Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
448/12.8PBCVL.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: LUÍS COIMBRA
Descritores: APREENSÃO DE VEÍCULO
UTILIZAÇÃO DE AUTOMÓVEL
FIEL DEPOSITÁRIO
CRIME DE DESOBEDIÊNCIA SIMPLES
CRIME DE DESOBEDIÊNCIA QUALIFICADA
Data do Acordão: 05/15/2013
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: 3.º JUÍZO DO TRIBUNAL JUDICIAL DA COVILHÃ
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: PARCIALMENTE CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTIGO 348.º DO CP; ARTIGOS 16.º E 22.º DO DL 54/75, DE 12-02
Sumário: I - O DL n.º 54/75, de 12 de Fevereiro, tem como finalidade regular as normas que disciplinam o registo de propriedade automóvel.

II - Assim, os artigos 16.º e 22.º desse diploma têm apenas aplicabilidade nesse específico domínio do registo de propriedade de veículos e respectivos documentos.

III - Consequentemente, na concreta situação, em que o arguido conduziu veículo automóvel que lhe tinha sido apreendido e do qual havia sido nomeado fiel depositário, com advertência de a utilização da viatura constituir crime de desobediência, a descrita conduta integra o tipo de desobediência simples, p. e p. pelo artigo 348.º, n.º 1, al. b), do CP, e não de desobediência qualificada, p. e p. pelo artigo 348.º, n.º 2, do mesmo compêndio legislativo.

Decisão Texto Integral: Secção Criminal do Tribunal da Relação de Coimbra

Acordam, em conferência, na 5ª Secção, Criminal, do Tribunal da Relação de Coimbra

I – RELATÓRIO:

No âmbito do Processo Sumário nº 448/12.8PBCVL do 3º Juízo do Tribunal Judicial da Covilhã, o arguido A... foi submetido a julgamento tendo, a final, em 27/12/2012, sido proferida sentença que decidiu condená-lo “como autor material de um crime de desobediência p. e p. pelo artºs 22/1/2 do DL 54/75 de 24/2 e 348º nº 2 do Código Penal, na pena de 135 dias de multa à taxa diária de 7 euros.”

Inconformado, o arguido interpôs recurso retirando da correspondente motivação as seguintes (transcritas):

Conclusões:

1 - O Tribunal não deveria ter julgado provado que “1. No dia 21 de Dezembro de 2012, pelas 13:30 horas A..., que o recebeu como fiel depositário e advertido da sua obrigação de o não utilizar ou alienar por qualquer forma e de o entregar quando lhe fosse exigido, e, ainda, advertido de que a referida utilização ou alienação o faria incorrer no crime de desobediência” e ‘fazia de forma livre, voluntária e consciente, bem sabendo que não o podia fazer, por tal veículo estar apreendido, ser dele fiel depositário e que nessas circunstâncias lhe estava vedada a condução de tal veículo”.

2 - O auto de apreensão junto nos autos, a fls. 4, é um impresso tipo, previamente elaborado, com várias quadrículas e espaços em branco destinados a ser preenchidos de acordo com o caso concreto.

3 - O espaço reservado à identificação do fiel depositário está em branco.

4 - Nos termos do artigo 839°/1 do CPC, é constituído depositário dos bens o agente de execução, ou nos casos em que as diligências de execução são realizadas por oficial de justiça a pessoa por este designada, não tendo sido o arguido a pessoa designada para o efeito.

5 - Da prova produzida, maxime auto de apreensão junto nos autos, a fls. 4, não se pode concluir que o arguido foi constituído fiel depositário e foi informado, no momento da apreensão (13:30 horas) de que incorria na prática do crime de desobediência.

6 - O auto de apreensão está assinado pelo arguido na qualidade de proprietário do veículo e não como fiel depositário.

7- De acordo com a normal dinâmica dos acontecimentos, tendo sido advertido de que incorria na prática de um crime de desobediência e de que não poderia conduzir o veículo, decerto que o arguido não se atreveria a regressar às instalações da PSP, como fez, a conduzir o veículo.

8 - A penhora de veículo automóvel - bem móvel sujeito a registo - inicia-se com comunicação electrónica a que alude o artigo 838°, nº 1, ex vi do artigo 851º, n ° 1 do Código de Processo Civil, seguida de imobilização através de imposição de selos ou de imobilizadores e da apreensão do documento de identificação do veículo, nos termos dos nº 3 a 8 do artigo 164° e do artigo 161° do DL no 114/94, de 03 de Maio, como impõe o nº 2 do artigo 851º do Código de Processo Civil.

9 - Não existindo registo da penhora, como in casu não existe, - veja-se certidão emitida pelo 1° juízo (só agora junta uma vez que o Tribunal a quo indeferiu a realização de tal diligencia probatória) não pode haver apreensão do veículo uma vez que a apreensão do documento de identificação do veículo é um ato posterior ao registo da penhora, sendo esta seguida de imobilização do veículo através de imposição de selos ou de imobilizadores, o que não foi feito.

10 - A apreensão do veículo não obedece ao formalismo prescrito na lei - artigos 838°, nº 1 e 851°, nº 1 do Código de Processo Civil - pelo que não pode a ordem de apreensão reputar-se de legítima.

11 - In casu não estão preenchidos os elementos objectivos e subjectivos do crime de desobediência, pelo que o arguido deverá ser absolvido.

12 - Sem conceder quanto à alegada falta de verificação dos elementos objectivos e subjectivos do crime de desobediência qualificada - o que por mera cautela de patrocínio se equaciona -, a título subsidiário, sempre a pena concretamente aplicada ao arguido é exagerada quer na determinação da medida concretamente aplicada quer na determinação da taxa diária.

13 - As condições pessoais e de vida do arguido, que está inserido familiar, profissional e socialmente, bem como as suas condições sócio económicas, que não foram sequer apuradas, e por maioria de razão não foram ponderadas, na sentença recorrida, enquanto factores que militam a favor deste.

14 - Ao condenar o recorrente pela prática do crime de desobediência p. e p. pelo art. 22°, n° 2 do DL 54/75 de 12.02 e 348°/2 do Código Penal, viola a douta sentença recorrida o disposto nas citadas disposições legais.

Termos em que, deverão Vossas Excelências julgar procedente o presente recurso e revogar a sentença recorrida absolvendo o arguido da prática do crime de que vem acusado assim, fazendo a habitual

JUSTIÇA.”

                                                    *

O Ministério Público junto da 1ª instância respondeu ao recurso, concluindo que não merece provimento.

Nesta instância, o Exmº Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer sufragando a posição assumida pelo M.P. em 1ª instância, pronunciando-se igualmente pela improcedência do recurso.

No âmbito do art.º 417º, n.º 2 do Código Penal, o recorrente nada disse.

Foram colhidos os vistos legais e realizou-se a conferência.

II - FUNDAMENTAÇÃO:

Constitui jurisprudência corrente dos tribunais superiores que o âmbito do recurso se afere e se delimita pelas conclusões formuladas na motivação apresentada (412º, nº 1, in fine, do Código de Processo Penal), sem prejuízo das que importe conhecer, oficiosamente por obstativas da apreciação do seu mérito, como são os vícios da sentença previstos no artigo 410.º, n.º 2, do mesmo diploma, mesmo que o recurso se encontre limitado à matéria de direito (Ac. do Plenário das Secções do S.T.J., de 19/10/1995, D.R. I – A Série, de 28/12/1995).
No caso vertente, e vistas as conclusões do recurso, as questões suscitadas são as seguintes:
1 - Impugnação da matéria de facto;
2. Qualificação jurídica dos factos;
3. Medida da pena.

                                                    *

Na sentença recorrida tiveram-se como provados os seguintes factos (transcrição):

“1.-  No dia 21 de Dezembro de 2012, pelas 13, 30 horas foi apreendido pela PSP, Covilhã, a solicitação do 1.º Juízo do Tribunal Judicial da Covilhã, no âmbito dos autos de execução n.º 296/11.2TACVL ( custas/multa/coima) em que é exequente o Ministério Público e executada a sociedade B... L.da,  o veículo de matrícula x..., marca Nissan, modelo CVLULEFD22UQN35, conduzido por A..., que o recebeu como fiel depositário e advertido da sua obrigação de o não utilizar ou alienar por qualquer forma e de o entregar quando lhe fosse exigido, e, ainda, advertido de que a referida utilização ou alienação o faria incorre no crime desobediência.

2)  No dia 21/12/2012, pelas 16, 15 horas, o arguido conduzia na via pública o referido veículo, o que fazia de forma livre, voluntária e consciente, bem sabendo que o não podia fazer,  por tal veículo estar aprendido, ser dele fiel depositário e que nessas circunstâncias lhe estava vedada a condução de tal veículo.

3- Sabia, além disso, que a sua conduta era proibida e punida por lei.

4–  O arguido tem antecedentes criminais que constam do CRC dos autos, entre os quais a prática de  crimes de idêntica natureza.

                                                                      *

A convicção do tribunal recorrido para a fixação da matéria de facto foi fundamentada nos seguintes termos (transcrição):

“A decisão da matéria de facto teve por base os documentos de fls. 4 (oficio do 1.º Juízo do Tribunal da Covilhã solicitando a apreensão do veículo), fls. 5 (auto de apreensão do veículo) e depoimentos do sr. agente da PSP C..., que procedeu à apreensão do veículo, tendo ele, de forma clara e objectiva, descrito o seu procedimento, nomeadamente ter advertido e explicado ao arguido de que não poderia utilizar, conduzindo, o veículo sob pena de incorrer na prática de um crime de desobediência; tal depoimento foi corroborado pelo prestado pelo sr. Agente D...;

Face ao teor de tais documentos e depoimentos não se valoraram as declarações do arguido no sentido de ter conduzido com autorização dos sr.s agentes da PSP.

Mais se valorou o certificado de registo criminal.”

                                                                      *

Não vislumbrando na sentença recorrida quaisquer dos vícios a que alude o artigo 410º nº 2 do Código de Processo Penal, entremos então na apreciação das questões suscitadas no recurso,

                                                    *

1. Começaremos por abordar a impugnação da matéria de facto.

Dispõe o artigo 428º do Código de Processo Penal (diploma a que se reportarão os demais normativos citados sem menção de origem) que as relações conhecem de facto e de direito. E segundo decorre do artigo 431º podem modificar a decisão do tribunal de 1ª instância sobre matéria de facto pela via da “revista alargada” dos vícios do artigo 410º nº 2 e através da impugnação ampla da matéria de facto regulada pelo artigo 412º.

Na revista alargada está em causa a apreciação dos vícios da decisão, cuja indagação tem de resultar do texto da decisão recorrida por si só ou conjugada com as regras da experiência comum, não sendo admissível o recurso a elementos estranhos à decisão, como os dados existentes nos autos ou resultantes da audiência de julgamento (cfr. Maia Gonçalves, Código de Processo Penal Anotado, Almedina, 17ª ed. pag. 948; Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, Vol III, Editorial Verbo, 3ª Edição 2009, pags. 333 e 334, e Simas Santos e Leal Henriques, Recursos em Processo Penal, 6ª ed., pag. 77).

Na segunda situação – impugnação ampla – a apreciação da matéria de facto alarga-se à prova produzia em audiência (se documentada), mas com os limites assinalados pelo recorrente em face do ónus de especificação que lhe é imposto pelos nºs 3 e 4 do artigo 412º, nos quais é estabelecido:
3 – Quando impugne a decisão proferida sobre matéria de facto, o recorrente deve especificar:
a) Os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados;
b) As concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida;
c) As provas que devem ser renovadas.
4 – Quando as provas tenham sido gravadas, as especificações previstas nas alíneas b) e c) do número anterior fazem-se por referência ao consignado na acta, nos termos do disposto no nº 2 do artigo 364º, devendo o recorrente indicar concretamente as passagens em que se funda a impugnação.
São estes os passos a cumprir em caso de impugnação da decisão sobre matéria de facto. Na especificação dos factos o recorrente deverá indicar o(s) concreto(s) facto(s) que consta(m) da sentença recorrida e que considere incorrectamente julgado(s). Quanto às provas, terá que especificar as concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida (ex: quando o recorrente se socorra da prova documental tem que concretizar o documento que demonstra o erro da decisão; quando se socorra de prova gravada tem que indicar o depoimento (ou depoimentos) em questão (por identificação da pessoa ou pessoas em causa), tem de mencionar a passagem ou passagens desse depoimento que demonstra erro em que incorreu a decisão e tem, conforme decorre no nº 4 atrás transcrito, que localizar esse excerto de depoimento no suporte que contem a gravação da prova, por referência ao tempo da gravação.
A exigência da lei ao estabelecer os requisitos da impugnação da matéria de facto fixada pelo tribunal recorrido deve-se à circunstância de o recurso sobre matéria de facto, apesar de incidir sobre a prova produzida e o seu reflexo na matéria assente, não configurar um novo julgamento. Se estivéssemos perante um novo julgamento as especificações/requisitos seriam, obviamente, destituídos de fundamento. Mas, sendo o recurso um remédio, então o que se pretende é corrigir concretos erros de julgamento respeitantes à matéria de facto. Por isso a lei impõe que os erros que o recorrente entende existirem estejam especificados e que as provas que demonstrem tais erros estejam também elas concretizadas e localizadas, tanto mais que, segundo estabelece ainda o nº 6 de tal artigo 412º, “No caso previsto no nº 4, o tribunal procede à audição ou visualização das passagens indicadas e de outras que considere relevantes para a descoberta da verdade e a boa decisão da causa.
Mas de todo o modo, sempre há que ter em atenção que numa concreta reapreciação da prova produzida em audiência de julgamento, como assinala o ac. do STJ de 12/06/2008, no proc. nº 07P4375, Relator Juiz Conselheiro Raul Borges (e acessível pelo site www.dgsi.pt) “sofre, no entanto, quatro tipos de limitações:
- desde logo, uma limitação decorrente da necessidade de observância, por parte do recorrente, de requisitos formais da motivação de recurso face à imposta delimitação precisa e concretizada dos pontos da matéria de facto controvertidos, que o recorrente considera incorrectamente julgados, com especificação das provas e referência ao conteúdo concreto dos depoimentos que o levam a concluir que o tribunal julgou incorrectamente e que impõem decisão diversa da recorrida, com o que se opera a delimitação do âmbito do recurso;
- já ao nível do poder cognitivo do tribunal de recurso, temos a limitação decorrente da natural falta de oralidade e de imediação com as provas produzidas em audiência, circunscrevendo-se o “contacto” com as provas ao que consta das gravações e/ou, ainda, das transcrições;
- por outro lado, há limites à pretendida reponderação de facto, já que a Relação não fará um segundo/novo julgamento, pois o duplo grau de jurisdição em matéria de facto não visa a repetição do julgamento em 2.ª instância; a actividade da Relação cingir-se-á a uma intervenção cirúrgica, no sentido de restrita à indagação, ponto por ponto, da existência ou não dos concretos erros de julgamento de facto apontados pelo recorrente, procedendo à sua correcção se for caso disso, e apenas na medida do que resultar do filtro da documentação;
- a juzante impor-se-á um último limite, que tem a ver com o facto de a reapreciação só poder determinar alteração à matéria de facto se se concluir que os elementos de prova impõem uma decisão diversa e não apenas permitem uma outra decisão.” (sublinhado e sombreado nossos)
Acrescenta-se, em consonância com o atrás descrito, que a reapreciação da prova na 2ª instância limita-se a controlar o processo de formação da convicção expressa da 1ª instância e da aplicação do princípio da livre apreciação da prova, tomando sempre como ponto de referência a motivação/fundamentação da decisão, sendo que no recurso de impugnação da matéria de facto o tribunal ad quem não vai à procura de nova convicção – a sua – mas procura inteirar-se sobre se a convicção expressa pelo tribunal recorrido na fundamentação tem suporte adequado da prova produzida e constante da gravação da prova por si só ou conjugada com as regras da experiência e demais prova existente nos autos (pericial, documental, etc.). Neste enquadramento, podendo o controlo da matéria de facto ter por base a gravação e/ou transcrição dos depoimentos prestados ou analisados em audiência de julgamento, importa ter sempre presente que não se pode, a qualquer preço, subverter ou aniquilar a livre apreciação da prova do julgador, construída, dialecticamente, na base da imediação e da oralidade, nunca esquecendo as palavras do Prof. Figueiredo Dias (in Direito Processual Penal, 1º Vol., Reimpressão, Coimbra Editora, 1984, pags 233 e 234) que só os princípios da imediação e da oralidade “… permitem … avaliar o mais correctamente possível a credibilidade das declarações pelos participantes processuais”.

Para fundamentar o erro de julgamento quando aos factos que põe em causa e que considera que não se provaram da forma como tinha tido fixada pelo tribunal a quo, o recorrente, para além de referir nunca ter sido sequer advertido de que incorria na prática de um crime de desobediência, faz uma transcrição de apenas três frases prestadas em sede de audiência pela testemunha D....

Por outro lado, invoca que do auto de apreensão de fls. 4 (tratar-se-á de um lapso ao mencionar fls. 4, uma vez que o auto de apreensão consta a fls. 6, lapso esse que também consta na sentença quando se diz que tal auto de apreensão consta a fls. 5) não decorre que tenha sido constituído como fiel depositário, mas apenas que o tenha assinado como proprietário.

Ora, desde logo, e no que à prova de carácter oral diz respeito, tal não é propriamente indicar provas que imponham decisão diversa. O depoimento da testemunha D... tem que ser apreciado no seu todo e, em conjugação com todos os elementos trazidos aos autos. Certamente terá sido no conjunto de todos os elementos que o tribunal fundou a sua convicção, como parece depreender-se da leitura da motivação da matéria de facto.

O que o recorrente, à primeira vista, parece fazer nesta parte da sua peça recursória é impugnar a convicção adquirida pelo tribunal a quo sobre determinados factos em contraposição com a que sobre os mesmos ele adquiriu em julgamento, esquecendo a regra da livre apreciação da prova inserta no art 127.

De acordo com o disposto no art. 127º a prova é apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção da entidade competente.

O art. 127 do Código Processo Penal estabelece três tipos de critérios para avaliação da prova, com características e naturezas completamente diferentes: uma avaliação da prova inteiramente objectiva quando a lei assim o determinar; outra também objectiva, quando for imposta pelas regras da experiência; finalmente, uma outra, eminentemente subjectiva, que resulte da livre convicção do julgador.

A prova resultante da livre convicção do julgador pode ser motivada e fundamentada mas, neste caso, a motivação tem de se alicerçar em critérios subjectivos, embora explicitados para serem objecto de compreensão” (Ac STJ de 18/1/2001, proc nº 3105/00-5ª, SASTJ, nº 47,88).

Tal como diz o Prof Germano Marques da Silva, no Curso de Processo Penal, Vol II, pag 131 “... a liberdade que aqui importa é a liberdade para a objectividade, aquela que se concede e que se assume em ordem a fazer triunfar a verdade objectiva, isto é, uma verdade que transcende a pura subjectividade e que se comunique e imponha aos outros. Isto significa, por um lado, que a exigência de objectividade é ela própria um princípio de direito, ainda no domínio da convicção probatória, e implica, por outro lado, que essa convicção só será válida se for fundamentada, já que de outro modo não poderá ser objectiva”.

Ou seja, a livre apreciação da prova realiza-se de acordo com critérios lógicos e objectivos.

Sobre a livre convicção refere o Professor Cavaleiro de Ferreira que esta « é um meio de descoberta da verdade, não uma afirmação infundada da verdade» -Cfr. "Curso de Processo Penal", Vol. II , pág.30. Por outras palavras, diz o Prof. Figueiredo Dias que a convicção do juiz é "... uma convicção pessoal - até porque nela desempenha um papel de relevo não só a actividade puramente cognitiva mas também elementos racionalmente não explicáveis (v.g. a credibilidade que se concede a um certo meio de prova) e mesmo puramente emocionais -, mas em todo o caso, também ela uma convicção objectivável e motivável, portanto capaz de impor-se aos outros. (…) Um tal convicção existirá quando e só quando … o tribunal tenha logrado convencer-se da verdade dos factos para além de toda a dúvida razoável" (in Direito Processual Penal, 1º Vol., Coimbra Editora, Reimpressão, 1984, páginas 203 a 205).

O princípio da livre apreciação da prova assume especial relevância na audiência de julgamento, encontrando afloramento, nomeadamente, no art. 355º do Código de Processo Penal. É ai que existe a desejável oralidade e imediação na produção de prova, na recepção directa de prova.

Nas palavras do Prof. Germano Marques da Silva "... a oralidade permite que as relações entre os participantes no processo sejam mais vivas e mais directas, facilitando o contraditório e, por isso, a defesa, e contribuindo para alcançar a verdade material através de um sistema de prova objectiva, atípica, e de valoração pela intima convicção do julgador (prova moral), gerada em face do material probatório e de acordo com a sua experiência de vida e conhecimento dos homens". -Cfr. "Do Processo Penal Preliminar", Lisboa, 1990, pág. 68”.

O princípio da imediação diz-nos que deve existir uma relação de contacto directo, pessoal, entre o julgador e as pessoas cujas declarações irá valorar, e com as coisas e documentos que servirão para fundamentar a decisão da matéria de facto.

Citando ainda o Prof. Figueiredo Dias, ao referir-se aos princípios da oralidade e imediação diz o mesmo: «Por toda a parte se considera hoje a aceitação dos princípios da oralidade e da imediação como um dos progressos mais efectivos e estáveis na história do direito processual penal. Já de há muito, na realidade, que em definitivo se reconheciam os defeitos de processo penal submetido predominantemente ao principio da escrita, desde a sua falta de flexibilidade até à vasta possibilidade de erros que nele se continha, e que derivava sobretudo de com ele se tomar absolutamente impossível avaliar da credibilidade de um depoimento. (...). Só estes princípios, com efeito, permitem o indispensável contacto vivo e imediato com o arguido, a recolha da impressão deixada pela sua personalidade. Só eles permitem, por outro lado, avaliar o mais correctamente possível a credibilidade das declarações prestadas pelos participantes processuais " (in Direito Processual Penal, 1º Vol., Coimbra Editora, Reimpressão, 1984, páginas 233 a 234).

Assim, e para respeitarmos estes princípios se a decisão do julgador, estiver fundamentada na sua livre convicção e for uma das possíveis soluções segundo as regras da experiência comum, ela não deverá ser alterada pelo tribunal de recurso. Como se diz no sumário do acórdão da Relação de Coimbra, de 6 de Março de 2002 (in C.J., ano XXVII, Tomo II, página 44) "quando a atribuição da credibilidade a uma fonte de prova pelo julgador se basear na opção assente na imediação e na oralidade, o tribunal de recurso só a poderá criticar se ficar demonstrado que essa opção é inadmissível face às regras da experiência comum".

Tecidas estas considerações que devem ser tidas em conta quando é impugnada a matéria de facto sob a perspectiva da invocação de erro de julgamento, apreciemos agora as questões suscitadas pelo recorrente no que a tal matéria respeita.


Invoca o mesmo que o tribunal deveria ter julgado não provado que “1. No dia 21 de Dezembro de 2012, pelas 13:30 horas A..., que o recebeu como fiel depositário e advertido da sua obrigação de o não utilizar ou alienar por qualquer forma e de o entregar quando lhe fosse exigido, e, ainda, advertido de que a referida utilização ou alienação o faria incorrer no crime de desobediência” e ‘fazia de forma livre, voluntária e consciente, bem sabendo que não o podia fazer, por tal veículo estar apreendido, ser dele fiel depositário e que nessas circunstâncias lhe estava vedada a condução de tal veículo.
Ou seja, se bem tentamos perceber, e após efectuarmos uma comparação com os factos que o tribunal deu como provados, no essencial, o recorrente considera terem sido incorrectamente dados como provados os factos, ou segmentos dos factos, 1 e 2.

Recordemos os factos 1 e 2 que o tribunal recorrido deu como provados:

“1.-  No dia 21 de Dezembro de 2012, pelas 13, 30 horas foi apreendido pela PSP, Covilhã, a solicitação do 1.º Juízo do Tribunal Judicial da Covilhã, no âmbito dos autos de execução n.º 296/11.2TACVL ( custas/multa/coima) em que é exequente o Ministério Público e executada a sociedade B... L.da,  o veículo de matrícula x..., marca Nissan, modelo CVLULEFD22UQN35, conduzido por A..., que o recebeu como fiel depositário e advertido da sua  obrigação de o não utilizar ou alienar por qualquer forma e de o entregar quando lhe fosse exigido, e, ainda, advertido de que a referida utilização ou alienação o faria incorre no crime desobediência.

2)  No dia 21/12/2012, pelas 16, 15 horas, o arguido conduzia na via pública o referido veículo, o que fazia de forma livre, voluntária e consciente, bem sabendo que o não podia fazer,  por tal veículo estar aprendido, ser dele fiel depositário e que nessas circunstâncias lhe estava vedada a condução de tal veículo.

Para fundamentar o erro de julgamento quando aos factos ou segmentos dos factos que põe em causa e que considera que não se provaram (os factos 1 e 2), e no que à prova oral respeita, como atrás dizemos o recorrente para além de referir nunca ter sido sequer advertido de que incorria na prática de um crime de desobediência, faz uma transcrição truncada e descontextualizada de apenas três frases prestadas em sede de audiência pela testemunha D... (embora, por lapso ou não, tenha omitido o depoimento da testemunha C..., depoimento este a que, de acordo com a motivação constante da sentença, o tribunal deu primordial relevância).

Auscultando o depoimento da testemunha D... (agente da PSP) pela mesma foi dito ter presenciado a parte final da apreensão. A palavras suas disse, efectivamente: “presenciei a parte processual da apreensão e depois a detenção” (cfr. minuto 00.55 a 1.04 do seu depoimento) Mencionando terem ocorrido em momentos distintos, disse: “A apreensão do veículo sucedeu pelas 13.30, sensivelmente, e a detenção pelas 16.15” (cfr. minuto 1.11 a 1.20). Depois, a perguntas por parte do magistrado do Ministério Público sobre se o arguido tinha conhecimento de que não podia circular com o veículo em causa e se no acto de acto da apreensão foi advertido de que não podia circular com tal veículo, a testemunha respondeu: “Exactamente … e tenho conhecimento também que antes da minha chegada já tinha sido advertido pelo meu colega e por outro elemento que, aliás, é testemunha na apreensão do veículo, também que tinha sido advertido precisamente para isso. E na minha presença quando foi entregue o, portanto, duplicado da apreensão também foi advertido dessa situação embora venha lá explícito no auto de apreensão” (cfr. minuto 4.15 a 4.37 do depoimento desta testemunha).

Ou seja, o depoimento desta testemunha (que foi valorado pelo tribunal recorrido na fixação dos factos provados), diferentemente do que o recorrente pretendia dar a entender, vai no sentido de confirmar positivamente os factos que o recorrente pretendia que fossem dados como não provados. Ou, por outras palavras, longe de impor uma decisão diversa quanto aos factos que o tribunal a quo fixou, a audição sequencial do depoimento da testemunha até vai no sentido de comprovar e reforçar os factos apurados e postos em causa pelo recorrente.

Para além disso, e embora o recorrente não tivesse feito alusão ao depoimento da testemunha C... (testemunha esta que o tribunal recorrido evidenciou ter dado toda a credibilidade e para isso decidimos ouvir a gravação em consonância do que permite o nº 6 do artigo 416º do Código de Processo Penal), auscultando o depoimento desta testemunha C... ressalta que, a dado passo a mesma disse: “Quer eu quer o meu colega alertamos na altura o fiel depositário, o senhor A... de que o veículo não podia ser utilizado … de que não podia conduzir aquele veículo (cfr. minuto 1.26 a 1.38 do depoimento desta testemunha). E mais à frente esta testemunha disse que, apesar da apreensão, o arguido levou o carro “embora tivesse sido avisado quer por mim quer pelo meu colega Carvalho que não podia utilizar o carro. Foi informado que não pode utilizar o carro, que se o fizesse incorria num crime de desobediência tal qual como assinou no auto de apreensão” (cfr. minuto 5.30 a 5.47 do seu depoimento).

Ou seja, e apesar da negação por parte do arguido de que tenha sido nomeado fiel depositário, do depoimento de ambas as testemunhas atrás referidas decorre que o arguido aquando da apreensão foi nomeado fiel depositário e advertido de que incorria num crime de desobediência caso utilizasse o veículo.

Vejamos agora o auto de apreensão constante de fls. 6:

Refere o recorrente que apenas assinou tal auto como proprietário e não como fiel depositário.

Não assiste razão ao recorrente. Analisando o auto de apreensão de veículo de fls. 6 (e não de fls. 4 como refere o recorrente nem como fls. 5 como é dito na sentença) resulta do mesmo, na parte que tem relevância para a questão em análise:

AUTO DE APREENSÃO DE VEÍCULO

Aos vinte e um dias do mês de Dezembro do ano de dois mil e doze, pelas 13 H 30, na Divisão Policial da Covilhã, eu C... (…)procedi à apreensão do veículo de matrícula x..., de marca Nissan, Modelo CVLULEFD22UQN35 (…), conduzido por A..., residente em (...) -Covilhã Titular do B.I. n° (...) e Carta de condução n.° (...) registado em nome de B... Lda., residente em (...) – Covilhã.

(…)

X  Em cumprimento do disposto no determinado no ofício nº 2679118 do 1º Juízo do Tribunal Judicial da Covilhã

(…)

O veículo foi entregue a ___________________________ titular do Doc. Identificação n.°____________________________________ residente em_______________________________

que o recebeu como Fiel Depositário, com a obrigação de o não utilizar ou alienar por qualquer forma e de o entregar quando lhe for exigido sob as penas da lei e de que a referida utilização ou alienação o fará incorrer no CRIME DE DESOBEDIENCIA.

E por ser verdade foi elaborado o presente auto que depois de lido na presença do detentor e das testemunhas vai ser assinado.”

A seguir ao atrás enunciado, tal auto mostra-se assinado por debaixo da expressão “Autuante”, por debaixo da parte expressão “O Proprietário/Fiel Depositário (onde está aposta a assinatura do arguido-recorrente) e por debaixo da expressão “Testemunha”.

Ora, apesar de em tal auto não estar expressamente mencionado que tenha sido feita a entrega do veículo ao arguido, ao contrário do por este alegado, da leitura contextualizada do mesmo auto não ressaltam quaisquer dúvidas que foi entregue ao arguido que o recebeu na qualidade de fiel depositário. Decorre desse mesmo auto, de modo contextualizado e lógico, que tal veículo era conduzido pelo arguido e que depois da apreensão este o recebeu como fiel depositário, com a obrigação, entre outras coisas, de o não utilizar e de que a referida utilização o faria incorrer no crime de desobediência. E para essa única interpretação ainda acresce que as únicas pessoas físicas mencionadas no auto são o autuante C... e o arguido (condutor/detentor do veículo que o recebeu como proprietário/fiel depositário), pessoas essas que assinam o auto, para além de uma testemunha que também assina o mesmo auto. Por isso, repetimos, contextual e logicamente, de tal auto apenas é possível a interpretação (e o arguido bem sabe disso face ao que disseram as testemunhas supra referidas e ao facto de ter assinado o auto por debaixo da expressão “proprietário/fiel depositário”) de que o arguido foi nomeado fiel depositário do veículo em causa, com a obrigação de não o utilizar e de que a referida utilização o faria incorrer no crime de desobediência.

Por outro lado, e no que aos factos de cariz subjectivo diz respeito, importa não esquecer que relevantes, no domínio probatório, para além dos meios de prova directos, são os procedimentos lógicos para prova indirecta, de conhecimento ou dedução de um facto desconhecido a partir de um facto conhecido: as presunções.

O artigo 349.º do Código Civil prescreve que «presunções são as ilações que a lei ou o julgador tira de um facto conhecido para afirmar um facto desconhecido», sendo admitidas as presunções judiciais nos casos e termos em que é admitida a prova testemunhal (artigo 351.º do mesmo diploma).

Ora, a posterior conduta voluntária na condução do veículo que tinha sido apreendido poucas horas antes pela entidade policial, faz também presumir a consciência da ilicitude do acto, presunção essa perfeitamente decorrente das regras da experiência comum.

Daí que, tendo em conta que o tribunal recorrido expressou de modo circunstanciado, pormenorizado e exaustivo como formulou a sua convicção quanto aos factos provados a partir dos meios de prova a que teve acesso, conferindo maior credibilidade a uns depoimentos do que a outros, e não descortinando nós que se tenha servido de meio proibidos de prova nem que o raciocínio da sua convicção fosse contra as regras da experiência, nada da matéria de facto há a alterar pelo que se mantêm os factos como provados naquela decisão recorrida e questionados pelo recorrente nas conclusões.

Assim, improcede a pretensão do recorrente quanto à alteração da matéria de facto que havia sido fixada pelo tribunal a quo.

                                         *

2. Em segundo lugar, invoca o recorrente que não se mostram preenchidos os elementos objectivos e subjectivos do crime de desobediência por foi condenado pelo tribunal a quo.

Desde já diremos que apenas em parte assiste razão ao arguido, uma vez que os factos apurados pelo tribunal recorrido e supra por nós confirmados, integram apenas e tão só um crime de desobediência simples p. e p. pelo artigo 348º nº 1 b) do Código Penal, e não um crime de desobediência qualificada p. e p. pelos arts 348º nº 2 do Código Penal e 22º nºs 1 e 2 do Decreto-Lei nº 54/75, de 24 de Fevereiro conforme vinha acusado e tinha sido condenado em primeira instância.

Vejamos.

Dispõe o art. 348, nº 1 do CPenal que pratica um crime de desobediência simples quem faltar à obediência devida a ordem ou mandado legítimos, regularmente comunicados e emanados de autoridade ou funcionário competente, se uma disposição legal cominar, no caso, a punição da desobediência simples ou na ausência de disposição legal, a autoridade ou funcionário fizerem a correspondente cominação, cuja moldura penal abstracta é prisão até um ano ou pena de multa até 120 dias.

O nº 2 de tal artigo 348º estipula que “a pena é de prisão até dois anos ou de multa até 240 dias nos casos em que uma disposição legal cominar a punição da desobediência qualificada”.

Considerou o tribunal recorrido que o arguido cometeu o crime de desobediência qualificada p. e p. pelo art 348, nº 2 do CPenal, com referência ao artigo 22º nº 1 e 2 do Decreto-Lei nº 54/75, de 12 de Fevereiro (certamente por lapso tinha sido exarada a data de 24 de Fevereiro, tanto na acusação como na sentença).

O artigo 22º do Decreto-Lei nº 54/75 de 12 de Fevereiro estatui:

Que a apreensão, a penhora e o arresto envolvem a proibição de o veículo circular” e o nº 2 estabelece que “a circulação do veículo com infracção da proibição de circular sujeita o depositário às sanções aplicáveis ao crime de desobediência qualificada”.

Se analisarmos bem este normativo e, tal como o artigo 16º do mesmo diploma (que também prevê a cominação de desobediência qualificada), bem como o preâmbulo do diploma em análise que refere “A legislação sobre registo de propriedade automóvel, muito embora já tenha sido objecto de sucessivas alterações, orientadas no sentido de abreviar a execução dos actos de registo, consagra um sistema ainda demasiado complexo, por excessivamente apegado às normas aplicáveis ao registo predial, que tradicionalmente lhe têm servido de paradigma.

Na verdade, mormente sob o ponto de vista formal, os serviços de registo automóvel mantêm-se, em grande parte, subordinados a certos princípios de técnica registral que, adequados ao registo de imóveis para que foram directamente concebidos, não se compadecem com a celeridade requerida pelo enorme volume do comércio jurídico dos veículos automóveis, em constante e intensivo incremento”, temos de concluir que o DL nº 54/75, de 12 de Fevereiro, tem como finalidade regular as normas que disciplinam o registo da propriedade automóvel. Logo, quer a norma do artigo 16º quer a acima citada do artigo 22º têm apenas aplicabilidade no âmbito específico do registo de propriedade de veículos e respectivos documentos (neste sentido, cfr. entre outros o Acórdãos desta Relação de Coimbra de 07/03/2007 e de 09/01/2008, ambos disponíveis em www.dgsi.pt).

Portanto, no caso em análise é inaplicável o art 22 do DL nº 54/75, de 12/2, uma vez que este diploma apenas se debruça sobre o registo de propriedade automóvel e a apreensão nele regulamentada e também a apreensão regulamentada no artigo 16º de tal diploma, tal como vem referido no Ac do TRP de 19/10/95 “têm a ver com o conjunto de faculdades que o titular do registo pode desenvolver em determinadas situações, como é o caso de se ter vencido e não pago o crédito hipotecário ou não cumpridas as obrigações que originaram a reserva de propriedade – podendo requerer em juízo a apreensão do veículo (art 15)”.

Assim, na sequência do que deixámos dito e face à matéria de facto apurada a conduta do arguido integra o crime de desobediência (simples) p e p. pelo art 348, nº 1, al. b) do Código Penal (e não o 348º nº 2 do mesmo Código, conjugado com o artigo 22º nºs 1 e 2 do Decreto-Lei nº 54/75), cuja moldura penal abstracta é de prisão até um ano ou multa até 120 dias (sendo que a moldura do crime de desobediência qualificada é de prisão até 2 anos ou multa até 240 dias).

Com efeito, da matéria de facto decorre que o veículo de matrícula x... que o arguido conduzia lhe tinha sido apreendido pela PSP, tendo sido nomeado o arguido como seu fiel depositário e advertido que a sua utilização o faria incorrer em crime de desobediência – repare-se que até nos factos provados, tal como também consta do auto de apreensão de fls. 6, apenas é feita alusão a “crime de desobediência” (e não a desobediência qualificada).

Por isso, temos que os factos apurados integram apenas e tão só o crime de desobediência simples p. e p. pelo artigo 348º nº 1 b) do Código Penal, normativo este que deverá servir de base à condenação do arguido (e não o artigo 348º nº 2). E porque esta alteração é apenas da qualificação jurídica para o tipo legal de crime base e, por isso, em benefício do arguido (repare-se que se desce para metade da moldura abstracta inicialmente considerada pelo tribunal recorrido) desnecessário se torna dar cumprimento ao disposto no artigo 358º nº 3 do Código de Processo Penal (neste sentido se pronunciam, entre outros, o Cons. Maia Gonçalves, no “Código de Processo Penal anotado”, Almedina, 2009, pág. 815 e o Prof. A... Pinto de Albuquerque, no "Comentário do Código de Processo Penal", Univ. Católica Editora, 4ª edição, a páginas 930 e 931. A nível jurisprudencial podem ver-se, entre outros, os acórdão do STJ de 12 de Setembro de 2007, proferido no proc. n.º 07P2596 e de 10/03/2004 proferido no proc. nº 4024/03 3ª e o Ac desta Relação de Coimbra de 14/09/2011).

E não se diga, como pretende fazer o recorrente, que a ordem de apreensão era ilegítima do ponto de vista formal e substancial.

Com efeito, independentemente dos motivos que possam ter determinado a apreensão, inexiste normativo legal que proíba a apreensão de um veículo. Saber ser tal apreensão, depois de concretizada, tinha sido desproporcionada ou era ilegal, teria que ser discutida, através dos meios processuais adequados, no âmbito do processo de onde adveio essa determinação de apreensão – ou seja no âmbito da Execução Comum nº 296/11.2TACVL, do 1º Juízo do Tribunal Judicial da Covilhã (face ao teor do ofício cuja cópia consta a fls. 5, ofício esse que serviu de base à actuação da PSP para a apreensão em causa) e não no âmbito do presente processo crime.

Por outro lado, decorre dos arts 6º, 15 e 16 da Lei nº 53/2007, de 31 de Agosto (Lei da Orgânica da Polícia de Segurança Pública) que sobre a PSP incumbe o dever de colaboração e coadjuvação com as autoridades públicas e tribunais e, bem assim que quer as entidades públicas quer privadas podem solicitar a colaboração da PSP.

Nesta sequência, a actuação da PSP em proceder à solicitada apreensão do veículo em causa enquadra-se no âmbito das suas atribuições e competências. E nessa decorrência, após a apreensão do veículo e nomeação de fiel depositário, assistia ao agente da PSP apreensor toda a legitimidade para ordenar ao fiel depositário que não poderia utilizar tal veículo enquanto se mantivesse a apreensão e advertir o mesmo que essa utilização o faria incorrer em crime de desobediência.

Por isso, a apreensão efectuada e subsequente ordem de não utilização com a cominação do crime de desobediência para a sua violação, enquadram-se no âmbito dos requisitos exigido pelos artigo 348º nº 1 b) do Código Penal.

Assim, e com a ressalva da alteração da qualificação jurídica do crime de desobediência qualificado para o crime de desobediência simples, improcedem os argumentos do recorrente.

                                                    *

3. Invoca ainda o recorrente que a pena que lhe foi aplicada é exagerada quer na determinação da medida concretamente aplicada quer na determinação da taxa diária.

O tribunal recorrido, partindo do entendimento que a conduta do arguido integrava o crime de desobediência qualificada (e por isso punível com pena de prisão de 1 mês a 2 anos de prisão ou multa de 10 a 240 dias) condenou o arguido numa pena de 135 dias de multa à taxa diária de €7.

Sendo certo que, por força da alteração da qualificação jurídica supra determinada o limite máximo da moldura abstracta da pena é de 120 dias de multa (motivo pelo qual jamais poderá manter-se uma condenação em 135 dias de multa), mesmo assim, vejamos quais os argumentos utilizados para a determinação da pena a que chegou o tribunal recorrido.

“b) Da medida concreta da pena:

(…)

Na determinação da medida da pena, dentro dos limites definidos na lei, o tribunal atenderá à culpa do agente e às exigências de prevenção bem como a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo, depuserem a favor do agente ou contra ele (artigo 71.º, n.os 1 e 2, do Código Penal).

 As finalidades de aplicação de uma pena assentam, em primeira linha, na tutela de bens jurídicos e na reintegração do agente de sociedade. Contudo, em caso algum, a pena pode ultrapassar a medida da culpa (artigo 40.º, n.os 1 e 2, do Código Penal).

Os concretos factores de medida da pena, constantes do elenco, não exaustivo, do n.º 2 do artigo 71.º do CP, relevam tanto pela via da culpa como pela via da prevenção.

No caso, militam contra o arguido a actuação com dolo directo, intensa culpa, antecedentes criminais, (além de outros condenação por crimes idênticos (em 2005 e 2006).

Assim, ponderando em conjunto todos os factos e, ainda, que as anteriores condenações pela prática de idênticos crimes são dos anos de 2005 e 2006), entende-se, ainda, ser a pena de multa suficiente para o demover de persistir na sua conduta desviante ….

  A taxa diária (artº 47º do Código Penal) pode variar entre 5 e 500 euros em função da situação económica e financeira do condenado e dos seus encargos pessoais.

Não se apuraram os rendimentos do arguido.

Todavia, porque a pena há-de representar sacrifício para o arguido, de modo a fazê-lo sentir o quão grave foi a sua conduta e as possíveis consequências para o caso de reiterar na prática criminosa, fixa-se a taxa diária em 7 euros.

Foi esta a argumentação utilizada pelo tribunal a quo, desde já nos sendo permitindo discordar dos argumentos utilizados para a fixação dos €7, argumentos esses que estão desenquadrados do que estabelece o nº 2 do artigo 47º do Código Penal, dado que a taxa diária da multa é fixada pelo tribunal “em função da situação económica e financeira do condenado e dos seus encargos pessoais”.

Desenvolvendo algo mais do que fez o tribunal recorrido, importa ter presente que a aplicação de uma pena tem como finalidade a protecção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade, de harmonia com o disposto no art. 40.º, n.º 1, do C. Penal. Assim, a pena não tem um fim retributivo, a sua aplicação pauta-se, em primeira linha, pelas exigências de prevenção geral positiva ou de integração; a pena visa a reafirmação contrafáctica da norma violada (nas palavras do ilustre Professor Figueiredo Dias) e a estabilização das expectativas comunitárias na validade da norma violada.

Nos termos do preceituado no n.º 2 do art. 40.º do C. Penal, a culpa é um pressuposto irrenunciável e um limite inultrapassável da aplicação de uma pena. De facto, não há pena sem culpa e, jamais, a pena pode ultrapassar a medida da culpa, sob pena de violação da dignidade humana, princípio fundamental de um Estado de Direito Democrático.

Acompanhando o Professor Figueiredo Dias, in Direito Penal Português - As consequências jurídicas do crime, Editorial Notícias, Coimbra, 1993, pag. 213 e ss., diríamos que a prevenção geral positiva fornece uma moldura de prevenção, em que o limite máximo expressa a medida óptima de tutela dos bens jurídicos, ainda consentida pela culpa, e o limiar mínimo, aquele abaixo do qual já não é comunitariamente suportável a fixação de uma pena, sem se pôr em causa a defesa dos bens jurídicos.

Dentro desta moldura de prevenção geral actuam as exigências de prevenção especial sentidas no caso, tendo como função primordial a socialização do agente e a sua reintegração social e como função subordinada a intimidação individual.

Feita esta análise sobre as finalidades punitivas, analisaremos o caso concreto.

O crime de desobediência (simples), como atrás referimos, é punível com pena de prisão até 1 ano ou com pena de multa até 120 dias, nos termos do preceituado nos art.s 348º nº 1 b) e 47.º nº 1 do C.P.

Tendo o tribunal recorrido decidido optar pela pena de multa (em detrimento da pena de prisão), e considerando que o recurso foi interposto pelo arguido, face à proibição da reformatio in pejus estabelecida no artigo 409º do Código de Processo Penal e não obstante os antecedentes criminais do arguido, perde toda utilidade qualquer discussão acerca da opção entre pena a pena de prisão e a pena de multa, no âmbito do que prevê o artigo 70º do Código Penal. Sendo a pena de multa, obviamente, mais favorável ao arguido ter-se-á que manter a opção pela da pena de multa que havia sido feita pelo tribunal recorrido.

Para determinar o quantum de pena adequado à culpa e à prevenção há que ponderar as circunstâncias gerais presentes no caso concreto que, revelando pela via da culpa ou pela via da prevenção, deponham a favor ou contra o arguido, sempre com respeito pelo princípio da proibição da dupla valoração (art.s 47.º nº 1 e 71.º nºs 1 e 2 do C. Penal). O n.º 2 do art. 71.º estabelece uma enumeração não taxativa destas circunstâncias, que auxilia o julgador na tarefa, não fácil, de individualização judicial da pena.

Assim, na determinação das penas a aplicar teremos de ponderar:

- a gravidade do ilícito em causa e o grau da ilicitude dos factos [71.º/2, al. a) do CP];

- a intensidade do dolo na sua forma directa, que releva pela via da culpa [71.º/2, al. b)];

- os motivos que determinaram o crime, relevando também pela via da culpa [71.º/2, al. c)];

- a conduta anterior e posterior do arguido, sendo de atender a que do seu CRC constante de fls. 11 a 18 já contavam quatro condenações por crimes de desobediência ocorridas entre 2006 e 2008 (todas elas em penas de multa), pelo que as exigências de prevenção especial são prementes.

As exigências de prevenção geral são elevadas quanto a este tipo de criminalidade, dado o número elevado de crimes praticados na sociedade actual e no nosso país.

Ponderadas todas as circunstâncias atenuantes e agravantes, efectuado um juízo de culpa e analisadas as exigências de prevenção geral e especial, mostra-se adequado aplicar uma pena que se situe perto do máximo da moldura abstracta, ou seja uma pena de 110 dias de multa.

Todas as considerações antecedentes, atinentes quer à culpa, quer à prevenção, devem exercer unicamente influência sobre a determinação do número de dias de multa, não sobre o quantitativo diário que se torna, agora, necessário fixar.

Quanto ao quantitativo diário da pena de multa, decorre do nº 2 do artigo 47º do Código Penal que é em função da situação económica e financeira do condenado e dos seus encargos pessoais que se fixa o montante diário da pena de multa a encontrar dentro de uma moldura abstracta que se situa entre os €5 e os €500 diários.
Parafraseando os ensinamentos de Américo Taipa de Carvalho, in Jornadas de Direito Criminal, Revisão do Código Penal, Vol. II, Coimbra Editora, Coimbra, pg. 24, “a multa, enquanto sanção penal, não pode deixar de ter um efeito preventivo e, portanto, não pode deixar de ter uma natureza de pena ou sofrimento, isto é e, por outras palavras, não pode o condenado a multa deixar de a sentir “na pele” (….) inequivocamente que o legislador de 1995 quis acabar com a difundida (judicial e socialmente) ideia de que a pena de multa de pena só tinha nome, pois que, na realidade, não passaria de uma forma de absolvição, isto é, de irresponsabilização penal do infractor.”
O montante diário da multa deve ser fixado em termos de se constituir um sacrifício real para o condenado sem, no entanto, deixar de lhe serem asseguradas as disponibilidades indispensáveis ao suporte das suas necessidades e do respectivo agregado familiar (cfr. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 02/10/97, in CJ, Tomo III, pg. 183). Este montante não deve ser doseado por forma a que tal sanção não represente qualquer sacrifício para o condenado, sob pena de se estar a desacreditar esta pena, os tribunais e a própria justiça, gerando um sentimento de insegurança, de inutilidade e de impunidade - Acórdãos do Tribunal da Relação de Coimbra de 13/7/95, in CJ, Tomo IV, pg. 48 e do Tribunal da Relação de Lisboa de 21/11/02, processo n.º0079079, n.º convencional JTRL00045148, Relator Dr. Cid Monteiro, disponível para consulta em www.dgsi.pt.
É exigível que o condenado sofra sacrifício para pagar a multa. Esse sacrifício é co-natural à expiação que a imposição da pena provoca. Serve isto para dizer que na fixação da taxa diária da multa não cabe propriamente atender ao quantitativo que o condenado pode facilmente disponibilizar, mas bem ao quantitativo que só com um efectivo sacrifício patrimonial pode ser satisfeito. A lei, ao prefigurar a hipótese de pagamento da multa em prestações, está justamente a inculcar a ideia de que o quantitativo da multa não tem que se limitar àquilo que o condenado pode imediata e facilmente disponibilizar (cfr. Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 16/01/02, processo n.º0140696, n.ºconvencional JTRP00033562, Relator Dr. Manso Rainho, disponível para consulta em www.dgsi.pt.)
Ainda quanto a esta questão refere Figueiredo Dias “O silêncio do nosso CP sobre os critérios que devem ser tomados em conta para determinar a situação económica e financeira do condenado só pode significar (…) o desejo do legislador de oferecer ao juiz o maior campo possível de eleição de factores relevantes. É seguro que deverá atender-se (…) à totalidade dos rendimentos próprios do condenado, qualquer que seja a sua fonte (do trabalho, por conta própria ou alheia, como do capital; de pensões, como de seguros), com excepção de abonos, subsídios eventuais, ajudas de custo e similares. Como é seguro que àqueles rendimentos hão-de ser deduzidos os gastos com impostos, prémios de seguro e encargos análogos” – (cf. “Direito Penal Português – As Consequências Jurídicas do Crime”, Editorial Notícias, 1993, pag. 129.
Tecidas estas considerações, importa ter agora presente no que a esta parte respeita (situação económico financeira e encargos pessoais do arguido) da decisão recorrida não consta apurado qualquer facto.
Incumbia ao tribunal recorrido, diligenciar por tal apuramento o que não foi feito.
Todavia, podemos reter que aquando da sua identificação o arguido disse que era “casado” (estado civil esse confirmado pelo teor do documento de fls. 10) e a sua profissão é “motorista”.

Sendo certo que o desconhecimento da sua concreta situação económica não pode ser ultrapassado em desfavor do arguido, tendo por base a sua situação de casado e o facto de ser motorista, conjugado o custo de vida neste país (não esquecendo que a moldura da taxa diária da oscila entre €5 a €500 mas que também se desconhece se ocorreu alguma melhora sensível da situação económica para ampliar a taxa diária que havia sido fixada – o que a ter acontecido seria permitido ampliar a taxa diária que havia sido determinada face ao nº 2 do artigo 409º do Código de Processo Penal), parece-nos razoável e equilibrada a taxa diária que havia sido fixada pelo tribunal recorrido, ou seja de €7.
Assim, e pelo que acabamos de dizer quanto a esta última questão em análise, reduzindo-se a pena de multa para 110 dias, deverá manter-se a taxa diária de €7.
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III – DISPOSITIVO:

Nos termos expostos, acordam em conferência nesta secção criminal do Tribunal da Relação de Coimbra nos seguintes termos:

1. Alterando a qualificação jurídica e a condenação que havia sido determinada pelo tribunal recorrido, condenar o arguido/recorrente pela prática de um crime de desobediência (simples), p. e p. pelo artigo 348º nº 1 b) do Código Penal, na pena de 110 (cento e dez) dias de multa à taxa diária de €7, mantendo-se no demais o decidido na sentença recorrida.

2. Sem tributação, em relação ao presente recurso (artigo 513º nº 1, a contrario sensu, do Código de Processo Penal).

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 (Luís Coimbra - Relator)

 (Cacilda Sena)