Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
192/10.0TBCNT-B.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: EMÍDIO FRANCISCO SANTOS
Descritores: EXECUÇÃO
TÍTULO EXECUTIVO
Data do Acordão: 02/01/2011
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: CANTANHEDE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTIGO 46.º, N.º 1 DO CPC; ARTIGO 458.º DO CC
Sumário: 1. Resulta do artigo 458.º,n.º 1 do Código Civil que o reconhecimento de dívida, sem indicação da respectiva causa, faz presumir que a dívida existe e que tem uma causa.

2. Donde se conclui que o documento que contenha o reconhecimento de dívida determinada ou determinável, desde que esteja assinado pelo devedor, constitui título executivo, nos termos da alínea c), do n.º 1 do artigo 46º, do Código de Processo Civil.

3. E constitui título executivo, independentemente da indicação da causa da dívida, no documento ou no requerimento executivo.

4. Mostra-se cumprido o disposto no artigo 810º, n.º 1, alínea e), do Código de Processo Civil com a alegação, no requerimento executivo, de que o executado confessou, no escrito que serve de base à execução, dever ao exequente certa quantia, quando é esse o facto que fundamenta o pedido.

Decisão Texto Integral: Acordam na 1ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra

 

A..., residente na rua ..., instaurou execução para pagamento da quantia de 31 644,39 € e juros contra B... e C..., residentes na rua ....

À execução serviu de base o documento particular cuja cópia está junta a fls. 78 e 79, que tem por título “declaração de confissão e assunção de dívida”. 

O executado opôs-se à execução. Na sua defesa alegou que o título executivo era nulo. A nulidade procedia do seguinte: em primeiro lugar, do facto de o negócio jurídico que lhe estava subjacente ser um contrato de mútuo nulo por falta de forma; em segundo lugar, do facto de a declaração de confissão de dívida não estar datada; em terceiro lugar, do facto de nunca ter havido mútuo da quantia referida na declaração, pois o exequente nunca entregou aos executados tal quantia. Mesmo que assim não fosse, os juros mencionados na declaração seriam usurários.

O exequente contestou, pedindo se julgasse improcedente a oposição e se condenasse o executado, em multa e indemnização, como litigante de má fé.  

Findos os articulados, o Meritíssimo juiz a quo conheceu imediatamente do mérito da causa, julgando procedente a oposição, com a consequente extinção da execução. Quanto ao pedido de condenação do executado como litigante de má fé, julgou-o improcedente.

O exequente não se conformou com a decisão e interpôs recurso de apelação contra ela, pedindo a revogação e a substituição dela por outra que ordenasse o prosseguimento da acção executiva.

Fundamentou o recurso nas seguintes razões:

1. O documento particular junto com a petição executiva reúne todos os pressupostos e configura um verdadeiro título executivo, nos termos plasmados no artigo 46º, n.º 1, alínea c), do Código de Processo Civil.

2. O documento apresentado pelo ora recorrente contém a assinatura dos devedores.

3. Contém a causa da obrigação (dívida comercial destinada à actividade comercial do embargante marido) e encontra-se assinado por todos os outorgantes (exequente e executados).

4. Importa o reconhecimento de uma dívida para com o recorrente.

5. A obrigação reporta-se ao pagamento de quantia perfeitamente determinada.

6. Nos termos do artigo 458º do Código Civil não se torna necessário que o documento indique mesmo a causa da obrigação por se presumir a existência de relação fundamental.

7. Porém, por não se consagrar aqui o princípio do negócio abstracto, mas apenas a inversão da prova da existência da relação fundamental, não fica o devedor desonerado da alegação da relação fundamental, a servir de causa de causa de pedir, aquando da apresentação do requerimento executivo.

8. Mas não lhe incumbe provar o facto constitutivo da obrigação. É aos devedores que compete provar, em oposição à execução que a relação fundamental não existe ou é nula.

9. A causa de pedir consta do título executivo e a declaração dos autos, in casu, é bilateral por assinada por todos os outorgantes, cumprindo todos os requisitos legais exigíveis.

10. O tribunal a quo, ao julgar procedente a oposição e, por isso, extinta a execução apresentada pelo recorrente, por insuficiência de título executivo, violou claramente, entre outros, os artigos 458º, n.º 1, do Código Civil, 45º, 46º, n.º 1, alínea c), 810º, n.º 3, alínea e), 812º, n.º 2, alínea a), todos do Código de Processo Civil.     

O executado respondeu, pugnando pela manutenção da decisão recorrida.


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A principal questão suscitada pelo recurso é a de saber se, quando a execução se baseie num documento particular em que o executado reconhece uma dívida, o exequente tem o ónus de alegar a causa da dívida sob pena de, não o fazendo, se considerar que há falta de título executivo.

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Factos considerados provados:

1. O exequente deu à execução um escrito que os executados subscreveram, intitulado de “declaração de confissão e assunção de dívida”.

2. Nesse escrito os executados declararam dever ao exequente A... a quantia de 25 000 euros e que o pagamento dessa quantia seria efectuado em 3 prestações assim escalonadas: uma 1ª prestação de 10 000$00 (dez mil euros) que seria paga até ao final do mês de Dezembro de 2006; uma segunda prestação de 10 000 euros que seria paga até ao final do mês de Maio de 2007; uma terceira prestação de 5 000 euros, que seria paga até ao final do mês de Junho de 2007.


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Antes de entramos na apreciação dos fundamentos do recurso, importa indicar, de modo resumido, as razões que levaram a sentença a julgar procedente a oposição.

A sentença recorrida, seguindo de perto o acórdão da Relação de Lisboa proferido em 17 de Dezembro de 2009, no processo n.º 6659/07.0TBLRA [o acórdão está publicado no sítio www.dgsi.pt/jtrl e na Colectânea de Jurisprudência, Ano XXXIV, Tomo V/2009, páginas 115 a 117], entendeu que, quando o documento que serve de base à execução é um documento particular em que alguém reconhece uma dívida, cabe ao credor alegar a relação fundamental, ainda que, por força do artigo 458º, do Código Civil, esteja dispensado de a provar. Se a relação fundamental não constar do documento e se o credor a não invocar no requerimento inicial, a execução não poderá prosseguir. Por considerar que no, caso, não havia sido “invocada a relação causal geradora de direitos e obrigações entre exequente e executados que legitimasse a emissão do documento em causa”, concluiu que faltava título à presente execução[1]

O recorrente, embora não ponha em causa o entendimento de que o artigo 458º do Código Civil não desonera o credor de alegar a relação fundamental, aquando da apresentação do requerimento executivo[2], critica a decisão dizendo, em síntese, que a causa da dívida consta do documento que serviu de base à execução, que a declaração que figura no citado documento é bilateral, e não unilateral, e que a declaração de confissão de dívida reúne as condições exigidas pelo artigo 46º, n.º 1, alínea c), do CPC, para servir de base à execução.

Entrando na apreciação desta argumentação, importa dizer, antes de mais, que não assiste razão ao recorrente quando afirma que o documento contém a indicação da causa da dívida e que a declaração de confissão de dívida é uma declaração bilateral. Vejamos.

 O recorrente afirma que se está perante uma declaração bilateral e não perante uma declaração unilateral pelo facto de o documento estar assinado não só pelos executados mas também por si. 

É certo que o documento que serviu de base à execução está assinado pelo exequente e pelos executados e como escrevem Antunes Varela, J. Miguel Bezerra e Sampaio e Nora, Manual de Processo Civil, Coimbra Editora, páginas 500, “quem subscreve o documento quer significar que aprova o seu conteúdo e assume a paternidade deste”.

Sucede que o que distingue a declaração unilateral da bilateral não é o facto de constar de documento assinado por uma ou várias pessoas. A declaração é unilateral quando a eficácia dela não depende da concordância do destinatário [cfr. neste sentido Carlos Alberto da Mota Pinto, Teoria Geral do Direito Civil, 4ª edição por António Pinto Monteiro e Paulo Mota Pinto, Coimbra Editora, Limitada, páginas 386]. É o que sucede no caso. Em primeiro lugar, é inequívoco que foram os executados, e só eles, quem fez a declaração de que se consideravam devedores ao exequente. Em segundo lugar, a eficácia desta declaração não dependia da concordância do exequente.

Deste modo, não merece qualquer reparo a sentença por ter qualificado, como unilateral, a declaração de confissão de dívida feita pelos executados.      

Quanto à indicação da causa da dívida na declaração, diz o recorrente que ela foi feita ao declarar-se que a dívida era comercial e que se destinava à actividade comercial do executado. 

A causa da dívida não é um conceito unívoco. Para efeitos do disposto no artigo 458º, n.º 1, do Código Civil, a causa de uma dívida é a fonte ou o facto constitutivo da dívida [António Menezes Cordeiro, Direito das Obrigações, Volume 1º, 1994, páginas 565].

Perante a declaração de que a dívida de 25 000,00 euros era “dívida comercial” e “assim destinada à actividade comercial do declarante marido”, não se ficou a saber qual era a fonte da dívida; ficou a saber-se apenas o destino dado à quantia em dívida.

Assim sendo, bem andou a sentença em considerar que a declaração de confissão de dívida não continha a indicação da respectiva causa.

O que merece censura na sentença é o entendimento de que o documento particular assinado pelo devedor que importe o reconhecimento de uma dívida só serve de base a execução se contiver a indicação da causa da dívida ou se, não a tendo, o credor exequente a indicar no requerimento executivo.

Vejamos.

Um dos princípios fundamentais em matéria de acção executiva é o de que “toda a execução tem por base um título, pelo qual se determinam o fim e os limites da acção executiva” (artigo 45º, n.º 1, do CPC).

É a lei que indica, de modo taxativo, quais os títulos que podem servir de base à execução e quais os respectivos requisitos de exequibilidade (artigos 46º a 52º, do CPC).             

Para o caso interessam-nos os títulos que vêm indicados na alínea c) do n.º 1, do artigo 46º, do CPC, isto é, os documentos particulares, assinados pelo devedor, que importem constituição ou reconhecimento de obrigações pecuniárias, cujo montante seja determinado ou determinável por simples cálculo aritmético de acordo com as cláusulas dele constantes, ou de obrigação de entrega de coisa ou de prestação de facto.

O documento que serve de base à execução, sendo um documento particular que está assinado pelo executado (devedor) e onde este confessa dever ao exequente a quantia de 25 000,00 euros, cabe inequivocamente na espécie de título executivo que a alínea c) do n.º 1 do artigo 46º do CPC designa por “documentos particulares, assinados pelo devedor, que importam reconhecimento de obrigações pecuniárias cujo montante seja determinado”.

É certo, como se refere na sentença, que o documento em causa, enquanto declaração unilateral de reconhecimento de dívida, também está sujeito ao regime do artigo 458º, do Código Civil.

Sucede que deste regime não resulta que o beneficiário do reconhecimento da dívida só se pode prevalecer do documento, como título executivo, desde que o documento contenha a indicação da causa da dívida ou que, não a tendo, ela seja alegada no requerimento executivo.

Nos termos da citada norma se alguém, por simples declaração unilateral, prometer uma prestação ou reconhecer uma dívida, sem indicação da respectiva causa, fica o credor dispensado de provar a relação fundamental, cuja existência se presume.

 Para utilizarmos as palavras de Almeida Costa, Direito das Obrigações, 11ª Edição, Revista e Actualizada, Almedina, páginas 467, o sentido da norma é o seguinte: “…a lei consente que, através de acto unilateral, se efectue a promessa de uma prestação ou o reconhecimento de uma dívida, sem que o devedor indique o fim jurídico que o leva a obrigar-se, presumindo-se a existência e a validade da relação fundamental”.          

É também com este sentido que a norma é interpretada por Inocêncio Galvão Teles, Direito das Obrigações, 7ª Edição reimpressão, páginas 182, ao escrever a propósito do artigo 458º, do Código Civil, o seguinte: “presume-se que a dívida realmente existe; que há uma causa que a justifica, ou seja, uma relação fundamental em que se integra, um acto ou facto que a gerou. Inverte-se pois o ónus da prova. Aquele que se arroga a posição de credor (…) não precisa de provar a causa da dívida, visto beneficiar da presunção decorrente da declaração feita. A outra parte (…) é que competirá provar, se para isso dispuser dos elementos necessários, que afinal não é devedora porque a dívida nunca teve causa ou essa causa já cessara”.

Interpretando o artigo 458º com o sentido exposto, ou seja, com o sentido de que o reconhecimento da dívida, sem indicação da respectiva causa, faz presumir que a dívida existe e que tem uma causa, a conclusão a retirar é a de que o documento que contenha o reconhecimento de dívida determinada ou determinável, desde que esteja assinado pelo devedor, constitui título executivo, nos termos da alínea c), do n.º 1 do artigo 46º, do CPC. E constitui título executivo, independentemente da indicação da causa da dívida, no documento ou no requerimento executivo.

Como escreve Mário Júlio de Almeida Costa, na obra supra citada, páginas 467, nota 2, “Está-se, portanto, em face de um documento caracterizadamente certificativo ou recognitivo da obrigação dele constante. Isto permite ao credor utilizá-lo como título executivo, sem necessidade de intervenção notarial (…). A ilisão da aludida presunção de causa far-se-á, neste caso, através da oposição à execução (…)”     

A obrigação de indicar a causa da dívida também não decorre do artigo 810º, n.º 1, alínea e), do Código de Processo Civil. O que esta disposição impõe é que, no requerimento executivo, dirigido ao tribunal de execução, o exequente exponha sucintamente os factos que fundamentam o pedido, quando não constem do título executivo.

Ora, este preceito mostra-se cumprido com a alegação, no requerimento executivo, de que o executado confessou, no escrito que serve de base à execução, dever ao exequente a quantia de 25 000,00 euros, pois é precisamente este o facto que fundamenta o pedido.

Face ao exposto, não tem cobertura na lei a decisão recorrida na parte em que afirmou que, por “não ter sido invocada a relação causal geradora de direitos e obrigações entre exequente e executados que legitimasse a emissão do documento em causa, importava concluir pela falta de título executivo”.   

Assim, ao concluir pela falta de título executivo, a decisão recorrida violou o disposto no artigo 46º, n.º 1, alínea c), do CPC. Impõe-se, pois, a sua revogação e o prosseguimento do processo.

Com efeito, tendo o executado alegado que o negócio que deu origem à declaração confessória de dívida foi um mútuo, mas tendo posto em causa não só a validade formal deste negócio, mas também a sua existência[3], e tendo esta matéria sido impugnada na contestação à oposição, segue-se daqui que o estado do processo não permite a apreciação da pretensão do executado/opoente. Na verdade, como resulta do acima exposto, é ao executado que compete a prova de que a dívida que reconheceu não tem causa ou que a causa dela é inválida (cfr. artigo 458º, n.º 2, do CC).          


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Decisão:

Julga-se procedente o recurso e, em consequência, revoga-se a decisão recorrida, determinando-se o prosseguimento do processo com a selecção dos factos considerados assentes e com organização da base instrutória.


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Custas pelo recorrido.


EMÍDIO FRANCISCO SANTOS (RELATOR)
ANTÓNIO BEÇA PEREIRA
NUNES RIBEIRO


[1] O entendimento de que o credor, para poder prevalecer-se da declaração de reconhecimento de dívida como título executivo, tem o ónus de alegar a causa da dívida, colhe-se também no acórdão do Tribunal de Guimarães, proferido em 6 de Dezembro de 2007, no processo n.º 2390/07 publicado no sítio www.dgsi.pt/jtrg e na Colectânea de Jurisprudência Ano XXXII, Tomo V/2007, páginas 285 a 287. Com efeito, aí se escreveu: “Sendo assim, como é de facto, bem se compreende que seja de exigir ao exequente, que queira fazer-se prevalecer declaração unilateral de constituição e/ou reconhecimento de uma obrigação pecuniária, a alegação da relação jurídica causal ou subjacente a tal obrigação, ou seja, do facto de que emerge a obrigação assumida, sob pena de inexistência de causa de pedir”.
[2] Esta é a interpretação que fazemos das conclusões 6ª e 7ª, pois nelas o recorrente afirma: “Nos termos do artigo 458º do Código Civil, não se torna necessário que o documento indique mesmo a causa da obrigação, por se presumir a existência da relação fundamental; porém, por não se consagrar aqui o princípio do negócio abstracto, mas apenas a inversão da prova da existência da relação fundamental, não fica o credor desonerado da alegação da relação fundamental, a servir de causa de pedir, aquando da apresentação do requerimento executivo”. 
[3] Não pode deixar de assinalar-se que a alegação de que o contrato de mútuo é nulo por falta de forma é contraditória com a alegação de que não chegou a existir mútuo por o exequente nunca ter entregue aos executados a quantia de 25 000,00 (artigo 12º da oposição). Com efeito, sendo o contrato de mútuo um contrato real quoad constitutionem, isto é, é um contrato que só fica perfeito com a entrega do dinheiro (artigo 1142º), o mesmo só poderia ser nulo por falta de forma se tivesse havido a entrega de dinheiro. Se não houve, o contrato não se constituiu. Se não se constitui, não tem o mais leve sentido a alegação de que o contrato é nulo por falta de forma.