Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
607/06.2TBPMS.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: JORGE ARCANJO
Descritores: DEPOIMENTO DE PARTE
APRECIAÇÃO DA PROVA
SERVIDÃO
Data do Acordão: 10/21/2014
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DE PORTO DE MÓS – 2º JUÍZO
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PARCIALMENTE REVOGADA
Legislação Nacional: ARTºS 352º, 356º, 1544º E 1565º DO C.CIVIL.
Sumário: 1.- As nulidades da sentença reconduzem-se a erro de actividade ou de construção e não a erro de julgamento (de facto e/ou de direito).

2.- O depoimento de parte constitui o meio técnico de provocar a confissão judicial (art 356º, n.º 2 do CC), ou seja o reconhecimento de factos favoráveis à parte contrária (art.352º do CC).

Quando não gera a confissão, impõe-se a valoração das declarações não confessórias, de acordo com a livre apreciação do tribunal.

3.- Constituída uma servidão por usucapião, o seu conteúdo ou extensão e o seu exercício determina-se pela posse do respectivo titular, segundo o princípio “tantum prescriptum quantum possessum“. A extensão visa o elemento quantitativo (por exemplo, o comprimento e largura do caminho), o exercício reporta-se ao elemento qualitativo (por exemplo, na servidão de passagem o exercício a pé ou de carro).

4.- Tratando-se de servidão aparente, torna-se necessária a prova de sinais visíveis e permanentes, mas a existência de um caminho constitui um claro sinal visível e permanente, pois comporta contornos e limites patentes e perceptíveis.

Decisão Texto Integral:
Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra

I – RELATÓRIO

            1.1.- Os Autores – A… e M… – instauraram na Comarca de Porto de Mós acção declarativa, com forma de processo ordinário, contra os Réus

J… e S… (1.ºs Réus)

C… e J… (2.ºs  Réus)

B… (por sua morte os habilitados I… e Â…) e M… (3.ºs Réus)

Alegaram, em resumo:

Os Autores são donos de um prédio que anteriormente fazia parte de um prédio-mãe, sendo que deste prédio-mãe faziam parte ainda outros dois prédios, um dos quais pertencente aos 1.ºs Réus.

Do prédio dos 1.ºs Réus foi por sua vez destacado um prédio, hoje pertencente aos 2.ºs Réus.

A sul dos prédios dos Autores e dos 1.ºs Réus sempre passou um caminho, o qual sempre deu acesso a uma moagem. Sucede que os 1.ºs Réus entenderam que tal caminho terminava a cerca de 50 metros desde que se iniciou junto à Rua da Portela, tendo estendido a área do seu imóvel para cima do caminho em questão, ficando os Autores sem possibilidade de pelo mesmo circular.

No prédio dos Autores encontra-se construída uma casa de habitação, anexos e logradouro, sendo que uma das construções abarca em toda a sua extensão a largura do imóvel sem ter deixado qualquer espaço para se aceder ao logradouro e vinha situado nas traseiras, e que os Autores sempre cultivaram desde que adquiriram o prédio, ao mesmo acedendo pelo caminho acima referido.

Os Autores adquiriram o direito de servidão relativamente a tal caminho, constituído por destinação de pai de família e por usucapião.

Sem prescindir, os Autores sempre teriam direito à constituição da aludida servidão de passagem uma vez que o seu prédio identificado não tem qualquer comunicação com a via pública na parte do logradouro (art. 1550.º do Código Civil).

Concluíram pedindo que os Réus sejam condenados:

a) A reconhecer o direito de servidão de passagem a pé e de carro dos Autores para acesso ao logradouro e vinha do seu prédio, descrito sob o n.º 3… (prédio dominante) sobre os descritos, em parte do  n.º  156, a fls.  79 do  Livro  B1,  da  extinta Conservatória Privativa, e sob os n.ºs 4… e 4…, todos da freguesia da Batalha, prédios dos Réus (prédios servientes), constituído por usucapião;

b) Caso assim não se entenda, a reconhecer o direito de servidão legal de passagem a pé e de carro dos Autores, face a terreno encravado, para acesso ao logradouro e vinha em causa, constituído por usucapião, nas mesmas condições da alínea anterior;

c) A restituir aos Autores a livre passagem sobre a aludida servidão, abstendo-se de praticar quaisquer actos que possam obstar ou limitar o exercício de tal direito.

            Contestaram apenas os 1ºs e 2ºs Réus, defendendo-se, em síntese

A passagem pretendida pelos Autores não atravessa o prédio dos 2.ºs Réus, atravessando o prédio confinante do lado sul, dos herdeiros do falecido Réu José Borges Grosso.

O prédio dos Autores nunca foi servido por qualquer serventia pelo lado sul, confinando em toda a sua extensão norte com caminho público (Rua da …), e jamais passaram sobre os prédios dos 1.ºs e 2.ºs Réus para acederem ao seu prédio (nunca o tendo feito também sobre o prédio dos 3.ºs Réus). Também não foi criada, por determinação de alguém, qualquer área de passagem de uns terrenos para os outros, designadamente junto do seu limite sul.

O prédio dos Autores não beneficia de qualquer direito de servidão de passagem sobre os prédios dos Réus.

Concluíram pela improcedência da acção.

Os Autores replicaram, mantendo, no essencial, a posição inicial.

            No saneador afirmou-se a validade e regularidade da instância.

            1.2.- Realizada audiência de julgamento, foi proferida sentença, que decidiu julgar a acção parcialmente procedente e:

a) Condenar todos os Réus a reconhecer o direito de servidão predial de passagem, a pé e de carro, em benefício do prédio dos Autores identificado na al. a) dos Factos Provados, para acesso ao logradouro desse prédio, direito aquele constituído por usucapião sobre o prédio dos Réus J… e M…, melhor identificado na al. b) dos Factos Provados, sendo a passagem feita por um caminho com início na Rua da …, tomando o traçado da Rua do … e passando sobre o prédio identificado na al. b) dos Factos Provados com cerca de 2,50 metros (dois metros e meio) de largura, junto à estrema sul desse prédio e paralelamente a tal estrema, até atingir o prédio dos Autores identificado na al. a) dos Factos Provados;

b) Os Réus J… e M… a restituir aos Autores a livre passagem sobre a aludida servidão;

c) Condenar todos os Réus a abster-se de praticar quaisquer actos que possam obstar ou limitar o exercício do direito dos Autores;

d) Absolver os Réus do mais que é pedido nesta acção pelos Autores;

e) Condenar os Autores e os Réus … a pagar as custas da acção na proporção de 10% (dez por cento) para os Autores e 90% (noventa por cento) para os Réus.

1.3.- Inconformados, os Réus ( 1ºs e 2ºs) contestantes recorreram de apelação, com as seguintes conclusões:

            Contra-alegaram os Autores no sentido da improcedência do recurso


II - FUNDAMENTAÇÃO

            2.1. – Delimitação do objecto do recurso

As questões submetidas a recurso, delimitado pelas respectivas conclusões, são as seguintes:

(1ª) A violação do princípio do dispositivo e nulidade da sentença por excesso de pronúncia;

(2ª) A admissibilidade e valoração do depoimento de parte da Ré M… – nulidade processual;

(3ª) A Alteração de facto ( alíneas w), x), aa), bb) );

            ( 4ª) A servidão predial de passagem;

( 5ª ) A condenação dos 2ºs Réus.

2.2.- A violação do princípio do dispositivo e nulidade da sentença por excesso de pronúncia

            Os Apelantes arguiram a nulidade da sentença, alegando, em síntese, que o tribunal conheceu de factos não suficientemente alegados (pressupostos da usucapião), designadamente por não haverem alegado os actos de posse, ou seja, o excesso de pronúncia resulta de o tribunal haver conhecido de factos não alegados.

            Convirá explicitar, antes de mais, que as nulidades da sentença reconduzem-se a erro de actividade ou de construção e não a erro de julgamento (de facto e/ou de direito).

            Verifica-se a nulidade da sentença por excesso de pronúncia quando o julgado não se identifica com a causa de pedir ou excede o pedido (cf., por ex., A Reis, Código de Processo Civil Anotado, V, pág. 49, A Varela, Manual de Processo Civil, pág.672, Ac RC de 30/11/2010 ( proc. nº 2345/09 ), em www dgsi.pt).

            Conforme petição inicial, os Autores formulam três pedidos. A primeira pretensão é a do reconhecimento do direito de servidão de passagem a pé e de carro, constituído por usucapião, para acesso ao logradouro e vinha do seu prédio (dominante) e sobre os prédios dos Réus (servientes).

            Quanto aos pressupostos da usucapião (constantes dos quesitos 1º, 6º e 7º da BI), os factos quesitados correspondem, no essencial, ao alegado pelos Autores (cf. arts. 32 a 32 C, 42, 51 e 52 da petição corrigida), que contêm no essencial a alegação da usucapião, devendo o articulado ser interpretado no seu conjunto.

            É certo que o facto provado na alínea x) (como fazendo parte ainda da resposta aos quesito 1º) aponta elementos não concretamenmte alegados (“ sinais de passagem – calcamento - de pessoas e de carros e ausência de culturas”).

            Contudo, estamos perante um facto complementar ou concretizador, resultante da instrução da causa (cf. motivação de facto), perfeitamente admissível, nos termos do art.5 nº2 b) nCPC. Note-se que a omissão da alegação destes factos (complementares) nos articulados não tem qualquer efeito preclusivo, significando que o tribunal dele pode conhecer mesmo que a parte não o haja alegado.

            E o facto é complementar/concretizador, designadamente, quanto aos sinais visíveis e permanentes, tanto que para o efeito tem-se entendido bastar até a alegação de caminho (que pressupõe delimitação).

            Portanto, o tribunal não alterou a causa de pedir (“factos essenciais“ alegados), e muito menos o pedido, logo não se evidencia a imputada nulidade por excesso de pronúncia.

            Além do mais, os recorrentes, para a justificarem, socorrem-se de eventual erro de facto (na apreciação da prova), o que tanto basta para a improcedência.

            2.3. - A admissibilidade e valoração do depoimento de parte da Ré M… – nulidade processual.

            Os recorrentes arguiram a nulidade processual quanto à “admissão e ponderação” das declarações prestadas pela Ré M…, ao abrigo do depoimento de parte, por não existirem quaisquer factos alegados que lhe pudessem ser desfavoráveis (arts. 201 CPC/61, actual art. 195 nº1 nCPC).

            Os Autores requereram o depoimento de parte da Ré M… a toda a matéria da base instrutória., o que foi deferido, embora restrito aos factos quesitados de 1º a 12º da BI.

            Na audiência de 7/6/2013 foi efectivamente prestado o depoimento, tendo-se documentado em assentada.

            Os Réus (1ºs e 2ºs) reclamaram contra a assentada, dizendo inexistir quaisquer factos a consignar como confissão, pelo que não devia sr documentada.

            Na sentença, na rúbrica “motivação da matéria de facto” indeferiu-se a reclamação, justificando-se, em síntese, que, mesmo sem eficácia confessória e uma vez tratar-se de litisconsórcio necessário, nada obsta a sua redacção por escrito, ou seja, “o reconhecimento de um facto pela parte, reduzido a escrito, não se torna em confissão eficaz só porque está reduzido a escrito, sendo que tal caracterização tem de ser apurada em face da materialidade da declaração e da legitimidade do declarante”. E posteriormente na apreciação da prova consignou-se a livre valoração do depoimento da Ré M…, porque para ter eficácia de prova plena era necessário ter sido acompanhada de confissão dos restantes Réus (art. 353 nº2 CC ).

            O depoimento de parte foi requerido, admitido e prestado (Fevereiro e Abril e Junho de 2013),  ainda antes da entrada em vigor do novo CPC.

Como se sabe, o depoimento de parte constitui o meio técnico de provocar a confissão judicial (arts. 552 e segs. do CPC/61 e 356, n.º 2 do CC), ou seja, o reconhecimento de factos favoráveis à parte contrária (art.352 do CC).

O depoimento de parte ou conduz à confissão e, neste caso, deve ser reduzida a escrito, com força probatória plena ( arts.563 do CPC e 358 nº1 do CC ) ou não conduz à confissão.

Quando não gera a confissão, impõe-se a valoração das declarações não confessórias, de acordo com a livre apreciação do tribunal, conforme se extrai dos arts.358 nº4 e 361 do CC e 665 do CPC/61 (cf., por ex., Ac do STJ de 2/10/03, de 18/11/04, de 7/5/06, Ac RC de 26/4/05, disponíveis em www dgsi.pt).

Nesta perspectiva, quanto aos factos que não sejam passíveis de confissão ou que não sejam objecto de confissão judicial escrita ou a qualquer esclarecimento prestado, o tribunal é livre na sua apreciação.

            Por isso, concordando-se com argumentação aduzida na sentença, inexiste qualquer nulidade processual de molde a postergar a valoração do depoimento de parte.

2.4. - A Impugnação de facto

            Conforme consta da sentença, o tribunal justificou a sua convicção na conjugação e análise crítica da prova documental, inspecção ao local, depoimento de parte  da Ré M…, depoimentos das testemunhas.

            Alegando erro notório na apreciação da prova, pretendem os Apelantes que se julguem não provados tais factos (impugnados), por não resultarem demonstrados nem da prova testemunhal, nem de qualquer outro meio de prova. Dizem, em concretização, que a prova testemunhal não permite, por si só, dar como provado que os Autores para acederem ao prédio referido em a) passavam pelo aludido caminho na continuidade da Rua do …, que o fizessem há mais de 50 anos.
Muito embora a revisão do Código de Processo Civil/61, operada pelo DL 329-A/95 de 12/2, haja instituído de forma mais efectiva a garantia do duplo grau de jurisdição da matéria de facto (mantida no actual CPC, aprovado pela Lei nº 41/2013 de 26/6),  o poder de cognição do Tribunal da Relação sobre a matéria de facto não assume uma amplitude tal que implique um novo julgamento de facto.

Para além da possibilidade de conhecimento estar confinada aos pontos de facto que o recorrente considere incorrectamente julgados, com os pressupostos adrede estatuídos, a verdade é que o controlo de facto, em sede de recurso, tendo por base a gravação e/ou transcrição dos depoimentos prestados em audiência, não pode aniquilar (até pela própria natureza das coisas) a livre apreciação da prova do julgador, construída dialecticamente na base da imediação e da oralidade.

A garantia do duplo grau de jurisdição da matéria de facto não subverte, por isso, o princípio da livre apreciação da prova que está deferido ao tribunal da 1ª instância, sendo que na formação da convicção do julgador não intervém apenas elementos racionalmente demonstráveis, mas também factores não materializados, pois que a valoração de um depoimento é algo absolutamente imperceptível na gravação/transcrição.

Contrariamente ao que sucede no sistema da prova legal, em que a conclusão probatória é prefixada legalmente, no sistema da livre apreciação da prova, o julgador detém a liberdade de formar a sua convicção sobre os factos, objecto do julgamento, com base apenas no juízo que fundamenta no mérito objectivamente concreto do caso, na sua individualidade histórica, adquirido representativamente no processo.

O que se torna necessário é que no seu livre exercício da convicção, o tribunal indique os fundamentos suficientes para que, através das regras da ciência, da lógica e da experiência, se possa controlar a razoabilidade daquela convicção do facto como provado ou não provado, possibilitando, assim, um controle sobre a racionalidade da própria decisão ( cf. Michel Taruffo, “La Prueba De Los Hechos”, Editorial Trotta, 2002, pág.435 e segs. ).

De resto, a lei determina a exigência de objectivação, através da fundamentação da matéria de facto, devendo o tribunal analisar criticamente as provas e especificar os fundamentos que foram decisivos para a convicção do julgador.

Nesta perspectiva, se a decisão do julgador, devidamente fundamentada, for uma das soluções plausíveis, segundo as regras da experiência, ela será inatacável, visto ser proferida em obediência à lei que impõe o julgamento segundo a livre convicção.

Conforme orientação jurisprudencial prevalecente, o controle da Relação sobre a convicção alcançada pelo tribunal da 1ª instância deve, por isso, restringir-se aos casos de flagrante desconformidade entre os elementos de prova e a decisão, sendo certo que a prova testemunhal é, notoriamente, mais falível do que qualquer outra, e na avaliação da respectiva credibilidade tem que reconhecer-se que o tribunal a quo, pelas razões já enunciadas, está em melhor posição. Basta atentar, por exemplo, que houve lugar à inspecção judicial ao local, e, nesta medida, o tribunal a quo terá necessariamente uma percepção mais real e correcta da situação.

Claro está que isto não significa que a Relação não deva proceder à análise crítica da prova, sobre os pontos concretamente impugnados, e, por conseguinte, formar a sua própria convicção, para aquilatar do eventual erro notório na valoração da prova, no âmbito do recurso de reponderação.

            Ouvida integralmente a prova (gravada em audiência), verifica-se, desde logo, que o resumo do depoimento de cada testemunha descrito na motivação da sentença é inteiramente fidedigno, com pormenorizado exame crítico.

            Da ponderação global da prova (testemunhal e documental) ressalta à evidência, porque os depoimentos foram convergentes, nesse sentido, a existência do caminho (respectiva configuração ) que seguia da Rua da … até ao moinho (já há muito tempo em ruinas), e que alguns designaram por “carreiro” , “serventia fazendeira”, “carreiro das Boiças”, sendo que numa parte inicial foi designado por “Rua do …”, em virtude da edificação de habitações, e asfaltado numa extensão.

            Os factos provados, descritos nas alíneas w, x, aa) e bb) têm suporte consistente na prova produzida em audiência, embora haja divergências de depoimentos.

            Num juízo de valoração, ressalvando a explicitação da resposta ao quesito 1º, mantêm-se os factos provados, descritos na sentença.

            2.5. – Os factos provados

            2.7. – A servidão de passagem

            A sentença recorrida, na ponderação da factualidade apurada, reconheceu a existência de uma servidão predial de passagem, a pé e de carro, constituída por usucapião, em benefício do prédio dos Autores, para a cesso ao logradouro do mesmo (identificado em a)- prédio dominante - e a onerar o prédio pertencente aos 1ºs Réus (J… e M…), prédio identificado em b) ( prédio serviente), sendo a passagem feita por um caminho com início na Rua da …, tomando o traçado da Rua do … e passando sobre o prédio identificado na al. b) dos Factos Provados com cerca de 2,50 metros (dois metros e meio) de largura, junto à estrema sul desse prédio e paralelamente a tal estrema, até atingir o prédio dos Autores identificado na al. a) dos Factos Provados.

            Objectam os Apelantes dizendo, em suma, não se verificarem os pressupostos da constituição da servidão de passagem, e preconizam a improcedência da acção. Fizeram-no, porém, no pressuposto da alteração de facto que não lograram, pelo que a pretensão recursiva está, desde logo, inviabilizada.

A servidão é um direito real (de gozo) sobre prédio alheio (serviente), limitativo do exercício direito de propriedade deste, traduzindo-se num encargo que recai sobre o prédio serviente, em benefício ou para gozo do prédio dominante.

            O conteúdo da servidão está sujeito ao princípio da atipicidade, na medida em que o objecto pode ser “quaisquer utilidades, ainda que futuras ou eventuais, susceptíveis de ser gozadas por intermédio do prédio dominante “ ( art.1544 CC ).

            Contudo, quanto ao uso e modo, este encargo não pode ficar dependente da vontade dos proprietários dos prédios (dominante e serviente), sendo antes determinado pelo título constitutivo, ou seja, o encargo subsiste nos termos em que foi constituído.

            Na verdade, quanto à regulação da extensão e exercício da servidão, a lei remete para o título constitutivo e na sua insuficiência para a norma supletiva do art.1565 CC.
Constituída uma servidão por usucapião, o seu conteúdo ou extensão e o seu exercício determina-se pela posse do respectivo titular, segundo o princípio “tantum prescriptum quantum possessum “.

A extensão visa o elemento quantitativo (por exemplo, o comprimento e largura do caminho), o exercício reporta-se ao elemento qualitativo (por exemplo, na servidão de passagem o exercício a pé ou de carro) (cf. Tavarela Lobo,  Mudança e Alteração de Servidão, pág.13 e 41 ).

            Sendo o título da constituição da servidão a usucapião, o exercício e extensão da servidão afere-se pela posse do titular, a chamada “ posse da servidão”.

            Por conseguinte, tanto o modo de exercício da servidão, concebido como exercício efectivo, a maneira como a servidão é exercida, tudo o que serve para precisar o seu conteúdo, a maior ou menor extensão, como o “tempo de exercício”, ou seja, o período no qual a servidão deve ser exercida, a época do aproveitamento das utilidades que a servidão oferece, são determinados pelo título.

A pretensão real dos Autores é a do reconhecimento do direito de servidão de passagem, a pé e de carro, com base na aquisição originária do direito, através da usucapião ( art.1287 e segs. do CC ).

A usucapião é uma forma de aquisição originária de direitos, cuja verificação depende de dois elementos: a posse (corpus/animus) e o decurso de certo período de tempo, variável conforme a natureza móvel ou imóvel da coisa.

A posse, segundo a concepção subjectiva (tese savignyana) adoptada pela lei (art.1251 do CC) é integrada por dois elementos: o corpus (elemento material), que consiste no domínio de facto sobre a coisa, traduzida no exercício efectivo de poderes materiais sobre ela ou a possibilidade física desse exercício; e o animus, ou seja, a intenção de exercer sobre a coisa o direito real correspondente a esse domínio de facto (cf. Orlando de Carvalho, Introdução à Posse, RLJ ano 120, pág.65 e segs. ). E, de acordo com a doutrina do Assento do STJ de 14/5/96 ( DR II de 24/6/96 ), “ podem adquirir por usucapião, se a presunção de posse não for ilidida, os que exercem o poder de facto sobre uma coisa “.

Por outro lado, o art.1263 do CC não estabelece um numerus clausus dos modos de aquisição da posse, antes pressupõe a prática de actos materiais correspondentes ao modo factual (empírico) do exercício do direito. Daí que os actos materiais que consubstanciam o “corpus” compreendam todas as formas de utilização directa do objecto possuído.

Para conduzir à usucapião, a posse deve revestir duas características – ser pública e pacífica ( arts.1293 a), 1297 c) e 1300 nº1 do CC ). As restantes características (ser de boa ou má fé, titulada ou não titulada, estar ou não inscrita no registo) apenas relevam para a determinação do prazo da usucapião.

  Perante os factos ( cf. alíneas w) a bb) ), resulta comprovada a posse da servidão de passagem (corpus/animus), embora limitado o seu exercício à passagem a pé, e já não de carro, e como é sabido, a posse conducente à usucapião não carece hoje de ser contínua, ao contrário do regime anterior, pois uma prática reiterada (art.1263 a) do CC) não significa actuação ininterrupta ou contínua ou sequer uma periodicidade determinada.

            Tratando-se de servidão aparente, torna-se necessária a prova de sinais visíveis e permanentes, mas que aqui também estão demonstrados. Na verdade, a simples existência de um caminho (como na situação dos autos) constitui uma claro sinal visível e permanente, pois comporta contornos e limites patentes e perceptíveis (cf., por ex., P.Lima/ A Varela, Código Civil Anotado, vol.III, 2ª ed., pág.630, José Luís Santos, As Servidões Prediais, pág. 32; Ac Rc RP de 29/11/2005 ( proc. nº 0524245), Ac RC de 6/12/2005 ( proc. nº 2564/05), Ac RL de 22/4/2013 ( proc. nº 444/10), disponíveis em www dgsi.pt ).

            Deste modo, está comprovada a constituição da servidão de passagem, a pé, por usucapião, a favor do prédio dos Autores (identificado em a)) e sobre o prédio dos 1ºs Réus ( identificado em b) ). E como eles obstruíram a passagem, com a construção de um muro em toda a largura do caminho ( cf. gg)) importa repor a situação anterior, ou seja, a livre passagem.

            2.8. - A condenação dos 2ºs Réus

            Estes Réus, ainda que demandados, não são titulares do prédio serviente, nem causaram qualquer obstrução ao direito de passagem dos Autores.

            Contudo, a sentença condenou os 2ºs Réus com a justificação de que por haverem contestado o direito dos Autores “serão condenados a reconhecê-lo e respeitá-lo, bem como a pagar as custas respectivas”, quanto ao terceiro pedido diz a sentença que abarca todos os Réus porque o direito dos Autores , “ enquanto direito real, tem eficácia geral, erga omnes, tendo o titular do direito poder de sequela(…)”.

            Os recorrentes sustentam inexistir fundamento para a condenação dos 2ºs Réus.

            Têm razão os Recorrentes, pois, não obstante a chamada “obrigação passiva universal” que caracteriza os direitos reais tal não significa, só porque demandados, a condenação dos 2ºs Réus (recorrentes) (os 3ºs Réus não recorreram, pelo que transitou em relação a eles a sentença). Na verdade, os 2ºs Réus não são titulares do prédio serviente, nem puseram em causa o direito dos Autores, logo inexiste legitimação substantiva para a condenação.

            2.9.-Síntese conclusiva

1.- As nulidades da sentença reconduzem-se a erro de actividade ou de construção e não a erro de julgamento (de facto e/ou de direito).

2.- O depoimento de parte constitui o meio técnico de provocar a confissão judicial ( art 356, n.º 2 do CC), ou seja, o reconhecimento de factos favoráveis à parte contrária (art.352 do CC).

Quando não gera a confissão, impõe-se a valoração das declarações não confessórias, de acordo com a livre apreciação do tribunal.

3.- Constituída uma servidão por usucapião, o seu conteúdo ou extensão e o seu exercício determina-se pela posse do respectivo titular, segundo o princípio “tantum prescriptum quantum possessum “. A extensão visa o elemento quantitativo (por exemplo, o comprimento e largura do caminho), o exercício reporta-se ao elemento qualitativo (por exemplo, na servidão de passagem o exercício a pé ou de carro)

4.- Tratando-se de servidão aparente, torna-se necessária a prova de sinais visíveis e permanentes, mas a existência de um caminho constitui um claro sinal visível e permanente, pois comporta contornos e limites patentes e perceptíveis.


III – DECISÃO

            Pelo exposto, decidem

1)

            Julgar parcialmente procedente a apelação e revogar, em parte, em sentença.

2)

            Julgar a acção parcialmente procedente e

            - Condenar os 1ºs e 3ºs Réus a reconhecer o direito de servidão predial de passagem, a pé e de carro, em benefício do prédio dos Autores identificado na al. a) dos Factos Provados, para acesso ao logradouro desse prédio, direito aquele constituído por usucapião sobre o prédio dos Réus J… e M…, melhor identificado na al. b) dos Factos Provados, sendo a passagem feita por um caminho com início na Rua da …, tomando o traçado da Rua do … e passando sobre o prédio identificado na al. b) dos Factos Provados com cerca de 2,50 metros (dois metros e meio) de largura, junto à estrema sul desse prédio e paralelamente a tal estrema, até atingir o prédio dos Autores identificado na al. a) dos Factos Provados;

- Condenar os Réus J… e M… a restituir aos Autores a livre passagem sobre a aludida servidão;

- Condenar os 1ºs e 3ºs Réus a abster-se de praticar quaisquer actos que possam obstar ou limitar o exercício do direito dos Autores;

- Absolver os 2ºs Réus dos pedidos.


3)

            Custas da 1ª instância a cargo dos Autores.

            As custas da apelação por Apelantes e Apelados na proporção de 70% e 30%, respectivamente.

            Coimbra, 21 de Outubro de 2014.


Jorge Arcanjo (Relator)

Teles Pereira

Manuel Capelo