Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
2267/18.9T8LRA.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: PAULA MARIA ROBERTO
Descritores: ACIDENTE DE TRABALHO
ACIDENTE PROVENIENTE DO TRABALHADOR
DESCARACTERIZAÇÃO
REPARAÇÃO
Data do Acordão: 12/06/2019
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE LEIRIA – JUIZO DO TRABALHO DE LEIRIA – JUIZ 2
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTº 14º DA LAT - LEI 98/2009, DE 4/09.
Sumário: 1. Conforme resulta do art. 14.º da LAT, não há lugar à reparação quando o acidente provier de ato ou omissão do sinistrado, que importe violação, sem causa justificativa, das condições de segurança estabelecidas pelo empregador ou previstas na lei.

2. Se o sinistrado, com vista à colocação do sem-fim em funcionamento, removeu o cadeado da consignação do interruptor de corte de corrente do mesmo existente no exterior que colocou em “on”; por telemóvel solicitou à sala de controle de fornos que desbloqueasse o alarme e colocasse o sem-fim em funcionamento e de forma voluntária voltou a entrar no interior do eletrofiltro onde foi colhido por aquele, sendo certo que o mesmo sabia que não podia entrar ou permanecer no interior do equipamento com o sem fim em funcionamento, o que resultava da ficha de procedimento de segurança específica elaborada pela empregadora, encontram-se preenchidos todos os requisitos de que depende a descaracterização do acidente.

Decisão Texto Integral:









Acordam[1] na Secção Social (6.ª secção) do Tribunal da Relação de Coimbra:

I - Relatório

S..., viúva, por si e em representação dos filhos menores:

V...,

B... e

L..., todos residentes em ...,

com o patrocínio do Ministério Público,

intentaram a presente ação especial de acidente de trabalho contra

Z..., com sede em Lisboa

alegando, em síntese, que:

O sinistrado, casado com a A. e pai dos restantes, foi vítima de um acidente do qual resultaram lesões que foram causa direta e necessária da sua morte e o acidente ocorreu nas instalações da entidade patronal quando o sinistrado procedia à operação de voltar a colocar o sem–fim em funcionamento para remover o pó aí acumulado.

Termina pedindo:

“Que o acidente seja reconhecido e declarado como acidente de trabalho e, consequentemente, seja a Ré Seguradora condenada a pagar:

1 –À Autora S...:

- a pensão anual e vitalícia no valor de €3.781,81, com inicio a 16-06-2018, dia imediato ao morte, calculada com base em 30% da retribuição do sinistrado, nos termos do artº 59º, nº 1 al. a) e 75º nº 1, da Lei 98/2009 de 04 de Setembro, a pagar no seu domicílio nos termos legais – em duodécimos no valor de 1/14 da pensão, sendo os subsídios de férias e de Natal, também no valor de 1/14 da pensão anual, a pagar nos meses de Junho e Novembro, respetivamente, (artº 72º nº 1 e 2 da Lei 98/2009 de 04/09).

- a quantia de €2.355,50, referente a subsídio de despesas de funeral, nos termos do artº 66º, n.º 2, da Lei 98/2009 de 04/09.

- a quantia de €20,00, referente a despesas com deslocações obrigatórias a este Tribunal.

2 - A cada um dos filhos do sinistrado...:

- A pensão anual e temporária, no valor de €2.101,00, com início em 16-06-2018, dia imediato ao da morte, calculada com base em 50% da retribuição do sinistrado, nos termos do artº 60º nº 1 e 2 da da Lei 98/2009 de 04 de Setembro , pensão devida até que os mesmos atinjam os 18 anos, ou até aos 22 ou 25 anos de idade, enquanto frequentarem respetivamente, o ensino secundário/curso equiparado ou curso superior / equiparado (artº 60º, n.º 1, da LAT) e paga em duodécimos no valor de 1/14 da pensão, sendo os subsídios de férias e de Natal, também no valor de 1/14 da pensão anual, a pagar nos meses de Junho e Novembro, respetivamente, (artº 72º nº 1 e 2 da Lei 98/2009 de 04/09).

3- Á Autora e aos filhos ...:

- a quantia de €5.561,14 referente a subsídio por morte, na proporção de metade para a viúva e metade para os três filhos, nos termos do artº 65 nº 1 e 2º al. a) da Lei 98/2009 de 04/09.

- juros de mora á taxa legal sobre quantias em dívida desde 16-06-2018, até integral pagamento;”

            A Ré contestou alegando, em sinopse, que:

O acidente a que se reportam os autos não dá direito a reparação, porquanto, ocorreu por violação por parte do sinistrado, e sem causa justificativa, das condições de segurança previstas na lei e estabelecidas pelo seu empregador; o acidente ocorreu apenas porque o sinistrado, apesar de ter efetuado os procedimentos para colocar o equipamento em funcionamento, abriu uma porta, subiu até à mesma, colocou os pés no interior do electrofiltro e foi colhido pelo sem-fim em funcionamento; o sinistrado teve formação sobre os riscos concretos e foi-lhe entregue uma ficha de procedimento de segurança específica para a realização dos trabalhos de limpeza do electrofiltro.

Termina, dizendo que a presente ação deve ser julgada improcedente e não provada e a Ré absolvida do pedido, com todas as consequências legais.

                                                             *

Foi proferido o despacho saneador de fls. 187 e segs.; selecionada a matéria assente e elaborada a base instrutória.

Procedeu-se a julgamento, conforme consta da respectiva ata.

Foi, depois, proferida sentença de cujo dispositivo consta:

Atentos os fundamentos expostos e as normas legais citadas, decide-se julgar improcedente a presente acção para a efectivação de direitos resultantes de acidente de trabalho e, em consequência, absolve-se a Ré “Z...” dos pedidos contra si formulados pelos Autores...

Os AA., notificados desta sentença, com o patrocínio do Ministério Público, vieram interpor o presente recurso formulando as seguintes conclusões:

...

A Ré respondeu ao recurso, alegando, em conclusão:

...

  Colhidos os vistos, cumpre, agora, apreciar e decidir.

  II – Saneamento

A instância mantém inteira regularidade por nada ter entretanto sobrevindo que a invalidasse.

  III – Fundamentação

a) Factos provados constantes da sentença recorrida:

...

b) - Discussão

Como é sabido, a apreciação e a decisão dos recursos são delimitadas pelas conclusões da alegação do recorrente (art.º 639.º, n.º 1, do CPC), salvo as que são de conhecimento oficioso.

Cumpre, então, conhecer as seguintes questões suscitadas pelos AA. recorrentes:

1ª – Reapreciação da matéria de facto.

2ª – Se o acidente dos autos não deve ser descaracterizado por força do disposto na alínea a) do n.º 1 do artigo 14.º da LAT.

1ª questão:

Reapreciação da matéria de facto

...

Desta forma, não assiste qualquer razão aos recorrentes na sua pretensão de ver dado como provado apenas: que o sinistrado foi encontrado sendo colhido e puxado pelo sem fim em funcionamento.

Assim sendo, impõe-se concluir que, para além dos factos supra descritos de 12 a 14, provou-se que: o sinistrado voltou a entrar no interior do eletrofiltro, tendo sido colhido pelo sem-fim em funcionamento.

Pelo exposto, o ponto 15 da matéria de facto provado deve passar a ter a seguinte redação:

15 – O sinistrado voltou a entrar no interior do eletrofiltro, tendo sido colhido pelo sem-fim em funcionamento.

Procede, assim, em parte, a pretendida alteração da matéria de facto.

2ª questão:

Se o acidente dos autos não deve ser descaracterizado por força do disposto na alínea a) do n.º 1 do artigo 14.º da LAT.

Alegam os recorrentes que “em face dos factos provados, impõe-se a conclusão de que muito pouco se apurou relativamente ao acidente, podendo construir-se, perante o que apenas está provado, relativamente às circunstâncias em que ocorreu o acidente, às suas causas, às razões pelas quais o sinistrado entrou no espaço onde estava o sem-fim, às concretas circunstâncias que possibilitaram que o sinistrado tivesse sido apanhado pelo sem-fim, uma multiplicidade de hipóteses, sendo, por conseguinte, os factos provados, insuficientes para se poder concluir pela descaraterização do acidente, nos termos do artº 14º, nº 1 al. a) e 2, da Lei 98/2009, de 4/09.”; (…) “É manifesto que não existem factos suficientes para se poder responder a uma série de questões essenciais e indispensáveis para se pode compreender todas as circunstâncias que envolveram o acidente (tais como: “que motivos levaram o sinistrado a entrar no local onde estava o sem-fim ?”; “entrou com o sem-fim inativo ou em funcionamento?”; “em que momento e local comunicou, via telemóvel com o funcionário da sala de controle de fornos para que fosse desbloqueado o sem-fim?”; “em que momento foi o sinistrado colhido e puxado pelo sem-fim ?”; “o que efetivamente aconteceu nos imediatos momentos que precederam o acidente e tornaram a sua ocorrência possível ?), (…).

Antes de mais, cumpre dizer que a pretendida alteração da matéria de facto no sentido de que o sinistrado foi encontrado sendo colhido e puxado pelo sem fim em funcionamento não obteve provimento.

Antes se apurou, além do mais, que o sinistrado voltou a entrar no interior do eletrofiltro, tendo sido colhido pelo sem-fim em funcionamento.

Quanto ao mais, a este propósito consta da sentença recorrida o seguinte:

3 – Não obstante, mesmo considerando que estamos em presença de um acidente de trabalho, este pode ser “descaracterizado” nos termos do art.º 14.º da Lei n.º 98/2009, não conferindo, nesse caso, o direito a reparação.

De acordo com o que dispõe o art.º 14.º da citada Lei:

“1 – O empregador não tem de reparar os danos decorrentes do acidente que:

a) For dolosamente provocado pelo sinistrado ou provier de seu acto ou omissão, que importe violação, sem causa justificativa, das condições de segurança estabelecidas pelo empregador ou previstas na lei;

(…)

2 – Para efeitos do disposto na alínea a) do número anterior, considera-se que existe causa justificativa da violação das condições de segurança se o acidente de trabalho resultar de incumprimento de norma legal ou estabelecida pelo empregador da qual o trabalhador, face ao seu grau de instrução ou de acesso à informação, dificilmente teria conhecimento ou, tendo-o, lhe fosse manifestamente difícil entendê-la.

(…)”.

Sobre os requisitos previstos na alínea a) do n.º 1 da norma citada tem-se pronunciado o STJ e já na vigência da actual lei (Lei 98/2009) decidiu que “A descaracterização do acidente (de trabalho) prevista na alínea a) do nº 1 do art.º 14.º da NLAT (Lei nº 98/2009, de 4 de Setembro), exige a conjugação cumulativa dos seguintes requisitos: a existência, por um lado, de condições de segurança e o seu desrespeito por parte do destinatário/trabalhador; em actuação voluntária, embora não intencional, por acção ou omissão, e sem causa justificativa; por outro lado, impõe-se que o acidente seja consequência, em termos de causalidade adequada, dessa conduta” – Acórdão de 19.11.2014, publicado na CJ/2014, acórdãos do STJ, tomo 3, p. 273.

Em comentário à mesma norma, mas da anterior LAT (art.º 7.º, alínea a)), Carlos Alegre afirma que o acidente só não dá direito à reparação, se se verificarem, cumulativamente, as seguintes condições:

«1.º Que sejam voluntariamente violadas as condições de segurança, exigindo-se, aqui, a intencionalidade ou dolo, na prática ou omissão, o que exclui as chamadas culpas leves, desde a inadvertência, à imperícia, à distracção, esquecimento ou outras atitudes que se prendem com os actos involuntários, resultantes ou não da habituação ao risco;

2.ª Que a violação das condições de segurança sejam sem causa justificativa (do ponto de vista do trabalhador), o que passa pelo claro conhecimento do perigo que possa resultar do acto ou omissão: a causa justificativa não tem que ter um carácter lógico ou normal em relação à actividade laboral, pode ser uma brincadeira a que não se associam consequências danosas, uma inadvertência ou momentânea negligência, uma imprudência ou mesmo um impulso instintivo ou altruísta.

3.ª Que as condições de segurança sejam, apenas, estabelecidas pela entidade patronal (em regulamento de empresa, ordem de serviço ou outra forma de transmissão.» - Acidentes de Trabalho e Doenças Profissionais – Regime Jurídico Anotado, 2.ª edição, p. 61.

A Ré sustentou que o acidente de trabalho ocorreu por causa da actuação do próprio Sinistrado, o qual por sua exclusiva e livre iniciativa, decidiu violar as regras de segurança impostas pela entidade empregadora, e que conhecia.

De facto, face aos graves problemas sociais que a ocorrência de acidentes de trabalho acarretava, desde há muito, que constitui uma grande preocupação do legislador a necessidade de estabelecer regras de segurança dos trabalhadores nos seus locais de trabalho com vista à redução do número de acidentes e das suas consequências gravosas.

As prescrições legais de segurança e saúde no trabalho, visando promover a segurança e saúde dos trabalhadores, impõem deveres ao empregador, conforme preceitua o art.º 15.º da Lei n.º 102/2009, de 10/9, na redacção em vigor, diploma que consagra o regime jurídico da promoção da segurança e saúde no trabalho, e donde consta o seguinte:

“1 - O empregador deve assegurar ao trabalhador condições de segurança e de saúde em todos os aspectos do seu trabalho.

2 - O empregador deve zelar, de forma continuada e permanente, pelo exercício da actividade em condições de segurança e de saúde para o trabalhador, tendo em conta os seguintes princípios gerais de prevenção:

a) Evitar os riscos;

b) Planificar a prevenção como um sistema coerente que integre a evolução técnica, a organização do trabalho, as condições de trabalho, as relações sociais e a influência dos fatores ambientais;

c) Identificação dos riscos previsíveis em todas as atividades da empresa, estabelecimento ou serviço, na conceção ou construção de instalações, de locais e processos de trabalho, assim como na seleção de equipamentos, substâncias e produtos, com vista à eliminação dos mesmos ou, quando esta seja inviável, à redução dos seus efeitos;

d) Integração da avaliação dos riscos para a segurança e a saúde do trabalhador no conjunto das atividades da empresa, estabelecimento ou serviço, devendo adotar as medidas adequadas de proteção;

e) Combate aos riscos na origem, por forma a eliminar ou reduzir a exposição e aumentar os níveis de proteção;

f) Assegurar, nos locais de trabalho, que as exposições aos agentes químicos, físicos e biológicos e aos fatores de risco psicossociais não constituem risco para a segurança e saúde do trabalhador;

g) Adaptação do trabalho ao homem, especialmente no que se refere à conceção dos postos de trabalho, à escolha de equipamentos de trabalho e aos métodos de trabalho e produção, com vista a, nomeadamente, atenuar o trabalho monótono e o trabalho repetitivo e reduzir os riscos psicossociais;

h) Adaptação ao estado de evolução da técnica, bem como a novas formas de organização do trabalho;

i) Substituição do que é perigoso pelo que é isento de perigo ou menos perigoso;

j) Priorização das medidas de proteção coletiva em relação às medidas de proteção individual;

l) Elaboração e divulgação de instruções compreensíveis e adequadas à atividade desenvolvida pelo trabalhador.

3 - Sem prejuízo das demais obrigações do empregador, as medidas de prevenção implementadas devem ser antecedidas e corresponder ao resultado das avaliações dos riscos associados às várias fases do processo produtivo, incluindo as atividades preparatórias, de manutenção e reparação, de modo a obter como resultado níveis eficazes de proteção da segurança e saúde do trabalhador.

4 - Sempre que confiadas tarefas a um trabalhador, devem ser considerados os seus conhecimentos e as suas aptidões em matéria de segurança e de saúde no trabalho, cabendo ao empregador fornecer as informações e a formação necessárias ao desenvolvimento da atividade em condições de segurança e de saúde.

5 - Sempre que seja necessário aceder a zonas de risco elevado, o empregador deve permitir o acesso apenas ao trabalhador com aptidão e formação adequadas, pelo tempo mínimo necessário.

6 - O empregador deve adotar medidas e dar instruções que permitam ao trabalhador, em caso de perigo grave e iminente que não possa ser tecnicamente evitado, cessar a sua atividade ou afastar-se imediatamente do local de trabalho, sem que possa retomar a atividade enquanto persistir esse perigo, salvo em casos excecionais e desde que assegurada a proteção adequada.

7 - O empregador deve ter em conta, na organização dos meios de prevenção, não só o trabalhador como também terceiros suscetíveis de serem abrangidos pelos riscos da realização dos trabalhos, quer nas instalações quer no exterior.

8 - O empregador deve assegurar a vigilância da saúde do trabalhador em função dos riscos a que estiver potencialmente exposto no local de trabalho.

(…)”

Por outro lado, as prescrições legais de segurança e saúde no trabalho, também impõem deveres aos trabalhadores, como decorre do art.º art.º 17.º desse diploma. Assim, de acordo com este normativo:

“1 – Constituem obrigações do trabalhador:

a) Cumprir as prescrições de segurança e de saúde no trabalho estabelecidas nas disposições legais e em instrumentos de regulamentação colectiva de trabalho, bem como as instruções determinadas com esse fim pelo empregador;

b) Zelar pela sua segurança e pela sua saúde, bem como pela segurança e pela saúde das outras pessoas que possam ser afectadas pelas suas acções ou omissões no trabalho, sobretudo quando exerça funções de chefia ou coordenação, em relação aos serviços sob o seu enquadramento hierárquico e técnico;

c) Utilizar correctamente e de acordo com as instruções transmitidas pelo empregador, máquinas, aparelhos, instrumentos, substâncias perigosas e outros equipamentos e meios postos à sua disposição, designadamente os equipamentos de protecção colectiva e individual, bem como cumprir os procedimentos de trabalho estabelecidos;

d) Cooperar activamente na empresa, no estabelecimento ou no serviço para a melhoria do sistema de segurança e de saúde no trabalho, tomando conhecimento da informação prestada pelo empregador e comparecendo às consultas e aos exames determinados pelo médico do trabalho;

e) Comunicar imediatamente ao superior hierárquico ou, não sendo possível, ao trabalhador designado para o desempenho de funções específicas nos domínios da segurança e saúde no local de trabalho as avarias e deficiências por si detectadas que se lhe afigurem susceptíveis de originarem perigo grave e iminente, assim como qualquer defeito verificado nos sistemas de protecção;

f) Em caso de perigo grave e iminente, adoptar as medidas e instruções previamente estabelecidas para tal situação, sem prejuízo do dever de contactar, logo que possível, com o superior hierárquico ou com os trabalhadores que desempenham funções específicas nos domínios da segurança e saúde no local de trabalho.

(…)”.

A causa excludente do direito à reparação do acidente a que se alude na segunda parte da alínea a) do n.º 1 do artigo 14.º, tal como se afirmou no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 17 de Maio de 2007 (Revista n.º 53/2007, da 4.ª Secção por referência ao artigo 7.º, n.º 1, al. a) da Lei n.º 100/97), exige assim a verificação cumulativa dos seguintes requisitos: (i) existência de condições de segurança estabelecidas pelo empregador ou previstas na lei; (ii) ato ou omissão do sinistrado que importe a violação dessas condições de segurança; (iii) voluntariedade desse comportamento, ainda que não intencional, e sem causa justificativa; (iv) nexo causal entre o ato ou omissão do sinistrado e o acidente.

Conforme se considerou no Acórdão da Relação do Porto de 07.07.2016 (processo n.º 424/13.3TTOAZ.P1) “No que se reporta ao primeiro dos mencionados requisitos (a existência de condições de segurança estabelecidas pela entidade patronal ou previstas na lei) está o mesmo relacionado com o disposto no art.º 17.º, nº 1 al. a) da Lei 102/2009, de 10.09, em vigor desde 01.10.2009, nos termos do qual constituem obrigações do trabalhador “cumprir as prescrições de segurança e de saúde no trabalho estabelecidas nas disposições legais e em instrumentos de regulamentação colectiva de trabalho, bem como as instruções determinadas com esse fim pelo empregador”.

Descendo agora ao caso concreto, temos que a Seguradora imputa ao Sinistrado a violação das condições de segurança estabelecidas pelo empregador, pois sabia, e não podia desconhecer, que não podia entrar na zona onde estava o sem-fim com este em funcionamento, e sabia que o desrespeito desta regra de segurança implicava o risco de acidentes.

Considera a Ré, deste modo, que só um comportamento voluntário e nunca acidental permitiu que o corpo do Sinistrado fosse “puxado” pelo sem-fim do electrofiltro.

No caso, resultou da factualidade provada, que:

- A entidade patronal do sinistrado havia sido contratada pela sociedade “G..., S.A.” para proceder a trabalhos de manutenção da máquina designada por electrofiltro.

- Parte dos trabalhos de manutenção consistia na limpeza manual das placas do electrofiltro, as quais se situam no interior do mesmo.

- No interior do electrofiltro existe um mecanismo electromecânico para transporte de partículas através de um sem-fim composto por um cilindro metálico roscado accionado electricamente.

- Para a realização dos trabalhos no interior do electrofiltro foi desligado o sem-fim aí situado.

- Após os trabalhos de limpeza manual das placas, realizados no interior do electrofiltro, era necessário remover os resíduos (pó) depositados/acumulados no sem-fim em consequência dessa limpeza, para o que no final do dia de trabalho, após a limpeza das placas, havia que colocar o sem-fim em funcionamento.

- Só ao sinistrado, na qualidade de chefe de equipa, cabiam as tarefas de consignação da máquina e, bem assim, de remoção da consignação, sendo que só a ele havia sido fornecida a chave (cadeado) para activar e remover a consignação da máquina com vista a parar e a colocar o sem-fim em funcionamento.

- Com vista a esta sub-operação de colocação do sem-fim em funcionamento, o Sinistrado removeu o cadeado de consignação do interruptor/botoneira de corte de corrente do sem-fim existente no exterior do electrofiltro, que colocou em “on” e, por comunicação que realizou por telemóvel para o trabalhador da “G...” que se encontrava na sala de controle de fornos, solicitou-lhe que desbloqueasse o alarme do sem-fim, colocando-o em funcionamento, o que o trabalhador da sala de controle cumpriu.

- Apesar de ter removido a consignação da máquina e dado ordem para a sala de controle para que o sem-fim fosse colocado em funcionamento, o Sinistrado voltou a entrar no interior do electrofiltro, tendo sido colhido pelo sem-fim em funcionamento.

A actividade a desenvolver pelo Sinistrado de limpeza das placas do electrofiltro já vinha sendo efectuada por este desde há vários anos, sendo, por isso, uma tarefa que conhecia bem, tendo sido designado como chefe de equipa. Para a realização dos trabalhos no interior do electrofiltro tinha de ser desligado o sem-fim aí situado e, após os trabalhos de limpeza manual das placas, realizados no interior do electrofiltro, era necessário remover o pó depositado no sem-fim em consequência dessa limpeza, para o que no final do dia de trabalho, após a limpeza das placas, havia que colocar o sem-fim em funcionamento. Cabia ao Sinistrado a tarefa de consignação da máquina e, bem assim, de remoção da consignação, sendo que só a ele havia sido fornecida a chave (cadeado) para activar e remover a consignação da máquina com vista a parar e a colocar o sem-fim em funcionamento.

Assim, no final do dia de trabalho, e tendo em vista a sub-operação de colocação do sem-fim em funcionamento, o Sinistrado removeu o cadeado de consignação do interruptor de corte de corrente do sem-fim existente no exterior do electrofiltro, que colocou em “on” e, por comunicação que realizou por telemóvel para o trabalhador da “G...” que se encontrava na sala de controle de fornos, solicitou-lhe que desbloqueasse o alarme do sem-fim, colocando-o em funcionamento, o que o trabalhador da sala de controle cumpriu. Ora, a partir do momento em que o Sinistrado removeu o cadeado da consignação (colocando o interruptor em posição de permitir que o sem-fim pudesse funcionar) e telefonou ao trabalhador da “G...” solicitando-lhe que desbloqueasse o alarme do sem-fim, colocando-o em funcionamento, o Sinistrado sabia, ou não podia desconhecer, que não poderia estar no interior do electrofiltro, nem aí voltar, pois corria o risco de ser puxado pelo sem-fim, como efectivamente veio a suceder. Só o Sinistrado (e mais ninguém) tinha o domínio completo do facto, o que significa que a colocação do sem-fim em funcionamento apenas dependia do Sinistrado (e de mais ninguém), pois apenas a ele foram atribuídas as chaves/cadeado da consignação e apenas ele estava incumbido de telefonar para a sala de controle dos fornos. Assim, após ter removido o cadeado de consignação e de ter dado a ordem ao trabalhador da “G...” o Sinistrado não podia entrar/permanecer no interior do electrofiltro.

Provou-se que havia regras de segurança estabelecidas pela entidade empregadora do Sinistrado, e que este conhecia, designadamente aquelas que constam da “ficha de procedimentos de segurança” e de que se destacam as seguintes medidas de prevenção: executar o trabalho apenas e só após o seccionamento da alimentação eléctrica do equipamento; a consignação do equipamento deverá ser feita apenas para queda de material do sem-fim do mesmo e após todos os trabalhadores intervenientes saírem do local, sendo que o responsável fará a consignação do seccionador, accionará o corte de corrente e posteriormente será ligado o sem-fim do equipamento por técnico da fábrica. Este processo deverá ser feito sempre com todos os trabalhadores fora do equipamento.

Como se alcança da factualidade provada, o Sinistrado, depois de remover a consignação (que fica no exterior do electrofiltro e é inacessível a partir do seu interior), voltou a entrar no interior do electrofiltro e, aí dentro, ou provavelmente antes de lá entrar, telefonou para o trabalhador da “G...”, sabendo o Sinistrado que depois de ter desencadeado todo esse processo, não lhe era permitido estar dentro do electrofiltro pois corria sério risco de ser puxado pelo sem-fim. De realçar também que a entrada no interior do electrofiltro não é um processo fácil pois exige que a pessoa tenha de usar alguma destreza para o fazer – colocando um ou ambos os pés no corrimão e depois com uma ou ambas as mãos colocadas na parte superior da porta (situada a cerca de 1,10 metros do chão e com as dimensões aproximadas de 1,00m x 0,50m) elevar o corpo, introduzindo-se então no interior – daí não ser possível conjecturar sequer que o Sinistrado se tivesse debruçado com apenas uma parte do corpo, nomeadamente com a parte superior ou com apenas um dos membros superiores para o interior do electrofiltro e pudesse ter sido “puxado” involuntariamente pelo sem-fim (peça existente na parte inferior do electrofiltro). Decorre, assim, da prova produzida, e tendo em atenção designadamente as suas lesões traumáticas, que efectivamente o Sinistrado colocou-se voluntariamente no interior do electrofiltro.

Importa também referir que não havia a possibilidade de o sem-fim entrar em funcionamento somente com o telefonema pois que para tal acontecer o Sinistrado tinha de retirar o cadeado da consignação – e só da conjugação destes dois actos é que o sem-fim iniciava o funcionamento.

De salientar ainda que o Sinistrado teve formação, antes do início dos trabalhos adjudicados à sua entidade patronal, no dia 11/06/2018, ministrada pelo técnico de segurança da “G...” sobre riscos eléctricos em trabalhos confinados no electrofiltro e, além disso, a sua entidade patronal tinha elaborado uma ficha de procedimento de segurança específica, na qual constava, especificamente (e como se salientou já), de entre as medidas de prevenção, que o processo de ligação do sem-fim do equipamento por técnico da fábrica deveria ser feito sempre com todos os trabalhadores fora do equipamento, dela constando igualmente como medida de prevenção a execução do trabalho apenas e só após o seccionamento da alimentação eléctrica do equipamento, documento que foi entregue ao Sinistrado e que este conhecia.

Considera-se também que a habituação do Sinistrado ao perigo (já desenvolvia esta actividade há vários anos) não pode aqui funcionar em abono do mesmo, quando está em causa a violação de regras de segurança impostas pela lei ou pela entidade empregadora que ele conhecia, tendo por certo também que o seu cumprimento ou o seu desrespeito dependiam apenas de si.

Por outro lado, está demonstrada a existência de nexo causal entre o desrespeito da regra de segurança concreta, pelo Sinistrado, e o acidente.

Será, pois, de concluir que na origem do sinistro esteve a violação culposa, pelo Sinistrado, das condições de segurança impostas por lei ou estabelecidas pela entidade empregadora, verificando-se que a Ré, como era seu ónus, nos termos do art.º 342.º, n.º 2, do Código Civil, fez prova dos factos descaracterizadores do acidente na medida em que constituem factos impeditivos do direito invocado pelos Autores, seus beneficiários.

Desta forma, temos que o presente acidente de trabalho se encontra descaracterizado, não dando lugar a reparação. fim de citação.

Tendo em conta a matéria de facto provada, bem como o disposto no artigo 14.º, n.º 1, a), da LAT, desde já avançamos que acompanhamos a sentença recorrida, pouco mais se impondo dizer.

Na verdade, ao contrário do alegado pelos recorrentes, a Ré recorrida logrou provar, como lhe competia, os factos supra descritos e que consubstanciam a invocada descaracterização do acidente de trabalho prevista na alínea a) do artigo 14.º da LAT, tal como consta da sentença recorrida.

Os factos apurados são suficientes e as questões colocadas pelos recorrentes são irrelevantes.

Saber quais os motivos que levaram o sinistrado a entrar no local onde estava o sem fim, se este já estava ou não em funcionamento, em que momento e local pediu que o sem fim fosse desbloqueado e em que momento foi colhido pelo mesmo, são questões sem qualquer relevância, posto que: o sinistrado sabia que não podia entrar ou permanecer no interior do eletrofiltro com o sem fim em funcionamento, pelo que, existindo algum motivo justificativo para entrar dentro do mesmo devia tê-lo feito antes de desencadear todo o mecanismo com vista ao seu funcionamento ou depois de desligar o equipamento. Por outro lado, saber se quando o sinistrado entrou no equipamento o sem fim já estava ou não em funcionamento e se o sinistrado pediu à sala de controle que o sem fim fosse colocado em funcionamento no exterior ou já no interior do eletrofiltro é irrelevante, na medida em que, dúvidas não existem de que o sinistrado entrou de forma voluntária no interior do eletrofiltro. Se já tinha telefonado então não devia ter entrado e se só telefonou já no interior não o devia ter feito antes de regressar ao exterior, sendo certo que tendo sido colhido numa perna permaneceu necessariamente no interior daquele, motivo pelo qual ocorreu o acidente.

Face à matéria de facto apurada, e tal como consta da sentença recorrida, encontram-se preenchidos todos os requisitos de que depende a descaracterização do acidente.

Na verdade, << I – Para que o acidente possa ser descaracterizado devido a violação por parte da vítima, sem causa justificativa, das medidas de segurança estabelecidas pela entidade patronal ou pela lei, é necessária a verificação cumulativa dos seguintes requisitos: a) existência de condições de segurança estabelecidas pela entidade patronal ou previstas na lei; b) violação, por acção ou omissão, dessas condições por parte da vítima; c) actuação voluntária, embora não intencional, e sem causa justificativa da vítima; d) que o acidente seja consequência dessa actuação, isto é, que existe nexo de causalidade entre a referida violação e o evento, que o evento tenha sido desencadeado por essa violação. (…)>>[2].

Como se decidiu no acórdão do STJ de 15/04/2015, disponível em www.dgsi.pt:

“VI- Sabendo o A. que apenas podia proceder à operação de desencravamento do “eixo sem-fim”, de um silo de serrim, com o interruptor do quadro elétrico de comando na posição «0» (parado), ao ter encetado a operação de desencravamento do referido eixo, retirando a tampa de proteção e introduzindo a mão esquerda na conduta onde o “eixo sem-fim” trabalhava, sem que previamente tivesse desligado a máquina, vindo a ser atingido na mão e braço esquerdo, por força do movimento súbito daquele eixo, e a sofrer as lesões e sequelas determinativas de uma IPP de 30% com IPATH, é de considerar descaracterizado o acidente de trabalho sofrido, por violação por parte do A. das regras de segurança legalmente estabelecidas.”

Pelo exposto, o acidente dos autos, ao contrário do alegado pelos AA. recorrentes, encontra-se descaracterizado e, consequentemente, a Ré seguradora recorrida não é responsável pela reparação dos danos decorrentes do mesmo, tal como consta da sentença recorrida.

Improcedem, assim, as conclusões dos recorrentes.

Na improcedência das conclusões formuladas pelos AA. recorrentes, impõe-se a manutenção da sentença recorrida em conformidade.

  IV – Sumário[3]

1. Conforme resulta do art. 14.º da LAT, não há lugar à reparação quando o acidente provier de ato ou omissão do sinistrado, que importe violação, sem causa justificativa, das condições de segurança estabelecidas pelo empregador ou previstas na lei.

2. Se o sinistrado com vista à colocação do sem-fim em funcionamento, removeu o cadeado da consignação do interruptor de corte de corrente do mesmo existente no exterior que colocou em “on”; por telemóvel solicitou à sala de controle de fornos que desbloqueasse o alarme e colocasse o sem-fim em funcionamento e de forma voluntária voltou a entrar no interior do eletrofiltro onde foi colhido por aquele, sendo certo que o mesmo sabia que não podia entrar ou permanecer no interior do equipamento com o sem fim em funcionamento, o que resultava da ficha de procedimento de segurança específica elaborada pela empregadora, encontram-se preenchidos todos os requisitos de que depende a descaracterização do acidente.

V – DECISÃO

Nestes termos, sem outras considerações, na total improcedência do recurso, acorda-se em manter a sentença recorrida.

Custas a cargo dos recorrentes, sem prejuízo do benefício do apoio judiciário que lhes foi concedido.                                                                                                                                                                                                            Coimbra, 2019/12/06

                                                                                     (Paula Maria Roberto)

               (Ramalho Pinto)

                                       (Felizardo Paiva)

                                                                                                                                                           

                                                                                                             


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[1] Relatora – Paula Maria Roberto
  Adjuntos – Ramalho Pinto
                        Felizardo Paiva

[2] Acórdão da RL, de 13/04/2005, disponível em www.dgsi.pt e, no mesmo sentido, o acórdão do STJ, de 17/05/2007 e da RL, de 16/05/2007, ambos disponíveis no mesmo sítio.
[3] O sumário é da exclusiva responsabilidade da relatora.