Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
5281/19.3T8VIS.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: MOREIRA DO CARMO
Descritores: NULIDADES PROCESSUAIS E DE SENTENÇA
OMISSÃO DE PRONÚNCIA
ABUSO DE DIREITO
FACTOS CONSTITUTIVOS DO DIREITO
DECLARAÇÕES DE PARTE
SUA APRECIAÇÃO
Data do Acordão: 07/08/2021
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE VISEU – JUÍZO CENTRAL CÍVEL DE VISEU – JUIZ 3
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTºS 466º, Nº 3, E 615º, Nº 1, AL. D) DO NCPC; 443º C. CIVIL.
Sumário: 1. Uma coisa é a nulidade processual, por ex. a omissão de um acto que a lei prescreva, relacionada com um acto de sequência processual, e por isso um vício atinente à sua existência, outra bem diferente é uma nulidade da sentença ou despacho, e por isso um vício do conteúdo do acto, por ex. a omissão de pronúncia, um vício referente aos limites.

2. Se o tribunal omite o conhecimento de um requerimento probatório da parte estamos não perante uma nulidade processual mas, sim, face a um típico caso de omissão de pronúncia da decisão recorrida.

3. A nulidade da sentença, por omissão de pronúncia (art. 615º, nº 1, d), 1ª parte do NCPC) não se verifica se a questão que devesse apreciar estiver prejudicada pela solução dada a outra (art. 608º, nº 2, 1ª parte, do mesmo código).

4. A defesa por exceção perentória, caso do abuso de direito, enquanto baseada em facto impeditivo do direito afirmado pelo autor, pressupõe que os factos constitutivos se verificaram e que o efeito deles decorrente se produziu: não se impede o que não existe; assim, a verificação de que os factos que integram a causa de pedir não ocorreram torna, por isso, inútil a subsequente consideração de exceção perentória que os pressuponha.

5. Se o direito a que o A. se arroga, baseado na causa de pedir que invocou, não se verificou, o juiz a quo, que a essa conclusão chegou, não está obrigado a conhecer, por desnecessidade, da exceção perentória de abuso de direito, invocado pela R., que visava impedir a aludida causa de pedir e o correspondente direito.

6. O tribunal aprecia livremente as declarações de parte (salvo se houver confissão), nos termos do art. 466º, nº 3, do NCPC; naturalmente porque a própria parte tenderá a declarar aquilo que a favorece e sustenta a posição/versão que apresentou nos autos e que, portanto, visa defender os seus interesses.

7. O tribunal na maioria dos casos não pode bastar-se com essas meras declarações para comprovar factos; assim, a apreciação que o juiz faça das declarações de parte importará sobretudo como elemento de clarificação do resultado de outras provas produzidas.

8. O art. 483º do CC, para que se verifique a responsabilidade extracontratual, estabelece 5 requisitos: a) o facto; b) a ilicitude; c) a imputação do facto ao lesante; d) o dano; e) um nexo de causalidade entre o facto e o dano; se o tribunal recorrido verifica que não se verifica o requisito da ilicitude, não carece o mesmo de prosseguir a análise dos restantes para concluir que não há lugar a tal tipo de responsabilidade.

Decisão Texto Integral:







I - Relatório

1. J..., residente em Viseu, intentou ação contra M..., residente na Suíça, pedindo a condenação da ré a pagar-lhe a quantia de 60.657,11€, acrescida da que se venha a apurar em liquidação de sentença.

Alegou ter sofrido danos patrimoniais e não patrimoniais, ou estar em risco de sofrer, como consequência de cativação de saldos e valores mobiliários comuns, requerida pela ré em sede de procedimento cautelar de arrolamento dos bens comuns do ex-casal formado por ambos, e subsequente desvalorização, mais custos de inventário para partilha de bens na Suíça, mais outros custos de uma ação judicial que corre em Portugal, que são responsabilidade da ré na proporção de 50%, e ainda risco de incumprimento de contrato promessa, com consequente perda do sinal prestado e repercussão em metade do valor desse sinal como prejuízo do autor.

A ré contestou, suscitando a exceção de caso julgado, abuso de direito e litigância de má fé do autor, impugnando os danos alegados e pugnando, a final, pela improcedência da pretensão do autor.

Foi proferido despacho saneador que julgou improcedente a exceção de caso julgado.

*

A final foi proferida sentença que julgou a ação improcedente e absolveu a R. de tudo o peticionado.

2. O A. apelou, tendo formulado as seguintes conclusões:

...

3. A R. contra-alegou, concluindo que:

...

II - Factos Provados

...

 III - Do Direito

1. Uma vez que o âmbito objetivo dos recursos é delimitado pelas conclusões apresentadas pelos recorrentes (arts. 635º, nº 4, e 639º, do NCPC), apreciaremos, apenas, as questões que ali foram enunciadas.

Nesta conformidade, as questões a resolver são as seguintes.

- Nulidade processual.

- Nulidade da sentença.

- Alteração da matéria de facto.

- Responsabilidade civil da R., em consequência da providência cautelar decretada anteriormente.

- Em caso afirmativo, montante de indemnização a atribuir ao A.

2. Defende o recorrente que a omissão de pronúncia do tribunal sobre o seu requerimento probatório de 11.12.2020 importa uma nulidade processual, arguível em recurso (conclusões de recurso 6/ a 11/). Enquanto a recorrida entende estar-se perante uma mera irregularidade.

Importa distinguir. Uma coisa é a nulidade processual, por ex. a omissão de um acto que a lei prescreva, relacionada com um acto de sequência processual, e por isso um vício atinente à sua existência, outra bem diferente é uma nulidade da sentença ou despacho, e por isso um vício do conteúdo do acto, por ex. a omissão de pronúncia, que é um vício referente aos limites (vide a límpida exposição de Lebre de Freitas, em Introdução ao Processo Civil, Conceito e Princípios Gerais…, 4ª Ed., págs. 23/29). Tão pouco se confundindo a dita nulidade processual com um erro material da decisão ou com um erro de julgamento.
Ainda, sobre o conceito de nulidade processual, no dia 17 de Abril de 2018, no blogue do IPPC, Teixeira de Sousa inseriu o seguinte “post”: “O que é uma nulidade processual?
1. Tem-se vindo a observar que o conceito de nulidade processual tem originado algumas confusões. Importa procurar desfazer estas confusões (o que, aliás, nem sequer é difícil).
2. Todo o processo comporta um procedimento, ou seja, um conjunto de actos do tribunal e das partes. Cada um destes actos pode ser visto por duas ópticas distintas:
-- Como trâmite, isto é, como acto pertencente a uma tramitação processual;
-- Como acto do tribunal ou da parte, ou seja, como expressão de uma decisão do tribunal ou de uma posição da parte.
No acto perspectivado como trâmite, considera-se não só a pertença do acto a uma certa tramitação processual, como o momento em que o acto deve ou pode ser praticado nesta tramitação. Em contrapartida, no acto perspectivado como expressão de uma decisão do tribunal ou de uma posição da parte, o que se considera é o conteúdo que o acto tem de ter ou não pode ter.
3. Do disposto no art. 195.º, n.º 1, CPC decorre que se verifica uma nulidade processual quando seja praticado um acto não previsto na tramitação legal ou judicialmente definida ou quando seja omitido um acto que é imposto por essa tramitação.
Isto demonstra que a nulidade processual se refere ao acto como trâmite, e não ao acto como expressão da decisão do tribunal ou da posição da parte. O acto até pode ter um conteúdo totalmente legal, mas se for praticado pelo tribunal ou pela parte numa tramitação que o não comporta ou fora do momento fixado nesta tramitação, o tribunal ou a parte comete uma nulidade processual. Em suma: a nulidade processual tem a ver com o acto como trâmite de uma tramitação processual, não com o conteúdo do acto praticado pelo tribunal ou pela parte.
É, aliás, fácil comprovar, em função do direito positivo, o que acaba de se afirmar:
-- A única nulidade processual nominada que decorre do conteúdo do acto é a ineptidão da petição inicial (cf. art. 186.º); …;
-- As nulidades da sentença e dos acórdãos decorrem do conteúdo destes actos do tribunal, dado que estas decisões não têm o conteúdo que deviam ter ou têm um conteúdo que não podem ter (cf. art. 615.º, 666.º, n.º 1, e 685.º CPC); também não é por acaso que estas nulidades não são reconduzidas às nulidades processuais reguladas nos art. 186.º a 202.º CPC.
4. Em conclusão:
-- Só há nulidade processual quando o vício respeita ao acto como trâmite, não ao acto como expressão de uma decisão do tribunal ou de uma posição da parte;
-- Em especial, não é correcto reconduzir qualquer vício relativo ao conteúdo de um acto processual do tribunal ou da parte ao disposto no art. 195.º, n.º 1, CPC.”.
No sentido de a omissão de conhecimento de um requerimento probatório constituir não constituir uma nulidade processual secundária, no dia 21 de Setembro de 2020, no referido blogue do IPPC foi publicado um “post”, com comentário desfavorável de Teixeira de Sousa: “Omissão de pronúncia; nulidade da sentença, ao Ac. da R. Guimarães de 19.3.2020, Proc.305/15.6T8MNC-E, disponível em www.dgsi.pt, sobre situação semelhante à dos autos, no qual o dito comentador conclui tratar-se de um típico caso de omissão de pronúncia da decisão recorrida.
Dos ensinamentos de tais professores, dimana que o nosso caso não cai, obviamente, na categoria de nulidade processual, podendo, sim, cair na de nulidade da decisão, por omissão de pronúncia do tribunal, relativamente ao requerimento probatório apresentado pelo A./recorrente (com oposição à sua junção pela R./recorrida). 
Portanto, o que o A. devia ter feito era arguir nulidade da decisão, por omissão de pronúncia, e não nulidade processual, esta apenas de conhecimento do tribunal recorrido, segundo o velho brocardo “das nulidades reclama-se, dos despachos recorre-se”. O que de todo não fez !
Pelo que não procede esta parte do recurso.
Brevitatis causa, sempre se dirá que caso tal nulidade tivesse sido arguida decidiríamos que ela não existe.
Na verdade, o apelante reconhece (no corpo das alegações) que o juiz a quo, em sede de audiência de julgamento, informou as partes que relegou, para a sentença, a respetiva decisão de admissão ou não da prova documental oferecida pelo recorrente.  Na acta nada consta reduzido a escrito, nesse aspecto. Mas ouvida a gravação verifica-se que o juiz, logo no início da audiência, declarou que “o tribunal tomará posição relativamente à prova em sede de sentença“.
É uma conduta processual anómala, nada aconselhável, porque devia ter havido decisão expressa sobre o aludido requerimento probatório do A./recorrente. Designadamente para efeito de se ficar a saber, claramente, se os documentos foram admitidos ou não, com potencial recurso da parte discordante. Não se recomenda, pois, que um qualquer juiz a quo adopte tal procedimento processual anómalo.
No entanto o que o juiz a quo declarou acabou por equivaler a uma admissão implícita do requerimento do A., pois só pode ser alvo de apreciação probatória positiva ou negativa documento(s) que foi previamente admitido. E na verdade, como se escreveu na fundamentação de facto da sentença (abaixo transcrita) “a totalidade da prova documental junta aos autos …foi … tomada em consideração”.
Ou seja, se forçoso fosse conhecer de uma arguida nulidade da decisão, por omissão de pronúncia, ela estaria votada ao insucesso, pois houve, nitidamente, uma decisão de admissão da mencionada prova documental.     

3. Afirma, também, o recorrente que a sentença é nula, por omissão de pronúncia, nos termos do art. 615º, nº 1, d), do NCPC, por a sentença não ter conhecido da excepção de abuso de direito arguida pela recorrida (conclusões de recurso 1/ a 5/). Enquanto a recorrida entende nada ter ficado por decidir, nos termos do art. 608º, nº 2, do mesmo código. 

O preceito indicado pelo recorrente, sua 1ª parte, dispõe que a sentença é nula quando o juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar, tal norma está intimamente ligada ao preceito, sua 1ª parte, indicado pela recorrida, onde se estatui que o juiz deve resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, excetuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras.

O recorrente não tem razão na sua alegação. Desde logo, porque a exceção foi invocada pela recorrida, pelo que só esta tem interesse em agir e até legitimidade para esgrimir uma eventual nulidade da omissão do seu conhecimento. O que afasta a acusada nulidade.

Mas outra razão definitiva afasta tal arguida nulidade, e decorre do aludido preceito (na parte que sublinhámos), pois se o conhecimento da exceção perentória de abuso de direito estiver prejudicada pela solução dada a outra questão já não se verifica tal nulidade.

Como ensina Lebre de Freitas - em A Acção Declarativa Comum, À Luz do CPC de 2013, 3ª Ed., págs. 105, nota (60) e 320, nota (10) –, a defesa por exceção perentória, caso do abuso de direito, enquanto baseada em facto impeditivo do direito afirmado pelo autor, pressupõe que os factos constitutivos se verificaram e que o efeito deles decorrente se produziu: não se impede o que não existe. 

Isto é, a verificação de que os factos que integram a causa de pedir não ocorreram torna, por isso, inútil a subsequente consideração de excepções peremptórias que os pressuponham.

Ora, no nosso caso, se o direito a que o A. se arroga, baseado na causa de pedir que invocou, não se verificou, é claro que o juiz a quo que a essa conclusão chegou não estava obrigado a conhecer uma excepção peremptória que visava impedir o efeito que podia ser extraído da verificação da aludida causa de pedir. Julgada esta e o correspondente direito não verificados era obviamente desnecessário conhecer da dita excepção peremptória que visava impedir esse direito.

Não existe a acusada nulidade, não procedendo esta parte do recurso. 

4. O A. impugna a decisão da matéria de facto relativamente ao único facto não provado, pretendendo que ele passe a provado, com base nas declarações de parte do A. e doc. nº 3, junto com o mencionado requerimento probatório de 11.12.2020 (cfr. conclusões de recurso 12/ a 15/). A recorrida entende que tal facto não provado assim deve permanecer.

Na motivação da decisão da matéria de facto o julgador exarou que:

“Relativamente à factualidade que se manteve controvertida após a fase dos articulados, o Tribunal fundou a sua convicção com base na análise da globalidade da prova produzida e analisada em audiência, globalmente considerada e criticamente analisada, à luz de critérios de normalidade e experiência comum, nomeadamente, nos termos que abaixo se explicitam. Globalmente considerada, em face de critérios de normalidade e experiência comum e contrastada com a restante prova produzida, a totalidade da prova documental junta aos autos afigurou-se credível e foi, por isso, tomada em consideração.

(…)

Diferentemente, seja pelo tom, seja pela falta de consistência (no que diz respeito a viver de empréstimos, apesar dos rendimentos que admitiu auferir), seja pela falta de razoabilidade (nomeadamente no modo como descreveu a relação contratual com terceiro relativamente ao cumprimento do contrato promessa que celebrou, ou em não ver qualquer problema em assumir, à revelia da mulher, tais compromissos), seja por colidirem com as da ré, que se afigurarem credíveis, as declarações de parte do autor não mereceram credibilidade.

(…)

O ponto único da matéria de facto não provada resulta de sobre tal matéria apenas terem incidido as declarações de parte do autor que, como acima se viu, não mereceram credibilidade.”.

Ouvimos as declarações de parte do A., gravadas em CD.

O mesmo declarou que está reformado. Aufere de reforma em francos suíços, 1142, estamos a falar 1050 euros. Recebe mais uma reforma de França, 91,16 euros e em Portugal tem uma reforma de 189 e tal euros. O transtorno que teve foi a cativação. Logo o incumprimento das minhas responsabilidades. Segundo fiquei privado de aceder à minha quota parte até porque nós sabemos que a ré tinha em seu poder e tem, valores superiores aqueles que mandou cativar nas contas bancárias. Vi-me privado de ter uma vida normal e em felicidade, estive sempre em alta pressão, a minha saúde teve um abalo brutal, para além dos desgastes incomensuráveis que eu tenho tido para alimentar estes processos. Tive que ir para a Suíça com uma acção porque mesmo um património que toda a gente sabe é partilhado pelo casal, mesmo aí a ré não quer partilhar nada. Ela quer tudo a via judicial. Obrigou-me a ir para a Suíça, com honorários de advogado, com custas de processo, com certificação de documentos, com traduções de documentos por tradutores oficiais, idas a Coimbra à Relação para apostilar os documentos. A minha vida tem sido um inferno e a minha saúde com certeza que tem dado sinais evidentes do que tem sido 3 anos e meio de um absoluto inferno, em que eu ando a viver de empréstimos, que isso me desvaloriza, me deprime porque eu não tenho necessidade de viver nesta situação. Só por manifesta má-fé da ré que não quer resolver o problema em definitivo comigo.

Analisando.

Teremos de começar por referir que o tribunal aprecia livremente as declarações de parte (salvo se houver confissão), nos termos do art. 466º, nº 3, do NCPC. O que compreende, porque naturalmente a própria parte tenderá a declarar aquilo que a favorece e sustenta a posição/versão que apresentou nos autos e que, portanto, visa defender os seus interesses. É de bom senso e conhecimento das realidades da vida que assim seja.

Daí que o tribunal na maioria dos casos, ou seja, por regra, não possa bastar-se com essas meras declarações para comprovar factos. Como advoga Lebre de Freitas (última obra citada, pág. 278), a apreciação que o juiz faça das declarações de parte importará sobretudo como elemento de clarificação do resultado das provas produzidas.

No nosso caso temos então as ditas declarações o apontado documento. Ora, as declarações de parte do A. são, com o devido respeito, “fraquinhas”, pois a menção de que vive de empréstimos é feita fugazmente, uma única vez e sem qualquer densificação, pois não especificou qualquer fim para os ditos empréstimos, quantas vezes isso ocorreu, em que períodos temporais, quem lhe emprestou dinheiro e quais os valores. Porque se tratou de uma declaração genérica, vaga, e conclusiva a credibilidade das suas declarações para o ponto que impugnou é praticamente nula.

E outros elementos probatórios de peso não temos. Na verdade, o acima indicado doc. nº 3 (a fls. 255 v.), junto com o mencionado requerimento probatório do A. de 11.12.2020, consiste numa declaração escrita por uma pessoa que se chamará ..., e que assina com esse nome, assinatura nem sequer reconhecida, que declara em 1.12.2020, que tem vindo a conceder empréstimos monetários ao A. devido ás enormes dificuldades financeiras que ele vem sentindo desde a separação conjugal e o seu divórcio matrimonial. Ora, a R. impugnou tal documento (cfr. fls. 264 v.).

E na situação em apreço cabe perguntar. Quem é esta pessoa que faz tal declaração escrita sem reconhecimento de assinatura ? Quais foram os valores emprestados ? E por que forma ? E em que condições ? E em que datas ? Se o documento é datado de 1.12.2020 porque não compareceu esta pessoa na audiência de julgamento, cerca de 1 mês e meio depois (o julgamento ocorreu em 18.1.2021) para ser confrontada com a sua declaração e confirmar ou não o que atestara ?

Tudo perguntas sem resposta, que reduzem a quase nada a credibilidade de tal documento, meramente particular, e consequentemente de apreciação livre.

Do exposto, por manifesta falta de lastro probatório, improcede a impugnação de facto deduzida pelo A., ao único facto não provado.   

5. Na sentença recorrida escreveu-se que:

“Na petição inicial o autor alega que a ré se constituiu na obrigação de indemnizar em virtude de responsabilidade civil processual, pois requereu uma providência de congelamento de contas bancárias comuns, na pendência de processo de divórcio, a qual foi decretada e, por via disso, encontra-se o autor, além do mais, impossibilitado de cumprir dois contratos-promessa de compra e venda que outorgou.

Ora, estabelece o artigo 483º do Código Civil “Aquele que, com dolo ou mera culpa, violar ilicitamente o direito de outrem, ou qualquer disposição legal destinada a proteger interesses alheios fica obrigado a indemnizar o lesado pelos danos resultantes da violação”.

Como refere Antunes Varela, in Das Obrigações em Geral, Vol. I, 9ª Edição, Almedina, 1996, p. 543/544 , “A simples leitura do preceito mostra que vários pressupostos condicionam, no caso geral de responsabilidade por factos ilícitos, a obrigação de indemnizar imposta ao lesante … É necessário, desde logo, que haja um facto voluntário do agente, pois só o homem, como destinatário dos comandos emanados da lei, é capaz de violar direitos alheios ou de agir contra disposições (… violar ilicitamente …), que infrinja objetivamente qualquer das regras disciplinadoras da vida social. Em terceiro lugar, importa que haja um nexo de imputação do facto ao lesante. Em seguida, é indispensável que à violação do direito subjetivo ou da lei sobrevenha um dano… Por último, exige a lei que haja um nexo de causalidade entre o facto praticado pelo agente e o dano sofrido pela vítima… dir-se-á que a responsabilidade pressupõe: a) o facto; b) a ilicitude; c) a imputação do facto ao lesante; d) o dano; e) um nexo de causalidade entre o facto e o dano”.

Assim, começando, pelo primeiro dos indicados pressupostos – o facto – é inescapável que a ré não praticou o facto que o autor considera diretamente lesivo, pois tal facto é a ordem de congelamento das contas bancárias comuns do casal, que foi proferida em sede de decisão judicial.

Assim, os atos praticados pela ré que podem considerar-se como passíveis de serem subsumidos a esta primeira categoria serão os de recorrer a juízo, pedindo o decretamento da providência, com a necessária alegação de factos, sendo, assim, estes os que se considerarão para indagação da existência de responsabilidade.

No que respeita à ilicitude, esta pode ser de dois tipos: a) “violação do direito de outrem” ou, b) “violação da lei que protege interesses alheios”. Como refere Antunes Varela, in obra citada, pág. 557/559 “Para que o lesado, em casos do segundo tipo de ilicitude, tenha direito a indemnização, três requisitos se mostram indispensáveis: 1º) Que à lesão dos interesses do particular corresponda a violação de uma norma legal; 2º) Que a lesão dos interesses particulares figure de facto entre os fins da norma; 3º) Que o dano se tenha registado no círculo de interesses privados que a lei visa tutelar”.

No caso, cumpre apreciar se há violação de norma processual que impõe às partes alegar com verdade. Com isso em mente, é patente que não se verifica provada qualquer circunstância donde decorra a falsidade dos factos alegados pela ré na providência que o autor aponta como lesiva dos seus direitos. Na verdade, ressalta até dos factos provados o absoluto oposto. Com efeito, o recebimento liminar e decretamento da providência atestam do seu cabimento formal e substancial.

Por outro lado, não foi sequer alegado que, no âmbito da dita providência, o ora autor tenha logrado, mediante oposição ou recurso, que se viesse a considerar como falsos os fundamentos aí alegados pela ré, com o consequente levantamento da providência, tendo a decisão transitado em julgado, conforme o autor expressamente confessa.

Do que vai dito decorre que não há matéria provada nestes autos donde se possa retirar que a ré tenha alegado matéria factual falsa no âmbito do procedimento cautelar de arrolamento de bens, resultando, até, o oposto, pois o fundamento alegado foi movimentação, pelo autor, de avultados fundos pertencentes ao casal sem o acordo prévia da ora ré, ali requerente.

Ora, o recurso à tutela jurisdicional é um direito que a todos (incluindo a ré) assiste, pelo que é, igualmente, lícito, não podendo quem recorre à mesma ser responsabilizado pelos efeitos lesivos das decisões proferidas pelo Estado, no uso do seu ius imperii, a menos que tenha obtido o proferimento de tal decisão mediante falseamento da verdade dos factos.

Dito doutro modo, não há nos autos qualquer matéria factual donde se possa retirar que a conduta da ré seja ilícita pelo que, não verificado o pressuposto da ilicitude da conduta, requisito essencial que é do instituto da responsabilidade civil aquiliana, improcede, sem necessidade de maiores considerações, a pretensão do autor.”.

Concorda-se com a argumentação jurídica apresentada, tendo em conta o acervo factual apurado, pelo que se chancela a mesma.

O recorrente discorda (pelas razões que expõe nas suas conclusões de recurso 16/ a 28/). A recorrida, por sua vez, considera que tal fundamentação jurídica está correcta, não deixando margem para dúvidas.

Lidas as conclusões de recurso do apelante, constata-se que, basicamente, se aportam as seguintes objeções: 1ª - sendo certo que o A. não contestou a providência cautelar e a mesma ter sido deferida e ter transitado em julgado, o tribunal não analisou a demais matéria factual por forma a apurar os motivos que levaram à falta de contestação por parte do A., nem analisou se a realidade económica e fatual em que a ré se alicerçou para alcançar a procedência da providência cautelar correspondia à verdade, como emerge dos factos provados 2. e 3., e das declarações que transcreveu do A. e da R. e depoimento da testemunha ..., e também do que resulta dos documentos juntos com o seu requerimento probatório de 11.12.2020, documentos que demonstram a razão porque o A. não se opôs formalmente ao procedimento cautelar instaurada aquando da sua permanência em Portugal, e de só teve conhecimento no seu regresso à Suíça, para onde foram remetidas as citações no âmbito do procedimento cautelar em questão; 2ª  - só as lesões graves e dificilmente reparáveis são susceptíveis de tutela em sede cautelar, o que não era o caso aquando do decretamento da referida providência, algo que a R. confessou aquando das suas declarações de parte supra transcritas, onde reconheceu que quando deu entrada da providência cautelar não foi com o intuito de salvaguardar a dissipação de património mas unicamente para apurar que património existia, nem ao depoimento da testemunha ..., o qual refere expressamente que a aquisição em causa seria para fazer uma surpresa à sua esposa, o que é demonstrador do desconhecimento por parte do A. de qualquer providência cautelar e até da sua intenção de continuidade no casamento então ainda existente, pelo que deve questionar-se se a utilização de uma providência cautelar de arrolamento, que tem por escopo evitar a dissipação ou ocultação do património, era meio próprio para os fins aludidos pela R.,  afigurando-se que a sua conduta foi ilícita; 3ª - dos factos provados 6. e 8. verifica-se que houve uma diminuição de valor dos referidos títulos de crédito em cerca de 64.214,21€, desde a data do arrolamento, o que só per si demonstra os prejuízos que tal cativação veio a ter no património comum do casal, pois caso os mesmos não estivessem cativos, já os mesmos poderiam ter sido vendidos na altura em que se encontravam melhor cotados na bolsa, por forma a não sofrerem tais prejuízos patrimoniais, o que não se pôde verificar atenta a cativação efectuada por parte da R.; 4ª - o tribunal cingiu unicamente a sua análise à ilicitude da conduta da R.

Quanto à 1ª objeção responde-se assim – se o A. não contestou a providência cautelar (facto provado 2.), tendo a mesma sido deferida, decisão transitada em julgado, porque o A. dela não recorreu, é irrelevante agora apurar os motivos que levaram a tal falta de contestação, tanto mais que os alegados motivos nem sequer foram alegados na p.i.; ao contrário do que o recorrente afirma o tribunal teve em conta a realidade económica e factual em que a ré se alicerçou para alcançar a procedência da providência cautelar, como decorre do aludido facto provado 2., pois em tal facto menciona-se a decisão cautelar, a fls. 48 a 50, e dessa decisão emerge apenas como acervo factual a relação matrimonial entre A. e R., e o anúncio da ação de divórcio a intentar pela R., que era o suficiente para decretar o arrolamento especial previsto no art. 409º, nº 1 e 3, do NCPC; ao invés do que o A. refere as declarações que transcreveu de declarações de parte do A. e da R. e do depoimento da testemunha ..., e também do que resulta dos documentos juntos com o seu requerimento probatório de 11.12.2020, documentos que demonstrariam a razão porque o A. não se opôs formalmente ao procedimento cautelar instaurado, de que teve conhecimento no seu regresso à Suíça, são irrelevantes pelos motivos adiantados primeiramente, a decisão já transitou, os invocados motivos não foram alegados na p.i., e, ainda, a razão adicional de que as declarações de parte de A. e R. e depoimento da mencionada testemunha quedarem sem importância, já que não estamos no âmbito da impugnação da decisão da matéria de facto, mas sim no âmbito da análise da fundamentação jurídica.

E relativamente à 2ª responde-se assim – ao contrário do que o A. afirma, para o arrolamento especial decretado não interessa, nos termos do citado art. 409º, nº 3 e 403º, nº 1, do NCPC, como atrás se disse,  que não haja justo receio de extravio ocultação ou dissipação de bens, como se explicou na aludida decisão cautelar (de fls.48/50); o que a R. disse nas suas declarações de parte, que o A. transcreveu, ou o que depôs a testemunha ..., não interessa, pois a decisão cautelar foi proferida, transitou em julgado, e estava correcta do ponto de vista do direito, face aos normativos legais indicados, não se denotando por parte da  R. qualquer conduta ilícita, sendo que, mais uma vez, se afirma que tal declaração e depoimento são inócuos, pois não estamos no âmbito da impugnação da decisão da matéria de facto, mas sim no âmbito da análise da fundamentação jurídica.

E quanto à 3ª responde-se assim – sendo verdade que dos factos provados 6. e 8. se verifica que houve uma diminuição de valor dos referidos títulos de crédito de cerca de 60.000 desde a data do arrolamento, o que também é verdade é que resulta do facto provado 5. que a dita cativação decretada pelo tribunal foi precedida de audição do A., que nada disse, e que o respectivo despacho transitou em julgado sem que o mesmo A. tivesse impugnado recursivamente tal despacho. Por isso, sibi imputet; estando tais títulos cotados em bolsa, então estão sujeitos a flutuações, como é próprio da bolsa, e como é de conhecimento normal das pessoas, pelo que não pode afirmar-se que o A. sofreu seguramente prejuízos patrimoniais, visto que desde o dia da cativação os títulos podem não ter subido a sua cotação. Não pode, pois, estabelecer-se esse nexo de causalidade, como o A. propugna.

E no respeitante à 4ª, e última objeção, assim – esta objeção entronca com a causa de pedir e por isso é decisiva. Se o A. fundou a sua causa de pedir na responsabilidade civil extracontratual era imperioso analisar tal instituto, como o tribunal a quo fez, elencando os 5 requisitos legais típicos da mesma. Ora, o tribunal não cingiu unicamente a sua análise à ilicitude da conduta da R., pois começou por verificar se existia o 1º requisito legal, respondendo afirmativamente. E passou a apreciar se ocorria o 2º requisito. Como concluiu que sim, e muito bem, então tornou-se inútil analisar os restantes, pois a falta desse 2º requisito legal fazia cair o pedido e cair a acção, como aconteceu.

Ou seja, nenhuma das objeções levantadas pelo apelante merece acolhimento. Pelo que não procede esta parte do recurso.    

6. Face ao que se expõe no ponto que antecede e ao que se vai decidir, é inútil conhecer a questão remanescente.  

7. Sumariando (art. 663º, nº 7, do NCPC):

i) Uma coisa é a nulidade processual, por ex. a omissão de um acto que a lei prescreva, relacionada com um acto de sequência processual, e por isso um vício atinente à sua existência, outra bem diferente é uma nulidade da sentença ou despacho, e por isso um vício do conteúdo do acto, por ex. a omissão de pronúncia, um vício referente aos limites;

ii) Se o tribunal omite o conhecimento de um requerimento probatório da parte estamos não perante uma nulidade processual mas, sim, face a um típico caso de omissão de pronúncia da decisão recorrida;

iii) A nulidade da sentença, por omissão de pronúncia (art. 615º, nº 1, d), 1ª parte do NCPC) não se verifica se a questão que devesse apreciar estiver prejudicada pela solução dada a outra (art. 608º, nº 2, 1ª parte, do mesmo código);

iv) A defesa por exceção perentória, caso do abuso de direito, enquanto baseada em facto impeditivo do direito afirmado pelo autor, pressupõe que os factos constitutivos se verificaram e que o efeito deles decorrente se produziu: não se impede o que não existe; assim, a verificação de que os factos que integram a causa de pedir não ocorreram torna, por isso, inútil a subsequente consideração de excepção peremptória que os pressuponha;

v) Se o direito a que o A. se arroga, baseado na causa de pedir que invocou, não se verificou, o juiz a quo, que a essa conclusão chegou, não está obrigado a conhecer, por desnecessidade, da exceção perentória de abuso de direito, invocado pela R., que visava impedir a aludida causa de pedir e o correspondente direito;

vi) O tribunal aprecia livremente as declarações de parte (salvo se houver confissão), nos termos do art. 466º, nº 3, do NCPC; naturalmente porque a própria parte tenderá a declarar aquilo que a favorece e sustenta a posição/versão que apresentou nos autos e que, portanto, visa defender os seus interesses;

vii) O tribunal na maioria dos casos não pode bastar-se com essas meras declarações para comprovar factos; assim, a apreciação que o juiz faça das declarações de parte importará sobretudo como elemento de clarificação do resultado de outras provas produzidas;

viii) O art. 483º do CC, para que se verifique a responsabilidade extracontratual, estabelece 5 requisitos: a) o facto; b) a ilicitude; c) a imputação do facto ao lesante; d) o dano; e) um nexo de causalidade entre o facto e o dano; se o tribunal recorrido verifica que não se verifica o requisito da ilicitude, não carece o mesmo de prosseguir a análise dos restantes para concluir que não há lugar a tal tipo de responsabilidade.  

IV – Decisão

Pelo exposto julga-se o recurso improcedente, assim se confirmando a decisão recorrida.

Custas pelo A./recorrente.

                                                                               Coimbra, 8.7.2021

                                                                              Moreira Moreira do Carmo

                                                                               Fonte Fonte Ramos

                                                                               Alberto Alberto Ruço