Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
2397/13.3TBLRA.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ANABELA LUNA DE CARVALHO
Descritores: CONTRATO DE PRESTAÇÃO DE SERVIÇO
CONTRATO DE ADESÃO
CLÁUSULA CONTRATUAL GERAL
DESEQUILÍBRIO DAS PRESTAÇÕES
NULIDADE
Data do Acordão: 06/30/2015
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DE LEIRIA - LEIRIA - INST. LOCAL - SECÇÃO CÍVEL - J4
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: DL Nº 446/85 DE 25/10
Sumário: 1- A cláusula que estabelece que, a denúncia ocorrida sem aviso prévio, ou fora do prazo do aviso-prévio, relativamente à renovação automática do contrato, por parte do aderente/cliente, por não querer continuar a manter-se vinculado à prestadora de serviços dá a esta o direito a uma indemnização correspondente ao pagamento total das prestações vincendas exatamente nos mesmos termos que decorreria do cumprimento integral do contrato - ficando eximida da correspondente prestação de serviços naquele período - cria um desequilíbrio notório nas prestações típicas do contrato, sem justificação para tal, o que significa que a cláusula não é admissível à luz do princípio da boa-fé contratual.

2- Assim, a referida cláusula é relativamente proibida, nos termos conjugados dos artigos 15.º, 16.º e 19.º, alínea c) do Decreto-Lei n.º 446/85, porque desproporcionada, estando, por isso, afetada de nulidade (artigo 286.º do Código Civil), conforme disposto no artigo 12.º do mencionado diploma.

Decisão Texto Integral:

Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra:

                                                                        I

 “O (…), LDA.” (cuja anterior denominação era “O (…), SA”), pessoa coletiva nº (...) , com sede em (...) , freguesia de (...) , (...) , Sintra, intentou a presente ação declarativa (sob a forma sumária) contra “CONDOMÍNIO DO EDIFÍCIO nº 3, sito na Rua (...) Leiria”, pedindo a condenação do Réu no pagamento da quantia de € 13.113,95, acrescida de juros, sendo os vencidos, contados até 15.05.2013, no montante de € 647,12, e vincendos sobre a quantia de € 12.761,61 desde a mencionada data até integral pagamento.

Para fundamentar a sua pretensão, alega, em síntese que: no âmbito da sua atividade de conservação de elevadores celebrou com o Réu, em 16.03.2001, o denominado “Contrato O (...) Controlo OC”, através do qual se obrigava a conservar (sem inclusão de peças) os elevadores instalados no prédio daquele, durante 6 anos, com início em 01.07.2000 e termo em 30.06.2006, mediante o pagamento do valor inicial mensal de € 79,37 (acrescido IVA), atualizável, sendo, na data de Julho de 2012, no montante de € 177,66 (IVA incluído); para evitar a renovação do contrato por mais seis anos, o Réu estava obrigado a comunicar a respetiva denúncia à Autora, mediante correio registado, com a antecedência mínima de 90 dias sobre a data de aniversário do contrato – ou seja, até 02.04.2012, 90 dias antes de 01.07.2012 (data de início da 2ª renovação); sucede que por mail datado de 13.04.2012, o Réu denunciou o contrato para o termo da 1ª renovação então em curso – alegando descontentamento por parte dos condóminos na assistência técnica, o incumprimento das cláusulas 3.1 e 3.2 do contrato, o facto do valor da manutenção ser cada vez mais elevado (tendo obtido ofertas mais vantajosas), e, por a Autora cobrar taxas de acompanhamento de inspeções, que estão fora do âmbito do contrato, faturadas em 2010, reclamadas em 19.11.2010 e que nunca lhe foram creditadas – não respeitando, assim, o prazo de 90 dias acordado para efeitos de denúncia; também não tinha justa causa para rescindir o contrato firmado com a Autora, pois que, não sendo os condóminos destinatários do cumprimento das obrigações das cláusulas invocadas, mas sim a sua Administração externa, não podem ter reflexo nas suas utilizações diárias dos elevadores; caso a Autora viesse incumprindo o contrato, o Réu jamais colocaria a hipótese de continuar a receber os seus serviços por mais três meses e a pagá-los, como fez, até Junho 2012; por último, quanto às taxas de acompanhamento das inspeções (não previstas no contrato), a Autora, face aos milhares de euros em custos com as inspeções à sua carteira que tem vindo a acumular, teve de passar a faturá-las; em face da atitude injustificada do Réu, a Autora faturou a sanção contratual prevista na cláusula 5.7.4., acautelando os investimentos materiais e humanos feitos para satisfazer o contrato firmado expetativamente por mais 5 anos e meio; ao recebê-la, o Réu, através da sua Administração externa, manteve a posição firmada no mail datado de 13.04.2012, acrescentando novos argumentos, tais como “a falta de confiança comercial”, “a alternação na manutenção mensal”, “a insatisfação com o tempo de resposta da Autora aos pedidos de intervenção”, “a qualidade do serviço”, e “o desinteresse em responderem à correspondência enviada”; o Réu deixou por pagar não só a referida sanção contratual, no montante de € 12.791,61, vencido em 01.06.2012, como uma nota de juros posterior, no valor de € 322,34, vencida em 21.09.2012, cujos montantes a Autora reclama nos autos, acrescidos dos respetivos juros.

O Réu contestou referindo, em suma que: durante a vigência do contrato os elevadores do prédio do Réu, não obstante serem sujeitos a todas as manutenções que a Autora entendeu realizar e que a Ré pagou, estavam sistematicamente avariados e/ou parados; as avarias comunicadas não eram prontamente resolvidas – a título de exemplo, no dia 24.04.2012 o elevador do lado direito parou um palmo abaixo do nível do patamar, tendo um dos condóminos, no caso uma pessoa de idade avançada, caído para dentro da cabine/ na insistência, a funcionária da Autora respondia que as avarias seriam atendidas por ordem de prioridade, o que não era o caso/ no dia seguinte foi feita nova reclamação, pois o elevador do lado esquerdo encontrava-se parado/nesse dia ainda a primeira avaria estava por reparar, e os condóminos de um prédio com nove pisos estavam sem qualquer elevador a funcionar; também a Autora nunca entregou ao Réu qualquer relatório, nem informava a Administração das suas visitas, violando as cláusulas 3.1. e 3.2; limitava-se a apresentar a conta; também não obteve o acordo do Réu para cobrança das taxas de inspeção, conforme previsto na cláusula 5.1.4 do contrato; acresce que, qualquer alteração do preço acordado só deveria ter lugar anualmente, ou seja, após 1 de Julho, sendo que, a Autora aumentou tal valor com efeitos a partir de 1 Janeiro de 2011, fazendo-o no ano seguinte, reportando novamente os efeitos do aumento a 1 de Janeiro de 2012; o Réu (ao enviar o referido mail), procedeu à resolução do contrato por incumprimento contratual (logo com justa causa); e está no uso do seu pleno direito de reduzir custos, pelo que nada mais deve à Autora.

Mais refere, deduzir pedido reconvencional, nos termos do disposto no art. 274º, nº 2, al. a) do CPC, “pois a A. ao não aceitar a resolução do contrato tem provocado prejuízo ao R. com custos desnecessários, e constituição de mandatário judicial, que se estimam em € 1.200,00”. Conclui pela sua absolvição do pedido, devendo considerar-se validamente resolvido o contrato celebrado com a Autora em 01.07.2000 (renovado em 2006).

Respondeu a Autora, concluindo pela improcedência da defesa da Ré, e pela não admissão do pedido reconvencional deduzido.

Realizou-se audiência de discussão e julgamento, após o que foi proferida sentença que julgou totalmente procedente a ação e, consequentemente, condenou o Réu no pagamento da quantia de € 13.113,95 (treze mil cento e treze euros e noventa e cinco cêntimos), acrescida de juros, sendo os vencidos, contados até 15.05.2013, no montante de € 647,12 (seiscentos e quarenta e sete euros e doze cêntimos), e vincendos sobre a quantia de € 12.761,61 (doze mil setecentos e sessenta e um euros e sessenta e um cêntimos), desde 16.05.2013 até integral pagamento.

Inconformada com tal decisão veio o Réu recorrer concluindo do seguinte modo as suas alegações de recurso:

(…)

Não foram apresentadas contra-alegações.

                                                                        II

É a seguinte a factualidade julgada provada pelo tribunal a quo:

1) A Autora dedica-se à atividade de fornecimento, montagem e conservação de elevadores;

2) Com a data de 16.03.2001, Autora e Réu subscreveram o escrito (de fls. 16 a 21) denominado “Contrato O (...) Controlo OC” (ao qual foi atribuído o nº CN7351/2), através do qual a primeira se obrigava a conservar (sem inclusão de peças) os elevadores instalados no edifício do segundo, durante 6 (seis) anos, com início reportado a 01.07.2000 e terminus em 30.06.2006, mediante o pagamento da quantia mensal inicial de € 79,37 (+IVA), anualmente revista, com base na evolução dos últimos doze meses conhecidos do Índice de Preços no Consumidor publicado pelo INE, sendo a primeira revisão efetuada decorrido um ano após a data de início do contrato, pagamento esse faturado trimestralmente, sendo em Julho de 2012 no valor mensal de € 177,66 (IVA incluído);

3) De acordo com a cláusula 1.2. das condições gerais do contrato: «A O (...) inspeciona, limpa e lubrifica o equipamento, de acordo com o programa de manutenção preventiva. (…)

O programa de manutenção preventiva O (...) é concebido para cada tipo de equipamento e sua utilização de forma a assegurar um funcionamento seguro e fiável e a execução dos trabalhos previstos na lei, códigos e regulamentos.»;

4) Consta no mencionado escrito, sob as cláusulas 3.1. e 3.2. das condições gerais, que a Autora se obrigou a:

«3.1. (…) assegurar, com um intervalo máximo de três anos, um relatório com: Resultados da Auditoria de Qualidade e visitas de conservação; Resumo e análises de avarias; trabalhos efetuados; e Recomendações e propostas sobre: - reparações ou modernizações para maximizar a fiabilidade e/ou a disponibilidade do equipamento; - modernizações para melhoria do desempenho e/ou a adaptação a novos standards, regulamentos e/ou legislação;

3.2. Durante cada visita, os técnicos O (...) pedem informação e informam o cliente ou o seu representante no edifício sobre o(s) trabalho(s) efetuado(s).

A O (...) colocará avisos aos utilizadores, em locais acordados no edifício, sobre os trabalhos em curso e a sua duração programada.»;

5) Conforme estabelecido na cláusula 5.1.4. das condições contratuais gerais «Os trabalhos não compreendidos no presente contrato serão notificados ao cliente pela O (...) e serão por esta executados após acordo daquele»; e na cláusula 5.1.7. das mencionadas condições gerais «Qualquer trabalho, serviço e/ou responsabilidade que não sejam os explicitamente especificados no presente contrato, não se consideram implícitos nem se podem subentender»;

6) Nos termos ajustados sob a cláusula 5.7.3 das condições contratuais gerais do contrato firmado, o mesmo considerava-se tacitamente prorrogado por períodos iguais (de seis anos), desde que não fosse denunciado por qualquer das partes com, pelo menos, 90 dias de antecedência do termo do prazo em curso, através de carta registada;

7) Consta da cláusula 5.7.4. das condições contratuais gerais do contrato que:

“Uma vez que a natureza, âmbito e duração dos serviços contratados é elemento conformante da dimensão da estrutura empresarial da O (...) , em caso de denúncia antecipada do presente contrato pelo cliente, a O (...) terá direito a uma indemnização por danos, que será imediatamente faturada, no valor da totalidade das prestações do preço previstas até ao termo do prazo contratado”;

8) De acordo com o estabelecido na cláusula 5.5.1 das condições gerais do contrato “(…) quando se verifique mora no pagamento de quaisquer quantias devidas à O (...) nos termos do presente Contrato, esta terá direito a uma indemnização correspondente aos juros a contar do dia da constituição em mora, à taxa bancária para as operações ativas em vigor”;

9) Nem o Réu, nem a Autora, denunciaram o contrato para o termo da 1ª renovação, ocorrida em 30.06.2006;

10) Em 13.04.2012 o Réu – por intermédio da empresa “M (…)” - enviou à Autora um e-mail com o seguinte teor:

«Exmos. Srs.

Venho informar V. Exas. que a partir de 30.06.2012 a Administração do Condomínio rescinde o contrato de assistência técnica com a O (...) .

Esta decisão deve-se ao facto de haver descontentamento por parte dos condóminos na assistência técnica.

Incumprimento da O (...) quanto aos parágrafos 3.1.e 3.2.

O valor da manutenção ser cada vez mais elevado, tendo nós ofertas mais vantajosas.

O facto de V. Exas. insistirem no pagamento das taxas de acompanhamento de inspeções, faturadas em 2010 e reclamadas por nós em 19.11.2010, as quais estão fora do âmbito do contrato. Nunca foram creditadas (…)»

11) A Autora, durante a vigência do contrato, solicitou e cobrou ao Réu, em 2010, quantias relativas às taxas de acompanhamento das inspeções, então aplicadas;

12) A Autora emitiu em nome do Réu e enviou-lhe a fatura nº RCN12901464, com data de emissão de 08.05.2012, no valor de € 10.299,68, acrescida de IVA à taxa de 23% no valor de € 2.391,93 (no montante global de € 12.791,61), nela constando os seguintes dizeres: “Fatura de rescisão do contrato referente aos meses de 07/2012 a 06/2018 nos termos da cláusula contratual nº 5.7.4. por denúncia antecipada do contrato” (doc. fls. 41);

13) A Autora emitiu em nome do Réu, e enviou-lhe, a nota de débito nº NDJ12000311, datada de 21.09.2012, no valor de € 322,34, nela constando que é referente a juros de mora à taxa de 8% (equivalente à taxa de transferência do Banco Central Europeu para operações de refinanciamento acrescida de 7 pontos percentuais, conforme o DL 32/2003 de 17 de Fevereiro) (doc. fls. 42);

14) O Réu – através da empresa “M (…)” - enviou à Autora carta registada com aviso AR, datada de 12.06.2012, recebida em 18.06.2012, com o seguinte teor:

«Venho pela presente devolver a V. Exas. A fatura original nº RCN12901464 no valor de € 12.791,61 relacionada com a rescisão do contrato feita por email no dia 13.04.2012, a fim de ser anulada por indevida.

A rescisão foi feita por falta de confiança comercial.

Aos parágrafos mencionados na rescisão acrescem a alternação na manutenção mensal, insatisfação com o tempo de resposta da O (...) aos pedidos de intervenção, qualidade do serviço, desinteresse em responderem à correspondência enviada, etc.

Nestes termos agradeço a anulação imediata da fatura acima mencionada.(doc. fls. 23)».

15) A Autora elaborou orçamentos, realizou trabalhos diretos, que entregou ao Réu, efetuou a conservação mensal e reparou avarias nos termos em que se vinculou através do escrito mencionado em 2);

16) Em cada deslocação dos técnicos da Autora à instalação do Réu, estes registaram a respetiva presença nos Livros de Registo da Casa das Máquinas (pertença do Réu), neles fazendo constar a informação relativa a cada visita;

17) O técnico de rota da Autora, em cada visita mensal que efetuou ao edifício do Réu, recolheu na “rota” a rubrica do cliente (ou do seu representante), deixando notícia (por essa via) da visita feita;

18) Nos termos ajustados, a Autora auditou o equipamento elevatório do Réu, fornecendo-lhe sempre a informação devida;

19) As taxas aludidas em 11) são referentes ao preço da deslocação do técnico da Autora à inspeção (e não a esta), e passaram a ser cobradas por virtude do aumento da periodicidade com que tais inspeções passaram a ser legalmente exigidas e efetuadas pela Autora (de 5 em 5 anos, para 2 em 2 anos), o que acarretou um aumento dos custos desta com as mesmas, não estando tais serviços previstos no contrato referido em 2);

20) Nos anos de 2011 e 2012, a Autora procedeu à revisão do preço mensal aludido no contrato referido em 2) com efeitos a partir do início do ano civil (01 de Janeiro), sendo que as faturações dos serviços por ela prestados ao Réu se iniciaram em Janeiro de 2001;

21) O Réu procedeu ao pagamento dos valores correspondentes a tais revisões a partir da data em que foram definidos pela Autora, sem efetuar qualquer reclamação referente a tais aumentos;

22) Entre os dias 24/25 de Abril de 2012 ocorreu uma avaria em um dos elevadores do prédio do Réu, que determinou o desnível de um deles;

23) O referido em 20) deveu-se a um lapso informático dos serviços da Autora;

24) Para passar a cobrar as taxas aludidas em 11) e 19) a Autora não necessitava do consentimento do Réu.

*

B) Factos não provados:

Não se provou que:

I. Durante o tempo de vigência do contrato [referido em 2)], os elevadores do edifício do Réu estavam sistematicamente avariados e/ou parados;

II. As avarias comunicadas à Autora não eram por ela prontamente resolvidas;

III. (a mais do referido em 22) No dia 24.04.2012 o elevador do lado direito parou um palmo abaixo do nível do patamar – o que originou a queda, para dentro da cabine, de um dos condóminos (que era uma senhora de idade avançada);

IV. Comunicada a avaria (referida em III), a funcionária da Autora (após insistência) respondeu que as avarias seriam atendidas por ordem de prioridade, o que não era o caso;

V) No dia 25.04.2012 o elevador do lado esquerdo encontrava-se parado, tendo tal sido reclamado à Autora;

VI. Por virtude do referido em V, e face à não reparação da avaria mencionada em III, os 9 (nove) pisos do prédio do Réu não dispunham de qualquer elevador a funcionar;

VII. A Autora, durante a vigência do contrato, omitiu a entrega ao Réu do relatório aludido na cláusula 3.1. do contrato;

VIII) (…) nunca tendo informado a Administração do Réu de qualquer das visitas que efetuou (como estabelecido na cláusula 3.2);

IX) A Autora necessitava do acordo do Réu para passar a cobrar as taxas mencionadas em 11);

X) A avaria referida em 22) tivesse origem na falta de conservação/manutenção do equipamento pela Autora.

                                                            III

Na consideração de que o objeto dos recursos se delimita pelas conclusões das alegações (art. 635 nº 3 do nCPC), sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso (art. 608 in fine), são as seguintes as questões a decidir:

I - Nulidade da cláusula que estipula um montante indemnizatório por denúncia antecipada.

II - Impugnação da matéria de facto (por erro de julgamento, por contradição entre factos e contradição entre factos e a decisão). Consequências jurídicas.

I - Da nulidade contratual

Celebrado um contrato de prestação de serviço (manutenção de elevadores) entre A. e R. a A/apelada, enquanto prestadora do serviço veio pedir o pagamento da cláusula penal estabelecida para designada “denúncia antecipada do contrato”; pretensão que a sentença recorrida lhe concedeu.

Pretende o Réu/apelante que é nula a cláusula 5.7.4. das condições gerais do contrato e que sendo a nulidade de conhecimento oficioso, não deve o Réu ser condenado na sanção nele contemplada.

Estipula tal cláusula que:

“Uma vez que a natureza, âmbito e duração dos serviços contratados é elemento conformante da dimensão da estrutura empresarial da O (...) , em caso de denúncia antecipada do presente contrato pelo cliente, a O (...) terá direito a uma indemnização por danos, que será imediatamente faturada, no valor da totalidade das prestações do preço previstas até ao termo do prazo contratado”.

A qual depende diretamente da cláusula antecedente que estipula o prazo de seis anos para a duração do contrato:

- Nos termos ajustados sob a cláusula 5.7.3 das condições contratuais gerais do contrato firmado, o mesmo considerava-se tacitamente prorrogado por períodos iguais (de seis anos), desde que não fosse denunciado por qualquer das partes com, pelo menos, 90 dias de antecedência do termo do prazo em curso, através de carta registada.

Têm vindo os tribunais a pronunciarem-se no sentido de que a cláusula penal em apreço, fixada para o caso de denúncia sem pré-aviso, ou em desrespeito da antecedência contratualmente fixada, de um contrato de adesão, estipula um quantitativo desproporcionado em relação ao montante máximo de indemnização que o direito supletivo aponta como consequência do incumprimento debitório, sendo, portanto, nula.

Nesse sentido, se pronunciaram, entre outros, os Acórdãos do TRC de 17-04-2012, P. 5060/09.6TBLRA.C e, TRL de 27-05-2014, P.004/12.6TJLSB.L1-1, ambos publicados em www.dgsi.pt.

Este último acórdão foi motivado por uma ação inibitória interposta pelo Ministério Público, na qual este formulou a pretensão de declaração de nulidade de uma cláusula idêntica à dos presentes autos, ao abrigo do disposto no artigo 25.º e seguintes do Decreto-Lei Lei nº 446/85, de 25/10 (Regime Jurídico das Cláusulas Contratuais Gerais – RJCCG), invocando, em suma, que “…as cláusulas que num determinado contrato de prestação de serviços de assistência técnica, manutenção e reparação de ascensores elétricos e hidráulicos (…) integram os referidos contratos e são previamente elaboradas e apresentadas já impressas aos interessados na celebração dos contratos, sendo nula por contrária à boa-fé, a cláusula penal estabelecida para a designada “denúncia antecipada do contrato” visto que consagra uma cláusula penal desproporcionada aos danos a ressarcir (ex vi artigo 19.º, alínea c), do Decreto-Lei n.º 446/85 de 25/10), porquanto da sua aplicação resultará o pagamento para o aderente da totalidade das prestações correspondentes aos meses do contrato em que este já cessou, sem a contraprestação do serviço pela ré, que, para além disso, também fica beneficiada por receber de um só vez e em antecipação ao que estava previsto. Mais reclamou que fosse considerada nula a cláusula que obrigava à denúncia prévia com uma antecedência de 90 dias antes da renovação automática do contrato “…considerando que, face à duração de cada um desses contratos (2 anos e 5 anos), é manifestamente excessivo a fixação de um período de 90 dias de antecedência para a sua denúncia (ex vi do artigo 22.º, n.º 1, alínea a) do mesmo Decreto-Lei n.º 446/85).

Pressupostos idênticos aos dos presentes autos, com a agravante de que nestes o período de duração do contrato é de seis anos.

E o Tribunal da Relação de Lisboa, no acórdão atrás citado, e que aqui seguiremos de perto, em concordância com a sua análise e decisão, veio a determinar que tal clausulado era nulo.

Vejamos.

A situação em apreço demanda a aplicação do regime instituído pelo Decreto-Lei n.º 446/85, de 25/10 (e alterações subsequentes), que visa a proteção de todos quantos contratam com o utilizador de cláusulas contratuais gerais, bem como com o utilizador de cláusulas individualizadas, pré-elaboradas sem negociação individual, ou seja, cujo conteúdo, o destinatário não pode influenciar (artigo 1.º, n.º 1 e 2).

O diploma estabelece limites à liberdade contratual por reconhecer que, a fixação unilateral de cláusulas contratuais gerais pode levar a estipulações abusivas, no interesse exclusivo do proponente, com desrespeito pelo interesse do aderente, determinando, assim, um indesejável desequilíbrio contratual dos interesses em jogo.

Perante tal situação, veio o diploma a criar normas de controlo do conteúdo das cláusulas contratuais gerais, estabelecendo, desde logo, um princípio geral de controlo, declarando serem proibidas as cláusulas contrárias à boa-fé (artigos 15.º e 16.º), e, de seguida, concretizando, a título exemplificativo, enumerou as situações que entendeu corresponderem a cláusulas proibidas, sendo tal proibição absoluta em duas delas (artigos 18.º e 21.º) e relativa, em relação às outras duas (artigos 19.º e 22.º).

Nos presentes autos, está em causa uma cláusula que prevê que, tendo o contrato a duração de seis anos, sendo prorrogado por períodos de idêntica duração, se o cliente denunciar o contrato sem respeitar a antecedência mínima de 90 dias do termo do prazo em curso (de seis anos), através de carta registada, a prestadora de serviços terá direito a uma indemnização por danos, que será imediatamente faturada, no valor da totalidade das prestações do preço previstas até ao termo do prazo contratado.

O contrato será por sua vez tacitamente renovado se não for denunciado com aquela antecedência mínima.

É, assim conferido à apelada, enquanto prestadora de serviços de manutenção de elevadores, o direito a obter o pagamento imediato dos meses em falta até ao termo do contrato, multiplicado pelo valor mensal do serviço de manutenção em vigor àquela data.

Relativamente às cláusulas relativamente proibidas, o artigo 19.º, alínea c) do Decreto-Lei n.º 446/85 estipula do seguinte modo:

“São proibidas, consoante o quadro negocial padronizado (…), as cláusulas contratuais gerais que:

(…)

c) Consagrem cláusulas penais desproporcionadas aos danos a ressarcir.”

O preceito admite a aposição de cláusulas penais, mas sujeita-as ao critério da proporcionalidade a qual deverá ser ponderada à luz do critério geral da boa-fé, conforme artigos 15.º[1] e 16.º[2] balizado pela confiança das partes, pelo objetivo a atingir, pelo contrato em concreto (…).

A boa-fé constitui assim um elemento condicionador que limita o conteúdo admissível das cláusulas contratuais gerais, incidindo sobre a própria estipulação contratual impedindo um desequilíbrio dos interesses em confronto, e deve ser aferida pela aplicação das referidas cláusulas em abstrato.

Por sua vez, a cláusula penal indemnizatória é aquela que é fixada, antecipadamente por acordo das partes visando exclusivamente fixar a indemnização devida pelo incumprimento definitivo – clausula penal compensatória- (por contraposição com a cláusula penal moratória que visa sancionar a mora ou pelo cumprimento defeituoso), reconduzindo-se a uma fixação prévia do montante da indemnização no caso de incumprimento.[3]

Atenta a função das cláusulas penais, a sua utilização em contratos que utilizam cláusulas contratuais gerais, considerando as suas características (pré-elaboração, rigidez ou inalterabilidade negocial e generalidade) potencia gravames injustificáveis por via de fixação de montantes excessivos. Daí que a norma acima transcrita sujeite a validade da cláusula a um critério de proporcionalidade, que deve ser enquadrado à luz do aludido princípio da boa-fé enunciado no artigo 15.º e concretizado de forma exemplificativa no artigo seguinte.

“A aferição da proporcionalidade não emerge da ponderação de interesses individuais dos intervenientes, mas sim da ponderação dos interesses típicos do círculo de pessoas normalmente implicadas no negócio da espécie em consideração, sendo que na ação inibitória o controlo das cláusulas é, por natureza, um controlo de conformação, não um controlo de exercício, estando em causa o controlo da cláusula enquanto tal e, consequentemente, não os direitos que o utilizador pode fazer no caso singular com base na cláusula controvertida, mas antes aqueles que ele pode fazer valer segundo o conteúdo objetivo da mesma”[4]

Sublinhe-se ainda que, caso se verifique a desproporcionalidade proibida pela norma, a cláusula não fica sujeita a redução, mecanismo que resultaria da aplicação do artigo 812.º do Código Civil, mas sim à nulidade da mesma, por assim o determinar o artigo 18.º, alínea c), do Decreto-Lei n.º 446/85.

No caso em apreciação, o que resulta da cláusula 5.7.4. das condições gerais do contrato é que, em caso de denúncia fora da antecedência mínima de 90 dias relativamente à renovação automática do contrato, por parte do aderente/cliente, por não querer continuar a manter-se vinculado à prestadora de serviços e, independentemente do incumprimento ou cumprimento defeituoso por parte desta, ou seja, sem invocação de justa causa, esta tem direito a uma indemnização correspondente ao pagamento total das prestações vincendas exatamente nos mesmos termos que decorreria do cumprimento integral do contrato, embora fique eximida da correspondente prestação de serviços naquele período.

Ou seja, apesar da prestadora de serviços, no caso a apelada, se liberar da sua contraprestação, é-lhe conferido o direito de indemnização como se realizasse a prestação.

Acrescendo ainda que a prestadora de serviços, nessa situação, fica também liberada de cumprir o ónus de prova relativamente ao valor dos danos sofridos.

Ora, tal cláusula cria um desequilíbrio notório nas prestações típicas do contrato, sem justificação para tal, o que significa que a cláusula não é admissível à luz do princípio da boa-fé contratual.

Não se ignora que a apelada, bem como todas as empresas congéneres que prestam serviços de assistência a elevadores têm de fazer um investimento específico e avultado na aquisição de materiais, na disponibilização de pessoas que prontamente prestem o serviço, nomeadamente em situações de avarias que exigem uma intervenção imediata e urgente, etc.

Mas esses custos são repartidos por vários clientes, pelo que, a gestão do seu negócio é feita em função da sua carteira de clientes e não apenas em função de um só cliente.

Cabe assim, à apelada o ónus de fazer repercutir esses custos de exploração nos preços praticados, sem passar por indemnizações com base em cláusulas penais indemnizatórias e compulsórias que criem desequilíbrios injustificados nas obrigações das partes contratantes em caso de cessação do contrato.

“A desproporcionalidade das cláusulas em apreço não resulta do facto de fixarem indemnizações antecipadamente por recurso ao mecanismo da cláusula penal, permitida de resto pelo artigo 19.º, alínea c) que, aliás, tem a vantagem de eliminar futuros diferendos quanto à determinação desse montante (o que se afigura benéfico para as duas partes), mas antes por criarem para o predisponente uma posição vantajosa que não se enquadra na regulação normal e típica do contrato em causa, mormente quanto às consequências do incumprimento contratual pressuposto nas mesmas “ – cit. ac. do TRL.

Importa, acrescentar que, funcionando a referida cláusula ao longo da execução do contrato, caso a denuncia sem aviso-prévio se verifique numa fase inicial da renovação do mesmo, como foi o caso, a indemnização a pagar pelo aderente/cliente, ora apelante mais desproporcionada é já que libera a prestadora de serviços de os prestar pela duração total de um contrato, no caso, por seis anos.

 Ora, a vantagem da apelada revela-se totalmente desproporcionada face aos interesses em confronto, devendo, por isso ser removida, em prol de um juízo de razoabilidade e de boa-fé contratual.

Assim, a cláusula 5.7.4. das condições gerais do contrato é relativamente proibida, nos termos conjugados dos artigos 15.º, 16.º e 19.º, alínea c) do Decreto-Lei n.º 446/85, porque desproporcionada, estando, por isso, afetada de nulidade (artigo 286.º do Código Civil), conforme disposto no artigo 12.º do mencionado diploma.

Sendo nula tal cláusula improcede, na totalidade a pretensão indemnizatória da A. derivada da mesma.

Procede, por consequência, tal questão do recurso.

II – Impugnação da matéria de facto.

(…)

Improcede, assim, a impugnação da matéria de facto.

Em suma:

- A cláusula que estabelece que, a denúncia ocorrida sem aviso prévio, ou fora do prazo do aviso-prévio, relativamente à renovação automática do contrato, por parte do aderente/cliente, por não querer continuar a manter-se vinculado à prestadora de serviços dá a esta o direito a uma indemnização correspondente ao pagamento total das prestações vincendas exatamente nos mesmos termos que decorreria do cumprimento integral do contrato - ficando eximida da correspondente prestação de serviços naquele período - cria um desequilíbrio notório nas prestações típicas do contrato, sem justificação para tal, o que significa que a cláusula não é admissível à luz do princípio da boa-fé contratual.

- Assim, a referida cláusula é relativamente proibida, nos termos conjugados dos artigos 15.º, 16.º e 19.º, alínea c) do Decreto-Lei n.º 446/85, porque desproporcionada, estando, por isso, afetada de nulidade (artigo 286.º do Código Civil), conforme disposto no artigo 12.º do mencionado diploma.

- Sendo nula tal cláusula improcede, na totalidade a pretensão indemnizatória da A. derivada da mesma.

                                                                        IV

Termos em que acorda-se em julgar a apelação procedente, declarando-se nula a cláusula contratual que fundamentou a condenação do Réu/apelante no pagamento de uma indemnização (cláusula penal) a favor da A. (apelada), absolve-se aquele do pedido.

Custas pela apelada.

Coimbra,

 (Anabela Luna de Carvalho( Relatora )

 (João Moreira do Carmo)

(José Fonte Ramos)


[1] Artigo 15.º - Princípio geral
São proibidas as cláusulas contratuais gerais contrárias à boa-fé.
[2] Artigo 16.º - Concretização
Na aplicação da norma anterior devem ponderar-se os valores fundamentais do direito, relevantes em face da situação considerada, e, especialmente:
a) A confiança suscitada, nas partes, pelo sentido global das cláusulas contratuais em causa, pelo processo de formação do contrato singular celebrado, pelo teor deste e ainda por quaisquer outros elementos atendíveis;
b) O objetivo que as partes visam atingir negocialmente, procurando-se a sua efetivação à luz do tipo de contrato utilizado.
[3] Ac. TRC de 18-10-2005, Ap. nº 1448/05 in http://www.trc.pt/index.php/jurisprudencia-do-trc/direito-civi

[4] Cfr. ALMENO SÁ, “Cláusulas Contratuais Gerais e Diretivas sobre Cláusulas Abusivas”, Almedina, 2005, 2.ª ed,. p. 269.