha conhecimento da sua presença ou verificação, o que poderá ter benefícios para a simplicidade da prova e a celeridade da decisão.

 Mas cuja (in)existência pode ser posteriormente, e em última análise, verificada pelo tribunal.

Sendo assim defensável que a sanção para a sua inexistência no requerimento do pedido de exoneração, não seja o seu indeferimento liminar e automático, mas antes o convite ao seu aperfeiçoamento de sorte a que nele conste a legal declaração.

Em síntese final: procede o recurso.

6.5.

Sumariando.

I- No pedido de exoneração do passivo restante, a genérica declaração imposta pelo nº3 do artº 236º do CIRE não assume, substancialmente, cariz determinante para se aferir da (in)existência dos legais requisitos e condições, o que, em última análise, compete ao juiz averiguar e decidir.

II- Assim se o requerido apresentou tal pedido em requerimento dentro dos 10 dias posteriores à citação sem tal declaração e, depois, ainda no «período intermédio», apresenta novo requerimento já com a mesma, este deve ser considerado aperfeiçoamento e complemento daquele, pelo que a pretensão não pode ser liminarmente indeferida por extemporânea.

7.

Deliberação.

Termos em que se acorda conceder provimento ao recurso, revogando o despacho recorrido, e seguindo os autos os seus legais termos quanto a este incidente.

Custas pela massa.

Carlos Moreira ( Relator )

Moreira do Carmo

Alberto Ruço