Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
959/09.2PBCBR-A.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: LUÍS RAMOS
Descritores: NOTIFICAÇÃO
DESPACHO
CONVERSÃO DA MULTA EM PRISÃO
Data do Acordão: 04/24/2013
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: VARA DE COMPETÊNCIA MISTA E JUÍZOS CRIMINAIS DE COIMBRA – 3º JUÍZO CRIMINAL
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 113º, 196º Nº 3 C), 214º Nº 1 E) E 333º Nº 5 CPP
Sumário: A notificação ao arguido do despacho que converteu a pena de multa em prisão subsidiária deve ser efetuada por contacto pessoal.
Decisão Texto Integral: Acordam em conferência na 4ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Coimbra

Por despacho proferido nos autos supra identificados, decidiu o tribunal determinar que o arguido A... cumpra 186 dias de prisão subsidiária nos termos do disposto no art.º 49º, n.º 1 do Código Penal.

Inconformado com o decidido, o arguido interpôs recurso no qual apresentou as seguintes conclusões (transcrição):

“1° - O TIR prestado pelo arguido em sede de inquérito extingue-se pelo trânsito em julgado da decisão condenatória e não com a extinção do procedimento criminal, não devendo nem podendo ser assacado ao arguido qualquer consequência decorrente de este não ser encontrado em tal morada, muito menos o cumprimento de pena de prisão (neste sentido o Acórdão do Tribunal Constitucional, de 17 de Agosto de 2005, in DR, lia Série, n.° 183, de 22 de Setembro de 2005, pág. 13.750, que sanciona com a inconstitucionalidade, que corroboramos, a notificação por via postal para a morada constante do TIR, quando tal medida de coacção já se mostra extinta).

2.º - O tribunal não pode dar como admitido que o arguido teve conhecimento das guias para pagamento das custas e multa e dos prazos dela decorrentes, uma vez que, apesar de endereçada à morada constante do TIR, este extinguiu-se.

3° - Tal notificação de guias é relevantíssima, dado ser esse o momento em que é concedido prazo ao arguido para reagir de seguida à multa com uma das várias formas possíveis (pagar a totalidade, pedir o pagamento a prestações, pedir a substituição por trabalho a favor da Comunidade, ou nada fazer e aguardar prisão).

4° - A relevância de tal notificação é tal que o comportamento omissivo do arguido pode, sem mais, vir a determinar o cumprimento de uma pena de prisão (a ultima ratio das penas), como efectiva e erradamente se veio a decidir.

5° - Ora por contender com a aplicação de uma pena de prisão, quer essa notificação- que é pressuposto- quer a notificação da decisão que determina o cumprimento de pena de prisão subsidiária que lhe segue devem ser feitas de forma pessoal, de forma a que sem margem para dúvidêS, e sem presuncões, de forma a que se garanta que o arguido dela teve conhecimento. O que ainda não sucedeu no presente caso.

6° - Se a primeira é de elementar importância por poder vir a originar uma sentença de pena de prisão, já esta última (a conversão da multa em pena de prisão subsidiária) já constitui per si uma verdadeira modificação do conteúdo decisório da sentença inicial, que lhe diz directamente respeito (neste sentido acórdão de 15 de Setembro de 2011, processo 518/09.OPGLRS, L1-9, do Tribunal da Relação de Lisboa, disponível em www.dgsí.pt), E assim, ambas, como de sentenças se tratasse, têm de lhe ser pessoalmente notificadas,

7° - Ora inexistindo elementos bastantes nos autos de que -nos dois casos de notificação em apreço, as guias de pagamento e o despacho de que converte e ordena o cumprimento de prisão subsidiária comprovem que o arguido teve conhecimento daquilo que se pretendia que lhe fosse notificado, parece salvo o devido respeito errada quer a promoção do MP quer a decisão de emitir mandados de detenção para que o arguido cumpra prisão, dado que levem implícito que o arguido foi "regularmente" notificado e que não logrou comprovar nos autos que não tem culpa no não-pagamento da multa,

8° - Se o arguido ainda não logrou provar nos autos a razão do não pagamento da multa, ou melhor, se a ela não reagiu de forma alguma, foi porque não sabia que estava em tempo de a pagar, não sabia que estava em tempo de substituir tal pagamento por um pedido de pagamento a prestações ou de requerer a prestação de trabalho a favor da comunidade e muito menos sabia que devido a isso até já tem uma ordem de prisão,

9° - E não só o arguido tem forçosamente de o saber, mas também o tribunal tem forçosamente de assegurar que o arguido o sabe.

10° - Só o arguido (o único a quem foram enviadas as guias com as imprescindíveis referências para pagamento) é que pode pagar as prestações, só o arguido é que sabe se quer efectuar o pagamento a prestações, só o arguido é que sabe da sua situação económica, só o arguido é que sabe se quer, em alternativa, requerer a substituição da pena por trabalho favor da comunidade, e só o arguido é que pode comunicar ao seu defensor (e este por sua vez ao processo) o número de prestações a que se propõe,

11° - E quis o legislador, por uma questão de garantia constitucional de defesa, que todas as notificações após o trânsito em julgado da sentença, mormente as duas em falta nestes autos, devam ser realizadas ao arguido -e não só ao defensor- por contacto pessoal, sendo aqui idênticas as razões que levam a que no caso do artigo 495°, n.º 2 ou em processo sumarissimo (art. 396º, n.º 2), o arguido seja contactado pessoalmente antes de se tomar uma decisão que o afecte,

12° - Tais omissões de notificações por contacto pessoal do arguido equivalem à ausência deste, de acordo com o 61, n.º 1, alíneas a) e b) do CPP e configuram-se como nulidades insanáveis, nos termos dos artigo 119, n.º 1 alínea c) do mesmo diploma.

13° - Foram violados os artigos 61, n.º 1, alíneas a e b do CPP, o artigo 113°, n.º 1, al. a) e n.º 9 do CPP, 196, n.º 2, alínea c), 214, n.º 1 alínea e), o artigo 49º, n.º 3 do CP e o artigo 32°, n.º 1 e 5 da CRP.

Nestes termos, dever-se-á julgar o presente totalmente recurso procedente e por via do mesmo revogar-se a decisão que determina o cumprimento de 186 dias de prisão subsidiária, substituindo-a por outra que ordene a notificação pessoal do arguido, quer do despacho que lhe remete as guias para pagamento das custas e multa, quer, - apenas subsidiariamente - do despacho que lhe determina o cumprimento de 186 dias de prisão subsidiária, para os prazos, deveres e obrigações dele decorrentes.”

Respondeu o Ministério Público defendendo a manutenção da decisão recorrida.

O recurso foi admitido para subir imediatamente, nos próprios autos, com efeito suspensivo.

Nesta instância o Exmo. Procurador-Geral Adjunto emitiu douto parecer no qual se manifesta pela improcedência do recurso.

No âmbito do art.º 417.º, n.º 2 do Código Penal o arguido nada disse.

Os autos tiveram os legais vistos após o que se realizou a conferência.

Cumpre conhecer do recurso

Constitui entendimento pacífico que é pelas conclusões das alegações dos recursos que se afere e delimita o objecto e o âmbito dos mesmos, excepto quanto àqueles casos que sejam de conhecimento oficioso.

É dentro de tal âmbito que o tribunal deve resolver as questões que lhe sejam submetidas a apreciação (excepto aquelas cuja decisão tenha ficado prejudicada pela solução dada a outras).

Cumpre ainda referir que é também entendimento pacífico que o termo “questões” a quer se refere o artº 379º, nº 1, alínea c., do Código de Processo Penal, não abrange os argumentos, motivos ou razões jurídicas invocadas pelas partes, antes se reportando às pretensões deduzidas ou aos elementos integradores do pedido e da causa de pedir, ou seja, entende-se por “questões” a resolver, as concretas controvérsias centrais a dirimir[[1]].

Questões a decidir:

– modalidade da notificação ao arguido para pagamento da multa e

– modalidade de notificação do despacho que converte a multa em prisão subsidiária

O despacho recorrido tem o seguinte teor:

“O arguido A...foi condenado, por sentença proferida nestes autos a 11/11/2010, pela prática, como autor material, de dois crimes de ofensa à integridade física simples, p. e p. pelo art.º 143° n.º 1 do CP, na pena de 280 dias de multa à taxa diária de € 5,50, no total de €:1540,00.

A referida decisão transitou em julgado.

O arguido não procedeu ao pagamento da pena de multa em prestações nem requereu a sua substituição por trabalho a favor da comunidade.

Indagou-se da situação económica e patrimonial do arguido, não tendo sido apurado a existência de bens ou rendimentos susceptíveis de penhora, com vista ao pagamento coercivo da multa, cfr. fls. 265.

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O M.P. promoveu o cumprimento pelo arguido da prisão subsidiária - cfr. fls. 266.

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O arguido foi notificado que para indicar as razões pelas quais não procedeu ao pagamento da pena de multa, quer na pessoa do seu Ilustre defensor oficiosos, quer na morada do TIR.

Veio o Ilustre defensor oficioso do arguido dizer que as guias da pena de multa deveriam ter sido notificadas pessoalmente ao arguido, não podendo ser notificadas por via postal simples.

Requer, assim, a notificação pessoal ao arguido da conta de custas e de multa e do despacho de fls. 267 dos autos.

Decidindo:

Relativamente á requerida notificação pessoal ao arguido da promoção do M. P., da conta e das guias de multa, dir-se-á, na esteira do AC RC de 11/7/2002, in processo de recurso n.º 115/05.9GAMIR-B e do Ac da RP n.º 4989/08. 3TAMTS-A. P1, de 16/3/11, que "em face do disposto no art.º 113º n.º 9 do CPP, as notificações dos diversos actos processuais podem ser feitas na pessoa do defensor ou advogado. Só terão de ser pessoalmente feitas também ao arguido nos casos ali expressamente designados: acusação, decisão instrutória, marcação de data de julgamento, sentença, medidas de coacção e pedido civel."

Não é esse o caso da conta, das guias de pagamento da pena de multa nem do despacho judicial de fls. 267 dos autos.

Inexiste, pois, julgamos, a obrigação legal de efectuar as notificações pessoais do arguido que são requeridas.

Dispõe o art.º 49º do Cód. Penal que, quando a multa não for paga (voluntária ou coercivamente) nem substituída por dias de trabalho, nos termos do art.º 48º do mesmo diploma, "é cumprida prisão subsidiária pelo tempo correspondente reduzido a dois terços, ainda que o crime não fosse punivel com prisão", justificando-se esta redução pelo facto de o sofrimento da prisão ultrapassar os de dias de multa e de uma correspondência aritmética ter por efeito sancionar aqueles que possuem condições económico- financeiras deficitárias (cfr. Figueiredo Dias, "Direito Penal Português", Aquitas, p. 145).

Assim, a descrita situação implica o cumprimento da prisão subsidiária pelo tempo correspondente ao número de dias de pena de multa reduzido a 2/3, ou seja, o cumprimento de 186 dias de prisão.

Assim sendo, ordena-se que o arguido cumpra 186 dias de prisão subsidiária, nos termos do disposto n.º 1 do artigo 49° do Código Penal.

Notifique.

Após trânsito: passe mandados de detenção e condução do arguido ao Estabelecimento Prisional para cumprimento da prisão subsidiária em causa, fazendo referência à faculdade que assiste ao arguido de proceder ao pagamento voluntário da multa a fim de evitar o cumprimento da pena de prisão e fazendo deles constar que por cada dia de prisão deverá ser descontada a quantia de €:8,27.

(…)”


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A primeira questão colocada pelo recurso é a de que o prazo para pagamento da multa em que o arguido foi condenado devia ter-lhe sido notificado pessoalmente.

Não tem razão uma vez que tal notificação segue a regra do art.º 113º, n.º 9 do Código de Processo Penal[[2]] e o seu defensor foi devidamente notificado.

Sempre diremos, no entanto, que ainda que assim não se entendesse, tal “falta de notificação” apenas poderia ser considerada uma irregularidade que tinha que ser obrigatoriamente arguida no prazo a que se refere o art.º 123º, n.º 1, o que não aconteceu (não foi arguida nos três dias subsequentes a 13 de Junho e 2012, data em que foi abordado pela GNR com vista ao apuramento da existência de bens para execução da multa).

Situação diferente é a segunda questão e que consiste em saber se a notificação ao arguido do despacho que converte em prisão a pena de multa deve ser pessoal ou pode ser efectuada por via postal simples para a morada constante do termo de identidade e residência.

O recorrente entende que tem que ser pessoal e o tribunal recorrido considera esta segunda modalidade cumpre com os desígnios legais.

Consideramos que de jure constituto a razão estado lado do recorrente[[3]].

Explicando:

Entre os vários tipos de notificação previstos no artº 113º, está prevista, no nº 1, alínea c. a notificação “via postal simples, por meio de carta ou aviso, nos casos expressamente previstos”.

Por seu turno, determina a alínea c., do nº 3, do artº 196º, que as notificações posteriores à prestação de termo de identidade e residência serão feitas por via postal simples para a morada que o arguido haja indicado nos termos do nº 2 do mesmo artigo, ou que venha a indicar em conformidade com a referida alínea c..

Ora, o termo de identidade e residência, como medida de coação que é, extingue-se com o trânsito em julgado da sentença condenatório (artº 214º, nº 1, alínea e.), o que implica, como é óbvio, a extinção das obrigações dele decorrentes e consequentemente, das implicações delas dimanadas.

Por isso, sendo a notificação por via postal simples apenas permitida nos casos expressamente previstos e não havendo outra disposição legal que sustente tal tipo de notificação no caso do despacho que converte a pena de multa em prisão subsidiária, logo que aquela medida de coação esteja extinta, há que efectuar as comunicações ao arguido por uma das demais formas fixadas no artº 113º.

Contudo, o despacho que converte a pena de multa em prisão subsidiária opera uma verdadeira modificação na natureza da pena aplicada (passa a ser uma pena detentiva), o que impõe que a notificação deva ser efectuada através de uma via que garanta a certeza de que o condenado teve conhecimento da decisão que afecta os seus direitos, liberdades e garantias e que ordena a emissão de mandados de detenção para o cumprimento da prisão subsidiária.

Tal garantia apenas pode ser dada através de notificação por contacto pessoal (até pelo paralelismo com o caso do artº 333º, nº 5).

Aliás, com excepções residuais, é esta a jurisprudência reiterada dos Tribunais da Relação (v.g., acórdãos da Relação de Coimbra de 7 de Março de 2012, de 6 de Julho de 2011 e de 29 de Junho de 2011, da Relação de Lisboa de 15 de Setembro de 2011, de 4 de Junho de 2008, da Relação do Porto de 14 de Dezembro de 2011, de 14 de Dezembro de 2011, de 18 de Maio de 2011, de 9 de Março de 2011, de 30 de Março de 2011, de 23 de Fevereiro de 2011, de 19 de Janeiro de 2011 e de 20 de Abril de 2009 e da Relação de Évora de 28 de Fevereiro de 2012, de 25 de Outubro de 2011, de 20 de Janeiro de 2011 e de 22 de Abril de 2008 (todos em www.dgsi.pt) e ainda os acórdãos da Relação de Lisboa de 26 de Junho de 2008 e de 23 de Abril de 2008 e decisão sumária da mesma Relação de 30 de Junho de 2008 (em www.pgdlisboa.pt).

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Nesta conformidade, acorda-se em conceder parcial provimento ao recurso e consequentemente, revoga-se o despacho recorrido e determina-se que em sua substituição seja proferido um outro em que se considere que a notificação ao arguido do despacho que converte a multa em prisão subsidiária deve ser efectuada por contacto pessoal.

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Sem tributação.

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Luis Ramos (Relator)

Olga Maurício


[1] “(…) quando as partes põem ao tribunal determinada questão, socorrem-se, a cada passo, de várias razões ou fundamentos para fazer valer o seu ponto de vista. O que importa é que o tribunal decida a questão posta, não lhe incumbindo apreciar todos os fundamentos ou razões em que as partes se apoiam para sustentar a sua pretensão” (Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 5 de Maio de 2011, acessível in www.dgsi.pt, tal como todos os demais arestos citados neste acórdão cuja acessibilidade não esteja localmente indicada)
[2] Diploma a que pertencerão, doravante, todos os normativos sem indicação da sua origem
[3] A solução seria diferente no caso de serem aplicáveis as alterações ao Código de Processo Penal introduzidas pela Lei n.º 20/2013, de 21 de Fevereiro (o que não poderia acontecer no caso sub judice uma vez que o arguido não foi notificado nos termos do art.º 196º, n.º 3, alínea e.)