Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1665/09.3TBPBL.C2
Nº Convencional: JTRC
Relator: SÍLVIA PIRES
Descritores: IMPUGNAÇÃO PAULIANA
ALIENAÇÃO DE BENS DO PATRIMÓNIO GARANTE
Data do Acordão: 09/13/2016
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DE LEIRIA – LEIRIA – INST. CENTRAL – SEC. CÍVEL – J5
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTº 616º, Nº 2 DO C. CIVIL.
Sumário: I – O nº 2 do artº 616º do C. Civil dirige-se aos casos em que o acto impugnado se traduz na alienação de bens do património garante. Nestas situações os bens alienados pelo devedor podem já não existir, por terem perecido, podem ter-se diluído no novo património (v.g. dinheiro), ou podem ter ingressado em património imune à impugnação pauliana, por terem sido sub-alienados onerosamente a terceiro de boa-fé.

II - Apesar de não se encontrar expressamente mencionado no referido preceito deve também considerar-se abrangida pela sua previsão as situações em que o adquirente constitui garantias que concedam a terceiros um acesso privilegiado aos bens alienados, uma vez que também, nesta situação, a neutralização parcial e relativa dos efeitos do acto impugnado obtida com a procedência da acção de impugnação pauliana, pode revelar-se não ser capaz de restaurar integralmente a garantia patrimonial do credor impugnante, uma vez que os meios executivos e conservatórios que a ordem jurídica coloca à disposição deste podem não ser totalmente eficazes, face à nova garantia constituída pelo adquirente que confere preferência no pagamento aos credores do adquirente por ela beneficiados.

III - Assim, se a garantia constituída pelos adquirentes de má-fé sobre os bens cuja transmissão foi objecto de impugnação pauliana julgada procedente impedir a satisfação integral do direito do credor, os adquirentes serão responsáveis pelo pagamento da parte do crédito que não obteve satisfação através daqueles bens, por força do funcionamento da garantia por eles constituída.

Decisão Texto Integral:

Acordam na 3ª secção cível do Tribunal da Relação de Coimbra

A Autora intentou a presente acção com processo ordinário contra os Réus pedindo: que se declare que os 1ºs e 2ºs RR., relativamente ao prédio infra não quiseram celebrar a simulada compra e venda, mas sim a dissimulada doação e, em qualquer caso:

a) Devem os RR. J... e mulher M... e os 2ºs RR. S... e marido e C... e marido ser condenados, em primeira linha, a reconhecer à Autora, o direito à restituição do imóvel urbano situado na Rua ..., composto de casa de habitação de rés-do-chão, 1º andar e logradouro, com a área coberta de 128,7m2 e área descoberta de 91,3m2, inscrito na matriz respectiva sob o artigo ... e descrito na Conservatória do Registo Predial de Pombal sob o nº ..., ao património dos 1ºs RR., declarando-se ineficaz em relação à autora os negócios celebrados entre os 1ºs RR. e 2ºs RR., condenando-se todos a reconhecer o direito da autora a executar o sobredito imóvel no património dos 2ºs RR., na medida do bastante e até à satisfação do seu crédito de 120.615,69€ e juros moratórios e imposto de selo devido desde 7 de Dezembro de 2007 (data da liquidação em execução) até efectivo e integral pagamento e a praticar, se for caso disso, todos os actos de conservação desta sua garantia patrimonial autorizados por lei.

Complementarmente, ao pedido formulado em a):

b) Na procedência da impugnação pauliana relativamente aos 1ºs e 2ºs RR., deverão estes 2ºs RR. C... e marido e S... e marido ser declarados responsáveis pelo valor do bem alienado ao BPI, pela sobredita hipoteca e, em consequência, condenados a pagar à A. o valor do crédito desta sobre os 1ºs RR., que à custa de outros bens ou direitos não consiga realizar, até ao limite do respectivo valor à data da alienação, de 75.000€ ou outro que venha a ser provado.

Para fundamentar tal pretensão alegou, em síntese:

Ø        No âmbito da sua actividade bancária, celebrou com os 1ºs RR., em 12.3.2001 e 16.3.2001, contratos de empréstimo em conta bancária, por força dos quais e dos montantes disponibilizados em sua consequência, em 13.12.2006 se encontrava em dívida € 98.000,00, capital e juros remuneratórios que os 2ºs RR. não pagaram, entrando em mora.

Ø        Na sequência do incumprimento, a Autora intentou em 7.12.2007, contra os 1º e 2º Réus, acção executiva, visando a cobrança de 98.000€ de capital, juros vencidos e imposto de selo de €12.811,70 e € 9.803,99 de processamento e despesas de cobrança, bem como os juros vincendos, execução essa à qual os executados, citados, não deduziram oposição.

Ø        Nessa execução a Autora não conseguiu obter satisfação do seu crédito, na medida em que veio a apurar-se, que os 1ºs Réus em 25.10.2004, declararam vender às 2ªs RR., suas filhas, a nua propriedade do único imóvel que tinham, à data da concessão dos empréstimos pela Autora, reservando para si o usufruto do mesmo.

Ø        Embora tenha sido penhorado o usufruto o seu valor é manifestamente inferior ao do crédito e a sua alienação improvável.

Ø        Os 2ºs Réus, declarando-se proprietários do prédio em referência, vieram a constituir sobre ele uma hipoteca a favor do Banco B..., SA., a qual se encontra registada.

Ø        A transmissão pelos Réus daquele imóvel teve a única intenção de impedir a realização do crédito da Autora, não correspondendo a uma verdadeira venda, pois nem os compradores pagaram nem os vendedores receberam o preço mencionado na escritura pública celebrada, tendo querido celebrar efectivamente uma doação, que dissimularam.

Ø        Pretendendo todos os intervenientes no negócio causar prejuízo à Autora, colocando os 1ºs Réus na impossibilidade de satisfazerem a sua dívida.

Citados, os Réus contestaram, nos termos seguintes, em síntese:

Ø        Encontrando-se pendente a execução e existindo nela a penhora do usufruto, deveria ser decidido suspender a presente instância ao abrigo do disposto no art.º 279º, nº 1, por o julgamento desta acção estar dependente do da mencionada execução.

Ø        A Autora incumpriu o contrato de empréstimo de conta corrente, não tendo fundamento jurídico para propor esta acção.

Ø        Os valores invocados pela Autora não correspondem à verdade.

Ø        À data da alienação não existia qualquer incumprimento contratual por parte dos 1ºs Réus perante a Autora, o qual, a considerar-se existir só terá ocorrido em 2006.

Ø        Na data da alienação os1ºs Réus possuíam outros bens e valores em montante superior ao do crédito que a Autora reclama.

Concluíram pela sua absolvição.

A Autora apresentou réplica, pugnando pela improcedência das excepções invocadas pelos Réus, impugnando os documentos juntos e concluindo como na petição inicial.

No despacho saneador o pedido de suspensão da instância foi indeferido e relegou-se para final o conhecimento da excepção invocada pelos Réus.

Veio a ser proferida sentença que julgou a acção totalmente improcedente, absolvendo os Réus dos pedidos formulados.

Desta sentença a Autora interpôs recurso no qual se decidiu:

Pelo exposto:

a) alteram-se as respostas dadas aos quesitos 11º, 12º, 13º, 16º e 17º formulados na base instrutória, nos termos acima indicados;

b) elimina-se da base instrutória o quesito 14º; e

b) anula-se a sentença recorrida, determinando-se o aditamento à base instrutória da matéria de facto contida no artigo 65 da p. inicial, repetindo-se a audiência de julgamento para apreciação deste facto, nos termos do art.º 712º, n.º 4, do C. P. Civil.

Na 1ª instância foi ampliada a matéria de facto incluída na base instrutória e após julgamento foi proferida sentença que julgou a causa nos seguintes termos:

São termos em que, e com os fundamentos expostos, julgando-se a presente acção parcialmente procedente, se decide:

1. Declarar que o contrato de compra e venda mencionado em 6. dos factos provados dissimula um contrato de doação;

2. Declarar que A. tem o direito à restituição do bem objecto do dito contrato, na medida do seu interesse creditório, nos termos constantes do processo mencionado em 24. dos factos provados, podendo executá-lo no património dos 2ºs RR. e praticar os actos de conservação da garantia patrimonial do seu crédito autorizados por lei, condenando os RR. a reconhecer em conformidade.

3. Do outro pedido contra si deduzido absolver os 2ºs RR..

Na sequência do óbito do Réu J... foram habilitados como seus sucessores para ocuparem o seu lugar na causa ...

Tendo sido a Ré C... sido declarada insolvente a sua posição processual passou a ser ocupada pela respectiva Massa Insolvente que, apesar de notificada para o efeito, não constituiu mandatário.

Inconformada com a decisão, a Autora interpôs recurso, formulando as seguintes conclusões:

...

Não foi apresentada resposta.

1. Do objecto do recurso

Encontrando-se o objecto do recurso delimitado pelas conclusões das ale­ga­ções do Recorrente cumpre apreciar as seguintes questões:

- A resposta dada ao quesito formulado na base instrutória sob o n.º 14 deve ser alterada?

- Os 2.º Réus devem ser responsabilizados pela constituição da hipoteca a favor do BPI, nos termos do art.º 616º, n.º 2, do C. Civil?

2. Dos factos

A Autora, discordando do julgamento da matéria de facto, pretende que, sendo reapreciada a prova produzida, considerando em especial os factos provados sob os n.º 19º, 20º, 21º e 22º, seja alterada, com recurso a uma presunção judicial, a resposta dada ao quesito formulado na base instrutória sob o nº 14º, propondo a seguinte:

As 2ºs Rés filhas sabiam que subtraindo ao património dos seus pais o último bem imóvel com alguma expressão patrimonial que estes possuíam, os deixavam numa posição adequada a incumprir em prejuízo dos credores e, designadamente, da Caixa aqui Autora.

A redacção deste quesito que obteve a resposta de não provado é a seguinte:

14 – … e que subtraindo eles ao seu património o único bem com alguma expressão patrimonial que possuíam, ficavam numa posição de insolvência perante os seus credores, e, designadamente, perante a autora?

Resposta esta fundamentada nos seguintes moldes:

“A convicção negativa do Tribunal redunda na total ausência de prova do facto questionado.

De facto, em depoimento de parte os RR. não confessaram o facto e justificaram porque o mesmo, na sua perspectiva não correspondia à verdade: os 1ºs RR. tinham actividade profissional, exploravam na altura e exploraram durante vários anos uma loja na cidade de Leiria e um café, embora este através de uma sociedade, que lhes propiciava um rendimento regular e confortável, tendo ainda o 1º R. dito que na altura era tinha, ainda uma carteira de acções (cerca de 29.000) do B... e poupanças ou aplicações na CA Vida, as quais só veio a levantar no ano de 2010.

Os demais RR. posicionaram-se no sentido de que, sabendo embora que havia dificuldades financeiras, não estavam cientes da sua exacta dimensão e nunca pensaram, sequer que as mesmas não fossem transponíveis, até porque havia a loja e um café, que permitiria continuar a granjear rendimentos ao casal, referindo alguns deles que sabiam, embora sem conhecimento fundado que existiam valores.

A alegação no que se refere à sociedade e ao café é confirmada pelos depoimentos das demais testemunhas sobre isso inquiridas, com maior ou menor conhecimento de causa e, também pela análise da documentação correspondente junta aos autos, mormente a informação registral de fls. 553 e 554 e escritura de dissolução de fls. 555 e 556. Aquela que menciona a loja é confirmada, também pelo que algumas das testemunhas disseram, embora sem conhecimento fundado e pela análise da documentação de fls. 557 e 558 (contrato de arrendamento), recibos de renda e de condomínio de fls. 559.

De tal documentação se retira que os RR. por si ou através de empresa de que eram os únicos sócios, exploravam dois estabelecimentos comerciais, só tendo cessado essas actividades, respectivamente em 2006 e em altura exacta não apurada mas em todo o caso localizada aparentemente após Abril e Junho de 2012 (cfr. o confronto do recibo de condomínio de fls. 559 e a notificação do ISSSL de fls. 560, que também se analisou e considerou), do que se pode concluir que, para além do imóvel em causa nos autos, eram os ditos RR., ainda proprietários de duas quotas sociais na empresa que girava com o café e de um estabelecimento comercial que funcionando embora em imóvel arrendado teria valor comercial.

Aliás, constata-se da análise das declarações fiscais de rendimentos dos ditos RR. de fls. 562 a 586 que os mesmos declararam rendimentos provenientes de actividade comercial/industrial em valores a rondar os 50.000€ (2004) e os 40.000€ (2005 e 2006), pelo que também por aí, dificilmente se poderia concluir pela inexistência de valor venal do estabelecimento ou estabelecimentos explorados e, muito menos pela conclusão de que, ao venderem o imóvel referido se colocavam numa situação de insolvência fosse perante quem fosse.

Para além disso tinham, ainda, PPRs iniciados em 22.9.2003, com entregas mensais de 50€ por cada um, na CA Vida, onde os mantiveram até 21.6.2010, quando ascendiam a 5.613,96€ e uma carteira de 29.000 acções cujo valor em 21.10.2004 ascendia a 27.463€ e que, embora nessa data se encontrassem cativas à ordem de garantia bancária, vieram dela a ser desobrigadas em 3.9.2007.

Diga-se, de resto, que da análise da documentação de fls. 680 a 683, se retira que o valor base ou de avaliação do usufruto sobre o imóvel urbano (reservado aos 1ºs RR.), foi fixado em 108.000€, sendo esse, também um activo indiscutivelmente patrimonial dos mesmos. Sendo irrelevante no que se refere à prova do facto em discussão que, na conjuntura em que nos encontramos (que, aliás, é completamente diversa da de 2004), não tenha havido propostas com vista à sua aquisição.

Ora, de tudo isso, analisado à luz das regras de experiência comum, que também foram consideradas, conjugado com o facto de não se ter feito qualquer prova directa ou indirecta do contrário, resulta, em nosso entender a resposta negativa ao facto questionado, não obstante a época de enorme crise em que nos encontramos e algumas presunções que a propósito se criaram, mas que entendemos não dever aqui utilizar, por não se nos afigurarem relacionadas com os fundamentos do caso concreto.”

Os factos provados sob os n.º 19º, 20º, 21º e 22º são:

19. Nem os 1ºs RR. receberam o valor que aí consta, nem as 2ªs RR. pagaram o que aí está declarado.

20. Os 1ºs RR. tinham consciência que ao transmitirem o prédio referido em 6. causavam prejuízo à A..

21. As 2ªs RR. sabiam da situação devedora dos 1ºs RR..

22. Os 1ºs RR. são pais das RR. C... e S..., casadas, respectivamente com os RR. P... e J...

As presunções judiciais fundam-se em regras práticas da experiência comum, nos conhecimentos da vida e estão vocacionadas, nomeadamente, para a sua utilização nos casos em que a prova directa é muito difícil de conseguir.

A prova com recurso à presunção comporta três operações: em primeiro lugar, a demonstração do facto base ou indício que, num segundo momento, faz despo­letar no raciocínio do julga­dor, uma regra da experiência ou da ciência que per­mite, num terceiro momento, inferir outro facto que será o facto sob julgamento.

No seu funcionamento, a presunção produz um efeito materialmente idêntico à exclusão do ónus da prova, embora se não confunda com este. Na ver­dade, a presun­ção não fornece a demonstração do facto, mas dá por admitida a sua realidade com base na experiência comum de que certos factos normalmente se verificam sem esperar o exercício da prova.

No valor da credibilidade que a regra de experiência apresenta, encontra-se o fundamento racional da presunção e na medida desse valor assenta o seu grau de rigor.

A presunção pode, assim, ser o único meio em que o juiz baseia a sua con­vicção, podendo até fazer prevalecer a presunção em detrimento de outras provas produzidas e mesmo recorrer a ela ainda que o facto questionado possa ser apurado por outro meio relativamente mais seguro.

As presunções sejam judiciais ou de facto ou legais, não são, propria­mente, meios de prova, mas somente meios lógicos ou mentais de descoberta de factos e firmam-se mediante regras de experiência [1].

Ora, no caso dos autos está provado que:

- os 1.ºs Réus  não receberam o preço declarado na escritura da compra e venda impugnada, nem as 2.ªs RR. pagaram o que aí está declarado.

- as 2.ªs Rés são filhas dos 1.ºs Réus  e sabiam da situação devedora destes.

Daqui pode concluir-se que, sabendo as Rés da situação devedora dos seus pais e aceitando intervir no negócio, a única explicação plausível e consentânea com as regras da experiência comum para a celebração da escritura, é, no mínimo, a de que as Rés S... e C... admitiram a hipótese de, com a transmissão imobiliária operada, colocarem em risco a satisfação do crédito da Autora, atenta a diminuição substancial do património dos seus pais, tendo-se conformado com essa consequência.

Quanto à eventual existência de outros bens na data da celebração do acto impugnado propriedade dos 1.ºs Réus, pese embora a documentação junta aos autos, o certo é que esta questão constituiu o objecto do quesito formulado sob o n.º 10º na base instrutória e foi julgado não provado.

Acresce que de toda a prova produzida resulta uma grande proximidade entre o 1ª Réu e as filhas, tendo nomeadamente uma delas almoçado com a testemunha ..., funcionário da Autora, que declarou ter constatado que todos se davam bem e que o relacionamento revelava cumplicidade, falando pai e filhas abertamente entre si, razão pela qual deve considerar-se que as Rés admitiram a hipótese da celebração do negócio impugnado impossibilitar a satisfação do crédito da Autora, tendo aceitado essa consequência do acto impugnado.

 Assim, decide-se alterar a resposta dada ao quesito 14º, passando a ser a seguinte:

As 2.ºs Rés ao celebrarem o negócio referido em 6 admitiram a hipótese que, subtraindo os 1.ºs Réus ao seu património o único bem com alguma expressão patrimonial que possuíam, impossibilitavam a satisfação do crédito da Autora, tendo-se conformado com esse resultado.

Assim, os factos provados são os seguintes:

1. A Autora é uma cooperativa de responsabilidade limitada que tem por objecto social o exercício de funções de crédito agrícola a favor dos seus associados e a prática dos demais actos inerentes à actividade bancária, nos termos da legislação aplicável e, ainda, o exercício da actividade de agente da Caixa Central.

2. Por escrito particular denominado “Contrato de Empréstimo em Conta Corrente”, outorgado entre a Autora e os 1ºs Réus J... e mulher, em 12/3/2001, aquela concedeu-lhes um crédito em conta corrente até ao montante de 15.000.000$00 (equivalente actual a € 74.819,68), com os termos e condições que melhor constam de fls. 107 a 109, cujo teor se dá aqui por reproduzido, para todos os efeitos legais.

3. Em 16/3/2001, por escrito particular denominado “Contrato de Empréstimo em Conta Corrente”, outorgado entre a Autora e os 1ºs Réus foi acordada a ampliação do crédito titulado pelo contrato celebrado em 12/3/2001 e acima descrito, para 25.000.000$00 (o equivalente actual a € 124.699,47), nos termos e condições que melhor constam de fls. 110 a 112, cujo teor se dá aqui por reproduzido, para todos os efeitos legais.

4. Os mutuários, aqui 1ºs Réus, procederam à primeira utilização de capital em 15/3/2001, tendo-se o contrato renovado automática e sucessivamente, como o contratualmente previsto, tendo estes utilizado diversas tranches de capital, através da movimentação da sobredita conta corrente nº ..., por contrapartida da conta à ordem nº ...

5. Os supra referidos contratos, tanto o inicial como o subsequente, foram reduzidos a escrito, encontrando-se rubricados e assinados pelos responsáveis da mutuante e mutuários.

6. Os 1ºs Réus J... e mulher, M..., em 25/10/2004 declararam, no Cartório Notarial de Ansião, vender às Rés S... e C..., em comum e em partes iguais, a nua propriedade do prédio urbano composto por casa de habitação de rés-do-chão e primeiro andar com quatro divisões, no rés-do-chão para comércio, com a área coberta de cento e vinte metros quadrados e logradouro com metros quadrados sito no lugar de ..., com o valor patrimonial e atribuído de € 7.034,84, descrito na Conservatória do Registo Predial de Pombal sob o número ..., pelo preço de € 75.000, que delas já receberam, reservando para si o usufruto do mesmo, nos termos de fls. 22 a 27, cujo teor se dá aqui por reproduzido, para todos os efeitos legais.

7. Por escritura pública, outorgada em 5.1.2007, no Primeiro Cartório de Competência Especializada de Leiria, C... e marido, P..., S... e marido, J..., como primeiros outorgantes; ..., declararam os primeiro e segundo outorgantes:

Que são donos e legítimos possuidores do seguinte:

Prédio urbano destinado a habitação, composto de casa e rés-do-chão, primeiro andar e logradouro, sito em ..., cuja nua propriedade aí se mostra registada a favor deles, primeiros outorgantes, sob a inscrição G, apresentação nº ..., e o usufruto a favor deles, segundos outorgantes, sob a inscrição F, apresentação 23, de ..., o qual se mostra livre de ónus e encargos.

Que atribuem ao referido imóvel o valor de € 150.000,00.

Que os primeiros e segundos outorgantes constituem a favor do Banco, com toda a plenitude legal, hipoteca sobre o identificado prédio.

Que a presente hipoteca é constituída em garantia integral do pagamento:

a) de todas e quaisquer responsabilidades, contraídas .., pelos 1.ºs outorgantes C... e P..., … até ao limite, em capital de € 81.900,00..

b) dos juros remuneratórios..

c) das despesas judiciais e extrajudiciais…

….

8 – A hipoteca referida em 7 encontra-se registada a favor do Banco B..., S.A., na Conservatória do Registo Predial de Pombal, desde 2006.11.28, para garantia de créditos contraídos ou a contrair pelos Réus C... e P...

9. O imóvel referido tem o valor patrimonial tributável de € 64.500.

10. No âmbito da execução que corre termos pelo ..., com o n.º ..., a Autora logrou penhorar o usufruto do prédio referido, encontrando-se esta penhora registada na Conservatória do Registo Predial de Pombal, com data de 31.12.2008.

11. O 1º Réu enviou, em 14/8/2008, à Autora a missiva constante de fls. 174 e 175, cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais.

12. A Autora respondeu-lhe em 26.8.2008, nos termos que constam de fls. 176, cujo teor se dá aqui também por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais.

13. Antes da realização da venda descrita em 6., a última utilização de capital, no âmbito do contrato identificado em 2., foi em 13.7.2004, tendo os 1ºs Réus, nesta data, utilizado mais € 500.

14. Ficando com uma utilização de capital e, por conseguinte, em débito, de € 98.000.

15. Ao qual abateram posteriormente, em 11.8.2006, apenas € 1.500.

16. Em 29.12.2006 encontrava-se em dívida a quantia de 98.669,47€, que os 1ºs Réus não pagaram.

17. A Autora enviou aos 1ºs Réus uma missiva, datada de 29.1.2007, advertindo-os que deveriam pagar as quantias em divida em determinado prazo.

18. À data da propositura da acção, os 1ºs Réus apenas possuíam o usufruto sobre o imóvel referido em 6 – resposta dada ao quesito 9º.

20. Nem os 1º Réus receberam o valor que aí consta, nem as 2ªs Rés pagaram o que aí está declarado – resposta dada ao quesito 11º.

21. Os 1ºs Réus tinham consciência de que ao transmitirem o prédio referido em F), causavam prejuízo à Autora – resposta dada ao quesito 12º.

22. As 2ªs Rés sabiam da situação devedora dos 1ºs Réus – resposta dada ao quesito 13º.

23. Os 1ºs Réus são pais das Rés C... e S..., casadas, respectivamente com os Réus P... e J...

24. A execução mencionada em 11 deu entrada em 4.12.2007.

25. Nela a quantia exequenda é de 120.615,69€ (98.000€ + 12.811,70€ + 9.803,99€).

26. Os ali executados, aqui 1ºs Réus, foram citados em 16.1.2008 e não deduziram oposição.

27 – As 2.ºs Rés ao celebrarem o negócio referido em 6 admitiram a hipótese que subtraindo os 1.ºs Réus ao seu património o único bem com alguma expressão patrimonial que possuíam impossibilitavam a satisfação do crédito da Autora, tendo-se conformado com esse resultado.

3. O direito aplicável

Com a presente acção a Autora formulou os seguintes pedidos:

a) reconhecendo-se ineficaz a venda feita pelos 1.ºs aos 2.ºs Réus do prédio identificado, lhe seja permitido executar no património destes o crédito de que é titular.

b) na procedência da impugnação pauliana relativamente aos 1ºs e 2ºs RR., deverão estes 2ºs RR. C... e marido e S... e marido ser declarados responsáveis pelo valor do bem alienado ao B..., pela sobredita hipoteca e, em consequência, condenados a pagar à A. o valor do crédito desta sobre os 1ºs RR., que à custa de outros bens ou direitos não consiga realizar, até ao limite do respectivo valor à data da alienação, de 75.000€ ou outro que venha a ser provado.

O pedido referido na alínea a) foi julgado procedente pela sentença recorrida e não tendo esta parte decisória sido objecto de impugnação, esse pedido já foi definitivamente decidido.

O pedido formulado em b), cuja procedência se encontra em discussão no presente recurso, faz apelo à responsabilidade do adquirente de má-fé prevista no n.º 2 do art.º 616º do C. Civil, para as situações de procedência da impugnação pauliana, no qual se dispõe:

O adquirente de má-fé é responsável pelo valor dos bens que tenha alienado, bem como dos que tenham perecido ou se hajam deteriorado por caso fortuito, salvo se provar que a perda ou deterioração se teriam igualmente verificado no caso dos bens se encontrarem em poder do devedor.

Este dispositivo dirige-se aos casos em que o acto impugnado se traduz na alienação de bens do património garante. Nestas situações os bens alienados pelo devedor podem já não existir, por terem perecido, podem ter-se diluído no novo património (v.g. dinheiro), ou podem ter ingressado em património imune à impugnação pauliana, por terem sido sub-alienados onerosamente a terceiro de boa-fé.

Apesar de não se encontrar expressamente mencionado no referido preceito deve também considerar-se abrangida pela sua previsão as situações em que o adquirente constitui garantias que concedam a terceiros um acesso privilegiado aos bens alienados, uma vez que também, nesta situação, a neutralização parcial e relativa dos efeitos do acto impugnado obtida com a procedência da acção de impugnação pauliana, pode revelar-se não ser capaz de restaurar integralmente a garantia patrimonial do credor impugnante, uma vez que os meios executivos e conservatórios que a ordem jurídica coloca à disposição deste podem não ser totalmente eficazes, face à nova garantia constituída pelo adquirente que confere preferência no pagamento aos credores do adquirente por ela beneficiados.

Assim, se a garantia constituída pelos adquirentes de má-fé sobre os bens cuja transmissão foi objecto de impugnação pauliana julgada procedente, impedir a satisfação integral do direito do credor, os adquirentes serão responsáveis pelo pagamento da parte do crédito que não obteve satisfação através daqueles bens, por força do funcionamento da garantia por eles constituída.

Nestes casos não existe uma deterioração física dos bens alienados, mas existe uma “deterioração jurídica”, com referência à sua função de garantia patrimonial, a qual não pode deixar de estar abrangida pela previsão do art.º 616.º, n.º 2, do C. Civil.

Este efeito da impugnação pauliana assume a natureza de restituição do enriquecimento por desconsideração de um património intermédio [2]. Apesar da solução encontrada aparentar subsumir-se no instituto da responsabilidade civil, uma vez que o adquirente tem que pagar ao credor o valor da “deterioração” provocada, o que sugere uma reparação, por equivalente, do prejuízo sofrido por este, revelando uma proximidade com a indemnização por responsabilidade civil [3], deve ser encarada como uma aplicação da obrigação de restituição do enriquecimento, agravada pela má fé do enriquecido, consagrada no art.º 480º, do C. Civil [4].

Face à matéria de facto provada as adquirentes do imóvel, cujo acto de aquisição foi objecto de impugnação pauliana já julgada procedente, devem ser consideradas adquirentes de má-fé.

Na verdade, o nº 2 do artº 612º do C. Civil entende por má-fé a consciência do prejuízo que o acto causa ao credor.

Como refere João Cura Mariano [5], pode dizer-se que a má-fé é a consciência de que o acto em causa vai provocar a impossibilidade para o credor de obter a satisfação integral do seu crédito ou um agravamento dessa impossibilidade. Tendo os outorgantes representado atempadamente as consequências danosas do seu acto, têm a possibilidades de o omitir, pelo que, se nele insistem, apesar desse conhecimento, esta sua atitude é eticamente censurável e por isso considerada de má-fé.

A consciência do prejuízo é um processo psicológico pertencente ao domínio da representação ou ideação, assumindo uma natureza intelectiva. Nesta operação intelectual, o devedor e o terceiro adquirente devem não só ter a percepção da situação patrimonial do primeiro e dos efeitos do acto que vão praticar, mas também aperceberem-se que estes podem impossibilitar os credores do devedor de obter a satisfação integral dos seus créditos. Não é necessário que essa consciência se traduza num juízo de certeza sobre a verificação futura desta consequência, bastando-se com um juízo de possibilidade. É suficiente para que os autores do acto tenham consciência das suas consequências danosas que as prevejam como possíveis, tendo-as presente no seu espírito.

A consciência do prejuízo abrange indiscutivelmente todos os casos de dolo, isto é, quando, além do conhecimento prévio do prejuízo causado, também se verifica a vontade de o causar (elemento volitivo).

Essa vontade pode traduzir um dolo directo, quando os outorgantes do acto agem exactamente com o propósito de inviabilizar a satisfação integral do crédito (animus nocendi), um dolo necessário, quando aqueles têm consciência de que este resultado é uma consequência secundária, mas inevitável da finalidade por eles visada com a prática do acto, e um dolo eventual, quando representam como possível a lesão da garantia patrimonial do credor e actuam sem confiar que ela não se produza. Nesta última situação de dolo, os autores do acto não têm a certeza sobre as suas consequências relativamente aos interesses dos credores, admitindo como simplesmente possível a ocorrência de danos na garantia patrimonial dos direitos de crédito destes. E actuam conformando-se com essa possibilidade ou não tomando posição. Não só está presente o elemento psicológico cognitivo, no seu estádio de dúvida (o conhecimento do prejuízo existe como mera possibilidade), mas também o próprio elemento volitivo, em grau muito ténue, uma vez que se limitam a aceitar o risco de produção do resultado previsto.

É esta última situação de dolo eventual que resulta precisamente da matéria de facto provada quando se refere que as Rés C... e S... ao celebrarem o negócio impugnado admitiram a hipótese que subtraindo os 1.ºs Réus ao seu património o único bem com alguma expressão patrimonial que possuíam impossibilitavam a satisfação do crédito da Autora, tendo-se conformado com esse resultado, pelo que se entende que as Rés agiram de má-fé, nos termos do art.º 612.º, n.º 2, do C. Civil.

Ora, no presente caso provou-se que as adquirentes do bem imóvel, cujo acto de aquisição foi objecto de impugnação pauliana já julgada procedente, as Rés C... e S..., juntamente com os seus maridos, por escritura pública outorgada em 5.1.2007, constituíram sobre o referido imóvel uma hipoteca a favor do B... “em garantia integral do pagamento: a) de todas e quaisquer responsabilidades, contraídas .., pelos 1.ºs outorgantes C... e P..., … até ao limite, em capital, de € 81.900,00… b) dos juros remuneratórios..c) das despesas judiciais e extrajudiciais…”.

Com este acto de constituição de garantia a favor de terceiros, tendo por objecto o imóvel cuja transmissão para o património das 2.ª Rés, foi procedentemente impugnado, estas colocaram em risco a neutralização parcial e relativa dos efeitos do acto impugnado obtida com a procedência da acção de impugnação pauliana, uma vez que pode vir a revelar-se que a possibilidade da Autora executar no património das 2.ª Rés o imóvel que para elas foi transmitido, pode não ser suficiente para garantir a cobrança do crédito da Autora, uma vez que o funcionamento da hipoteca constituída a favor do B.. pode impedir essa cobrança, atenta a preferência no pagamento conferida a este último credor da Ré C...

No entanto, como estamos perante uma mera possibilidade, não se tendo ainda verificado que essa garantia tenha determinado uma efectiva impossibilidade da Autora cobrar o seu crédito, nos termos do art.º 616º, n.º 1, do C. Civil não é possível afirmar que a mera constituição da hipoteca se traduz num enriquecimento obtido à custa da Autora, pelo que ainda não se mostra apurada a responsabilidade determinada pelo n.º 2 do mesmo artigo.

Daí que a Autora se tenha limitado a pedir que os 2ºs RR. C... e marido e S... e marido fossem condenados a pagar lhe o valor do crédito desta sobre os 1ºs RR., que à custa de outros bens ou direitos não consiga realizar, até ao limite do respectivo valor à data da alienação, de 75.000€ ou outro que venha a ser provado.

Na verdade, não estamos perante uma situação em que se tenha apurado a constituição de uma qualquer obrigação ainda não vencida ou de montante não determinado, o que não obstaria à prolação de decisão condenatória de cumprimento dessa obrigação, mas antes face a uma situação em que ainda não se apurou sequer da existência de uma obrigação, uma vez que o prejuízo necessário à sua constituição ainda não se verificou, não sendo também possível efectuar um juízo probabilístico da sua ocorrência no futuro. Perante a falta deste dado essencial ao apuramento da responsabilidade prevista no art.º 616º, n.º 2 do C. Civil não é possível proferir decisão de responsabilização dos 2.º Réus pela eventual frustração da satisfação do crédito da Autora resultante do funcionamento da hipoteca constituída a favor do B...

Na verdade, conforme tem sido afirmado pela doutrina [6] e pela jurisprudência [7], a lei processual não admite a “sentença condicional”, ou seja, a sentença judicial em que o reconhecimento do direito fica dependente da hipotética verificação de um facto futuro e incerto, ainda não ocorrido à data do encerramento da discussão da causa – sendo tal orientação inquestionavelmente justificada nos casos em que o facto condicionante exigiria ulterior verificação judicial, prejudicando irremediavelmente a definitividade e certeza da composição de interesses realizada na acção.

Daí que não seja possível neste momento atribuir a responsabilidade aos 2º Réus por um evento que ainda não se verificou – a não satisfação do crédito da Autora em resultado da existência da hipoteca constituída por aquelas – o que não obsta a que posteriormente tal responsabilidade venha a ser reconhecida em acção própria, logo que se verifique tal facto condicionante, como está previsto no art.º 621º do C. P. Civil.

Por esta razão deve o recurso improceder, mantendo-se a decisão recorrida, por razão diversa da que a fundamentou.

Decisão

Pelo exposto, julga-se improcedente o recurso interposto, mantendo-se a decisão recorrida.

Custas do recurso pela Recorrente.

Relatora: Sílvia Pires

Adjuntos: Maria Domingas Simões

                 Jaime Ferreira


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[1] Vaz Serra, BMJ 110, pág. 198.

[2] Menezes Leitão, em O enriquecimento sem causa no direito civil, pág. 852-855, em Direito das obrigações, vol. II, pág. 313-315, e em Garantia das obrigações, pág. 100-104, João Cura Mariano, em Impugnação pauliana, pág. 88-89, da 2.ª ed., Almedina, e o acórdão do T. R. P. de 6.1.2005, no site www.dgsi.pt, relatado por Carvalho Ferraz.

[3] Pires de Lima e Antunes Varela, em Código civil anotado, vol. I, pág. 468.

[4] Menezes Leitão em O enriquecimento sem causa no direito civil, pág. 853-854, em Direito das obrigações, vol. II, pág. 311, e em Garantia das obrigações, pág. 100-104, e Cura Mariano, ob. e loc. cit.

[5] Na ob. cit., pág. 199-200.

[6] V.g. Lebre de Freitas, em A acção declarativa comum, à luz do Código de Processo Civil de 2013, pág. 323, 3.ª ed. da Coimbra Editora.

[7] Acórdãos do S.T.J. de 24-4-2013 (Rel. Silva Gonçalves) e da Relação do Porto de 1-6-2015 (Rel. Caimoto Jácome) e de 16-12-2015 (Rel. Vítor Amaral), todos acessíveis em www.dgsi.pt.