Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
318/11.7TBTND.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: CARLOS MOREIRA
Descritores: ARRENDAMENTO MISTO
ABUSO DE DIREITO
LITIGÂNCIA DE MÁ FÉ
Data do Acordão: 03/25/2014
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TONDELA 2º J
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA EM PARTE
Legislação Nacional: ARTS. 204, 334, 1066, 1075 CC, 456 CPC
Sumário: 1 - Se se dá como provado que uma construção foi arrendada, conjuntamente com um terreno, já dividida em quatro compartimentos, dois destinados a quartos, um a sala e outro à confeção de refeições, e que nela a ré passou a viver e a ter o seu centro de vida, não pode dar-se como provado que tal construção se destinava à guarda de alfaias e produtos agrícolas.

2 - A classificação do arrendamento – rural ou urbano - sobre um prédio com parte rústica e urbana, depende, primo conspetu e independentemente da composição e valor de tais partes, da vontade dos outorgantes; e, na falta ou insuficiência desta, sucessivamente, da finalidade principal anuída, ou dos termos e condições da renda fixada – artº 1066º do CC.

3 – Devendo assim, e à mingua da emergência de tal vontade, taxar-se de rural o arrendamento verbal celebrado em 1972 atinente a uma parcela de 3000m2, por um agricultor e sua mulher e no qual a renda foi fixada em 60 alqueires de milho, por ano, não obstante o casal ter ficado a habitar numa construção do terreno adaptada para o efeito e sem saneamento, agua canalizada e eletricidade.

4 - O abuso de direito, vg. nas modalidades do venire e/ou da supressio, pode determinar a inalegabilidade da nulidade do contrato de arrendamento por falta de forma; o que se verifica no caso em que o contrato dura mais de 40 anos, os senhorios sempre receberam a renda, nunca instaram formalmente a locatária para deixarem os prédios, e esta tem mais de 80 anos, é doente e sempre teve o seu centro de vida nos mesmos.

5 - Considerando que a condenação por má fé implica não apenas uma afetação económico-financeira, como um desmerecimento a nível pessoal, marcante e inquinador, o convencimento sobre a verificação da mesma implica uma prova mais acutilante e inequívoca – por reporte à prova da generalidade dos factos - a qual, assim, alcandore a uma convicção de certeza ou quase certeza.

Decisão Texto Integral: ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE COIMBRA  

1

A... ,  intentou contra   B... , C... e marido D... , E... e  F... , ação declarativa, de condenação, com forma de processo sumário.

Pediu:

A condenação  dos réus a:

a) reconhecerem que o autor é proprietário exclusivo dos dois prédios descritos no artigo 1º da petição;

b) não entrarem nos ditos prédios do autor, nem estorvarem a sua posse restituindo-lhes a parcela e dependência que ilicitamente ocupam livres e devolutas;

c) Pagarem ao autor uma indemnização pelos prejuízos causados, que não sendo passíveis de apurar em toda a sua extensão terão de ser apurados em futura liquidação.

Para tanto alegou:

É dono e legitimo possuidor de dois prédios identificados no artigo 1º da petição inicial, os quais foram doados ao autor por seus pais, os quais há mais de 20 e 30 anos, por si só e pelos seus antepossuidores vem possuindo, ininterruptamente à vista de toda a gente e sem oposição de quem quer que seja, agricultando-se, semeando-os, colhendo vinho, batatas e demais frutos, melhorando-os, fruindo-os e dispondo deles como único e exclusivo dono.

Os réus há alguns anos que ocupam cerca de 3.000 m2 dos referidos prédios e ainda uma dependência agrícola a que atribuem o destino de casa de habitação.

No mês de Janeiro de 2011 os réus cortaram duas oliveiras na referida parcela, sem autorização e conhecimento do autor. Acrescenta que quase diariamente os réus à excepção da primeira ré estacionam veículos automóveis e tractores na referida parcela propriedade do autor, ou na entrada da mesma dessa forma obstruindo e impedindo o autor de livre acesso.

Com tal ocupação ilegal os réus vêm privando o autor da fruição da referida parcela de terreno e da dependência agrícola e paralelamente, alcançando à custa do autor todos os benefícios que essa parcela e dependência são susceptíveis de dar, não sendo ainda tal prejuízo inteiramente conhecido.

A curadora provisória nomeada à ré B (...), em representação desta apresentou contestação/reconvenção, alegando:

Por contrato verbal celebrado no ano de 1967 a ré B (...) e seu marido tomaram de arrendamento a G... e um primo uma casa de habitação constituída por r/c com dois quartos, uma cozinha e uma sala e um sótão amplo com um barracão com cerca de 30 m2, implantado no prédio rústico identificado no artigo 1º, al. a) da petição.

Desde há mais de 40 anos que a 1ª ré passou a habitar a referida casa, nela dorme, confecciona e toma refeições tendo ali criado os filhos até à idade em que estes constituíram o seu lar e abandonaram o lar dos pais.

Pelo arrendamento misto começaram por pagar 60 alqueires de milho por ano e há cerca de 3 anos, a quantia de € 175,00 por ano.

A ré é uma pessoa de idade avançada, sofre de doença que lhe dificulta a locomoção.

A ré cortou uma oliveira já velha e seca sem qualquer préstimo.

Pediu:

A improcedência da ação  e a absolvição dos réus dos pedidos.

E, em reconvenção, pede que o autor seja condenado a:

a) reconhecer que há cerca de 40 anos entre a ré B (...) na qualidade de arrendatária e G(...) e um primo deste foi celebrado um contrato de arrendamento misto, uma parte para habitação e que tem como objecto a casa de habitação identificada no artigo 2º da contestação e outra parte que integra uma parcela de terreno com a área de cerca de 3.000 m2 dos artigos rústicos identificados pelo autor no artigo 1º da petição, pagando actualmente de renda a quantia de € 175,00 por ano;

b) Reconhecer que após a morte dos primitivos proprietários o contrato de arrendamento misto se transmitiu para os pais do autor H... e I... e posteriormente após a doação que estes fizeram dos bens ao autor, se transmitiu para este;

c) reconhecer que a casa de habitação identificada no artigo 2º, casa onde a ré B (...) habita há mais de 40 anos é predominante tendo, um valor superior, à parte rústica;

d) reconhecer que a parte rústica do arrendamento é secundária e complemento da parte destinada à habitação;

 e) reconhecer que a renda inicialmente acordada de 60 alqueires de milho por ano é hoje no montante de € 175 por ano, renda que nos últimos três anos tem sido paga aos pais do autor;

f) reconhecer a ré B (...) como arrendatária da casa de habitação e da parcela agrícola e como tal com o título legítimo que lhe permite o uso e fruição de tais bens;

g) ser o autor condenado como litigante de má fé em multa e indemnização a favor da ré contestante de montante não inferior a € 1.500;

Em resposta o autor:

Admitiu a possibilidade de existir um contrato de arrendamento rural o qual por ser verbal é nulo por vicio de forma, não podendo o mesmo obstar ao exercício do direito de reivindicação do autor.

2.

Prosseguiu a ação os seus termos tendo, a final, sido proferida sentença na qual se decidiu:

«I - Julga-se a presente acção totalmente procedente por provada e em consequência, condenam-se os réus B (...), J(...), C (...) e marido D(...), E(...) e F(...):

a) Reconhecerem que o autor é dono e legítimo proprietário dos prédios identificados nos pontos 1) e 2) da factualidade provada;

b) A não entrarem nos prédios aludidos nos pontos 1) e 2), nem estorvarem a posse do autor, restituindo-lhe a parcela aludida em 3) que ocupam, livre e devoluta.

c) A pagarem ao autor uma indemnização pelos prejuízos causados, a apurar em futura liquidação.

II – Julga-se procedente a excepção dilatória prevista no artigo 35º, n º 5 DL 294/2009, de 13 de Outubro, julgando extinta a instância reconvencional e em consequência absolvo o autor/reconvindo A (...), da instância reconvencional.

Não se vislumbra a existência de litigância de má fé por parte do autor.»

3.

Inconformado recorreu a ré B (...).

Rematando as suas alegações com as seguintes conclusões:

1- a 3 – meramente descritivas.

4 – Afigura-se à Ré que o Tribunal “à quo” não fez uma judiciosa valoração da prova, uma correcta selecção da matéria de facto e não fez também uma criteriosa aplicação da Lei aos factos.

5 – A Ré para obstar à procedência do pedido de restituição, invoca a existência  de um contrato de arrendamento conjunto (misto) de uma parte urbana e de uma parte agrícola/rústica.

6 – Os factos vertidos na acta de fls. em resultado da inspeção judicial ao local nomeadamente os constantes dos pontos nº 1, 2, 3, 4, 5, 6, 7, 8, 10, 14 e 15 que aqui se dão como reproduzidos por economia processual, caracterizam e identificam a casa de habitação da Ré, o número de compartimentos, os materiais utilizados na sua construção, a porta principal e o número de janelas em alumínio e outros elementos identificativos e caracterizadores de tal habitação.

7 – A Ré logrou provar que há cerca de 40 anos conjuntamente com o seu falecido marido tomaram de arrendamento, de modo verbal, aos anteriores proprietários G(...) e a um primo uma casa de habitação e uma parcela de terreno com cerca de 3.000 m2 desafectada dos artºs rústicos 1880 e 1881.

8 – Pelo arrendamento da casa de habitação e da parcela de terreno as partes convencionaram a renda de 60 alqueires de milho, renda que foi alterada em 2011, por acordo, para numerário que fixaram em 175 € por ano.

9 – O estado de saúde da Ré e de seu marido ainda em vida deste não lhe permitiam cultivar a parcela agrícola, sendo que após o falecimento deste há cerca de 3 anos a mesma encontra-se de lameiro.

10 – A impossibilidade da Ré em agricultar a parte agrícola, facto do conhecimento dos pais do Autor e também deste, levou a que aceitassem como fim do arrendamento a habitação da Ré, sendo revelador da vontade das partes a alteração da renda em géneros para pagamento em dinheiro.

11 - Consagra o artº 1066 do Código Civil que “1 – O arrendamento conjunto de uma parte urbana e de uma parte rústica é havido por urbano quando essa seja a vontade dos contraentes. 2 – Na dúvida, atende-se sucessivamente, ao fim principal do contrato e à renda que os contraentes tenham atribuído a cada uma delas. 3 – Na falta ou insuficiência de qualquer dos critérios referidos no número anterior, o arrendamento tem-se por urbano”.

12 – Com o pagamento em numerário da renda foi vontade dos anteriores proprietários e da Ré em aceitar como fim principal ou exclusivo do arrendamento a habitação, sendo acessório deste a parte agrícola.

13 – O Tribunal “à quo” deu incorrectamente como julgado os pontos 6 e 7 da base instrutória ao declarar que a casa de habitação da Ré se trata de uma dependência agrícola dos prédios do Autor destinada a guardar alfaias agrícolas, confundindo-se a casa de habitação com as construções anexas para criação de animais e guarda alfaias agrícolas.

14 – O Tribunal “à quo” não atendeu à vontade das partes, ao que os anteriores proprietários quiseram dar de arrendamento e o que é que a Ré e seu marido quiseram tomar de arrendamento àqueles, apenas e tão somente a casa de habitação e uma parcela agrícola, que não os prédios no seu todo que o A. identifica na petição.

15 – Os anteriores proprietários, a Ré e seu marido autonomizaram o objecto do arrendamento cingido à casa de habitação e à parcela agrícola, que desafectaram e autonomizaram do conjunto predial nada tendo a ver os artºs rústicos inscritos sob os artºs 1880 e 1881 com o contrato de arrendamento celebrado.

16 – A maior predominância da parte urbana sobre a parte agrícola foi até constatada pelo Tribunal aquando da inspecção judicial ao local, com a fruição e gozo da casa de habitação pela Ré e o não cultivo da parte agrícola.

17 – É revelador e indiciador da vontade das partes em atribuírem como fim principal do arrendamento para habitação a alteração da renda em géneros para numerário, se outros elementos não houvessem para caracterizar o arrendamento como urbano acessoriamente com uma parte agrícola

18 – O Tribunal “à quo” não decidiu correctamente o ponto 8 da base instrutória ao considerar que a ocupação da casa de habitação e da parcela agrícola (que não de toda a área dos prédios identificados pelo Autor) ocorre de forma abusiva e indevida.

19 – A Ré provou que tem título legítimo que lhe permite ocupar os ditos bens e recusar a sua entrega ao Autor, pagando pela ocupação da habitação e da parcela de terreno a renda anual de 175 € paga por cheque endossado em nome do Autor e por este recebido.

20 – Pela ocupação da casa de habitação e da parcela de terreno paga a Ré desde 2011 a renda anual de 175 €, não tendo fundamento os alegados prejuízos peticionados pelo Autor pela ocupação indevida de tais bens, encontrando-se compensado com o recebimento daquele montante consensualmente acordado com a Ré resultando até que ao aceitar-se o decidido o Tribunal está a arbitrar-lhe dupla indemnização pelo mesmo facto.

21 – De resto, sempre a alegada indemnização peticionada pelo Autor devia ser fixada no valor correspondente às rendas livremente acordadas, dado ser este o valor locativo da parte arrendada e não como se decidiu deixar-se tal fixação da indemnização a liquidar futuramente.

22 – Consagra o artº 334 do Código Civil que é ilegítimo o exercício de um direito, quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa-fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito.

23 – O abuso de direito, sendo do conhecimento oficioso, devia ter sido declarado pelo Tribunal “à quo” atento a matéria de facto provada uma vez que no caso em análise, solicitando-se à Ré em 2011 o pagamento da renda em numerário, aceitando-se expressamente que tal valor se destinava ao pagamento da renda pela ocupação da casa de habitação porque a Ré já não podia cultivar a parte agrícola, conhecendo o estado de saúde em que a Ré se encontrava e encontra, o Autor criou na Ré uma situação objectiva de confiança, sendo manifesto que o exercício do direito por parte do Autor excede manifestamente os limites impostos pela boa-fé, pelos bons costumes ou pelo fim social e económico desse direito.

24 – A Ré actuou sempre de boa-fé, aceitou pagar a renda exigida pelo Autor, este incutiu-lhe certeza e confiança, incompatível ou contraditório com o comportamento adoptado ao lançar mão da presente acção, defraudando a confiança e expectativa no comportamento anterior do Autor.

25 – Poderia e deveria o Tribunal “à quo” socorrer-se da figura do abuso de direito para paralisar os efeitos pretendidos pelo Autor, tornando válido o contrato de arrendamento celebrado como sanção do acto abusivo nomeadamente em situação de claro venire contra factum proprium, manifestamente lesivo da boa-fé.

26 - A Ré logrou provar que pela ocupação da casa de habitação e da parcela de terreno paga de renda, desde 2011, 175€ por ano, renda que paga ao A. por cheque a ele endossado e por si depositado na sua conta pessoal aberta na Caixa Geral de Depósitos de (...) com o nº PT (...).

27 - Apesar do A. ter recebido da Ré e depositado na sua conta os cheques para pagamento das rendas dos anos de 2011 e 2012, factos pessoais seus e do seu conhecimento, nega o A. ostensivamente ter recebido tais valores.

28 - Omissão e negação que também aproveita para peticionar alegada indemnização e assim receber duas vezes da Ré pelo mesmo facto, quando sabe que a ela não tem direito porquanto já a recebeu em montante acordado.

29 - O Autor altera conscientemente a verdade dos factos e omite outros com o propósito de obter pretensão cuja falta de fundamento não ignorou, nem ignora, devendo o seu comportamento ser sancionado em multa e indemnização esta de montante não inferior ao valor já peticionado na 1ª instância de 1.500 € á luz do artº 542 e 543 do C. P. C.

30 - Foram violados, entre outros, os artºs 1.022, 1066 e 334 do Código Civil e 493, 607 e 615 do C. P. C.

Contra-alegou o autor pugnando pela manutenção do decidido.

4.

Sendo que, por via de regra - artºs 635ºnº4 e 639º  do CPC - de que o presente caso não constitui exceção,  o teor das conclusões define o objeto do recurso, as questões essenciais decidendas são as seguintes:

1ª – Alteração da decisão da matéria de facto.

2ª – Natureza do contrato de arrendamento: rural ou urbano?

3ª – Abuso de direito do autor.

4ª – Má fé do autor.

5.

Apreciando.

5.1.

Primeira questão.

5.1.1.

Há que considerar que no nosso ordenamento vigora o princípio da liberdade de julgamento ou da livre convicção segundo o qual o tribunal aprecia livremente as provas, sem qualquer grau de hierarquização, e fixa a matéria de facto em sintonia com a sua prudente convicção firmada acerca de cada facto controvertido -artº655º do CPC.

Perante o estatuído neste artigo pode concluir-se, por um lado, que a lei não considera o juiz como um autómato que se limita a aplicar critérios legais apriorísticos de valoração.

Mas, por outro lado, também não lhe permite julgar apenas pela impressão que as provas produzidas pelos litigantes produziram no seu espírito.

 Antes lhe exigindo que julgue conforme a convicção que aquela prova determinou e cujo carácter racional se deve exprimir na correspondente motivação cfr. J. Rodrigues Bastos, Notas ao CPC, 3º, 3ªed. 2001, p.175.

Na verdade prova livre não quer dizer prova arbitrária, caprichosa  ou irracional.

Antes querendo dizer prova apreciada em inteira liberdade pelo julgador, sem obediência a uma tabela ditada externamente, posto que em perfeita conformidade com as regras da lógica e as máximas da experiência – cfr. Alberto dos Reis, Anotado, 3ª ed.  III, p.245.

5.1.2.

Não obstante há que ter em conta que as decisões judiciais não pretendem constituir verdades ou certezas absolutas.

Pois que às mesmas não subjazem dogmas e, por via de regra, provas de todo irrefutáveis, não se regendo a produção e análise da prova por critérios e meras operações lógico-matemáticas.

Assim: «a verdade judicial é uma verdade relativa, não só porque resultante de um juízo em si mesmo passível de erro, mas também porque assenta em prova, como a testemunhal, cuja falibilidade constitui um conhecido dado psico-sociológico» - Cfr. Ac. do STJ de 11.12.2003, dgsi.pt, p.03B3893.

 Acresce que a convicção do juiz é uma convicção pessoal, sendo construída dialeticamente, para além dos dados objetivos fornecidos pelos documentos e outras provas constituídas, nela desempenhando uma função de relevo não só a atividade puramente cognitiva mas também elementos racionalmente não explicáveis e mesmo puramente emocionais – AC. do STJ de 20.09.2004 dgsi.pt.

5.1.3.

O caso vertente.

Pretende a recorrente a alteração das respostas dadas oas artºs 6º, 7º e 8º da BI.

Rezam estes:

6º Os réus ocupam a construção aludida em C) a qual constitui uma dependência agrícola dos prédios aludidos em A) e B)?

7º … destinada a guardar alfaias e produtos agrícolas?

8º - O aludido em C) ocorre sem o consentimento nem a autorização do autor?

Respostas do tribunal – Provado.

A recorrente pugna pela não prova com base no auto de inspeção relativo ao local e pelo facto de, começando a renda por ser de 60 alqueires de milho, é, desde 2011, de 175 euros anual.

Já a julgadora decidiu considerando que: «do conjunto da prova produzida, resultou que a versão dos réus não teve acolhimento, porquanto o acordo que esteve  na base da cedência do gozo da parcela aludida em c) à ré B (...) e seu marido, apenas poderia ser um contrato de arrendaento rural, atento o carater predominantemente rustico da referida parcela e das construções nele implantadas.

Acresce que também a testemunha VE(...)… antes da ré B (...) e marido ali andou  com interesse é certo na construção para viver, pois os antepossuidores do autor não lhe cediam o gozo da casa, amanhando as terras e dali retirando produtos com que procedia ao pagamento das mesmas…»

Esta fundamentação é algo genérica e acrítica, pois que não se reporta  a cada facto concreto inserto  em cada artigo da BI, ou, ao menos a um núcleo factual homogéneo.

E não escalpeliza e analisa com acuidade, os depoimentos produzidos por reporte a cada facto ou núcleo factual.

Ela encontra-se, assim, no limiar da nulidade, a decretar nos termos do artº 662º nº2 al. d) do NCPC.

No entanto, atento o simples cerne da questão – arrendamento rural ou urbano – e o teor da prova produzida  - a qual não se alcança como extensa ou complexa -, bem como o cariz não essencial para a decisão da causa - como infra se verá, dos factos ora impugnados, considera-se este tribunal ad quem suficientemente habilitado para a apreciação do recurso, pelo que, numa postura condescendente e considerando princípios de economia e celeridade processual, assim diligenciará.

Apreciemos, então.

Resulta do auto de inspeção que a construção ocupada pela ré:

«1 –tem quatro compartimentos, um dos quais é utilizado para confeção das refeições, tendo chaminé interior de taipa/tabique e ainda uma laje de pedra no chão.

2 – Os demais compartimentos têm objetos de decoração e móveis, sendo um deles utilizado como quarto.

4 – Os compartimentos, exceto o compartimento utilizado para a confeção de refeições, têm como teto o soalho em madeira do forro.

5 –tem ainda escadas em madeira de acesso ao “forro” no qual se encontra uma cama.

10 – No exterior da habitação constata-se que a mesma é revestida de pedra (granito), tem uma porta exterior, duas janelas na fachada principal, uma janela na fachada lateral direita e duas janelas na parte lateral esquerda.

14 – A porta de entrada é de alumínio bem como as janelas, sendo estas de correr.

15 – O chão é em mosaico no compartimento utilizado para a confeção das refeições e soalho nos restantes compartimentos.»

(sublinhado nosso)

Perante estes factos é evidente que nos encontramos perante uma construção destinada a habitação.

O facto de não dispor de agua canalizada, de saneamento e de a eletricidade ser fornecida por uma habitação própria é completamente irrelevante.

Infelizmente, nestas condições, existem ainda centenas ou até milhares de construções  neste nosso Portugal e milhões por esse mundo fora.

E nem por isso se pode dizer que só podem servir para arrumos e não podem serem taxadas de habitações, lato sensu.

E é este o sentido que aqui importa considerar, isto é, tão somente o da construção enquanto local ou meio fechado no qual um ser humano «habita», ou seja, vive (por vezes é certo, mas é a triste realidade, sobrevive) e tem o seu centro de vida.

Pois que não são apenas as construções de luxo ou aquelas que têm todas as infraestruturas e comodidades inerentes a uma adequada e digna fruição, que podem ser classificadas de casas de habitação. As «outras», como a presente, também o devem ser.

E não relevando o sentido estrito, qual seja o da construção com cariz formal urbano com descrição e inscrição atinentes.

Muitos prédios  ou construções são clandestinos e nem por isto  podem deixar de ser classificados como “de habitação” se neles efetivamente “habitarem” pessoas, até porque pode verificar-se, e muitas vezes verifica-se, a sua reconversão e legalização.

 O que normalmente releva (deve relevar), e o caso não foge à regra, é, não tando a forma, mas antes a  substancia, a natureza, a essência das coisas.

Aliás esta ideia outrossim perpassou dos depoimentos das testemunhas, nomeadamente do VE(...), o qual disse que quando cultivou o terreno antes da ré e marido, ficou a viver numa casa velha que havia no mesmo.

Finalmente, e bem vistas as coisas, as respostas aos artºs 6º e 7º mostram-se contraditórias com a resposta conjunta dada aos artº 14º e 15º.

Pois que naquelas dá-se como provado que a construção fruída pela ré era para guardar alfaias e produtos, parecendo, assim,  que apenas com esta finalidade foi permitido o seu uso.

Mas já nesta resposta se dá como provado que, afinal, pelo menos «desde 1972, os antepossuidores do autor cederam o gozo à ré B (...) e seu marido da parcela aludida em 3) onde se inclui a construção também ai referida, composta por r/c com quatro compartimentos, dois destinados a quartos, um a sala e outro à confecção de refeições…onde a ré e seu marido instalaram a casa de morada de família, nela dormindo, confeccionando e tomando refeições, nela criou os filhos até à idade em que estes constituíram o seu lar, e ai recebendo amigos e correspondência à vista de toda a gente e sem oposição de ninguém.»

(sublinhado nosso)

A construção é a mesma, pelo que se já no tempo do VE(...) ela era uma casa onde ele habitou, e que depois foi atribuída à ré e seu marido com aquela configuração «com quatro compartimentos, dois destinados a quartos, um a sala e outro à confecção de refeições», não se compreende como se pode ter dado como provado que a construção era para alfaias e produtos agrícola.

Quanto ao artigo 8º a decisão também merece censura.

O que se pergunta é se tanto a ocupação do terreno como da construção ocorre sem o consentimento nem a autorização do autor.

Mas, na economia do objeto da causa, gizado pelas partes esta falta de permissão tem de reportar-se à data da ocupação  ou, ao menos, aos anos seguintes, e já não à atualidade.

Ora tal pretérita falta de consentimento e autorização não se provou.

Primeiro porque, nem de perto nem de longe,  o autor teve algo a ver com a entrada da ré e marido no prédio e casa, mas sim os antepossuidores dos prédios.

 Depois porque ele, ao longo dos autos – rectius na sua resposta -, acabou por admitir a existência de um contrato de arrendamento rural, o que, à partida, atribui legitimidade à ré para deter pelo menos o terreno e até, porque entende a construção como meramente para arrumos, esta própria; só que considera que o mesmo é ininvocável e ineficaz, por nulo devido a falta de forma legal.

Finalmente, e sintomaticamente, porque desde 2011 está a receber, ele mesmo, uma renda anual de 175 euros pela ocupação do terreno e da construção.

Destarte se concluindo pela bondade do recurso, neste particular, pelo que a matéria posta sub sursis e dada como provada não pode ser provada e atendida.

5..1.3.

Decorrentemente, os factos a considerar são os seguintes:

1 – Encontra-se inscrito na matriz o prédio rústico, sito na Quinta (...), freguesia e concelho de (...), com a área de 0,653500 (ha), composto de vinha, oliveiras e horta, habitação e dependência agrícola, a confrontar do norte com o próprio, do sul com (...), do nascente com (...) e do poente com (...), com o artigo 1881º, cuja titularidade se encontra inscrita a favor de A (...), conforme documento de fls. 10/11 dos autos, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido.

2 - Encontra-se inscrito na matriz o prédio rústico, sito na Quinta (...), freguesia e concelho de (...), com a área de 0,957000 (ha), composto de pinhal com eucaliptos, vinha e terreno de cultivo com culturas anuais, a confrontar do norte com (...) e herdeiros de (...), do sul com o próprio e (...), do nascente com caminho, do poente com (...), com o artigo 1880º, cuja titularidade se encontra inscrita a favor de A (...), conforme documento de fls. 12/13 dos autos, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido.

3 - Os réus ocupam há alguns anos uma parcela de cerca de 3.000 m2 que abrange os dois prédios aludidos em 1) e 2), nos termos assinalados na planta de fls. 14 dos autos, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido, ocupando ainda uma construção ali existente, onde a primeira e segundas rés vêm pernoitando, como se fosse uma casa de habitação.

4 - Do atestado médico de fls. 59 dos autos, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido, resulta que “ B (...) é portadora de sequelas de AVC sofrido em Março de 2008, apresentando disartria, hémiparésia direita, artrodese do joelho esquerdo, dificuldade muito acentuada da marcha e alterações cognitivas acentuadas”.

5 - O autor é dono e legitimo possuidor dos prédios aludidos em A) e B), sendo que, há mais de 20 e 30 anos que por si e pelos seus antepossuidores que vem agricultando, semeando e colhendo vinho, batatas e demais frutos, nos referidos prédios, fruindo-os e melhorando-os, o que sucede à vista de toda a gente, sem oposição de ninguém, ininterruptamente, na ignorância de lesar direitos de outrem e na convicção de em exclusivo exercer um direito próprio.

6 - …

7 - Em data não concretamente apurada os réus cortaram uma oliveira na parcela aludida em 3), sem autorização nem conhecimento do autor.

8 - Os réus, com excepção da primeira ré, quase diariamente estacionam os veículos e tractores na parcela aludida em 3), ou na entrada da mesma, dessa forma obstruindo e impedindo ao autor o livre acesso.

9 - Com o aludido em 3) e de 6) a 8) os réus vêm privando o autor da fruição da referida parcela e dependência agrícola, causando-lhe prejuízos em montante que em concreto ainda não é possível apurar.

10 - Desde data não concretamente apurada mas situada no ano de 1972, os antepossuidores do autor cederam o gozo à ré B (...) e seu marido da parcela aludida em 3) onde se inclui a construção também ai referida, composta por r/c com quatro compartimentos, dois destinados a quartos, um a sala e outro à confecção de refeições e sótão amplo, com um barracão com área que em concreto não foi possível apurar implantada no prédio aludido em 1), onde a ré e seu marido instalaram a casa de morada de família, nela dormindo, confeccionando e tomando refeições, nela criou os filhos até à idade em que estes constituíram o seu lar, e ai recebendo amigos e correspondência à vista de toda a gente e sem oposição de ninguém.

11 - Após o acordo aludido em 10), a ré B (...) e marido foram agricultando, a parcela de terreno cedida nos termos aludidos na resposta dada ao referido quesito, nela plantando além do mais, batatas, couves, nabos, tomates, alfaces, cenouras e outros mimos para consumo doméstico, colhendo os frutos das árvores, à vista de toda a gente e sem oposição de ninguém.

12 - O aludido em 10) e 11) ocorreu mediante o pagamento pela ré de 60 alqueires de milho por ano.

13 - Desde 2011 que o aludido em 12) foi substituído pelo pagamento da quantia de € 175,00 por ano géneros e quantias que a ré B (...) tem liquidado.

14 - A oliveira aludida em 7) era velha e seca.

15 - Em 1967 nos prédios aludidos em 1) e 2) existia a construção aludida em 3).

16 - O falecido marido da ré B (...), F(...), era agricultor.

17 - Apenas uma pequena parte da parcela aludida em 3), actualmente ainda está cultivada, nos termos aludidos em 11).

18- Na Conservatória do Registo Predial de (...) encontra-se descrito sob o n º 1996/20081119, da freguesia de (...), o prédio rústico, situado em Quinta (...), composto de vinha, horta e cultura com dependência agrícola, a confrontar do norte com H(...), do sul e poente com (...), do nascente com (...), inscrito na matriz sob o artigo 1881, nos termos já descritos no ponto 1) – conforme documento de fls. 250/251 dos autos, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido.

19 – Pela apresentação 16 de 19/11/2008, encontra-se registada a aquisição do prédio aludido em 18) a favor do autor, por doação.

20 - Na Conservatória do Registo Predial de (...) encontra-se descrito sob o n º 1489/20020509, da freguesia de (...), o prédio rústico, situado em Quinta (...), composto de pinhal com eucaliptos, vinha e cultura, a confrontar do norte com (...) e herdeiros de (...), do sul com H(...) e (...), do nascente com caminho e do poente com (...), inscrito na matriz sob o artigo 1880, nos termos já descritos no ponto 2) – conforme documento de fls. 252/253 dos autos, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido.

21 - Pela apresentação 16 de 19/11/2008, encontra-se registada a aquisição do prédio aludido em 20) a favor do autor, por doação.

5.2.

Segunda questão.

5.2.1.

Estatui o artº 1066º do CC, sob a epígrafe: «arrendamentos mistos»

1 – O arrendamento conjunto de uma parte urbana e de uma parte rústica é havido por urbano quando essa seja a vontade dos contraentes.

 2 – Na dúvida, atende-se sucessivamente, ao fim principal do contrato e à renda que os contraentes tenham atribuído a cada uma delas.

 3 – Na falta ou insuficiência de qualquer dos critérios referidos no número anterior, o arrendamento tem-se por urbano.

Vemos assim, que, contrariamente ao que pode transparecer da epígrafe do artigo, e que, assim, se mostra infeliz, a lei, quando o arrendamento  inclua uma parte urbana e uma parte  rústica,  não aceita a existência de dois arrendamentos distintos, ou de um arrendamento hibrido/misto.

Antes impondo apenas  a existência de um arrendamento, urbano, ou rural, que abranja as duas partes ou prédios e a cujo único regime elas terão, tendencialmente, de se sujeitar.

O que se compreende por virtude da simplificação do teor do negócio jurídico e da consequente facilitação da sua interpretação no que concerne, vg., à forma exigível, aos direitos e deveres das partes, às causas da sua cessação, etc.

O critério primeiro para definir qual o jaez do arrendamento que deve prevalecer é a vontade das partes.

Temos assim que se a vontade das partes for no sentido de taxar o arrendamento como urbano ou como rural ele assim de ser qualificado, independentemente do fim principal (de cariz urbano ou rural) a que ele se destinar.

Esta vontade deve ser adrede consignada, ou, expressa de um modo que inequivocamente ou, ao menos, sem dúvidas, demonstre que as partes quiseram o arrendamento como urbano ou como rural.

Pois que se esta dúvida existir, então tal vontade, como meio direto e imediato de revelação de um certo negócio jurídico, não relevará, e sendo então necessário chamar à colação os remanescentes critérios subsidiários.

 Se esta vontade não for alcançada, então, subsidiária/secundariamente, deve atender-se ao fim principal do contrato que os contraentes tenham atribuído a cada uma das partes.

Nesta particular importa reter que:

 «O fim principal e o subordinado do contrato de arrendamento misto …devem ser determinados por via da interpretação das declarações negociais das partes e das demais circunstâncias envolventes, essencialmente no confronto da lei substantiva vigente ao tempo da sua celebração.» - Ac. do STJ de 5.07.2007, p. 07B193 in dgsi.pt.

Efetivamente:

«A lei não atende ao carácter misto de algumas realidades: na perspectiva legal, o prédio é uma coisa composta, cuja qualificação depende da destinação económica do conjunto.

 O critério fundamental para classificar de rústico ou urbano o prédio formado por parte urbana e parte rústica é a prevalência da destinação económica, expressamente clausulada ou inferível das circunstâncias de facto que envolveram o negócio e se plasmam na quotidiana actuação do beneficiário do contrato com pluralidade de fins e na articulação desse contrato com os bens em si mesmos, configurados na sua interrelação.

Sendo a destinação essencial do prédio, no seu conjunto, que serve de fundamento à distinção entre prédio urbano e prédio rústico, o prédio será rústico ou urbano conforme a habitação for fundamentalmente um meio de ligação à terra cultivada, ou antes a terra constituir apenas um complemento da habitação e não um fim essencial da ocupação da habitação- Ac. do STJ de  6.07.2006, p. 06B1637 (sublinhado nosso)

Finalmente  e como critério subsidiário último, deve atender-se à renda que as partes tenham convencionado.

Ou seja,  e essencialmente, à  sua natureza – dinheiro, géneros ou dinheiro e géneros - à sua periodicidade – mensal ou anual.

Sendo que no arrendamento urbano a renda é fixada em dinheiro e paga mensalmente – artº 1075º do CC -  e no arrendamento rural a renda podia, até à entrada em vigor do DL 294/2009 de 13.10., ser fixada em dinheiro  ou dinheiro e géneros e é anual – artº 11º deste diploma.

Na falta ou insuficiência destes critérios, ou seja, se os mesmos não permitirem, mesmo dentro de uma dúvida razoável em direito admissível, concluir pelo arrendamento que deve prevalecer, a lei optou – e aqui assumiu uma preferência, quiçá por virtude de nele melhor serem consecutidas as referidas finalidades de simplificação e facilidade exegética – pela consideração do arrendamento como urbano.

5.2.2.

No caso vertente.

A Srª Juiza decidiu essencialmente com o seguinte discurso argumentativo:

«… logo em termos fiscais se manifesta a predominância do carácter rural do acordo em causa, pois a inscrição matricial do prédio aludido no ponto 1) da factualidade provada, demonstra que a construção que os réus passaram a possuir como sendo a sua casa de habitação é desprovida de autonomia matricial, não sendo de crer que as partes tenham pretendido celebrar dois negócios distintos, sujeitos a regimes diversos.

Acresce que, inexistindo, face à lei civil, prédios mistos, e encontrando-se a parte urbana omissa na matriz, não podemos falar de dois prédios distintos, pelo contrário, em causa está um único prédio…, com parte rústica e parte urbana, resultando implícita do referido acordo a subordinação do fim habitacional ao agrícola.»

Ainda que se corrobore a sua conclusão final,  entende-se que esta deve advir, mais por virtude dos invocados critérios formais nela aduzidos, de alicerces substanciais, oriundos de uma adequada interpretação dos factos apurados.

Desde logo cumpre dizer que o objeto do contrato incluiu uma parte rústica e urbana.

Na verdade: «entende-se por prédio rustico uma parte delimitada no solo e as construções nele existentes que não tenham autonomia económica, e por prédio urbano qualquer edifício incorporado no solo, com os terrenos que lhe sirvam de logradouro» - artº204º nº2 do CC.

Ora a construção que existe no terreno que é, ou foi, amanhado pela ré e marido foi-lhe entregue para a sua habitação. Logo é uma construção/edifício; e uma construção/edifício que tem um valor económico próprio: se a ré nela/e não habitasse teria de habitar noutra casa, com os inerentes custos.

 Depois e vistos os factos apurados, nada se pode concluir, via vontade das partes,  no sentido de qualificar o arrendamento celebrado como rural ou como urbano.

Na verdade as partes não manifestaram e plasmaram tal vontade em termos escritos e expressos, tendo anuído apenas verbalmente.

E inexiste qualquer elemento/facto nos autos que permita provar uma vontade que nos convença, só por si, direta, imediatamente e sem dúvidas,  sobre qual o tipo de arrendamento que as partes gizaram.

Restam-nos, então, os critérios subsidiários/secundários aludidos.

Assim e desde logo quanto ao fim principal.

Provou-se –ponto 10 – que  os antepossuidores do autor cederam o gozo à ré B (...) e seu marido da parcela aludida em 3) onde se inclui a construção também ai referida.

Desde logo, o modo como esta resposta foi dada, e contra a qual a ré não se insurgiu, só por si, inculca que o dado de arrendamento, a título essencial/principal, foi o terreno e não a construção.

Esta ideia é reforçada pelo facto de a área de 3000m2 da parcela não poder ser considerada -  máxime à data, 1972, em que havia uma grande procura de terra e toda ela era,  versus o que hoje sucede,  amanhada – de pouca monta ou minudente.

Antes se apresentando como uma área que, sendo de boa terra, se apresentava como suficiente para, numa época em que o setor agrícola ainda predominava na economia, prover à satisfação das necessidades básicas da ré e seu agregado familiar.

Pode assim concluir-se que o que a ré e seu marido,  primordial e essencialmente, pretendiam, era uma terra, então bem escasso, que provesse, em grande parte, ao seu sustento e da sua família.

Esta convicção é corroborada/alicerçada pelo facto de o marido da ré ser agricultor – ponto 16.

Por outro lado transparece dos autos e dos factos apurados – inexistência de saneamento, agua canalizada e eletricidade - que a (contingente e precária) habitabilidade da construção em causa resultou não de finalidade genética aquando da sua edificação, mas antes da adaptação de uma construção inicialmente erigida e desejada para outras e mais simples finalidades – vg. arrumos.

Pode assim concluir-se, na senda do Ac. do STJ de 6.07.2006  sup. cit.  que, in casu, o bem que as partes essencialmente perspetivaram e que se assumiu como o motivo determinante da celebração do contrato, foi a terra.

E alcandorando-se a fruição da construção como habitação, como meramente acessória ou complementar: se a construção já estava conformada, posto que incipientemente, a um uso habitacional, as partes, máxime a ré e marido, aproveitaram-na como tal.

E se algumas dúvidas restassem perante este critério, elas são dissipadas pela sua conjugação com o critério subsequente.

Efetivamente a renda acordada foi inicialmente apenas definida em géneros e satisfeita anualmente.

E mesmo quando em 2011 foi convertida em dinheiro, nem assim deixou de ser fixada com pagamento anual.

Nesta conformidade se  retirando a final conclusão de que o arrendamento deve qualificar-se como arrendamento rural.

E assim se mostrando acertada a subsunção jurídica operada na 1ª instância, a saber:

«Na data da celebração do referido acordo o arrendamento rural estava regulado nos artigos 1064º a 1082º do Código Civil, não estando sujeito a qualquer forma especial, de harmonia com o principio da liberdade de forma para as declarações negociais previsto no artigo 219º do mesmo diploma…

Com a entrada em vigor do DL 385/88 a partir de 1 de Julho de 1989, foi revogada a Lei 76/79 e todos os contratos de arrendamento rural, mesmo os pretéritos passaram a ter de ser reduzidos a escrito (artigo 36º).

O referido diploma veio a ser revogado pelo DL 294/2009 de 13 de Outubro, o qual no tocante à forma manteve os princípios que já existiam no domínio do DL 385/88, estabelecendo no artigo 6º que “1-Os contratos rurais são obrigatoriamente reduzidos a escrito. (…) 2 – A não redução a escrito dos contratos de arrendamento rural celebrados ou renovados na vigência do presente decreto-lei gera a sua nulidade”.

Por sua vez, estabelece o artigo 35º, n º 4 do citado diploma que “Nenhum acção judicial pode ser recebida ou prosseguir, sob pena de extinção da instância, se não for acompanhada de um exemplar do contrato, quando exigível, a menos que logo se alegue que a falta é imputável à parte contrária”…

A inexistência de contrato de arrendamento rural escrito tem como consequência a sua nulidade. Este regime constitui uma nulidade atípica, podendo tornar-se tal contrato válido se uma das partes exigir à contraparte a redução a escrito, sendo que, a parte que a isso se recusar não poderá invocar a nulidade sujeitando-se à sua validade.

Contudo, este regime especial, não impede que o Tribunal reconheça a existência da excepção dilatória prevista no artigo 35º, n º5 da LAR, julgando a extinção da instância.

Ora, no caso não obstante a invocação da nulidade, diremos que entendemos que a junção do contrato, ou na sua falta, a alegação de que a não junção do mesmo, não é imputável à parte que se pretende valer dele, é prévia à questão da nulidade, pelo que, não tendo os réus junto o contrato escrito, por o mesmo ser verbal, nem tendo alegado que tal não lhes é imputável, não poderão os pedidos reconvencionais prosseguir, julgando-se quanto a estes extinta a instância, nos termos do disposto no artigo 35º, n º5 do referido diploma, absolvendo-se o autor da instância relativamente aos mesmos»

O recurso, neste particular da inconsecução da restituição do prédio ao autor, teria, ex vi lege estrita, de improceder, pois que à ré falece título válido para a manutenção da posse do prédio.

Resta saber se a tal poderá obstar a procedência da válvula de segurança do sistema, a exceção do abuso de direito, a apreciar nos termos infra consignados.

5.3.

Terceira questão.

5.3.1.

Sabe-se que as normas jurídicas, enquanto gerais e abstratas disciplinam relações- tipo, que atendem ao comum dos casos.

Consequentemente, pode acontecer que um preceito legal, certo e justo para as situações normais, venha a revelar-se injusto na sua aplicação a uma hipótese concreta, por virtude das particularidades ou circunstâncias especiais que nela concorram: é o problema da fronteira, do “fio da navalha”, da dialética entre a justiça formal e a justiça material ou equidade.

Ora, o princípio do abuso de direito constitui uma válvula de escape do sistema, ditada pela consciência jurídica para obtemperar a algumas das consequências de injustiça clamorosa e iniquidade num certo caso concreto, advenientes da pura perspetivação e aplicação formal e rígida de normas legais.

O abuso de direito é pois um limite normativo ou interno dos direitos subjetivos – pelo que no comportamento abusivo são os próprios limites normativo – jurídicos do direito particular invocado que são ultrapassados – cfr. Castanheira Neves in Questão de facto e Questão de Direito, 526 e nota 46.

Pelo que há abuso de direito quando este, atento o circunstancialismo do caso concreto, é exercido de uma forma profundamente injusta e iníqua, com manifesto excesso ou desrespeito pelos limites axiológico-materiais da comunidade, de tal modo que o sentimento de justiça imanente à ordem jurídica, impõe a retirada do mesmo ou a responsabilização do titular.

Em suma, o direito não pode ser exercido arbitrária e exacerbada ou desmesuradamente, mas antes exercício de um modo equilibrado, moderado, lógico e racional.

Nesta conformidade dispõe o artigo 334º do CC:

É ilegítimo o exercício de um direito, quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito.

A conceção adotada neste conceito é a objetiva, não sendo, assim, necessária a consciência de que com a sua atuação se estão a exceder os apontados limites.

Importa é que o direito seja exercido em termos clamorosamente ofensivos da justiça atentas as conceções ou o sentimento ético-jurídico dominante na coletividade e os juízos de valor positivamente consagrados na lei- cfr.”- Vaz serra “in” Abuso de Direito no BMJ 85º/253 e Pires de Lima e Antunes Varela “in” CC Anotado, anotação ao referido artigo 334º

São várias as situações que podem fundamentar uma atuação em abuso de direito.

De entre as quais se destacam, paradigmaticamente:

a) exceptio doli; b) venire contra factum proprium; c) inalegabilidade de nulidades formais; d) supressio e surrectio; e) tu quoque; g) desiquilíbrio no exercício jurídico.- cfr. Menezes Cordeiro, Da Boa Fé no Direito Civil, p. 717.

5.3.2.

Ao caso em apreço, perspetivam-se apenas o venire contra factum proprium e a supressio e a possibilidade de as mesmas poderem fundamentar a inalegabilidade  por parte do autor da nulidade do contrato por falta de forma.

5.3.2.1.

O venire contra factum proprium traduz o exercício de uma posição jurídica em contradição com o comportamento assumido anteriormente pelo exercente. Esta contradição afere-se pelas regras da boa fé.

Parte-se de uma anterior conduta de um sujeito que, de per se considerada, é de molde a criar noutrém uma situação objetiva de confiança, ou seja, a convicção de que aquele sujeito jurídico se comportará, no futuro coerentemente com aquela conduta.

 E é necessário que, com base na situação de confiança criada, a contraparte tenha tomado disposições ou organizado planos de vida de que lhe resultarão danos se a sua confiança legítima vier a ser frustrada.

A supressio traduz-se no não exercício do direito durante um lapso de tempo de tal forma longo que crie na contraparte a representação de que esse direito não mais será exercido, conduzindo o exercício tardio a uma desvantagem injustificada para esta.

É uma forma de tutela da confiança do beneficiário, perante a inação do titular do direito, com as proposições seguintes: não exercício prolongado, uma situação de confiança, uma justificação para essa confiança, um investimento de confiança e a imputação da confiança ao não exercente - Menezes Cordeiro in Tratado de Direito Civil Português, Parte Geral, Tomo IV, p. 323 e 324.

A supressio consiste, assim, numa neutralização do direito, por não ter sido exercido durante muito tempo,  o que criou na contraparte uma fundada expectativa de que já não seria exercido, revelando-se, portanto, um posterior exercício manifestamente desleal e intolerável.

O tempo necessário depende das circunstâncias que, conjugadamente, contribuam para a formação do estado de confiança.

Tanto o venire como a supressio  pressupõem e radicam na rutura das expectativas de continuidade pela pessoa que, tendo criado no espaço jurídico uma imagem de não-exercício, rompa, de súbito, o estado gerado, e visam a tutela da confiança.

Mas, nesta, revela, fundamentalmente, o fator tempo e a circunstância de a conduta do titular do direito consistir tipicamente em um não agir, não sendo essencialmente a conduta contraditória – apesar de entre os dois comportamentos contraditórios decorrer sempre um lapso de tempo - do titular do direito que torna inadmissível o exercício de tal direito, mas antes o resultado a que o seu exercício tardio conduziria.

Ou seja, na supressio o tempo tem uma projeção de maior relevo: é pela sua continuidade que o não exercício suscita as expectativas, pessoais e sociais, de que o direito não será exercido.

5.3.2.2.

No atinente à influencia do abuso de direito , vg. por virtude do venire e da supressio, como fator impeditivo da declaração de nulidade importa ter presente o seguinte.

Certo é que:

«não é qualquer actuação que justifica o impedimento do exercício do direito de requerer a nulidade, antes e porque as regras imperativas de forma visam, por norma, fins de certeza e segurança do comércio em geral, só excepcionalmente é que se pode submeter a invocação da nulidade à invocação do venire contra factum proprium » - Ac. do STJ de 30/10/2003 p. 03B3125 in dgsi.pt.

Mas, por outro lado, urge atentar que:

«O abuso do direito pode ser reconhecido e declarado de modo a paralisar os efeitos da declaração de nulidade de contrato nulo por vício de forma (artigos 220.º e 334.º do Código Civil).

… para que assim seja, importa que a clamorosa injustiça que derivaria da declaração de nulidade se manifeste por um conjunto de factos que permitam concluir que o interessado nessa declaração gerou uma situação de confiança da qual é responsável, que o afastamento da declaração de nulidade não afecta os interesses de terceiros de boa fé e que o investimento de confiança é sensível, sendo dificilmente assegurado por outra via»  - s. Ac. do STJ de 26.05.2009, p. 81/04.8TBIDN.C1.S1 e demais arestos nele citados.

 Por outras palavras:

«Os efeitos da invalidade por vício de forma podem, apesar disso, ser excluídos pelo abuso de direito, mas sempre em casos excepcionais ou de limite, a ponderar casuisticamente, em que as circunstâncias apontem para uma clamorosa ofensa do princípio da boa fé e do sentimento geralmente perfilhado pela comunidade, situação em que o abuso de direito servirá de válvula de escape, tornando válido o acto formalmente nulo, como sanção do acto abusivo» - Ac. do STJ de 28.02.2012, p. 349/06.8TBOAZ.P1.S1.

Assim, para que a pretensão da declaração da nulidade ceda perante o abuso de direito, vg. , nas referidas modalidades, por norma, que se verifiquem os seguintes pressupostos:

a) ter a parte confiado em que adquiriu pelo negócio uma posição jurídica;

b) ter essa parte, com base em tal crença, orientado a sua vida por forma a tomar posições que ora são irreversíveis, pelo que a nulidade provocaria danos vultuosos, agora irremovíveis através de outros meios jurídicos;

 c) poder a situação criada ser imputada à contraparte, por esta ter culposamente contribuído para a inobservância da forma exigida, ou então ter o contrato sido executado e ter-se a situação prolongado por largo período de tempo, sem que hajam surgido quaisquer dificuldades - Cfr. Prof. Baptista Machado in “RLJ”, 118º-10/11, apud  Ac. de 28.02.2012.

Nesta conformidade é comummente aceite pelo nosso mais Alto Tribunal que tal cedência tem de verificar-se, ex vi do abuso de direito:

-  no caso do adquirente de imóvel que sabia estar arrendado verbalmente, reconhecendo o arrendatário como tal, mas que vem instaurar a ação pedindo a declaração de nulidade do contrato. - Ac. do S.T.J. de 2-11-2004 n.º 3311/04.

- no caso do arrendamento de prédio urbano por documento particular que perdurou por vários anos, por forma pacífica, considerando-se que a invocação da nulidade constituiria “ manifesto venire contra factum proprium. - Ac. do S.T.J. de 30-5-2006 , 1267/06 .

-  no caso em que foi cedida sem escritura pública uma parcela de terreno que veio a ser reivindicada mais tarde pela parte que anuíra em ceder essa parcela com a condição de lhe ser concedida autorização, que foi dada, para proceder a construção num determinado terreno, verificando-se que já anteriormente acordos idênticos tinham ocorrido entre as partes -  Ac. do S.T.J. de 17-4-2008 , p. 737/08.

-  no caso de invocação da nulidade por falta de redução a escritura pública do contrato de arrendamento que perdurou durante dezenas de anos e que é invocada no momento e por causa de o locador ter proposto acção de resolução do contrato de arrendamento; considerou-se que a invocação da nulidade reveste um perfil clamoroso de ofensa da justiça material que afecta a boa fé a lealdade negocial - Ac. do S.T.J. de 29-4-2008, p. 979/08.

-  no caso do locador que recebe rendas durante cerca de 25 anos de sociedades arrendatárias de que foi sócio, invocando a nulidade dos arrendamentos quando deixou de ser sócio. - Ac. do S.T.J. de 11-9-2008, p. 2019/08. 

5.3.2.3.

Postos os princípios, vejamos o caso concreto.

Atentos os factos provados e outros que, da sua sensata e sagaz interpretação, são deles necessárias ou lógicas decorrências, pode ter-se como assente, no que a esta questão tange, o seguinte acervo factual:

O arrendamento foi celebrado verbalmente numa época em que, mesmo assim, ele era válido.

A lei que posteriormente exigiu a forma escrita mais facilmente seria do conhecimento dos senhorios do que da ré e seu marido, pessoas que se indiciam simples e de conhecimentos incipientes ou precários.

E, não obstante, aqueles não diligenciaram por cumprir e respeitar a forma legal. Quiçá porque tal situação se apresentava para eles mais flexível se quisessem por termo ao contrato.

E assim decorreram anos, décadas.

Tendo, neste larguíssimo ínterim, o autor e os seus antecessores  aceitado receber as rendas anuídas.

Sem nunca terem, pelo menos formalmente, intimado para a cessação do contrato.

Assim, a ré e seu marido amanharam o terreno, viveram na casa, criaram os filhos, e nela tiveram o seu centro de vida, assumindo as suas vivencias e criando e sedimentando os seus relacionamentos humanos e sociais.

Os anos passaram e já lá vão 42 (quarenta e dois), desde o início do contrato.

Entretanto o marido da ré faleceu e esta permaneceu na habitação.

O ser humano é um animal de hábitos e adapta-se às condições mais difíceis.

A ré que sempre habitou naquela casa, no seu próprio ambiente, com o seu modus vivendi  e com a sua liberdade, não quis, não obstante as parcas condições da mesma, mudar-se, vg. para junto dos filhos.

E confiou, dada a postura - inercia, porventura eivada de alguma condescendência - do autor e seus antecessores, que ali poderia acabar os seus dias, com a ajuda dos descendentes.

A ré tem mais de 80 anos. É uma pessoa doente.

A mudança forçada ex vi da cessação do contrato, acarretaria para ela despesas.

 E, acima de tudo, acarretaria, ou poderia acarretar, o agravamento do seu estado de saúde, ao menos a nível psico-somático.

Pois que muito provavelmente, iria viver para um meio onde, por motivos vários: físicos, funcionais,  psíquico-emocionais, humano-sociais,  não se integraria.

A adaptação e a aculturação demora o seu tempo. E o tempo da ré já é escasso.

Utilizando uma expressão que hoje – por más razões - está na moda, sofreria os latos prejuízos advenientes da saída forçada da sua “zona de conforto”.

Mas tal saída - atenta a inação do autor e seus antecessores, a ação do benéfico recebimento da renda, o largo lapso de tempo em que tal sucede, as expectativas com tal omissão/ação criadas para a ré, e a sua proveta idade e estado de saúde -, não lhe é exigível.

A ré tem  pois o direito de permanecer no local onde permaneceu mais de metade da sua já longa existência.

Isto porque o autor está a agir com abuso do seu próprio direito.

Quer por virtude do venire, quer por força da supressio, nos termos supra plasmados.

Na verdade, a presente pretensão do demandante frustra, intoleravelmente, quer na perspetiva pessoal, quer na vertente humana e social, as legítimas expectativas da autora, sedimentadas ao longo de décadas, de terminar os seus dias no meio envolvente onde, essencialmente, se realizou – com as vicissitudes da vida - enquanto cidadã, esposa, mãe e avó.- neste sentido, cfr. Ac. do STJ de 11.01.2011, p. 627/06.7TBAMT.P1.

Efetivamente, às gerais e abstratas razões e valores de certeza e segurança pretendidos com a redução do contrato a escrito – as quais não se provou terem sido frustradas ou ofendidas, vg. com prejuízo das partes ou de terceiros, pelo mero verbalismo do contrato - sobrepõem-se as concretas razões da ré, não apenas nestas vertentes da certeza e segurança, como outrossim, na mais ponderosa e substancial perspetiva, nos termos sobreditos.

E visto o assim ora decidido que justifica a posse dos prédios pelos réus bem como a não prova dos factos dos artºs 6º a 8º  da BI, falece a relevância dos restantes factos nos quais a julgadora se alicerçou para condenar os demandados em indemnização a concretizar em incidente de liquidação.

Efetivamente, e quanto aos factos  vertidos nos pontos 7 e 8 dos factos provados – corte de uma oliveira e estacionamento de veículos - os mesmos apenas relevariam ex vi da inexistência de contrato eficaz, o que não é o caso.

Sendo o contrato eficaz, tais factos são irrelevantes, ou, no mínimo, insuficientes, pois que eles são admissíveis no âmbito da fruição e administração do locado operada pelos réus, e o autor não aduziu outros que, por si ou concatenados com aqueles, clamem conclusão diversa.

5.4.

Quarta questão.

5.4.1.

A redação dada ao artº 456º do CPC pelo DL 180/96 de 25/09, alargou o âmbito da aplicação do instituto da litigância de má fé, pois que nele abarcou não apenas os casos de atuação dolosa como também os de atuação gravemente negligente.

Sendo que, inclusive, e como se plasma no preâmbulo de tal diploma: «Como reflexo do princípio da cooperação e dos deveres que lhe são inerentes, permite-se, sem quaisquer limitações, a condenação como litigante de má fé da própria parte vencedora, desde que o seu comportamento processual preencha alguma das previsões contidas no nº2 do artº 456º…»

Tal alargamento teve, naturalmente, em vista, restringir os casos de litigância temerária, pretendendo incutir nas partes a necessidade de uma sã atitude processual, pautada e norteada por uma actuação o mais clara e linear possível, sem subterfúgios, truques e mentiras.

É necessário que o exercício do direito seja sincero, que a parte esteja convencida da justiça da sua pretensão. Quando falta este requisito, o acto passa a ter o carácter de ilícito. Estamos então perante um ilícito processual, a que corresponde ou uma sanção civil e uma sanção penal (multa).

E sendo certo que a jurisprudência era amplamente magnânima na condenação a tal título, criou-se uma convicção de impunidade que levava a colocar ou a contestar em juízo casos de total insustentabilidade, ou, pior, distorcidos ou falseados na sua génese factual.

Com os inerente prejuízos para o sistema da justiça e, outrossim, para os próprios sujeitos processuais vítimas de tal atuação.

Importa, pois, na sequência do atual desígnio legislativo, impor uma cultura de rigor nesta matéria, com os inerentes benefícios, a todos os títulos e níveis, dai advenientes.

5.4.2.

Não obstante há que apreciar e decidir com as cautelas e precauções necessárias.

Pois que, não obstante se concordar que cada vez mais as partes usam e abusam dos seus (por vezes pretensos) direitos, litigando temerariamente e agindo de má fé, substantiva e processualmente, o certo é que os tribunais devem ser prudentes na condenação a este título, porque tal implica não apenas uma censura e afetação económico-financeira a nível processual, como um desmerecimento a nível pessoal marcante e inquinador da honestidade e probidade presumivelmente insertas na esfera jurídica pessoal do normal cidadão - cfr. Ac. do STJ de 15.10.2002, dgsi.pt,p.02A2185.

Tal prudência e cautela é ainda necessária para evitar condenações injustas, designadamente quando assente em provas, como a testemunhal, cuja falibilidade constitui um conhecido dado psico-sociológico. 

Assim, para a condenação como litigante de má fé não basta a simples impugnação per positionem da versão de uma das partes sempre que a versão oposta à alegada seja provada. Nem pode confundir-se com a manifesta improcedência da pretensão ou oposição deduzida.

O fundamento ético do instituto exige que se conclua por um desrespeito pelo tribunal, pelo processo e pela justiça, imputável subjetivamente ao litigante a título de dolo ou de negligência grave, ou seja, que tenha havido uma alteração consciente e voluntária da verdade dos factos (dolo) ou uma culpa grave (culpa lata), que não se basta com qualquer espécie de negligência, antes se exigindo a negligência grave, grosseira (a faute lourde do direito francês ou a Leichtfertigkeit do direito alemão) -  Ac. da Relação do Porto de 20.10.2009, p. 30010-A/1995.P1 e do STJ de 28.05.2009, p.09B0681.

Tendo-se, outrossim, em consideração que, como referido na sentença, dada a relatividade da verdade judicial decorrente, designadamente, das várias interpretações e correlativas soluções jurídicas que podem incidir sobre um determinado complexo factual «a ousadia de uma construção jurídica julgada manifestamente errada não revela, por si só, que o seu autor a apresentou como simples cortina de fumo da inanidade da sua posição processual…» - Ac. do STJ de 11.12.2003, dgsi.pt, p.03B3893.

5.4.3.

In casu constata-se que o autor instaurou a ação no pressuposto de que os réus não tinham qualquer título para fruírem dos prédios.

E verifica-se que, em função da contestação da ré, acabou por admitir a existência de um contrato verbal de arrendamento rural, invocando, porém, a sua nulidade por falta de forma legalmente exigida.

Destarte, alcança-se, desde logo, e usando  aforismos populares  que “o autor não abriu o jogo todo” ou, noutra perspetiva, “deitou o barro à parede para ver se pegava”; ou seja, ele agiu menos linear e frontalmente, e mais meandrosa e sub-repticiamente.

Posteriormente,  invocado pela ré  na contestação/reconvenção o pagamento, ao autor, da renda de 175 euros, e recorrendo mais uma vez à sabedoria popular, o autor “fechou-se em copas”, ie. disse nada. E, no rigor dos princípios e em abono da verdade e da transparência, devia ter dito.

Depois, e confrontado em audiência com os cheques que foram emitidos em seu nome e benefício, tenta jogar com a data da sua emissão e a data da propositura da ação.

 No entanto, e bem escalpelizadas as coisas, a posição minimalista e algo omissiva da posição do demandante na pi é ainda estratégia processual admissível.

Na verdade, em tese geral, de que o caso não constitui exceção, cumpre ao réu, na contestação, desmontar, completar ou aclarar o cerne da questão em abono da sua defesa.

Depois e no atinente ao pagamento da renda em dinheiro verifica-se que tal foi anuído ainda entre a ré e o pai do autor.

E, por outro lado, importa reter, em benefício do autor, que a ré invoca o pagamento da renda como atinente a um contrato de cariz urbano, enquanto que o autor pugnou sempre pela inexistência de tal contrato, mas antes, e quando muito, de um contrato de natureza rural. O que efetivamente foi aceite pelo tribunal.

Verifica-se, pois, uma discrepância de posições das partes  a qual, ao longo do processo, foi fator de dúvida sobre se e a que título o autor recebeu o montante de 175 euros.

 E o facto de se ter provado que foi recebido, essencialmente por decorrência de um contrato de arrendamento rural - como, em última análise se pode inferir que o autor aceitou -, em vez de um contrato habitacional de jaez urbano, como sempre pugnou a ré, de algum modo e pelo menos em parte, pode ser aceite como causa justificativa para a posição menos frontal e aberta assumida pelo autor.

 Em suma, a litigância do autor efetivou-se  na fronteira, no fio da navalha, da litigância dolosa, ou, ao menos, da litigância intoleravelmente temerária.

No entanto, tudo visto e ponderado, numa postura algo complacente/ condescendente e na perspetiva de que esta opção – ainda possível dentro da álea existente no âmbito e âmago do prudente arbítrio e do juízo equitativo do julgador – contribua para uma solução mais abrangente e consensual entre as partes, conclui-se pela não subsunção da conduta do autor na previsão da citada norma.

Procede, em parte, mas na sua essencialidade relevante, o recurso.

6.

Sumariando:

I - Se se dá como provado que uma construção foi arrendada, conjuntamente com um terreno, já dividida em quatro compartimentos, dois destinados a quartos, um a sala e outro à confeção de refeições, e que nela a ré passou a viver e a ter o seu centro de vida, não pode dar-se como provado  que tal construção se destinava à guarda de alfaias e produtos agrícolas.

II - A classificação do arrendamento – rural ou urbano -  sobre um prédio com parte rustica e urbana, depende,  primo conspetu e independentemente da composição e valor de tais partes, da vontade dos outorgantes; e, na falta ou insuficiência desta, sucessivamente, da finalidade principal anuída, ou dos termos e condições da renda fixada – artº 1066º do CC.

III – Devendo assim, e à mingua da emergência de tal vontade, taxar-se de rural o arrendamento verbal celebrado em 1972 atinente a uma parcela de 3000m2, por um agricultor e sua mulher e no qual a renda foi fixada em 60 alqueires de milho, por ano, não obstante o casal ter ficado a habitar numa construção do terreno adaptada para o efeito e sem saneamento, agua canalizada e eletricidade.

IV - O abuso de direito, vg. nas modalidades do venire e/ou da supressio, pode determinar a inalegabilidade  da nulidade do contrato  de arrendamento por falta de forma; o que se verifica no caso em que o contrato dura mais de 40 anos, os senhorios sempre receberam a renda, nunca instaram formalmente a locatária para deixarem os prédios, e esta tem mais de 80 anos, é doente e sempre teve o seu centro de vida nos mesmos.

V - Considerando que a condenação por má fé implica não apenas uma afetação económico-financeira, como um desmerecimento a nível pessoal, marcante e inquinador, o convencimento sobre a verificação da mesma implica uma prova mais acutilante e inequívoca – por reporte à prova da generalidade dos factos -  a qual, assim, alcandore a uma convicção de certeza ou quase certeza.

7.

Deliberação.

Termos em que se acorda conceder parcial provimento ao recurso e, consequentemente:

- revogar a sentença na parte em que condenou os réus a  não entrarem nos prédios aludidos nos pontos 1) e 2), nem estorvarem a posse do autor, restituindo-lhe a parcela aludida em 3) que ocupam, livre e devoluta e  a pagarem ao autor uma indemnização pelos prejuízos causados, a apurar em futura liquidação.

-Declarar a convalidação do contrato de arrendamento rural verbal celebrado e atinente aos prédios em causa, com as legais consequências.

-Absolver o autor do pedido de litigância de má fé.

Custas pelas partes na proporção de 90% para o autor e 10% para os réus.

Coimbra, 2014.03.25

Carlos Moreira (Relator)

Anabela Luna de Carvalho

João Moreira do Carmo