Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
219/17.5T8OHP.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: LUÍS CRAVO
Descritores: SERVIDÃO DE PASSAGEM
EXTINÇÃO
DESNECESSIDADE
ÓNUS DA PROVA
Data do Acordão: 10/23/2018
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE COIMBRA - O.HOSPITAL - JUÍZO C. GENÉRICA
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ART. 1569 Nº2 CC
Sumário:
1– A desnecessidade da servidão traduz-se numa situação em que se conclui que o prédio dominante não precisa da servidão.
2 – A lei (art.1569º, nº2, do C.Civil) exige que a desnecessidade da permanência da servidão deve ser aferida pelo momento da introdução da ação em juízo, mas, em princípio, a desnecessidade será superveniente em relação à constituição da servidão, decorrendo de alterações ocorridas no prédio dominante.
3 – No entanto, a desnecessidade tem de ser aferida pela situação existente no momento em que a ação é proposta (objetiva e actual), e não só após a realização de alterações a levar a cabo no prédio dominante determinada na sentença.
4 – Só deve ser declarada extinta por desnecessidade uma servidão que deixou de ter qualquer utilidade para o prédio dominante; fazer equivaler a desnecessidade à indispensabilidade não é consistente com a possibilidade de extinção por desnecessidade de servidões que não sejam servidões legais; a necessidade/desnecessidade não equivale a indispensabilidade/dispensabilidade, sendo que a mera circunstância de a servidão não ser absolutamente necessária ou indispensável não equivale à sua desnecessidade.
5 – Incumbe ao proprietário do prédio serviente que pretende a declaração judicial da extinção da servidão o ónus da prova da desnecessidade.
6 – O que se impõe considerar como positivamente feito ao resultar apurado que a serventia perdeu aptidão para proporcionar ao prédio dominante qualquer utilidade concreta que não possa ser alcançada por outra via ou quando a utilidade que dela ainda possa advir é insignificante ou irrisória quando comparada com o encargo imposto ao prédio serviente.
Decisão Texto Integral:


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Proc. nº219/17.5T8OHP.C1 Tribunal de origem: Juízo de Competência Genérica de Oliveira do Hospital – do T.J. da Comarca de Coimbra
Apelações em processo comum e especial (2013)
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Acordam na 2ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra Relator: Des. Luís Cravo
1º Adjunto: Des. Fernando Monteiro
2º Adjunto: Des. Carvalho Martins

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1 – RELATÓRIO
J (…) e mulher, M (…) ambos residentes (…) em … intentaram a presente ação declarativa de condenação contra P (…), divorciado, residente (…), …, peticionando que, após o reconhecimento do seu direito de propriedade sobre o prédio inscrito sob o artigo … da matriz predial, o Réu seja condenado a reconhecer que o prédio dos Autores beneficia de uma servidão de passagem a pé e de veículos e que tal servidão tem a configuração caracterizada no artigo 12º da petição inicial, a qual onera o prédio do Réu, sendo que este não poderá causar embaraço ao exercício de tal direito, devendo nisso ser condenado e em consequência deverá demolir o muro que construiu a ocupar parcialmente o leito de tal servidão.
E tais pedidos mostram-se alcandorados na seguinte factualidade aqui sincopadamente referida:
Os Autores são donos de um prédio rústico inscrito na matriz rústica sob o artigo … cujo direito de propriedade se encontra inscrito em seu nome nos termos do n.º …, após o terem comprado a terceiro. Mais, alegaram factos conducentes à aquisição de tal direito registado por via de aquisição originária – usucapião.
Tal prédio confronta a sul com o prédio inscrito na matriz urbana sob o artigo …, cujo direito de propriedade se encontra registado em nome do Réu.
O acesso da via pública – … - ao seu prédio faz-se pelo lado sul, na parte que confronta com o prédio do Réu, o qual atravessa através de uma faixa de terreno em terra batida, com cerca de 3,65 metros de largura, num cumprimento de cerca de 19,80 metros até ao portão instalado no prédio dos Autores. E tal acesso foi caracterizado como sendo apto a permitir a constituição de uma servidão de passagem por usucapião.
Sucede que já estava a dita servidão assim constituída, quando o Réu construiu um muro de blocos, vedando o seu prédio, ocupando cerca de 1,08m da largura do início da faixa de terreno, dificultando a passagem de veículos.
O Réu contestou, aceitando que por conta do instituto da usucapião, foi constituída a favor do prédio do Autores (cujo direito de propriedade não coloca em causa) uma servidão de passagem a pé e com veículos mas apenas na largura de 2,60 metros e não de 3,65 metros como pretendem ver reconhecido com esta ação os Autores.
E, deduziu contra os Autores os seguintes pedidos reconvencionais:
Peticionou o reconhecimento do seu direito como proprietário do terreno que os Autores já haviam identificado como sendo o prédio serviente e que seja judicialmente declarada extinta por desnecessidade a servidão de passagem por conta do acesso direto ao prédio dominante a pé e por veículo a partir da via pública, com comodidade e sem dispêndio.
E em consequência os Autores deverão ser condenados em abster-se de aceder ao seu prédio através da faixa de terreno sobre a qual esteve constituída a servidão em causa.
E tais pedidos reconvencionais mostram-se suportados na alegação dos factos aquisitivos do direito de propriedade sobre o prédio aqui serviente e que após a constituição da dita servidão de passagem foi construído um arruamento público a norte do prédio do Autores, não existindo a necessidade de manutenção da servidão.
Os Autores contestaram alegando que a existência de tal arruamento não impede a manutenção da servidão constituída, a qual se deverá manter porquanto pretendem lotear o prédio, sendo necessário o acesso pelo lado sul, ou seja, pelo prédio do Réu.
Por fim, e porque pugnam pela improcedência dos pedidos reconvencionais, alegam a inexistência de alterações objetivas, típicas e exclusivas verificadas no seu prédio, o dominante, não resultando dos autos, que a servidão perdeu a utilidade para o seu prédio.
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Aos autos foi fixado o seu valor, tendo sido admitidos os pedidos reconvenciais, e porque se mostrou desnecessária a realização da audiência prévia, foi a mesma dispensada, e concretizaram-se os temas da prova após ter sido definido o objeto do litígio.
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Procedeu-se à realização da audiência de julgamento, com observância do legal formalismo, como se alcança das respectivas atas.
Na sentença, considerou-se, em suma, que face à factualidade apurada se encontrava assente que AA. e R. eram donos dos respectivos prédios, mais se concluindo que se encontrava constituída uma servidão de passagem a favor do prédios dos AA. e onerando o prédio do R., a sul, servidão essa constituída por uma faixa de terreno com a largura de 2,60 m, a qual sempre assim a teve, donde o correspondente reconhecimento e declaração, face ao que improcedia o pedido de condenação do R. em demolir o muro delimitador de sua propriedade (porque a construção por parte deste havia respeitado e salvaguardado essa largura), mas no tocante ao pedido reconvencional de extinção da servidão de passagem por desnecessidade, já importava concluir pela afirmativa, porque o prédio dos AA. entretanto passara a beneficiar de comunicação direta com uma via pública, a norte, sem qualquer restrição e sem necessidade de continuar a utilizar a servidão de passagem ajuizada, importando então condenar os AA. a absterem-se de aceder ao seu prédio através do prédio do R., o que tudo se traduziu no seguinte concreto “dispositivo”:
«Decisão
Pelo exposto decide-se julgar a ação parcialmente procedente e em consequência:
Declara-se e condena-se o Réu a reconhecer que os Autores são donos do prédio descrito na Conservatória do Registo Predial sob o número …, composto por terra de cultura, com oliveira, videira, fruteira e pastagem, sito ao …, freguesia de …, com a área 11.132m2, a confrontar de norte com arruamento público e J (…)
Declara-se que a favor do prédio referido no ponto 1 foi constituída por usucapião uma servidão de passagem a onerar o prédio descrito na Conservatória do Registo Predial sob o número …, sito em …, freguesia de …, com a área de 1900m2, inscrito na matriz urbana sob o artigo …, composto por terreno para construção urbana, e com a configuração descrita nos pontos 4 e 5 dos factos provados.
No mais peticionado pelos Autores, vai o Réu absolvido.
Pelos fundamentos expostos julgo totalmente procedente a Reconvenção e em consequência:
Declara-se o Réu dono do prédio descrito na Conservatória do Registo Predial sob o número …, sito em …, freguesia de …, com a área de 1900m2, inscrito na matriz urbana sob o artigo …, composto por terreno para construção urbana.
Declara-se extinta por desnecessidade a servidão constituída por usucapião a favor do prédio dos Autores e com a configuração descrita nos pontos 4 e 5 dos factos provados, e a onerar o prédio do Réu.
Condenam-se os Autores a absterem-se de aceder ao seu prédio através do prédio do Réu.
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Custas pelos Autores.
Registe e notifique. »
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Inconformado com essa sentença, apresentaram os AA. recurso de apelação contra a mesma, terminando as suas alegações com as seguintes conclusões:
(…)
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Contra-alegou o Réu, extraindo as seguintes conclusões das alegações que apresentou:
(…)
Colhidos os vistos e nada obstando ao conhecimento do objeto do recurso, cumpre apreciar e decidir.
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2 – QUESTÕES A DECIDIR, tendo em conta o objeto do recurso delimitado pelos AA. nas conclusões das suas alegações (arts. 635º, nº4, 636º, nº2 e 639º, ambos do n.C.P.Civil), por ordem lógica e sem prejuízo do conhecimento de questões de conhecimento oficioso (cf. art. 608º, nº2, “in fine” do mesmo n.C.P.Civil), face ao que é possível detetar o seguinte:
- erro na decisão da matéria de facto, quanto ao ponto “3.” dos factos “não provados”, que devia ter sido dado como “verificado”;
- incorreto julgamento de direito, ao concluir-se pela extinção da servidão dos AA. por desnecessidade.
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3 – FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO
3.1 – Como ponto de partida, e tendo em vista o conhecimento dos factos, cumpre começar desde logo por enunciar o elenco factual que foi considerado fixado/provado pelo tribunal a quo, ao que se seguirá o elenco dos factos que o mesmo tribunal considerou/decidiu que “não se provou”, sem olvidar que tal enunciação terá um carácter “provisório”, na medida em que o recurso tem em vista a alteração parcial dessa factualidade.
Tendo presente esta circunstância, consignou-se o seguinte na 1ª instância em termos de factos provados “com relevância para a decisão da causa”:
«1. Encontra-se descrito em nome dos Autores na Conservatória do Registo Predial sob o número …, através da Ap. 3 de 30.10.1997, tendo como causa a compra o prédio de natureza rústica, composto por terra de cultura, com oliveira, videira, fruteira e pastagem, sito ao …, freguesia de …, com a área 11.132m2, a confrontar de norte com arruamento público e J (…).
2. Encontra-se descrito na Conservatória do Registo Predial sob o número … o prédio de natureza urbano, sito em …, freguesia de …, com a área de 1900m2, inscrito na matriz urbana sob o artigo …, composto por terreno para construção urbana, cujo direito de propriedade se encontra registado em nome do Réu P (…), através da apresentação 955 de 09.03.2015, tendo como causa a aquisição por usucapião.
3. O prédio identificado em 1 (inscrito em nome dos Autores) confronta de sul com o prédio identificado no ponto 2 (inscrito em nome do Réu) e este confronta de sul com a …, e a nascente com … e poente com (…)
4. No prédio descrito no ponto 2, inscrito em nome do Réu, existe uma faixa de terreno constituída em terra, com uma largura de 2,60 metros, a qual dá acesso a pé, de carro, com animais e máquinas agrícolas, desde a … até ao Prédio identificado no ponto 1 e inscrito em nome dos Autores.
5. Tal faixa de terreno tem início numa portaleira/entrada aberta no limite sul do prédio do Réu junto à …, e desenvolve-se numa reta, ocupando todo o limite esquerdo – que corresponde ao seu lado poente), num cumprimento de cerca de 19,80 metros até desembocar no portão existente no limite sul/norte do prédio inscrito em nome dos Autores.
6. O Autor, sua família e amigos e conhecidos acederam ao prédio inscrito em nome dos Autores através daquela faixa de terreno, há mais de 20, 30 anos, de forma pacífica, sem qualquer oposição, sempre que necessitavam de transportar utensílios agrícolas e alfaias agrícolas, objetos domésticos e lenhas, na convicção de que o faziam no exercício de uma servidão de passagem.
7. No decurso do ano de 2012, o Réu construiu um muro de blocos, numa altura de 90 cm na sua estrema sul – que confronta com a … – e a poente – que confronta com a faixa de terreno.
8. Após o decurso o decurso dos factos descritos em 6, foi construído um arruamento público sito a norte do prédio dos Autores, que se desenvolve de nascente para poente, com início na Rua do …, terminado no prédio dos Autores a poente.
9. O prédio dos Autores é murado e pelo lado norte confina com o dito arruamento público e no término deste tem uma abertura onde colocaram um portão de abrir/fechar, a largura de 5 metros.
10. Tal arruamento encontra-se constituído em alcatrão.
11. Quer o prédio inscrito em nome dos Autores quer o prédio descrito em nome do Réu se destinam à construção.»
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E que se consignou o seguinte em termos de “factos não provados”:
«1. A terra do leito do caminho referido no ponto 4 dos factos provados atualmente encontra-se batida e bem compactada.
2. Por conta da construção do muro referido no ponto 7 dos factos dados como provados, o Réu ocupou cerca de 1,08m da largura da faixa de terreno, a qual, aquando da sua constituição tinha a largura de 3,65 metros.
3. Por conta da construção do muro, o Réu impossibilitou, obstruiu ou dificultou por completo a possibilidade de uso dessa passagem com veículos.
4. Para se poder proceder ao loteamento do prédio identificado no ponto 1 terá sempre de existir o acesso a sul para tal prédio, ou seja, pela faixa de terreno existente no prédio do Réu.»
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3.2 – O A./recorrente invoca o erro na decisão da matéria de facto, quanto ao ponto “3.” dos factos “não provados”, que devia ter sido dado como “verificado”.
(…)
A esta luz, não resulta, em nosso entender, com a suficiente e necessária consistência dos meios de prova produzidos – na interpretação e valoração dos mesmos que legitimamente pode ser feita! – a convicção probatória reclamada pelos AA./recorrentes.
Naturalmente que é por assim ser que não nos merece em nenhuma medida acolhimento a crítica feita à convicção negativa traduzida em considerar a factualidade em causa como “não provada”.
Isso também porque o controlo da matéria de facto tem por objeto uma decisão tomada sob o signo da livre apreciação da prova, atingida de forma oral e por imediação, i.e., baseada numa audiência de discussão oral da matéria a considerar e numa perceção própria do material que lhe serve de base (arts. 604º, nº 3 e 607º, nº 5 do n.C.P.Civil).
Sem embargo de que a liberdade de apreciação da prova não é sinónimo de arbitrariedade ou discricionariedade e, portanto, naturalmente que essa apreciação há-de ser reconduzível a critérios objetivos: a livre convicção do juiz, embora seja uma convicção pessoal, não deve ser uma convicção puramente voluntarista, subjetiva ou emocional – mas antes uma convicção formada para além de toda a dúvida tida por razoável e, portanto, capaz de se impor aos outros.
De qualquer forma, não deve desvalorizar-se a circunstância de essa convicção sobre a realidade ou a não veracidade do facto provir do tribunal mais bem colocado para decidir a questão correspondente: na formação da convicção do julgador não intervém apenas elementos racionalmente demonstráveis, mas também fatores não materializados, pois que a valoração de um depoimento é algo absolutamente impercetível na gravação/transcrição; na verdade, o depoimento oral de uma testemunha é formado por um complexo de situações e factos em que sobressai o seu porte, as suas reações imediatas, o sentido dado à palavra e à frase, o contexto em que é prestado o depoimento, o ambiente gerando em torno da testemunha, o modo como é feito o interrogatório e surge a resposta, tudo contribuindo para a formação da convicção do julgador.
Daí que – conforme orientação jurisprudencial prevalecente – «o controle da Relação sobre a convicção alcançada pelo tribunal da 1ª instância deve restringir-se aos casos de flagrante desconformidade entre os elementos de prova e a decisão, sendo certo que a prova testemunhal é, notoriamente, mais falível do que qualquer outra, e na avaliação da respectiva credibilidade tem que reconhecer-se que o tribunal a quo, pelas razões já enunciadas, está em melhor posição Cf. o acórdão do T.R. de Coimbra de 25/5/2004, proferido no proc. nº 17/04, cujo texto integral está acessível em www.dgsi.pt/jtrc.
Dito de outra forma, «só perante tal situação [de flagrante desconformidade entre os elementos de prova e a decisão] é que haverá erro de julgamento; situação essa que não ocorre quando estamos na presença de elementos de prova contraditórios, pois nesse caso deve prevalecer a resposta dada pelo tribunal a quo, por estarmos então no domínio e âmbito da convicção e da liberdade de julgamento, que não compete a este tribunal ad quem sindicar (artº 655-1 do CPC), e pelas razões já supra expandidas.» Cf. acórdão do T.R. de Coimbra de 25/11/2003, proferido no proc. nº 3858/03, acessível em www.dgsi.pt/jtrc.
Em conclusão, mais do que uma simples divergência em relação ao decidido, é necessário que se demonstre, através dos concretos meios de prova que foram produzidos, que existiu um erro na apreciação do seu valor probatório, conclusão difícil quando os meios de prova porventura não se revelem inequívocos no sentido pretendido pelos apelantes ou quando também eles sejam contrariados por meios de prova de igual ou de superior valor ou credibilidade, pois que, à Relação apenas cabe um papel residual, limitado ao controle e eventual censura dos casos mais flagrantes, como sejam aqueles em que o teor de algum ou alguns dos depoimentos prestados no tribunal “a quo” lhe foram indevidamente indiferentes, ou, de outro modo, eram de todo inidóneos ou ineficientes para suportar a decisão a que se chegou, apontando-se como casos excecionais de manifesto erro na apreciação da prova, de flagrante desconformidade entre os elementos probatórios disponíveis e a decisão do tribunal recorrido sobre matéria de facto serão, por exemplo, os de o depoimento de uma testemunha ter um sentido em absoluto dissonante ou inconciliável com o que lhe foi conferido no julgamento, de não terem sido consideradas – v.g. por distração – determinadas declarações ou outros elementos de prova que, sendo relevantes, se apresentavam livres de qualquer inquinação, e pouco mais.
Nesta linha de entendimento, já doutamente se concluiu que «A admissibilidade da respectiva alteração por parte do Tribunal da Relação, mesmo quando exista prova gravada, funcionará assim, apenas, nos casos para os quais não exista qualquer sustentabilidade face à compatibilidade da resposta com a respectiva fundamentação.» Assim no acórdão do S.T.J. de 21/1/2003, proferido no proc. nº 02A4324, cujo texto integral pode ser acedido em www.dgsi.pt/jstj.
Assim, se o julgador de 1ª instância entendeu valorar diferentemente dos ora Recorrentes os depoimentos invocados, não pode esta Relação pôr em causa, de ânimo leve, a convicção daquele, livremente formada, tanto mais que dispôs de outros mecanismos de ponderação da prova global que este tribunal ad quem não detém aqui (v.g. a inquirição presencial das testemunhas – os princípios da imediação e oralidade).
Aliás, em consonância com este entendimento se mostra a circunstância de se manter no atual art. 640º, nº1, al.b) do n.C.P.Civil o dever (melhor, ónus) para o recorrente de concretizar quais os pontos de facto que considera incorretamente julgados e de indicar os meios probatórios, constantes do processo ou do registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão diversa, donde ter ele que ser conjugado com o artº 607, nº5 do mesmo n.C.P.Civil – que atribui ao tribunal o poder de apreciar livremente as provas, decidindo os juízes segundo a sua prudente convicção acerca de cada facto – pelo que, dos meios de prova concretamente indicados como fundamento da crítica ao julgamento da matéria de facto deve resultar claramente uma decisão diversa, sendo por essa razão que a lei utiliza o verbo “impor”, com um sentido diverso de, por exemplo, “permitir”.
Pelo que tendo sido o já apontado e enunciado o sentido útil e decisivo dos meios de prova produzidos, como sustentar que com base neles outra deveria ter sido a convicção do Tribunal a quo?
Salvo o devido respeito, não lograram os AA./recorrentes dar uma resposta insofismável sobre tal nas suas alegações recursivas.
Termos em que manifestamente improcede a impugnação da decisão sobre a matéria de facto.
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4 - FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO
Cumpre agora entrar na apreciação da questão neste particular supra enunciada, esta já directamente reportada ao mérito da sentença, na vertente da fundamentação de direito da mesma, a saber, que ocorreu incorreto julgamento de direito, ao concluir-se pela extinção da servidão dos AA. por desnecessidade.
Está questionada a resposta afirmativa que foi dada na sentença recorrida à questão – suscitada pela reconvenção do R. – ao pedir que fosse decretada a extinção da servidão, por desnecessidade (cf. art. 1569º, nº2 do C.Civil).
Que dizer então?
Compulsando a contestação-reconvenção, é possível constatar que este pedido tinha como fundamento a servidão em questão se ter tornado desnecessária para o prédio dominante porquanto este teria passado a beneficiar de comunicação direta com a via pública, sem qualquer restrição e sem necessidade de utilizar a servidão de passagem.
Vejamos do argumento da desnecessidade propriamente dita.
Estando decisivamente em causa a alegada “desnecessidade” para o prédio dominante da servidão ajuizada, importa passar sem mais a apreciar um tal fundamento, designadamente se foi acertada a decisão de 1ª instância que respondeu afirmativamente a tal questão.
Efetivamente, o nº2 do art. 1569º do C.Civil permite que as servidões constituídas por usucapião possam ser judicialmente declaradas extintas, a requerimento do proprietário do prédio serviente, desde que se mostrem desnecessárias ao prédio dominante.
Contudo, não nos diz a lei, em que se traduz tal “desnecessidade”, nem se a mesma tem que ser originária ou superveniente à constituição da servidão.
Segundo o Prof. Oliveira Ascensão In “Desnecessidade e Extinção de Direitos Reais”, Separata da Revista da Faculdade de Direito de Lisboa, 1964, a págs. 10-12., a “desnecessidade” tem de ser objectiva, típica e exclusiva da servidão, caracterizada por uma mudança na situação objectiva do prédio dominante verificada em momento posterior à constituição da servidão, e, em consequência da qual, perdeu utilidade para o prédio dominante.
Dito de outro modo: traduz-se numa situação em que se conclui que o prédio dominante não precisa da servidão.
Por outro lado, parte da jurisprudência vinha entendendo que a desnecessidade supunha uma alteração no prédio dominante posterior à constituição da servidão Cf., inter alia, os Acs. da R.C. de 25/10/1983, in CJ, T4, a págs. 62, e de 16/04/2002, in CJ, T2 a págs. 23; da R.P. de 02/12/1986, in CJ, T5, a págs. 229, de 07/03/1989,in CJ, T2 a págs. 189, e de 26/11/2002, in CJ, T5, a págs.182 , sendo que, na doutrina, o Prof. Luís Carvalho Fernandes In “Lições de Direitos Reais”, 2ª ed., a págs. 438., sustenta que o que está em causa no nº 2 do art. 1569º é a desnecessidade superveniente, que consiste na cessação das razões que justificavam a afectação de utilidades do prédio serviente ao prédio dominante.
Mais recentemente, o acórdão do S.T.J. de 16-03-2011 No proc. nº 263/1999.P1.S1, acessível em www.dgsi.pt/jstj. pronunciou-se no seguinte sentido (sumário):
«1. A desnecessidade de uma servidão de passagem tem de ser aferida em função do prédio dominante, e não do respectivo proprietário.
2. Em princípio, a desnecessidade será superveniente em relação à constituição da servidão, decorrendo de alterações ocorridas no prédio dominante.
3. Só deve ser declarada extinta por desnecessidade uma servidão que deixou de ter qualquer utilidade para o prédio dominante; fazer equivaler a desnecessidade à indispensabilidade não é consistente com a possibilidade de extinção por desnecessidade de servidões que não sejam servidões legais.
4. Incumbe ao proprietário do prédio serviente que pretende a declaração judicial da extinção da servidão o ónus da prova da desnecessidade.»
Concordamos com esta última interpretação, por nos parecer que está mais de acordo com o espírito e a letra da lei.
De facto, e como já foi doutamente sublinhado, «uma interpretação mais restritiva do requisito, fazendo-o equivaler a indispensabilidade, não se harmoniza com a possibilidade de extinção por desnecessidade de servidões que não sejam servidões legais (no sentido de poderem ser impostas coactivamente)”. Com efeito, continua o mesmo Acórdão, “…pensando na servidão de passagem, por ser a que está em causa, pode constituir-se por usucapião uma servidão em situações que não preenchem os requisitos para a imposição de um direito legal de passagem. Dito por outra forma: a circunstância de não ser indispensável a servidão de passagem (por não ocorrer o encrave, absoluto ou relativo, exigido pelo artigo 1550º do Código Civil) não obsta à constituição do direito correspondente por usucapião. Seria contraditório que fosse permitido ao titular do prédio serviente provocar a extinção da servidão que onera o seu prédio, invocando uma desnecessidade que não impediu a respectiva constituição.» Citámos agora o acórdão do STJ de 16-01-2014, no proc. nº 695/09.0TBBRG.G2.S1, igualmente acessível em www.dgsi.pt/jstj.
Entendemos, no entanto, que a “desnecessidade” tem de ser aferida pela situação existente no momento em que a ação é proposta, e não só, por exemplo, após a realização de alterações (obras) a levar a cabo no prédio dominante determinada na sentença.
Este é aspecto que resulta expressamente da letra da lei, ao exigir que a servidão se mostre desnecessária na altura em que é invocada, e não que sejam realizadas alterações que determinem essa situação de “desnecessidade”, sob pena de se entender que tais alterações são uma consequência da declaração de extinção Dando particular relevância a este aspecto da actualidade da “desnecessidade”, veja-se o acórdão do T. Rel. de Coimbra de 13-11-2012, no proc. nº 472/10.5TBTND.C1, acessível em www.dgsi.pt/jtrc..
Por outro lado, cotejando os factos provados no caso vertente, mormente após a apreciação e decisão sobre a impugnação da decisão da matéria de facto, não se vislumbra neles como denegar a verificação deste fundamento legal extintivo.
É que, face à factualidade apurada, tal como doutamente sublinhado na sentença recorrida, temos que «O referido caminho onerado com a servidão é constituído por uma faixa de terreno com leito em terra, com sensivelmente 2,60 metros de largura e 19,80 metros de comprimento.
Foi construído um arruamento público junto ao limite norte do prédio dos Autores, no qual e no muro de vedação foi colocado um portão de 5 metros de largura.
Tal arruamento está alcatroado.
Assim, os donos do prédio ainda dominante passaram a aceder, diretamente, à via pública.
Olhando para tais factos – bem como as fotografias de tais acessos- ficamos com a ideia segura de que o modo como a servidão de exerce se assemelha, em termos funcionais, ao acesso pelo arrumamento público a norte, sendo até mais comodo por este acesso, visto que se encontra alcatroado, não necessitando de ser realizada qualquer obra.
Acresce que é maior a abertura do portão – com cindo metros – instalado a norte no prédio dos Autores do que a largura do leito da servidão, e certamente bem mais útil para a passagem de veículos pesados, como parece ser a pretensão os Autores.
Acresce que é menor a distância a percorrer da via pública ao prédio uma vez que a norte ele é direto, não havendo maiores distâncias a serem percorridas
Temos presente que a desnecessidade tem que ser avaliada em termos objetivos e reportada ao prédio dominante, sendo certo “que essa necessidade/desnecessidade não equivale a indispensabilidade/dispensabilidade, sendo que a mera circunstância de a servidão não ser absolutamente necessária ou indispensável não equivale à sua desnecessidade”. Assim no acórdão do T. Rel. de Coimbra de 27-05-2104, no proc. nº 377/12.5T2ALB.C1, acessível em www.dgsi.pt/jtrc.
Contudo, no caso vertente resultou verdadeiramente apurada uma situação em que a servidão em causa não proporciona já qualquer utilidade que, sendo relevante e digna de protecção, seja susceptível de trazer ao prédio dominante uma mais valia significativa – isto porque as utilidades por ela proporcionadas podem ser alcançadas por outra via.
Ora se assim é, aderimos por inteiro ao entendimento que foi doutamente perfilhado a este propósito no acórdão por último citado, a saber:
«I – A mera circunstância de uma servidão de passagem não ser já absolutamente necessária (em virtude de o prédio dominante dispor de outro acesso à via pública) não é bastante para que sedeclare a sua extinção por desnecessidade, sendo que o que releva para esse efeito é a circunstância de a servidão em causa não proporcionar já qualquer utilidade que, sendo relevante e digna de protecção, seja susceptível de trazer ao prédio dominante uma mais valia significativa, em virtude de as utilidades por ela proporcionadas poderem ser alcançadas por outra via.
II – A servidão extingue-se, por desnecessidade, se ela tiver perdido aptidão para proporcionar ao prédio dominante qualquer utilidade concreta que não possa ser alcançada por outra via ou quando a utilidade que dela ainda possa advir é insignificante ou irrisória quando comparada com o encargo imposto ao prédio serviente; não ocorre, porém, tal desnecessidade e consequenteextinção se a servidão puder ainda proporcionar ao prédio dominante uma utilidade que, não podendo ser obtida por outra via, é relevante por facilitar o uso normal e regular do prédio e porproporcionar uma comodidade que, de outro modo, não poderia ser obtida e cuja eliminação seja susceptível de determinar um incómodo significativo ou relevante.»
De referir que este foi precisamente o entendimento perfilhado na sentença recorrida, como flui do seu seguinte segmento:
«Como alegam os Autores na sua resposta à reconvenção, naturalmente que a existência de dois acessos permite dizer que a servidão não é inútil para os Autores. Só que este ponto de vista não é o ponto de vista pela qual se deverá aferir acerca da “desnecessidade”, enquanto causa de extinção de servidão. A nosso ver, uma servidão pode trazer proveito ao prédio dominante, mas a manutenção desse proveito, pela sua exiguidade, pode não se justificar, em face do encargo que resulta para o prédio serviente e da utilização/proveito que proporciona ao prédio dominante: nesta hipótese, quando a utilidade não justifica o encargo, a servidão pode/deve ser extinta por desnecessidade – vide a este propósito o teor do Acórdão do Tribunal da Relação de 13.05.2014, processo 4054/11.6TJCBR.C1, disponível em www.dgsi.pt, e aqui seguido de perto.
Concluindo, em face da factualidade provada, interpretada à luz da normalidade e razoabilidade, é mais do que suficiente para revelar, com a necessária segurança, que a servidão em questão se tornou desnecessária para o prédio dominante porquanto passou a beneficiar de comunicação direta com a via pública, sem qualquer restrição e sem necessidade de utilizar a servidão da passagem.»
Aliás, a argumentação recursiva dos AA./recorrentes nem contesta esta linha de entendimento, antes, salvo o devido respeito, enceta uma interpretação completamente desfasada dos factos efetiva e realmente apurados no caso vertente, como seja o de invocar que “o terreno é em puro declive, contemplando até muros de suporte de terras, tal é o desnível”, mas tal factualidade não resultou minimamente apurada…
Por outro lado, insistem enfaticamente na argumentação de que «a criação desse acesso que veio implicar uma alegada desnecessidade do primeiro caminho, é datada da altura da construção de um prédio urbano, o qual se desanexou do prédio mãe no ano de 2000», isto é, que «Se o acesso que agora se diz “mais útil” e mais “eficiente” foi aberto há já praticamente 20 anos (entre 1997 e 2000), e se nessa altura ainda não havia sido constituída qualquer servidão, não pode agora o R., que é proprietário do prédio serviente apenas há 3 anos (vide doc 5 da pi), dizer que o acesso é desnecessário em virtude de uma outra entrada mais cómoda, quando afinal esse acesso alegadamente mais cómodo já existia antes da constituição da servidão!!!
Ou seja, não há qualquer superveniência.
Pelo que não poderia nunca proceder esta extinção de servidão por desnecessidade
Sucede que, ao invés, está clara e insofismavelmente apurado nos autos que o arruamento público foi construído anos depois da constituição da servidão de passagem – o que consta expressamente do constante do facto “provado” sob “6.” (e que permitiu concluir pela aquisição por usucapião de uma tal serventia), no confronto e conjugação com o constante do facto “provado” sob “8.”.
Assim sendo, esta linha de argumentação da inexistência de superveniência, está claramente infirmada pelo positivamente apurado nos autos, constituindo mesmo uma errónea e totalmente incompreensível interpretação do que deles consta!
Termos em que, sem necessidade de maiores considerações, naufraga inapelavelmente o recurso.
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5 – SÍNTESE CONCLUSIVA
I – A desnecessidade da servidão traduz-se numa situação em que se conclui que o prédio dominante não precisa da servidão.
II – A lei (art.1569º, nº2, do C.Civil) exige que a desnecessidade da permanência da servidão deve ser aferida pelo momento da introdução da ação em juízo, mas, em princípio, a desnecessidade será superveniente em relação à constituição da servidão, decorrendo de alterações ocorridas no prédio dominante.
III – No entanto, a desnecessidade tem de ser aferida pela situação existente no momento em que a ação é proposta (objetiva e actual), e não só após a realização de alterações a levar a cabo no prédio dominante determinada na sentença.
IV – Só deve ser declarada extinta por desnecessidade uma servidão que deixou de ter qualquer utilidade para o prédio dominante; fazer equivaler a desnecessidade à indispensabilidade não é consistente com a possibilidade de extinção por desnecessidade de servidões que não sejam servidões legais; a necessidade/desnecessidade não equivale a indispensabilidade/dispensabilidade, sendo que a mera circunstância de a servidão não ser absolutamente necessária ou indispensável não equivale à sua desnecessidade.
V – Incumbe ao proprietário do prédio serviente que pretende a declaração judicial da extinção da servidão o ónus da prova da desnecessidade.
VI – O que se impõe considerar como positivamente feito ao resultar apurado que a serventia perdeu aptidão para proporcionar ao prédio dominante qualquer utilidade concreta que não possa ser alcançada por outra via ou quando a utilidade que dela ainda possa advir é insignificante ou irrisória quando comparada com o encargo imposto ao prédio serviente.
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6 - DISPOSITIVO
Pelo exposto, decide-se a final, pela improcedência da apelação, mantendo a sentença recorrida nos seus precisos termos.
Custas do recurso pelos AA./recorrentes.

Coimbra, 23 de Outubro de 2018

Luís Cravo ( Relator )
Fernando Monteiro
António Carvalho Martins