Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
39/14.9JACBR.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: MARIA PILAR DE OLIVEIRA
Descritores: PROVA PROIBIDA
DEPOIMENTO INDIRECTO
TESTEMUNHA DE “OUVIR DIZER”
RECUSA DE DEPOIMENTO
Data do Acordão: 04/20/2016
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COIMBRA (SECÇÃO CRIMINAL DA INSTÂNCIA CENTRAL DE COIMBRA - J2)
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTS. 128.º, 129.º, N.º 1, E 134.º, N.º 1, AL. A), DO CPP; ART. 6.º DA CONVENÇÃO EUROPEIA DOS DIREITOS DO HOMEM
Sumário: I - Não basta chamar a testemunha de que se ouviu dizer a depor para que o depoimento de ouvir dizer possa ser valorado; necessário é também que a testemunha preste depoimento.

II - De outro modo não se entenderia a referência à impossibilidade de inquirição para justificar a (segunda) excepção legal, prevista no n.º 1 do artigo 129.º do CPP, que permite a valoração do depoimento indirecto.

III - Para esta interpretação converge a densidade que deve ser dada ao princípio do processo equitativo e suas implicações na configuração do princípio do contraditório sem ofensa do artigo 6.º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem.

IV - Consequentemente, no caso, como o revelado pelos autos, em que a ofendida, embora chamada para ser ouvida em audiência, prestou apenas declarações sobre factos não directamente relacionados com a acusação - em relação a estes remeteu-se ao silêncio -, impõe-se a conclusão de que, os depoimentos das testemunhas que ouviram o relato dos factos descritos naquela peça processual da própria ofendida não podem ser valorados.

V - Acresce que, na concreta situação verificada, sendo a ofendida filha do arguido, não estava obrigada a prestar depoimento, cfr. artigo 134.º, n.º 1, alínea a), do CPP.

VI - Ainda que se considerem injustificados os primeiros argumentos, sempre por este último - o vertido no número antecedente -, haveria que concluir pela impossibilidade de valoração do depoimento indirecto quando a pessoa de quem se ouviu dizer se recusou a depor com o mencionado fundamento legal, sob pena de flagrante conflito entre o disposto no artigo 134.º e o artigo 129.º, n.º 1, sendo suposto que as normas são complementares e não conflituantes.

Decisão Texto Integral:


Acordam, em conferência, no Tribunal da Relação de Coimbra:

I. Relatório

No processo comum colectivo 39/14.9JACBR da Comarca de Coimbra, Instância Central de Coimbra, Secção Criminal, J2, o arguido A... , identificado nos autos, foi sujeito a julgamento acusado da autoria dos seguintes crimes:

 - Um crime de violação agravado, p. e p. pelo artigo 164º, nº 1, alínea a) do Código Penal, conjugado com o artigo 177º, nºs 1, alínea a), 6 e 7 do mesmo preceito legal – práticas de sexo oral;

- Um crime de violação agravado, p. e p. pelo artigo 164º, nº 1, alínea b) do Código Penal, conjugado com o artigo 177º, nºs 1, alínea a), 6 e 7 do mesmo preceito legal – introdução superficial da língua do arguido na vagina da menor,

- Um crime de coacção sexual agravada, p. e p. pelo artigo 163º, nº 1, /1 do Código Penal, conjugado com o artigo 177º, nºs 1, alínea a), 6 e 7 do mesmo preceito legal – restantes práticas sexuais mantidas com a menor C... ;

No que respeita à menor J... :

- Um crime de abuso sexual de menor, na forma tentada, p. e p. pelo artigo 171º, nº 1 do Código Penal.

Realizada a audiência de julgamento, em 14 de Abril de 2015 foi proferido acórdão absolvendo o arguido da totalidade dos crimes que lhe forma imputados.

Inconformado, recorreu o Ministério Público, extraindo da respectiva motivação as seguintes conclusões:

1-  Neste  recurso,  extensivo  à  decisão  em  matéria  de  facto,  manifesta-­se  discordância  pele  exclusão  de  meios  de  prova  que  eram  e  são  legalmente  admissíveis  e  livremente  valoráveis,  além  de  se  pretender  demonstrado  que  as  declarações  prestadas,  pelo  arguido,  não  foram  plenamente  consideradas  e,  por  isso,  devidamente  valoradas,  tudo  isto  com  implicação  directa  e  decisiva  na  enumeração  de  factos  provados  e  não  provados  e  determinante  da  subsunção  dessa  factualidade  ao  direito.

2-  Diversamente  do  que  no  acórdão  absolutório  se  afirma,  o  arguido   A...  não  negou  haver  praticado  os  factos.  Bem  pelo  contrário  e  ainda  que  numa  versão  irrealista  e  de  desculpabilização,  o  arguido  deixou  explicitamente  perceber  que  admitia  a  objectividade  dos  factos.

3-  Por  sua  vez  e  ainda  contrariamente  ao  que  o  douto  Colectivo  de  Juízes  veio  a  considerar,  a  menor   C...  não  se  recusou  a  depor.  Foi  chamada  a  depor  e  até  depôs  sobre  factos  objecto  do  processo,  sendo  certo  que,  para  desaparecer  a  proibição  de  valoração  de  depoimento  indirecto  -  cuja  razão  de  ciência  radicasse  naquele  testemunho  -  bastaria  que  a  mencionada  ofendida  houvesse  sido  chamada  a  depor  -  neste  sentido, o  Acórdão  do  TRC,  de  26  de  Novembro  de  2008,  proferido  no  Proc.  n.º  27/05.6GDFND.Cl,  disponível  em  www.dgsi.pt.

4-  No  entanto  e  mesmo  na  perspectiva  do  entendimento  do  douto  Colectivo  de  Juízes  (de  que  não  teria  havido  prestação  de  depoimento),  padecendo  a  criança  ofendida  de  uma  afectação  psico-afectiva  grave,  passível  de  ser  enquadrada  no  apontado  conceito  alargado  de  anomalia  psíquica,  sempre  se  estaria  perante  uma  das  excepções  que,  nos  termos  do  citado  artigo  129°,  n.º  1,  dispensaria  o  depoimento  da  menor,  podendo  e  devendo  o  testemunho  de  quem  a  ouviu  ser  legalmente  admitido  e,  como  meio  de  prova,  devidamente  valorado.

5-  Salvo  melhor  entendimento,  o  disposto  nos  artigos  356°,  n.º  7,  e  357°,  n.º  2,  do  CPP,  não  tem  aplicação  no  caso  destes  autos.  Conforme  Acórdão  do  STJ,  de  15  de  Fevereiro,  proferido  no  Proc.  n.º  06P4593  [disponível  em  www.dgsi.pt]  e  além  da  "conversa  informal"  não  haver  sido  mantida  com  um  arguido,  tudo  se  passa  no  plano  da  recolha  de  indícios  de  uma  infracção  de  que  o  OPC  acaba  de  ter  notícia,  nada  legalmente  obstando  a  que,  no  seu  depoimento,  em  audiência  de  julgamento,  o  agente  de  autoridade  até  pudesse  relatar  o  conteúdo  de  diligências  de  investigação  e,  concretamente,  o  conteúdo  dessa  conversa.

6-  Da  valoração  de  diversos  meios  de  prova  [pericial,  documental,  por  declarações  e  por  depoimento]  e  da  sua  concertação,  em  conjugação  ainda  com  as  regras  da  experiência.  Designadamente,

-  do  relatório  da  perícia  médico-legal  (observação  psicológica)  efectuada  à  menor   C... ,  onde  se  dá  nota  do  sentimento  de  medo  desta  criança,  relativamente  ao  pai,  que  dela  abusava  sexualmente;  além  disso,  nesse  relatório  conclui-se  pela  credibilidade  do  discurso  da  criança;

-  do  depoimento  de   M... ,  que  assume  evidente  relevância,  na  medida  em  que,  por  um  lado  e  enquanto  directo,  afirma  que  o  relacionamento  entre  os  pais  da  menor   C...  “não  era  bom”:  atestando  mesmo  que  a  mãe,   B... ,  era  fisicamente  agredida  pelo  arguido,  tendo-a  mesmo  visto  com  marcas  dessa  violência  -  cfr.  acta  de  fls.  XX  e  ficheiro  n.º  20141201100929_2298997_2870708.html  (minutos  03.00  a  05.30),  e,  enquanto  indirecto,  descreve, com  indicação  da  respectiva  razão  de  ciência  e  com  utilização  de  expressões  de  uma  criança,  as  práticas  sexuais  a  que  a  pequena   C...  foi  submetida,  pelo  arguido,  seu  pai,  quando  a  esposa  deste  se  não  encontrava  em  casa:

-  o  pai  mandava-a  despir  e  despia-se  também

-  que  lhe  metia  aquilo  dos  homens  adultos  na  boca  dela  e  que  às  vezes  se  engasgava, mas  que  ele  continuava  na  mesma

-  aquando  da  sua  narrativa,  a  menor   C...  fez  alguns  gestos  do  que  então  tinha  que  fazer

-  por  vezes,  quando  não  era  ...  quando  não  lhe  punha  na  boca,  sentava-a  no  colo  dele,  de  costas  para  ele  e  que  lhe  punha  aquilo  dos  homens  no  rabo

-  que  por  vezes  se  queixava  que  lhe  doía,  mas  que  o  pai  continuava  e  que  lhe  fazia  força  no  corpo  dela  para  continuar  [ficheiro  referido,  minutos  06.50  a  10.15);

-  do  depoimento  da  menor   J...  que,  por  si  (depoimento directo),  pôde  afirmar  a  apetência  do  arguido  para  a  prática  de  crimes  sexuais  com  menores  e,  em  função  do  relato  que  lhe  foi  feito  pela  sua  amiga   C...  (depoimento  indirecto),  tornou  possível  concretizar  os  actos  sexuais  a  que  esta  foi  repetidamente  forçada  pelo  pai;

-  do  depoimento  da  Inspectora  da  Polícia  Judiciária,   P... ,  que  confirmou  que  lhe  foram  relatados  pormenores  de  práticas  sexuais  e  como  era  recomendado,  a  esta,  pelo  pai,  que  guardasse  silêncio  e  como  lhe  era  recomendado,  pelo  pai,  que  guardasse  silêncio;

-  do  teor  dos  relatórios  de  psicologia,  subscritos  pela  Dr.ª   Q...  e  pela  Prof.  Doutora   R... ,  antes  parcialmente  transcritos;

-  das  declarações  do  arguido,  que  não  deixam  de  constituir,  ainda  que  numa  versão  fantasiosa  e  de  desculpabilização,  a  admissão  objectiva  dos  actos  sexuais  praticados  com  a  filha, é  fundado  e  imperioso  estabelecer,  como  provados,  além  dos  antes  fixados,  os  seguintes  factos:

a)  A  menor  C...   tinha,  assim,  o  pai  como  pessoa  agressiva  e  que  era  necessário  não  contrariar,  pois  temia  deste  modo  desencadear  uma  crise  de  fúria  deste,  até  porque  já  as  tinha  presenciado  em  casa,  fosse  quando  dirigidas  à  mãe.

b)  Neste  contexto  familiar,  aproveitando-se  do  temor  que  a  menor  C...   tinha  para  consigo,  que  em  momento  não  concretamente  apurado,  mas  que  se  iniciou  seguramente  no  início  do  verão  de  2013  e  se  prolongou  até  finais  de  Janeiro  de  2014,  sempre  no  interior  da  residência  do  arguido  e  família,  sita  na  (...),  (...) ,  aproveitando-se  de  alturas  em  que  ficava  sozinho  com  a  menor  C... ,  designadamente  por  a  mãe  desta  ter  ido,  por  exemplo,  às  compras  ou  efectuar  outra  tarefa  doméstica  do  género,  o  arguido  chamava  a  menor  C...   ao  quarto  do  casal.

e)  A  menor  C... ,  com  medo  de  contrariar  o  pai,  ia.

d)  Com  os  dois  dentro  do  quarto  do  casal,  o  arguido  fechava  a  porta  e  tirava  a  sua  roupa,  ficando  nu  em  frente  à  menor,  sua  filha.

e)  Tirava  também  -  ou  exigia  à  sua  filha  que  tirasse  -  a  roupa  que  a  criança  trazia  vestida,  ficando  assim  a  menor  despida.

f)  Em  seguida,  o  arguido  tinha  com  a  menor,  sua  filha,  um  de  varros  tipos  de  comportamentos  distintos,  a  seguir  descritos,  sendo  que  cada  um  destes  comportamentos  ocorreu  por  repetidas  vezes  durante  o  período  acima  indicado.

g)  Por  vezes,  o  arguiclo  sentava-se  na  cama  e  puxava  a  sua  filha  C...   para  o  seu  colo,  de  costas  virada  para  si:f}:íú"  seguida,  com  o  seu  pénis  crecto,  colocava-o  no  ânus  da  menor  e,  alheando-se  de  queixas  dolorosas  da  criança,  fazia  pressão  com  o  corpo  da  criança  cm  sua  direcção,  procurando  e  logrando  deste  modo  satisfazer  os  seus  instintos  libidinosos.

h)  Noutras  ocasiões,  sempre  no  interior  do  quarto  do  casal  e  com  a  porta  fechada,  com  os  dois  nus,  o  arguido  agarrava  a  cabeça  da  menor  C...   e  com  a  outra  mão  segurava  no  seu  pénis  erecto,  que  colocava  no  interior  da  boca  da  criança  .

i)  Em  seguida,  continuando  a  agarrar  a  cabeça  da  sua  filha,  fazia  movimentos  repetidos  para  a  frente  e  para  'trás,  obrigava-a  ainda  a  fazer  com  a  boca  movimentos  de  sucção  em  vai  e  vem,  procurando  ejacular  e  deste  modo  obter  a  satisfazer  dos  seus  instintos  Iibidinosos.

j)  Quando  mantinha  com  a  menor  C... ,  sua  filha,  cada  um  dos  tipos  de  práticas  acima  indicadas,  o  arguido  ainda  beijava  a  menor  na  boca,  acariciava-a  com  as  mãos  na  zona  do  peito  e  vagina,  pegava  nas  mãos  da  menor  C...   e  obrigava-a  a  esfregar  o  seu  pénis  repetidamente  e  passava  a  sua  boca  e  língua  na  zona  vaginal  da  menor,  em  movimentos  ritmados,  procurando  com  tais  condutas  e  deste  modo  obter  a  erccção  do  seu  pénis  e  concretizar  então  cada  uma  das  práticas  acima  descritas.

l)  O  arguido,  depois  de  terminar  cada  uma  das  condutas  acima  indicadas,  advertia  a  menor  C... ,  por  repetidas  vezes,  em  tom  sério  e  agressivo,  para  esta  não  contar  nada  a  ninguém  do  que  sucedia  entre  os  dois:

m)  A  menor  C... ,  receosa  do  pai,  nada  contava  e  suportava  em  silêncio  estes  comportamentos  do  pai  para  consigo.

n)  O  arguido  manteve  estas  condutas  para  com  a  menor,  por  diversas  vezes  e  pelo  menos  entre  inícios  do  verão  de  2013  até  finais  de  Janeiro  de  2014.

o)  O  arguido,  pelo  menos  entre  o  início  do  verão  de  2013  e  até  finais  de  Janeiro  de  2014,  pedia  à  sua  filha  C...   para  que  esta  convidasse  e  levasse  "amiguinhas"  lá  para  casa,  para  poder  manter  com  estas  as  mesmas  práticas  de  cariz  sexual  que  mantinha  com  a  filha.

p)  A  menor  C... ,  percebendo  os  intuitos  do  pai,  não  acedia  aos  seus  pedidos.

q)  O  arguido  aproveitava-se  da  pouca  idade  da  criança  e  temor  que  esta  tinha  para  consigo  para  obter  a  colaboração  da  menor  nas  práticas  sexuais  que  mantinha  com  esta  sempre  que  entendia  e  como  queria,  bem  como  o  silêncio  sobre  a  ocorrência  destes  eventos.

r)  Assim,  o  arguido,  nas  circunstâncias  de  tempo  e  lugar  acima  indicadas,  manteve  para  com  a  menor  C... ,  sua  filha,  durante  o  longo  período  acima  indicado,  de  forma  repetida,  contactos  de  cariz  sexual,  a  saber:  actos  de  masturbação,  actos  e  sexo  oral,  contactos  com  a  língua  na  zona  vaginal  da  menor,  contacto  do  pénis  com  o  ânus  da  menor.

s)  O  arguido,  ao  agir  como  o  descrito,  queria  e  conseguiu  manter  para  com  a  menor  C... ,  sua  filha,  as  práticas  sexuais  acima  descritas,  bem  sabendo  a  idade  da  menor,  incapacidade  desta  em  avaliar  o  valor  e  desvalor  ético  de  condutas  como  as  supra  descritas,  querendo  e  conseguindo  manter  para  com  esta  um  discurso  e  condutas  agressivas,  gerando  deste  modo  na  menor  um  sentimento  de  pavor,  querendo  e  conseguindo  usá-la  para  satisfazer  os  seus  instintos  Iibidinosos.

t)  O  arguido  bem  sabia  que  as  práticas  por  si  levadas  a  cabo  são  idóneas  a  atingir,  como  de  facto  atingiram,  o  recato  sexual  devido  a  uma  criança,  como  era  a  ofendida  C... ,  sua  filha.

u)  O  arguido  agiu  sempre  de  forma  livre,  deliberada  e  consciente,  bem  sabendo  que  todas  as  suas  condutas  lhe  estavam  vedadas  por  lei.

7-  Praticou,  assim,  o  arguido,  em  autoria  material  e  em  concurso  efectivo  de  infracções:

-  um  crime  de  abuso  sexual  de  criança,  p.  e  p.  pelo  citado  artigo  171°,  n.º  2  (cópula  oral),  agravado  nos  termos  do  disposto  no  artigo  177°,  n.º  1,  ai.  a),  do  mesmo  código;

-  e  um  crime  de  abuso  sexual  de  criança,  p.  e  p.  pelo  n.º  1  do  mesmo  artigo  171°  (actos  sexuais  de  relevo),  agravado  também  nos  termos  do  disposto  no  artigo  177°,  n.º  1,  al.  a),  ainda  do  Código  Penal.

8-  A  pena  é  determinada  pela  medida  da  culpa  que,  no  caso,  é  em  grau  elevado,  e  pelas  exigências  de  prevenção  geral  e  especial,  que  são  muito  fortes.  Deste  modo,  considerada  a  moldura  penal  correspondente  a  cada  um  dos  apontados  tipos  legais  de  crime  e  levando  em  linha  de  conta  todas  as  circunstâncias  que  depõem  a  favor  e  contra  o  arguido  (artigo  71°,  do  Código  Penal),  entre  elas  sobressaindo,  por  um  lado,  a  intensidade  da  ilicitude  do  facto  e,  por  outro  lado,  a  ausência  de  antecedentes  criminais,  têm-se  por  minimamente  ajustadas,  as  penas  não  inferiores  a  seis  (6)  anos  de  prisão  e  a  dois  (2)  anos  e  seis  (6)  meses  de  prisão,  respectivamente.

9-  Operando  o  cúmulo  jurídico  destas  duas  penas  e  considerados  os  factos  e  a  personalidade  do  arguido,  deverá  ser  determinada  uma  pena  única  em  medida  não  inferior  a  sete  (7)  anos  e  três  (3)  meses  de  prisão.

10-  O  douto  acórdão  recorrido  interpretou  deficientemente  o  disposto  nos  artigos  171°,  n.ºs  1  e  2,  e  177°,  n.º  1,  al.  a),  do  Código  Penal,  e  127°,  129º,  n.º  1,  356°,  n.º  7,  e  357°,  n.ºs  1  e  2,  estes  do  Código  de  Processo  Penal.

Nestes termos e pelo mais que, Vossas Excelencias, Senhores Juizes Desembargadores, seghura e sabiamente não deixarão de suprir, concedendo-se provimento ao presente  recurso e, consequentemente, alterando-se a decisão recorrida e tomada em matéria de facto e condenando-se o arguido, como aqui pugnado, far-se-á Justiça.

O recurso foi objecto de despacho de admissão.

O arguido respondeu ao recurso interposto, concluindo o seguinte:

1.  O  recurso  interposto  pelo  Ministério  Público,  do  douto  acórdão,  proferido  em  14  de  Abril  de  2015,  em  que  decidiu  pela  absolvição  do  Arguido  A... ,  não  tem  qualquer  sustentação  e  a  decisão  sobre  o  mesmo  não  poderá  ser  outra  que  não  a  sua  total  improcedência.

2.  O  Ministério  Público  sustenta  que  o  douto  Tribunal  Colectivo  excluiu  meios  probatórios  que  são  legalmente  admissíveis.

3.  Fundamenta  e  considera  como  provados  todos  os  crimes  pelo  que  o  Arguido  vinha  acusado,  mais  concretamente  quanto  à  enumeração  dos  factos  dados  como  não  provados,  em  que  o  Arguido  deveria  ser  condenado.

4.  Resulta  do  douto  Acórdão  absolutório  que  o  Arguido  A...   foi  absolvido  da  totalidade  dos  crimes  de  que  vinha  acusado.

5.  Resulta  da  decisão  da  matéria  de  facto,  se  mostram  preenchidos  os  pressupostos  do  artigo  127.º  do  Código  de  Processo  Penal,  que  existe  uma  verdadeira  recusa  de  depoimento,  nomeadamente  no  que  concerne  ao  artigo  134.º,  n.º  1,  alínea  a)  do  Código  de  Processo  Penal,  que  não  pode  valer  o  denominado  depoimento  indirecto  e  que  se  mostram,  também,  preenchidos  os  pressupostos  dos  artigos  356.0,  n.º  7  e  357.º,  n.º  2,  ambos  do  Código  de  Processo  Penal.

6.  Não  assiste  razão  ao  recurso  apresentado  pelo  Ministério  Público,  no  que  concerne  à  livre  convicção  do  julgador,  no  que  diz  respeito  à  alegada  recusa  de  depoimento  por  parte  da  ofendida  e  à  pretensa  negação  dos  factos,  pois  tais  factos  foram  correctamente  julgados  e  valorados  pelo  Tribunal  Colectivo  de  Juízes.

7.  Considerada  toda  a  prova  produzida  em  audiência  de  discussão  e  julgamento,  tal  conduz  à  conclusão  de  que  o  Tribunal  Colectivo  efectuou  uma  atenta  e  minuciosa  análise  de  toda  a  prova  e  respectivo  exame  critico  da  mesma.

8.  Estabelece  o  artigo  127.º  do  Código  de  Processo  Penal  que  "Salvo  quando  a  lei  dispuser  diferentemente,  a  prova  é  apreciada  segundo  as  regras  da  experiência  e  a  livre  convicção  da  entidade  competente".

9.  Estamos  perante  o  princípio  geral  da  livre  apreciação  da  prova,  que  é  válido  em  todas  as  fases  processuais,  sendo  certo  que  assume  particular  relevo  na  fase  de  julgamento.

10.  Para  a  formação  da  convicção  do  Tribunal  a  quo  foi  essencial  a  conjugação  dos  princípios  da  oralidade  e  da  imediação.

11.  Não  assiste  razão  ao  Ministério  Público,  ao  afirmar  que  o  Tribunal  a  quo  julgou  incorrectamente  a  factualidade  dada  como  não  provada,  impondo  a  necessidade  de  uma  outra  decisão.

12.  Não  assiste  razão  ao  Ministério  Público  na  motivação  ao  recurso  que  apresentou  ao  requerer  uma  decisão  diferente  no  que  concerne  aos  factos  dados  como  não  provados,  até  porque  o  Tribunal  a  quo  apreciou  as  provas  segundo  a  sua  experiência  e  livre  convicção,  fundamentando  devidamente  a  sua  decisão.

13.  A  censura  quanto  à  forma  de  formação  da  convicção  do  Tribunal  Colectivo  não  pode  assentar  na  valoração  da  prova,  mas  sim  na  violação  de  qualquer  dos  passos  para  a  formação  de  tal  convicção.

14.  Apreciando  o  douto  Acórdão  proferido  pelo  Tribunal  Colectivo  verifica-se  que  não  existiu  qualquer  violação  dos  passos  para  a  formação  da  convicção,  tendo  avaliado  de  forma  correcta  e  minuciosa  toda  a  prova  produzida  e,  em  consequência,  fundamentado  de  forma  exacta  tal  convicção.

15.  Não  pode  assistir  razão  ao  Ministério  Público  quando  refere,  na  sua  motivação,  que  o  Tribunal  Colectivo  não  apreciou,  nem  interpretou  devidamente  no  que  ao  princípio  da  livre  apreciação  da  prova  diz  respeito.

16.  Outra  questão  invocada  na  motivação  do  recurso  apresentado  pelo  Ministério  Público  e  que  merece  o  devido  relevo,  diz  respeito  à  suposta  admissão,  por  parte  do  Arguido,  da  prática  dos  factos  de  que  vinha  acusado.

17.  Refere  que  em  sede  de  primeiro  interrogatório  judicial,  o  Arguido  começou  por  negar  os  factos  que  lhe  eram  imputados.

18.  O  Arguido  não  admitiu  a  prática  de  quaisquer  actividades  sexuais  com  a  sua  filha menor.

19.  O  que  assume  especial  relevo  nestas  declarações  é  a  presença  do  verbo  "poder",  que  não  revela  qualquer  sensação  de  certeza,  mas  apenas  uma  questão  de  probabilidade.

20.  Face  a  estas  declarações,  não  é  crível  que  as  mesmas  consubstanciem  a  admissão  da  prática  dos  factos  de  que  o  Recorrente  vinha  acusado.

21.  Defende,  ainda,  o  Ministério  Público  que  o  Arguido  não  negou  a  prática  dos  factos;  pelo  contrário,  deixou  explicitamente  perceber  que  admitia  a  objectividade  desses  mesmos  factos.

22.  Pese  embora  o  ora  Recorrente  possa  ter  percebido  a  objectividade  dos  factos,  tal  não  equivale  a  uma  admissibilidade  dos  mesmos  e  a  sua  consequente  condenação.

23.  As  declarações  prestadas  pelo  Recorrente  em  sede  de  primeiro  interrogatório  judicial  foram  lidas  em  audiência  de  julgamento,  pelo  que  constituem  meio  de  prova  (artigo  357.º,  n.º  1,  alínea  b)  do  Código  de  Processo  Penal).

24.  No  entanto,  tais  declarações  anteriormente  prestadas  pelo  Recorrente  e  lidas  em  audiência  de  julgamento  não  valem  como  confissão,  de  acordo  com  o  preceituado  no  artigo  357.º,  n."  2  do  Código  de  Processo  Penal.

25.  Essas  mesmas  declarações  lidas  em  audiência  de  julgamento  constituem  meio  probatório  legalmente  admissível  e  foram  valoradas  pelo  Tribunal  Colectivo  para  a  formação  da  sua  convicção.

26.  Discorda  o  ora  Recorrente,  nem  pode  assistir  razão  ao  Ministério  Público  quando  afirma  que  as  declarações  prestadas  pelo  Arguido  não  foram  devidamente  valoradas  pelo  Tribunal  Colectivo.

27.  É  necessário  atentar  agora  a  atenção  na  recusa  de  prestação  de  depoimento  por  parte  da  ofendida  e  menor  C... .

28.  Quando  questionada  sobre  o  Arguido,  a  menor  remeteu-se  ao  silêncio,  recusando­se  a  falar.

29.  No  entendimento  do  Ministério  Público,  a  menor  recusou-se,  apenas,  a  falar  e  não  a  depor,  pelo  que  defende  que  o  silêncio  da  ofendida  não  assume  uma  natureza  voluntária,  livre  e  esclarecida,  não  se  encontrando,  por  isso,  abarcada  no  conteúdo  da  norma  do  artigo  134.0,  n.º  1,  alínea  a)  do  Código  de  Processo  Penal.

30.  Não  pode  o  Arguido  concordar  com  tal  tese  defendida  pelo  Ministério  Público.

31.  Quando  confrontada  com  as  supostas  práticas  sexuais  incestuosas  a  que  foi  sujeita,  a  ofendida  remeteu-se  ao  silêncio,  afirmando  o  Ministério  Público  que  tal  mutismo  se  deveu  à  sua  incapacidade  para  se  exprimir.

32.  Aqui  não  assiste  razão  ao  Ministério  Público  quanto  às  considerações  tecidas  sobre  o  relatório  elaborado  pelas  técnicas  especializadas,  nomeadamente  Psicólogas.

33.  Com  efeito,  tal  relatório,  foi  oficiado  em  devido  tempo  pelo  Ministério  Público,  que  se  conformou  com  o  teor  do  mesmo  e  que  com  o  mesmo  pretendia  averiguar  se  o  silêncio  da  menor  corresponderia  a  uma  postura  livre  e  esclarecida  da  mesma.

34.  Estranha-se  que  só  agora  venha  coloca-lo  em  causa.

35.  Advogados  e  Juízes  não  possuem  tais  conhecimentos  técnicos,  uma  vez  que  a  sua  formação  académica  não  abrange  a  aprendizagem  de  tais  conhecimentos.

36.  Daí  que,  em  casos  especiais,  como  os  dos  autos  em  apreço,  é  necessário  recorrer  à  ajuda  de  peritos,  para  que  desta  forma  se  possa  obter  um  conhecimento  científico,  directo  e  rigoroso  deste  tipo  de  situações.

37.  Também  aqui  não  assiste  razão  ao  Ministério  Público,  colocando  em  causa  o  trabalho  desenvolvido  por  técnicas  especializadas,  que  têm  todos  os  conhecimentos  científicos  necessários  para  a  emissão  de  um  bom  parecer  e  de  uma  correcta  conclusão.

38.  Estribou-se  o  Ministério  Público  em  raciocínios  ilógicos  e  irreais,  para  colocar  em  causa  tais  relatórios,  quando,  durante  a  audiência  de  julgamento,  se  conformou  com  os  resultados  dos  técnicos  e  peritos,  e  agora  vem  coloca-los  em  causa.

39.  Para  já  não  falar  de  que  o  julgamento  se  iniciou  em  01  de  Dezembro  de  2014  e  teve  o  seu  término  em  14  de  Abril  de  2015.

40.  Não  existe  uma  clara  certeza  de  que  a  menor  foi  sujeita  a  abusos  incestuosos,  uma  vez  que  o  seu  silêncio  pode  ser  perfeitamente  consciente.

41.  Se  o  Ministério  Público  entende  que  a  postura  da  menor  não  foi,  de  todo,  voluntária  e  livre  aquando  da  prestação  do  seu  depoimento  em  audiência  de  julgamento,  então  o  mesmo  se  pode  afirmar  em  momentos  anteriores,  aquando  da  inquirição  da  menor  e  da  realização  de  relatórios  e  perícias  à  mesma.

42.  Outra  questão  posta  em  causa  pelo  Ministério  Público  e  que  merece  a  maior  atenção  diz  respeito  aos  denominados  depoimentos  indirectos.

43.  O  depoimento  da  menor  J... ,  no  que  concerne  ao  que  ouviu  dizer  da  menor  C... ,  corresponde  a  um  depoimento  indirecto,  que  não  pode,  de  todo,  ser  valorado.

44.  O  depoimento  da  menor  J... ,  para  ser  valorado  e  apreciado  pelo  Tribunal  Colectivo,  teria  que  ter  sido  corroborado  pela  menor  C... ,  contrariamente  à  pretensão  do  Ministério  Público.

45.  A  menor  C...   não  prestou  declarações  para  memória  futura,  e,  aquando  da  sua  inquirição  na  audiência  de  discussão  e  julgamento,  a  menor  sustou  as  suas  declarações,  por  recusa  de  depoimento.

46.  É  nosso  entendimento  que  não  pode,  de  forma  alguma,  o  depoimento  da  menor  J... ,  no  que  concerne  ao  que  ouviu  dizer  da  menor  C... ,  ser  valorado,  pois  não  constitui  meio  probatório  válido.

47.  Contrariamente  ao  que  o  Ministério  Público  pretende,  os  depoimentos  da  menor  J...   e  da  sua  mãe  só  poderiam  ser  validamente  valorados  e,  consequentemente,  sujeitos  à  livre  apreciação  do  juiz  se  a  menor  C...   fosse  portadora  de  alguma  anomalia  psíquica.

48.  Conforme  se  infere  do  supra  relatório  de  perícia  médico-legal  realizado  à  ofendida  C... ,  verifica-se  que  esta  não  é  portadora  de  qualquer  anomalia,  pelo  contrário  tem  capacidade  para  se  exprimir  com  clareza  e  apresenta  um  raciocínio  lógico.

49.  O  mesmo  acontece  relativamente  ao  depoimento  prestado  pela  Inspectora  da  Polícia  Judiciária  P... .

50.  As  conversas  informais  não  devem  ser  valoradas,  uma  vez  que  as  mesmas  se  encontram  desprovidas  de  qualquer  valor  probatório.

51.  Por  influência  da  doutrina,  a  jurisprudência  maioritária  passou  a  considerar  inadmissíveis  os  depoimentos  dos  órgãos  de  polícia  criminal  que  tivessem  na  sua  base  conversas  informais.

52.  No  recurso  por  si  apresentado,  o  Ministério  Público  entende  que  o  depoimento  prestado  pela  Inspectora  P...   não  cabe  no  conteúdo  das  normas  dos  artigos  356.0,  n.º  7  e  357.º,  n.º  2  do  Código  de  Processo  Penal,  devendo,  como  tal,  ser  valorado  como  meio  probatório.

53.  Também  aqui  não  assiste  razão  ao  Ministério  Público,  pois  a  valoração  de  tais  conversas  informais  colocaria  em  causa  a  presunção  de  inocência  do  arguido.

54.  Outra  que  questão  que  se  coloca  à  apreciação  de  V.ªs  Ex.ªs  Venerandos  Desembargadores,  é  o  facto  de  estas  conversas  informais  terem  sido  realizadas  antes  da  instauração  do  processo  de  inquérito  não  deveriam  ser  valoradas  como  meio  de  prova,  pois,  para  além  de  poder  levar  à  condenação  um  arguido  absolutamente  inocente,  coloca  também  em  causa  todo  o  processo  penal,  uma  vez  que  é  com  a  instauração  do  inquérito  que  se  pretende  investigar  a  existência  de  um crime,  determinar  os  seus  agentes,  a  responsabilidade  deles,  descobrir  e  recolher  provas  (artigo  262.º  e  seguintes  do  Código  de  Processo  Penal).

55.  Face  a  todo  o  exposto,  na  resposta  ao  recurso  apresentado  pelo  Ministério  Público,  somos  da  opinião  que  não  merece  qualquer  censura,  nem  reparo  o  douto  Acórdão  proferido  pelo  Tribunal  Colectivo,  devendo  para  o  efeito  mantê-lo  na  íntegra  e  que  o  Arguido  seja  absolvido  de  todos  os  crimes  de  que  vem  acusado  e  que  o  recurso  interposto  pelo  Ministério  Público  seja  declarado  improcedente,  por  não  provado,  mantendo-se  nos  seus  precisos  termos  a  decisão  recorrida.

Termos  em  que,  correcta/acertada  foi  a  decisão  ora  em  recurso,  de  acordo  com  a  prova  produzida,  criticamente  bem  examinada,  com  a  lei  aplicável,  a  doutrina  e  a  jurisprudência:

A  decisão  em  análise  procedeu  de  acordo  com  as  regras  penais  e  processuais  penais,  bem  examinado/analisado  e  explicitando  as  razões  que  conduziram  àquela  decisão  absolutória,  produzindo  um  correcto  e  completo  exame  critico,  face  à  ausência  total  de  prova.

Pelo  que,  confirmando-se  a  decisão  do  Tribunal  Colectivo,  se  fará JUSTIÇA!

Nesta Relação o Exmº Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer no sentido de que o recurso merece provimento.

Cumprido o disposto no artigo 417º, nº 2 do Código de Processo Penal, não ocorreu resposta.

Efectuado o exame preliminar e corridos os vistos legais foi realizada conferência, cumprindo apreciar e decidir.


***

            II. Fundamentos da decisão recorrida

            O acórdão recorrido contém os seguintes fundamentos de facto:

Da audiência de julgamento resultou provada a seguinte matéria fáctica, pertinente para a decisão da causa (não se pronunciando o Tribunal sobre matéria de direito, juízos de valor e factos conclusivos ou irrelevantes constantes das peças processuais juntas):

1. A menor C... nasceu em (...), (...) , a 06/02/2006 e é filha do arguido A... e de B... .

2. A menor residiu, antes de ser institucionalizada, na (...), (...) , com a mãe e irmãos.

3. Até à data da detenção do arguido, ou seja, até 30 de Janeiro de 2014, a menor residia ainda, na morada supra referida, com o seu pai e aqui arguido, esposa e filhos.

4. Por sua vez, a menor J... nasceu em (...), (...) , a 27/03/2006, é filha de L... e de M... e reside com a família na (...), (...) .

5. As menores C... e J... são amigas e à data dos factos a seguir narrados e com a permissão dos respectivos progenitores (as mães são amigas de longa data), amiúde iam brincar uma com a outra na casa da menor C... sita na (...), (...) .

6. Os pais da menor C... estavam desempregados, pelo que habitualmente encontravam-se em casa.

7. Em momento não concretamente apurado situado entre o verão de 2013 e finais de 2013, na (...), (...) , numa ocasião em que a menor J... ali se encontrava, o arguido chamou esta menor ao quarto do casal.

8. A menor, pensando que lhe queria algum recado, foi.

9. Assim que a menor J... entrou no quarto do casal, onde o arguido já se encontrava, este disse à menor J... para que esta se despisse.

10. A menor disse de imediato que não e virou-se para a porta, dali saindo de imediato.

11. O arguido não tem quaisquer antecedentes criminais.

12. O processo de desenvolvimento do arguido decorreu num contexto familiar pouco securizante mas relativamente eficaz na transmissão das normas sociais.

13. A não aceitação da relação dos pais por parte das respectivas famílias de origem (pai de etnia cigana e a mãe não e de um estrato sócio cultural mais elevado) constituiu pano de fundo desse processo.

14. A morte do pai quando o arguido tinha 8 anos resultou numa situação de grande carência económica, passando a família (mãe e 6 filhos, dos quais o arguido é o terceiro) a viver na dependência de apoios sociais do estado.

15. A descompensação psiquiátrica da mãe (diagnóstico de doença maníaco-depressiva agravada pelo luto conjugal) que determinou alguns períodos de internamento hospitalar resultou, também por isso, em alguma inconsistência de supervisão não obstante a vigilância dos serviços sociais.

16. Dois dos irmãos do arguido 2 sofrem de doença bipolar.

17. Apenas o mais novo teve problemas de comportamento desviante.

18. O arguido foi sempre conotado por um comportamento socialmente ajustado e pacífico.

19. Fez um percurso escolar, dos 6 aos 15 anos, marcado por insucesso e desinteresse mas aparentemente sem problemas de comportamento.

20. Concluiu o 5º ano de escolaridade com 4 reprovações.

21. Em adulto obteria equivalência ao 9º ano escolaridade no âmbito de frequência de curso de formação profissional.

22. Apresenta uma trajectória profissional caracterizada por ocupações temporárias de vínculo precário (ajudante de mecânico de automóveis, servente construção-civil, distribuição de jornais, carga e descarga de produtos alimentares, lavagem de automóveis, indiferenciado em armazém de confecções, trabalhos agrícolas sazonais), intercaladas por períodos de inactividade e dependência de apoios sociais do estado, venda de têxteis porta a porta e frequência remunerada de cursos de formação.

23. O arguido justifica a curta permanência (inferior a 1 ano) nas ocupações profissionais com a precariedade dos contratos, alegada discriminação por parte de alguns colegas de trabalho ou ainda incompatibilidade do horário de trabalho com as suas responsabilidades familiares,

24. No âmbito de programas de inserção inerentes ao Rendimento Social de Inserção, frequentou 3 cursos de formação nas áreas de Apoio à Família e à Comunidade, Geriatria e Animação Social.

25. Nos estágios destas formações trabalhou, durante um curto espaço de tempo, no apoio a idosos e crianças do ensino básico, respectivamente na IPSS “ (...)” e Escola (...), em (...) .

26. As referências sobre a sua relação com crianças e idosos são positivas sendo-lhe atribuído um desempenho adequado.

27. O arguido percepciona estas experiências de estágio como as mais gratificantes da sua trajectória profissional.

28. Casou com 23 anos (1998) com a actual companheira.

29. O casal tem 3 filhos em comum, E... , C... e F... , de 16, 8 e 6 anos, respectivamente.

30. Começaram por viver 6 anos numa barraca junto à habitação da mãe do arguido (a mesma que este ocupa desde o início da presente medida de

coacção) tendo em 2005 sido realojados no (...), em (...) .

31. O relacionamento conjugal, incluindo a nível sexual é percepcionado por ambos os cônjuges como globalmente gratificante não obstante alguns desentendimentos e crise conjugal ocorrida há cerca de 2 anos com iminência de separação.

32. O arguido atribuiu ao cônjuge alguma frieza afectiva.

33. Esta refere sofrer desde há cerca de 13 anos de fribromialgia (doença crónica caracterizada por dores generalizadas neuromusculares, fadiga perturbações do sono distúrbios emocionais) situação que segundo a própria se reflecte numa menor disponibilidade para relações sexuais, particularmente em situações agudas de crise dolorosa.

34. A mesma atribui ao arguido uma postura conjugal ciumenta, que a própria desvaloriza face a capacidades afectivas, de comunicação e compreensão que também lhe reconhece.

35. Ao arguido nunca lhe foram conhecidos comportamentos aditivos (álcool ou droga), problemas psiquiátricos ou de comportamento agressivo.

36. Por familiares e elementos do meio local, é-lhe atribuída uma postura familiar e social normativa.

37. O convívio com a família nuclear e a prática de desporto regular com carácter lúdico eram formas privilegiadas de ocupação dos tempos livres.

38. Sempre terá mantido interesse pessoal por assuntos religiosos, facto que se terá acentuado de forma bizarra e exacerbada desde que se encontra no presente estatuto coactivo.

39. Aproveitando espaço concedido para poder aceder ao quintal, construiu numa árvore uma estrutura de madeira que utiliza para fazer orações.

40. À data dos factos e da detenção, o arguido vivia com o cônjuge e os 3 filhos num apartamento de renda económica, sito no (...) (onde se mantém a residir a mulher e 2 filhos, por colocação institucional da filha C... .

41. Essa habitação, “T2”, afigurava-se exígua face aos tamanho do agregado o que determinava que os 3 filhos dormissem no mesmo quarto.

42. Encontrava-se desempregado há cerca de 2 anos, sobrevivendo o seu agregado de receitas provenientes do Rendimento Social de Inserção e ainda da venda pontual de sucata e de têxteis porta a porta.

43. Na actual situação coactiva o arguido reside em precárias condições de habitabilidade numa barraca contígua à casa cedida à família de origem, onde decorreu o seu processo de desenvolvimento.

44. A barraca tem duas divisões, uma a servir de arrumos e outra de quarto do arguido. Tem electricidade proveniente da habitação principal onde o arguido toma as refeições e faz uso da casa de banho.

45. Nesta última habitação (“T2”, exígua e com deficientes infra-estruturas) residem a mãe ( D... , 61 anos, viúva, pensionista); o companheiro desta ( G... , 40 anos, solteiro, desempregado) e dois irmãos do arguido ( H... , 37 anos, solteiro, desempregado, I... , 43 anos, solteira reformada por invalidez, actualmente internada por motivo de descompensação de doença de esquizofrenia).

46. O arguido não possui rendimentos próprios, vivendo na dependência dos recursos económicos do agregado da mãe, num total líquido de cerca 823 euros (pensão invalidez e sobrevivência da mãe, 414,98 euros; prestação do rendimento social de inserção, 158 euros; pensão de invalidez da irmã, cerca de 250 euros).

47. A venda de meias de porta em porta por parte da mãe permite complementar as receitas que asseguram com reduzida margem de manobra a manutenção do agregado.

48. As despesas fixas mensais (excluindo alimentação) totalizam cerca de 300 euros (electricidade:30 euros, água:30 euros, gás:25 euros, seguro do automóvel: 15 euros; amortização de crédito pessoal: 200 euros).

49. No relacionamento familiar relativamente satisfatório e aparentemente coeso no apoio ao arguido, constituem elementos de perturbação, a doença psiquiátrica da mãe e da irmã, a própria situação judicial e reacção depressiva do arguido e ainda a situação recente de separação conjugal do irmão coabitante.

50. A companheira do arguido visita-o na companhia dos filhos (excepto a vítima entregue aos cuidados de uma instituição) todas as semanas.

51. Ambos se mostram inconformados com a institucionalização da filha (vítima).

52. É percebido em relação ao arguido uma forte ligação ao cônjuge mas sobretudo aos filhos.

53. Exibe boas capacidades de comunicação e um pensamento prosocial e favorável às convenções.

54. Sobre a criminalidade em geral e concretamente sobre o ilícito de que se encontra indiciado exterioriza vincada consciência crítica.

55. Nos meios familiar e social é-lhe atribuído um funcionamento normativo e adequado, sendo visto como uma pessoa sociável, cordial, pacífica e dedicada à família.

56. É descrito um relacionamento positivo e não diferenciado com os filhos.

57. No âmbito dos presentes autos, o arguido encontra-se sujeito à medida de coacção de obrigação de permanência na habitação com vigilância electrónica desde 31Jan2014.

58. Tem vindo a cumprir adequadamente as obrigações a que se encontra sujeito, respeitando os limites da área de restrição e a integridade dos equipamentos de vigilância electrónica, apresentando ainda uma atitude de colaboração com estes serviços de controlo.

59. Ao actual contexto judicial e coactivo, relativamente ao qual o arguido indicia intimidação, o mesmo reagiu inicialmente com distúrbios de natureza psiquiátrica, nomeadamente humor depressivo e delírios, com alheamento da realidade.

60. Essa situação suscitou encaminhamento para consultas externas de psiquiatria no Hospital S... em (...) , onde foi diagnosticado com um quadro de depressão grave e medicado com fármacos compatíveis: “Trazodona”, “Victan” ,“Diazepam” “Sertralina”. Tem sido acompanhado em consultas externas de psiquiatria pela Dra. S... .

61. A falta de rigor na consideração da terapêutica prescrita tem resultado na persistência de alguma instabilidade emocional, particularmente em circunstâncias de evocação dos filhos exteriorizando num discurso cíclico e repetitivo a necessidade de estar com eles.

Não se provaram quaisquer outros factos com interesse para a boa decisão da causa, designadamente os que se elencam infra:

1. O arguido mantinha para com a esposa e filhos uma conduta muito agressiva, ralhando por tudo e por nada e chegando a bater nos mesmos.

2. A menor C... tinha, assim, o pai como pessoa agressiva e que era necessário não contrariar, pois temia deste modo

desencadear uma crise de fúria deste, até porque já as tinha presenciado em casa, fosse quando dirigidas à mãe, fosse a ela própria e irmãos.

3. Neste contexto familiar, aproveitando-se do temor que a menor C... tinha para consigo, que em momento não concretamente apurado, mas que se iniciou seguramente no início do verão de 2013 e se prolongou até finais de Janeiro de 2014, sempre no interior da residência do arguido e família, sita na (...), (...) , aproveitando-se de alturas em que ficava sozinho com a menor C... , designadamente por a mãe desta ter ido, por exemplo, às compras ou efectuar outra tarefa doméstica do género, o arguido chamava a menor C... ao quarto do casal.

4. A menor C... , com medo de contrariar o pai, pois temia que este lhe batesse se não o fizesse, ia.

5. Com os dois dentro do quarto do casal, o arguido fechava a porta à chave e tirava a sua roupa, ficando nu em frente à menor, sua filha.

6. Tirava também – ou exigia à sua filha que tirasse – a roupa que a criança trazia vestida, ficando assim a menor despida.

7. Em seguida, o arguido tinha com a menor, sua filha, um de vários tipos de comportamentos distintos, a seguir descritos, sendo que cada um destes comportamentos ocorreu por repetidas vezes durante o período acima indicado: o arguido sentava-se na cama e puxava a sua filha C... para o seu colo, de costas virada para si.

8. Em seguida, com o seu pénis erecto, colocava-o no ânus da menor e fazia pressão com o corpo da criança em sua direcção, em movimentos repetidos para a frente e para trás, penetrando deste

modo e pelo menos superficialmente no ânus da menor, procurando ejacular.

9. Não obstante a menor C... se queixar que o pai a magoava, quando o mesmo introduzia o seu pénis erecto no ânus desta, o arguido mandava-a calar e continuava, procurando e logrando deste modo satisfazer os seus instintos libidinosos.

10. Noutras ocasiões, sempre no interior do quarto do casal e com a porta fechada à chave, com os dois nus, o arguido virava a menor de frente para si e mantendo-a imobilizada em cima da cama, com as pernas abertas e a zona genital exposta, colocava o seu pénis erecto em cima da vagina da menor, ali a esfregando em movimentos ritmados de vai e vem, procurando ejacular, procurando e conseguindo deste modo satisfazer os seus instintos libidinosos.

11. Noutras ocasiões ainda, sempre dentro do quarto do casal, com a porta trancada e encontrando-se os dois nus, o arguido sentava-se na cama, agarrava a menor C... , obrigando-a pela força física a colocar-se de joelhos e virada de frente para si.

12. Nesta posição, o arguido com uma mão agarrava na cabeça da menor C... e com a outra segurava no seu pénis erecto, que colocava no interior da boca da criança.

13. Em seguida, continuando a agarrar a cabeça da sua filha, fazia movimentos repetidos para a frente e para trás, obrigava-a ainda a fazer com a boca movimentos de sucção em vai e vem, procurando ejacular e deste modo obter a satisfazer dos seus instintos libidinosos.

14. Nestas ocasiões e quando tinha estas condutas com a sua filha C... , o arguido por repetidas vezes ejaculou no interior da

boca da menor, sendo que apesar da menor se queixar que “era amargo” e que “se engasgava”, o arguido mantinha-se indiferente ao sofrimento da sua filha e persistia nestas condutas.

15. Quando mantinha com a menor C... , sua filha, cada um dos três tipos de práticas acima indicadas, o arguido ainda beijava a menor na boca, a acariciava com as mãos na zona do peito e vagina, pegava nas mãos da menor C... e obrigava-a a esfregar o seu pénis repetidamente e passava a sua boca e língua na zona vaginal da menor, em movimentos ritmados, procurando com tais condutas e deste modo obter a erecção do seu pénis e concretizar então cada uma das práticas acima descritas.

16. O arguido, depois de terminar cada uma das condutas acima indicadas, limpava-se, vestiam-se e saiam do quarto.

17. O arguido advertia a menor C... , por repetidas vezes, em tom sério e agressivo, para esta não contar nada a ninguém do que sucedia entre os dois.

18. A menor C... , receosa que o pai lhe batesse ou que a mãe lhe chamasse mentirosa e lhe batesse, nada contava e suportava em silêncio estes comportamentos do pai para consigo.

19. O arguido manteve estas condutas para com a menor, pelo menos duas vezes por semana e pelo menos entre inícios do verão de 2013 até finais de Janeiro de 2014.

20. Obtinha o silêncio e a não oposição da sua filha C... , por a manter num ambiente hostil e agressivo, querendo e conseguindo criar nesta a convicção que caso não acatasse o que este lhe exigia, o arguido era capaz de lhe bater ou causar ainda maior sofrimento.

21. A menor J... contou o sucedido à sua amiga, a menor C... , tendo esta última ficado aflita e tendo-lhe perguntado se o pai “tinha feito alguma coisa de adultos” com ela.

22. Perante a resposta negativa da amiga, a menor C... demonstrou alívio.

23. O arguido, pelo menos entre o início do verão de 2013 e até finais de Janeiro de 2014, pedia insistentemente à sua filha C... para que esta convidasse e levasse “amiguinhas” lá para casa, para poder manter com estas as mesmas práticas de cariz sexual que mantinha com a filha.

24. A menor C... , percebendo os intuitos do pai, não acedia aos seus pedidos.

25. No que respeita à ofendida C... , no período compreendido entre pelo menos inícios do verão de 2013 e até finais de Janeiro de 2014, pelo menos duas vezes por semana, o arguido manteve cada um dos três tipos de condutas acima indicados, sendo que mantinha cada uma dessas condutas em ocasiões distintas das outras, práticas estas que ocorreram dentro do quarto do casal, na casa de morada desta família.

26. O arguido aproveitava-se da pouca idade da criança e temor que esta tinha para consigo para obter a colaboração da menor nas práticas sexuais que mantinha com esta sempre que entendia e como queria, bem como o silêncio sobre a ocorrência destes eventos.

27. Assim, o arguido, nas circunstâncias de tempo e lugar acima indicadas, manteve para com a menor C... , sua filha, durante o longo período acima indicado, de forma repetida, ininterrupta, em geral e pelo menos duas vezes por semana,

contactos de cariz sexual, a saber: actos de masturbação recíprocos, actos e sexo oral, introdução superficial da língua na zona vaginal da menor, introdução superficial do pénis no ânus da menor.

28. O arguido, ao agir como o descrito, queria e conseguiu manter para com a menor C... , sua filha, as práticas sexuais acima descritas, bem sabendo a idade da menor, incapacidade desta em avaliar o valor e desvalor ético de condutas como as supra descritas, querendo e conseguindo manter para com esta um discurso e condutas agressivas, gerando deste modo na menor um sentimento de pavor, querendo e conseguindo usá-la para satisfazer os seus instintos libidinosos.

29. O arguido bem sabia que as práticas por si levadas a cabo são idóneas a atingir, como de facto atingiram, o recato sexual devido a uma criança, como era a ofendida C... , sua filha.

30. Quanto à menor J... , o arguido queria e conseguiu dirigir-lhe expressões atentatórias do recato sexual devido a uma menor, querendo manter com esta práticas de sexo oral e anal, bem como de masturbação, a fim de com a mesma obter a satisfação dos seus instintos libidinosos, bem sabendo a idade da menor e que tais condutas eram idóneas a atingir o recato sexual devido a qualquer criança.

31. Só não concretizou as práticas pretendidas, no caso, práticas de sexo oral, anal e de masturbação, por a menor ter reagido repentinamente, conseguido por isso sair rapidamente do quarto antes do arguido ter conseguido fechar a porta à chave, como pretendia, não tendo o arguido insistido nos seus propósitos por temer que esta gritasse e chamasse a atenção das restantes pessoas da casa, bem como se fosse queixar aos pais, seus conhecidos, não

tendo por isso concretizado os seus intentos criminosos para com esta menor.

32. O arguido agiu sempre de forma livre, deliberada e consciente, bem sabendo que todas as suas condutas lhe estavam vedadas por lei.

O Tribunal alicerçou a sua convicção na análise crítica do conjunto da prova produzida, designadamente e no que concerne aos factos vertidos em 1) e 4) nos assentos de nascimento juntos aos autos a fls. 114 e 117, bem como e relativamente às condições económicas sociais e profissionais do arguido e família, no relatório social junto aos autos a fls. 365 a 369, bem como no testemunho do próprio arguido, esposa e elementos documentais existentes nos autos relativos à composição de cada um dos agregados familiares mencionados.

Relativamente aos factos vertidos de 7) a 10), bem como na composição do agregado familiar da menor J... (facto mencionado em 4) foram valoradas as declarações para memória futura desta, a fls. 7 e 8 do apenso único, bem como da sua mãe M... , tendo a primeira confirmado de forma coerente e esclarecida o modo como interagiu com o arguido naquela ocasião, tendo a mãe esclarecido as circunstâncias em que teve conhecimento de tal incidente, confirmando que era costume a sua filha deslocar-se a casa do arguido para brincar com a filha deste e que entre as duas menores havia uma relação de amizade.

Foi ainda valorado o certificado de registo criminal do arguido junto aos autos.

No que concerne à factualidade dada como não provada e que se reconduz a todos os actos sexuais mencionados na acusação perpetrados pelo arguido A... relativamente à sua filha C... , bem como ao ambiente vivido no agregado familiar desta, importa dizer o seguinte.

O arguido negou a prática dos factos. A sua esposa pretendeu justificar a conduta da menor com o facto de esta ter presenciado através da fechadura (estragada) da porta do seu quarto, o casal na sua intimidade.

Já antes o arguido, em sede de primeiro interrogatório judicial havia admitido como possível ter feito qualquer coisa à menor como resultado de ter o sono pesado e a C... ter por hábito deitar-se na sua cama, entre o casal.

Nenhuma destas versões se revelou, aos olhos do Tribunal, minimamente consentânea com a realidade dos factos, pese embora a versão da fechadura estragada tenha sido amplamente referida no decurso da audiência de discussão e julgamento.

Ao longo de todo a fase de inquérito e julgamento, a menor C... nunca se dispôs a relatar quaisquer actos praticados pelo seu pai de natureza sexual, negando também que existisse qualquer clima de intimidação no agregado familiar em que se integrava. Numa fase embrionária do processo a menor foi reconduzida ao Tribunal para que prestasse declarações para memória futura, não o tendo feito, tendo-se recusado a falar (auto de fls. 105 e 106). Posteriormente inviabilizou que lhe fosse efectuado um exame pericial de natureza sexual conclusivo, por falta de colaboração, o que impossibilitou a realização de exame das regiões anal e genital, conforme resulta de fls. 146 a 148 verso.

No relatório de observação psicológica, efectuado em contexto médico-legal a C... mostrou-se uma criança capaz de exprimir o seu pensamento com clareza em assuntos neutros, respeitando a lógica, interagindo com terceiros e respeitando as normas, mas também se revelou inquieta, angustiada, entrando em sofrimento psicológico quando se procurava abordar a sua relação com o progenitor. Revelou possuir um bom nível intelectual global, comparativamente ao esperado em crianças do mesmo grupo etário, reflectindo capacidade para adquirir e reter informação, raciocinar em termos lógicos, bem como para se adaptar a novas situações. A sua personalidade, ainda em fase de formação, revelou traços de introversão e de estabilidade emocional. Embora apresente a auto-imagem suficientemente conservada, revelou estar a desenvolver sentimentos de inferioridade, para além de revelar sintomatologia depressiva, já com algum significado clínico. Do ponto de vista psicológico, foi possível constatar que a menor C... tem capacidade para prestar testemunho e porque não revelou propensão para confabular, não se mostrou demasiado imaginativa, não recorreu a fantasias, nem se mostrou sugestionável, havendo no entanto sinais de desconforto e sofrimento psicológico (avaliação psicológica de fls. 224 a 227).

Já no decurso da audiência de discussão e julgamento, o Tribunal sustou a inquirição da menor, por haver indícios que a menor não se encontrava preparada para testemunhar e quando o fez, relatou de forma coerente e normal as circunstâncias da sua vida, tendo deixado de falar quando a inquirição resvalou para factos que ela percepcionou contenderem com a responsabilidade criminal do pai. E nessa altura pura e simplesmente remeteu-se ao silêncio, recusando-se a falar. Anteriormente, em parecer da psicóloga que acompanhou a menor na instituição onde se encontra foi mencionado que a menor em face do contexto sociológico decorrente do processo não iria prestar quaisquer declarações, tendo sido sugerido que a mesma beneficiasse de sessões terapêuticas, o que veio a acontecer antecedendo a sua inquirição pelo Tribunal. Em face do renovado silêncio da menor em julgamento, foi emitido parecer pela prof. Doutora R... em que a mesma sintetiza em termos abstractos a situação da menor, nos seguintes termos: “perante uma resposta familiar de acusação e de não credibilização da narrativa da criança, pela institucionalização da criança na sequência da revelação da situação abusiva e pela idealização do retorno à família (feliz), a criança fica entre duas opções possíveis: a) se fala para relatar uma situação sexualmente abusiva de que foi vítima, perde a família (esta irá rejeitá-la, acusá-la), mantém-se em instituição de acolhimento, mas deixa de ser sexualmente abusada; b) se fala para dizer que nunca houve abuso, é acolhida pela família, deixa de ser rejeitada e acusada por esta, volta para casa saindo da instituição mas, se de factos os abusos ocorreram, voltará a ser abusada. Em qualquer das situações a criança tem muito a perder e a solução possível é não falar e remeter-se ao silêncio. Esta tomada de decisão pode ser consciente ou pode resultar de um bloqueio cognitivo e emocional inconsciente.

Em face do que acabámos de enunciar, cumpre retirar necessariamente consequências do silêncio da menor, por referência à possibilidade de recusa de depoimento por parte desta, à luz do art. 134.º/1 a) do CPP, bem como, em face do silêncio da menor, à possibilidade de valorar os depoimentos indirectos produzidos em audiência de discussão e julgamento, à luz do disposto no art. 129.º/1 do CPP e se, em face do silêncio da menor, se se pode considerar o depoimento indirecto por se entender que a menor não esclareceu os factos por anomalia psíquica superveniente, o que permitiria considerar tais depoimentos.

Analisemos pois. Dispõe o artigo 129.º do C.P.P., cuja epígrafe é “depoimento indirecto”:

l - Se o depoimento resultar do que se ouviu dizer a pessoas determinadas, o juiz pode chamar estas a depor. Se o não fizer, o depoimento produzido não pode, naquela parte, servir como meio de prova, salvo se a inquirição das pessoas indicadas não for possível por morte, anomalia psíquica superveniente ou impossibilidade de serem encontradas.

2 - O disposto no número anterior aplica-se ao caso em que o depoimento resultar da leitura de documento de autoria de pessoa diversa da testemunha.

3 - Não pode, em caso algum, servir como meio de prova o depoimento de quem recusar ou não estiver em condições de indicar a pessoa ou a fonte através das quais tomou conhecimento dos factos.

O depoimento indirecto só vale relativamente ao que se ouviu dizer a outra potencial testemunha, sendo de realçar que este depoimento só é permitido quando a inquirição de quem disse não for possível por força das circunstâncias referidas na norma, assumindo esta uma natureza excepcional, o que deriva, desde logo, do texto do artigo 128.º, do C.P.P., que diz, no seu n.º l, que «a testemunha é inquirida sobre factos de que possua conhecimento directo...».

A regra é, pois, que o limite do depoimento da testemunha é aquilo que ela viu e/ou ouviu.

Como todos sabem, o que a lei pretende com a proibição do depoimento indirecto é que não se aceitem como prova depoimentos que se limitam a reproduzir o que se ouvir dizer.

Para que um tal depoimento seja valorado é essencial que seja confirmado pela pessoa que disse, confirmação que tem em vista a própria validade e eficácia do depoimento, já que o mérito de uma testemunha tem muito a ver com a razão de ciência da própria testemunha (excepção feita aos casos de impossibilidade superveniente de inquirição da pessoa indicada). No nosso caso, constatamos que os factos vertidos no libelo acusatório resultaram essencialmente daquilo que a menor C... contou às suas amigas J... e N... , tendo estas relatado tais factos às suas mães, respectivamente M... e O..., sendo certo que a menor C... se recusou a prestar declarações para memória futura, tendo no decurso da audiência de julgamento deixado de falar quando se apercebeu que as questões colocadas poderiam incidir sobre a responsabilidade criminal do seu pai. Em bom rigor, a menor C... recusou-se a depor como testemunha, o que a lei protege, nos termos e para os efeitos do art. 134.º/1 a) do CPP. A pergunta que se coloca é esta: é, então, admissível e poderá ser valorado o depoimento de testemunhas que reproduzem o que ouviram dizer à vítima de um crime, sendo certo que relativamente às mães das menores J... e N... , estamos inclusivamente perante um depoimento indirecto de segundo grau – conhecem aquilo que lhes foi transmitido pelas filhas, que por sua vez ouviram à vítima do crime?

Como é evidente, quando estão em causa direitos e garantias fundamentais do arguido, o juiz deve ser intransigente na sua defesa, cabendo-lhe assegurar que o processo seja justo, equitativo, transparente, o que passa por garantir o respeito por princípios fundamentais como sejam o da imediação e do contraditório.

Todavia, isso não significa que passe a ignorar finalidades primárias que o processo penal tem de prosseguir, como sejam a realização da justiça e a descoberta da verdade material, a tutela de direitos fundamentais das pessoas e o restabelecimento da paz jurídica e a reafirmação da norma jurídica violada.

Não podendo pretender-se que seja conseguida a qualquer preço, a busca da verdade material é, no processo penal, um dever ético e jurídico.

Com efeito, componente essencial do princípio do Estado de Direito é a ideia de justiça, a qual exige também a manutenção de uma administração de justiça capaz de funcionar, devendo reconhecer-se as necessidades irrenunciáveis de uma acção penal eficaz e acentuar-se o interesse público numa investigação da verdade, o mais completa possível, no processo penal, sendo o esclarecimento dos crimes graves tarefa essencial de uma comunidade orientada pelo aludido princípio. Acontece que o caso dos autos apresenta um aspecto, aliás já mencionado, que nos leva a afastar do princípio geral enunciado – as testemunhas transmitiram ao Tribunal o que lhes foi contado, em particular, pela vítima, sendo que esta, recorde-se, se recusou a depor, tanto em declarações para memória futura, como em julgamento relativamente aos factos que poderiam incriminar o pai.

Sempre que se verifique a existência de uma tensão entre princípios e interesses fundamentais potencialmente conflituantes, há que procurar a sua harmonização, sem embargo de, em último caso, ter que se dar prevalência a um deles.

Por ter interesse directo para a questão ora em causa, e por aderirmos integralmente ao aí exposto, passamos a citar o Acórdão do TRE, de 3/6/2008, Processo n-º 1999/07-1, relatado pelo Exmo. Desembargador António Latas, in www.dgsi.pt/jtre:

“Ao conferir à testemunha parente ou afim do arguido o direito de recusar-se a depor, contrariando o dever geral de depor sob pena de responsabilidade criminal cominado nos arts 132º nº1 d) do CPP e 360º nº2 do C.Penal, o legislador estabeleceu uma clara limitação ao interesse na descoberta da verdade em nome da prevalência de outros direitos relativos a bens jurídicos que considerou mais valiosos, em termos que correspondem à matriz das chamadas proibições relativas, pois a lei processual parte da admissibilidade daqueles depoimentos.

Com base no regime positivo e na análise de preceitos próximos, podemos afirmar que é dúplice o fim de protecção da norma contida no art. 134º do CPP, com que se justifica o sacrifício da descoberta de material probatório.

Por um lado, a lei pretenderá (1) evitar o conflito de consciência que resultaria para a testemunha de poder contribuir para a condenação de um seu familiar ao cumprir o dever legal de falar com verdade; por outro lado, terá pretendido o legislador (2) salvaguardar as relações de confiança e solidariedade no seio da instituição familiar.

Comentando o entendimento tradicional no doutrina e jurisprudência alemãs a propósito do § 52 do StPO (“Direito de recusar o testemunho por motivos pessoais”), Costa Andrade cita um autor alemão (GRÜNWALD), para quem o regime ali estabelecido (idêntico ao acolhido no art. 134º do nosso CPP), obedece à “ideia de que ninguém deve ver-se obrigado a contribuir para levar os seus familiares à prisão” a que acresce a “necessidade que a pessoa tem de confiar nos seus parentes mais próximos, sem ter de recear que o Estado a obrigue a depor contra eles. Nesta medida – prossegue o autor alemão, na citação de C. Andrade – protege-se também o interesse da comunidade na existência de relações de confiança entre membros da mesma família. Também para A. Medina de Seiça, “Com o reconhecimento do direito de recusa pertencente aos familiares, a lei não só pretendeu evitar o conflito de consciência que resultaria para a testemunha caso tivesse de responder com verdade sobre os factos imputados a um familiar seu. Pretendeu, ainda e sobretudo, proteger as «relações de confiança essenciais à instituição familiar»” .

O legislador processual penal reconhece, pois, o primado de interesses e bens jurídicos que colidem com o interesse na descoberta da verdade, de que são titulares pessoas diversas do arguido (in casu as testemunhas), de cujo consentimento faz depender a sua contribuição para a descoberta da verdade, para além de interesses inerentes à da teia de relações de solidariedade e confiança que a instituição familiar oferece.

É claro que pode questionar-se a adequação da amplitude e rigidez do direito de recusa no actual quadro das relações pessoais e familiares e mesmo face à relevância crescente que no processo penal assume o eixo de distinção do tratamento jurídico processual da pequena e média criminalidade, por um lado, e da criminalidade grave e complexa, por outro.

Todavia, não obstante as reformas introduzidas no Código de Processo Penal desde a sua entrada em vigor (1988), apenas a recente Lei 48/2007 de 29 de Agosto alterou o art. 134º do CPP e em sentido contrário à sua restrição (eventualmente justificada), pois alargou o direito de recusa aos que coabitam com pessoa do mesmo sexo mantendo-se, no mais, a versão originária de 1987, nomeadamente quanto aos seguintes aspectos:

- todos os afins até ao 2º grau mantém o direito de recusa conferido aos descendentes, ascendentes e irmãos;

- nunca há lugar a ponderação concreta (contrariamente ao que sucede com o segredo profissional - cfr art. 135.º CPP) entre o direito de recusa e o interesse na descoberta da verdade, quer em função da proximidade do laço familiar, quer da gravidade do crime, ou outro factor considerado relevante.

Assim sendo, de iure condito é reconhecido à testemunha o direito, estabelecido de forma abstracta e potestativa, de recusar-se a depor contra afim até ao 2º grau, em nome de um direito próprio a evitar o conflito pessoal provocado por tal situação e em nome da salvaguarda das relações de confiança e solidariedade no seio da instituição familiar, tal como avaliadas pelo legislador ordinário, ainda que por referência à protecção constitucional da família presente, v.g., no art. 67º da CRP.”

Assim sendo, em síntese, não podem ser considerados válidos os depoimentos indirectos prestados na sequência do que a menor C... contou às suas amigas e que por estas foi reproduzido junto da comunidade escolar e das suas mães, pois, por um lado, não estão abrangidos nas excepções previstas no artigo 129.º, do Código Penal, e, por outro, a testemunha, a quem ouviram a descrição dos factos que deram origem aos presentes autos, se recusou a depor. A este propósito e para exaurir a questão em definitivo, importa ainda dizer que dos relatórios médico-legais não resulta que a menor C... sofra de qualquer anomalia psíquica superveniente, revela sofrimento e angústia, mas capacidade para, assim quisesse, prestar testemunho sobre os factos narrados na acusação.

Esta solução, ainda que possa causar uma certa perplexidade no cidadão comum, é aquela que se mostra conforme àquilo que o legislador pretendeu acautelar (ver acórdão acabado de citar).

Concluindo, o depoimento indirecto não é admissível, e, portanto, não pode ser valorado, se o depoimento da testemunha originária, apesar de ser possível, não tiver sido realizado, isto é, quando a testemunha originária não depôs porque não foi chamada a tribunal ou porque se recusou a depor.

Por outro lado, o art. 356.º/7 do CPP também veda o aproveitamento em julgamento de conversas informais havidas, antes ou depois da abertura formal do inquérito, entre os agentes policiais e quaisquer testemunhas ou declarantes, ainda que estas pessoas venham a falecer posteriormente ou a padecer de anomalia psíquica superveniente ou seja possível localizá-las.

Em síntese, o depoimento dos agentes policiais está sujeito a um regime diferente de quaisquer outras testemunhas, em virtude da proibição legal dos arts. 356.º/7 e 357.º/2. Esta proibição veda o aproveitamento na audiência do depoimento do agente policial sobre declarações que ouviu dos suspeitos, arguidos, testemunhas, assistentes, ofendidos, partes civis, lesados ou quaisquer outros declarantes, quer elas tenham sido feitas antes ou depois da abertura formal do inquérito, quer o agente policial venha a ser instrutor do inquérito ou não. A única excepção a esta regra tolerada pela proibição legal dos arts. 356.º/7 e 357.º/2 é a do depoimento do agente policial quando depõe sobre as declarações que ouviu fazer durante a prática da actividade criminosa. Esta, e só esta, é uma prova directa do facto criminoso inteiramente lícita.

E a ser assim, todas as conversas informais recolhidas pela inspectora P... e que constam nos autos e surgem reproduzidas na acusação, não poderão ser valoradas, evidentemente.

A restante prova é meramente circunstancial e a mesma, desacompanhada da prova que foi desatendida nos termos mencionados supra, não é susceptível de suportar uma condenação de natureza penal, já que dela não se infere, sem mais, o cometimento pelo arguido, dos crimes de que vinha acusado.

Não sendo válida a prova agora em causa, na falta de testemunhas presenciais, não é possível dar como provado que o arguido praticou os factos a ele imputados relativamente à sua filha C... , daí sendo de extrair a necessária consequência legal (absolvição do arguido).

No que concerne à situação vivenciada pela menor J... e as palavras a ela dirigidas, entende o Tribunal que as mesmas não têm a virtualidade de constituírem expressões atentatórias do recato sexual devido a uma menor, nem se infere das mesmas que o arguido quisesse manter com a menor J... a prática de actos de sexo oral e anal, bem como de masturbação, a fim de com a mesma obter a satisfação dos seus instintos libidinosos. É evidentemente uma expressão difícil de compreender, mas não resulta que o arguido pretendesse com as mesmas obter satisfação sexual, conforme vem mencionado na acusação e se desenvolve infra, nem que só não se concretizaram práticas de sexo oral, anal e de masturbação por a mesma ter reagido repentinamente, conseguindo sair do quarto. E muito menos que o arguido não insistiu nos seus intentos por temer que a menor gritasse e chamasse as restantes pessoas da casa, bem como se fosse queixar aos pais, seus conhecidos, não tendo por isso concretizado os seus intentos criminosos. Ora, esta sequência ficou completamente por demonstrar, nenhuma prova foi produzida neste sentido ou noutro, constituindo, salvo o devido respeito, que é muito, tais considerandos, um mero exercício de adivinhação.


***

            III. Apreciação do Recurso

A documentação em acta das declarações e depoimentos prestados oralmente na audiência de julgamento determina que este Tribunal, em princípio, conheça de facto e de direito (cfr. artigos 363° e 428º nº 1 do Código de Processo Penal).

Mas o concreto objecto do recurso é delimitado pelas conclusões extraídas pelo recorrente da correspondente motivação, sem prejuízo das questões do conhecimento oficioso.

Confrontadas as conclusões formuladas, as questões de que importará tomar conhecimento são as seguintes:

- Se os depoimentos indirectos; de ouvir dizer, prestados nos autos são meio válido de prova quando a pessoa de que se ouviu dizer não prestou depoimento em audiência sobre o conteúdo factual daqueles, não estando obrigada a depor por ser filha do arguido;

- Se ocorre erro de julgamento da matéria de facto, devendo ser considerados provados os factos indicados pelo recorrente com a consequente condenação do arguido pela prática de dois crimes agravados de abuso sexual de criança.

Apreciando:

A primeira questão que o recorrente aporta ao conhecimento deste Tribunal diz respeito aos depoimentos indirectos, sobre os factos da acusação, das testemunhas:

- J... , menor, em depoimento para memória futura, relatando o que ouviu dizer à ofendida, também menor;

- M... , mãe da testemunha anterior, relatando o que a filha lhe contou;

- Inspectora da Polícia Judiciária P... , relatando a declaração que colheu da ofendida sobre os factos logo que teve notícia do crime.

Conforma a situação em apreço o facto de a ofendida ser filha do arguido e de se ter recusado a prestar declarações para memória futura e de se ter remetido ao silêncio em audiência de julgamento logo que as perguntas passaram a incidir sobre factos que podiam incriminar o arguido.

Sobre o tema fundamentou o Tribunal a quo o seguinte, que novamente se transcreve por facilidade de análise:

O depoimento indirecto só vale relativamente ao que se ouviu dizer a outra potencial testemunha, sendo de realçar que este depoimento só é permitido quando a inquirição de quem disse não for possível por força das circunstâncias referidas na norma, assumindo esta uma natureza excepcional, o que deriva, desde logo, do texto do artigo 128.º, do C.P.P., que diz, no seu n.º l, que «a testemunha é inquirida sobre factos de que possua conhecimento directo...».

A regra é, pois, que o limite do depoimento da testemunha é aquilo que ela viu e/ou ouviu.

Como todos sabem, o que a lei pretende com a proibição do depoimento indirecto é que não se aceitem como prova depoimentos que se limitam a reproduzir o que se ouvir dizer.

Para que um tal depoimento seja valorado é essencial que seja confirmado pela pessoa que disse, confirmação que tem em vista a própria validade e eficácia do depoimento, já que o mérito de uma testemunha tem muito a ver com a razão de ciência da própria testemunha (excepção feita aos casos de impossibilidade superveniente de inquirição da pessoa indicada). No nosso caso, constatamos que os factos vertidos no libelo acusatório resultaram essencialmente daquilo que a menor C... contou às suas amigas J... e N... , tendo estas relatado tais factos às suas mães, respectivamente M... e O... , sendo certo que a menor C... se recusou a prestar declarações para memória futura, tendo no decurso da audiência de julgamento deixado de falar quando se apercebeu que as questões colocadas poderiam incidir sobre a responsabilidade criminal do seu pai. Em bom rigor, a menor C... recusou-se a depor como testemunha, o que a lei protege, nos termos e para os efeitos do art. 134.º/1 a) do CPP. A pergunta que se coloca é esta: é, então, admissível e poderá ser valorado o depoimento de testemunhas que reproduzem o que ouviram dizer à vítima de um crime, sendo certo que relativamente às mães das menores J... e N... , estamos inclusivamente perante um depoimento indirecto de segundo grau – conhecem aquilo que lhes foi transmitido pelas filhas, que por sua vez ouviram à vítima do crime?

Como é evidente, quando estão em causa direitos e garantias fundamentais do arguido, o juiz deve ser intransigente na sua defesa, cabendo-lhe assegurar que o processo seja justo, equitativo, transparente, o que passa por garantir o respeito por princípios fundamentais como sejam o da imediação e do contraditório.

Todavia, isso não significa que passe a ignorar finalidades primárias que o processo penal tem de prosseguir, como sejam a realização da justiça e a descoberta da verdade material, a tutela de direitos fundamentais das pessoas e o restabelecimento da paz jurídica e a reafirmação da norma jurídica violada.

Não podendo pretender-se que seja conseguida a qualquer preço, a busca da verdade material é, no processo penal, um dever ético e jurídico.

Com efeito, componente essencial do princípio do Estado de Direito é a ideia de justiça, a qual exige também a manutenção de uma administração de justiça capaz de funcionar, devendo reconhecer-se as necessidades irrenunciáveis de uma acção penal eficaz e acentuar-se o interesse público numa investigação da verdade, o mais completa possível, no processo penal, sendo o esclarecimento dos crimes graves tarefa essencial de uma comunidade orientada pelo aludido princípio. Acontece que o caso dos autos apresenta um aspecto, aliás já mencionado, que nos leva a afastar do princípio geral enunciado – as testemunhas transmitiram ao Tribunal o que lhes foi contado, em particular, pela vítima, sendo que esta, recorde-se, se recusou a depor, tanto em declarações para memória futura, como em julgamento relativamente aos factos que poderiam incriminar o pai.

Sempre que se verifique a existência de uma tensão entre princípios e interesses fundamentais potencialmente conflituantes, há que procurar a sua harmonização, sem embargo de, em último caso, ter que se dar prevalência a um deles.

Por ter interesse directo para a questão ora em causa, e por aderirmos integralmente ao aí exposto, passamos a citar o Acórdão do TRE, de 3/6/2008, Processo n-º 1999/07-1, relatado pelo Exmo. Desembargador António Latas, in www.dgsi.pt/jtre:

“Ao conferir à testemunha parente ou afim do arguido o direito de recusar-se a depor, contrariando o dever geral de depor sob pena de responsabilidade criminal cominado nos arts 132º nº1 d) do CPP e 360º nº2 do C.Penal, o legislador estabeleceu uma clara limitação ao interesse na descoberta da verdade em nome da prevalência de outros direitos relativos a bens jurídicos que considerou mais valiosos, em termos que correspondem à matriz das chamadas proibições relativas, pois a lei processual parte da admissibilidade daqueles depoimentos.

Com base no regime positivo e na análise de preceitos próximos, podemos afirmar que é dúplice o fim de protecção da norma contida no art. 134º do CPP, com que se justifica o sacrifício da descoberta de material probatório.

Por um lado, a lei pretenderá (1) evitar o conflito de consciência que resultaria para a testemunha de poder contribuir para a condenação de um seu familiar ao cumprir o dever legal de falar com verdade; por outro lado, terá pretendido o legislador (2) salvaguardar as relações de confiança e solidariedade no seio da instituição familiar.

Comentando o entendimento tradicional no doutrina e jurisprudência alemãs a propósito do § 52 do StPO (“Direito de recusar o testemunho por motivos pessoais”), Costa Andrade cita um autor alemão (GRÜNWALD), para quem o regime ali estabelecido (idêntico ao acolhido no art. 134º do nosso CPP), obedece à “ideia de que ninguém deve ver-se obrigado a contribuir para levar os seus familiares à prisão” a que acresce a “necessidade que a pessoa tem de confiar nos seus parentes mais próximos, sem ter de recear que o Estado a obrigue a depor contra eles. Nesta medida – prossegue o autor alemão, na citação de C. Andrade – protege-se também o interesse da comunidade na existência de relações de confiança entre membros da mesma família. Também para A. Medina de Seiça, “Com o reconhecimento do direito de recusa pertencente aos familiares, a lei não só pretendeu evitar o conflito de consciência que resultaria para a testemunha caso tivesse de responder com verdade sobre os factos imputados a um familiar seu. Pretendeu, ainda e sobretudo, proteger as «relações de confiança essenciais à instituição familiar»” .

O legislador processual penal reconhece, pois, o primado de interesses e bens jurídicos que colidem com o interesse na descoberta da verdade, de que são titulares pessoas diversas do arguido (in casu as testemunhas), de cujo consentimento faz depender a sua contribuição para a descoberta da verdade, para além de interesses inerentes à da teia de relações de solidariedade e confiança que a instituição familiar oferece.

É claro que pode questionar-se a adequação da amplitude e rigidez do direito de recusa no actual quadro das relações pessoais e familiares e mesmo face à relevância crescente que no processo penal assume o eixo de distinção do tratamento jurídico processual da pequena e média criminalidade, por um lado, e da criminalidade grave e complexa, por outro.

Todavia, não obstante as reformas introduzidas no Código de Processo Penal desde a sua entrada em vigor (1988), apenas a recente Lei 48/2007 de 29 de Agosto alterou o art. 134º do CPP e em sentido contrário à sua restrição (eventualmente justificada), pois alargou o direito de recusa aos que coabitam com pessoa do mesmo sexo mantendo-se, no mais, a versão originária de 1987, nomeadamente quanto aos seguintes aspectos:

- todos os afins até ao 2º grau mantém o direito de recusa conferido aos descendentes, ascendentes e irmãos;

- nunca há lugar a ponderação concreta (contrariamente ao que sucede com o segredo profissional - cfr art. 135.º CPP) entre o direito de recusa e o interesse na descoberta da verdade, quer em função da proximidade do laço familiar, quer da gravidade do crime, ou outro factor considerado relevante.

Assim sendo, de iure condito é reconhecido à testemunha o direito, estabelecido de forma abstracta e potestativa, de recusar-se a depor contra afim até ao 2º grau, em nome de um direito próprio a evitar o conflito pessoal provocado por tal situação e em nome da salvaguarda das relações de confiança e solidariedade no seio da instituição familiar, tal como avaliadas pelo legislador ordinário, ainda que por referência à protecção constitucional da família presente, v.g., no art. 67º da CRP.”

Assim sendo, em síntese, não podem ser considerados válidos os depoimentos indirectos prestados na sequência do que a menor C... contou às suas amigas e que por estas foi reproduzido junto da comunidade escolar e das suas mães, pois, por um lado, não estão abrangidos nas excepções previstas no artigo 129.º, do Código Penal, e, por outro, a testemunha, a quem ouviram a descrição dos factos que deram origem aos presentes autos, se recusou a depor. A este propósito e para exaurir a questão em definitivo, importa ainda dizer que dos relatórios médico-legais não resulta que a menor C... sofra de qualquer anomalia psíquica superveniente, revela sofrimento e angústia, mas capacidade para, assim quisesse, prestar testemunho sobre os factos narrados na acusação.

Esta solução, ainda que possa causar uma certa perplexidade no cidadão comum, é aquela que se mostra conforme àquilo que o legislador pretendeu acautelar (ver acórdão acabado de citar).

Concluindo, o depoimento indirecto não é admissível, e, portanto, não pode ser valorado, se o depoimento da testemunha originária, apesar de ser possível, não tiver sido realizado, isto é, quando a testemunha originária não depôs porque não foi chamada a tribunal ou porque se recusou a depor.

Por outro lado, o art. 356.º/7 do CPP também veda o aproveitamento em julgamento de conversas informais havidas, antes ou depois da abertura formal do inquérito, entre os agentes policiais e quaisquer testemunhas ou declarantes, ainda que estas pessoas venham a falecer posteriormente ou a padecer de anomalia psíquica superveniente ou seja possível localizá-las.

Em síntese, o depoimento dos agentes policiais está sujeito a um regime diferente de quaisquer outras testemunhas, em virtude da proibição legal dos arts. 356.º/7 e 357.º/2. Esta proibição veda o aproveitamento na audiência do depoimento do agente policial sobre declarações que ouviu dos suspeitos, arguidos, testemunhas, assistentes, ofendidos, partes civis, lesados ou quaisquer outros declarantes, quer elas tenham sido feitas antes ou depois da abertura formal do inquérito, quer o agente policial venha a ser instrutor do inquérito ou não. A única excepção a esta regra tolerada pela proibição legal dos arts. 356.º/7 e 357.º/2 é a do depoimento do agente policial quando depõe sobre as declarações que ouviu fazer durante a prática da actividade criminosa. Esta, e só esta, é uma prova directa do facto criminoso inteiramente lícita.

E a ser assim, todas as conversas informais recolhidas pela inspectora P... e que constam nos autos e surgem reproduzidas na acusação, não poderão ser valoradas, evidentemente.

A restante prova é meramente circunstancial e a mesma, desacompanhada da prova que foi desatendida nos termos mencionados supra, não é susceptível de suportar uma condenação de natureza penal, já que dela não se infere, sem mais, o cometimento pelo arguido, dos crimes de que vinha acusado.

Não sendo válida a prova agora em causa, na falta de testemunhas presenciais, não é possível dar como provado que o arguido praticou os factos a ele imputados relativamente à sua filha C... , daí sendo de extrair a necessária consequência legal (absolvição do arguido).

Quanto ao recorrente sintetiza a sua discordância e a tese da possibilidade de valoração de tais depoimentos no seguinte:

(...)  contrariamente  ao  que  o  douto  Colectivo  de  Juízes  veio  a  considerar,  a  menor  C...   não  se  recusou  a  depor.  Foi  chamada  a  depor  e  até  depôs  sobre  factos  objecto  do  processo,  sendo  certo  que,  para  desaparecer  a  proibição  de  valoração  de  depoimento  indirecto  -  cuja  razão  de  ciência  radicasse  naquele  testemunho  -  bastaria  que  a  mencionada  ofendida  houvesse  sido  chamada  a  depor  -  neste  sentido, o  Acórdão  do  TRC,  de  26  de  Novembro  de  2008,  proferido  no  Proc.  n.º  27/05.6GDFND.Cl,  disponível  em  www.dgsi.pt.

No  entanto  e  mesmo  na  perspectiva  do  entendimento  do  douto  Colectivo  de  Juízes  (de  que  não  teria  havido  prestação  de  depoimento),  padecendo  a  criança  ofendida  de  uma  afectação  psico-afectiva  grave,  passível  de  ser  enquadrada  no  apontado  conceito  alargado  de  anomalia  psíquica,  sempre  se  estaria  perante  uma  das  excepções  que,  nos  termos  do  citado  artigo  129°,  n.º  1,  dispensaria  o  depoimento  da  menor,  podendo  e  devendo  o  testemunho  de  quem  a  ouviu  ser  legalmente  admitido  e,  como  meio  de  prova,  devidamente  valorado.

Salvo  melhor  entendimento,  o  disposto  nos  artigos  356°,  n.º  7,  e  357°,  n.º  2,  do  CPP,  não  tem  aplicação  no  caso  destes  autos.  Conforme  Acórdão  do  STJ,  de  15  de  Fevereiro,  proferido  no  Proc.  n.º  06P4593  [disponível  em  www.dgsi.pt]  e  além  da  "conversa  informal"  não  haver  sido  mantida  com  um  arguido,  tudo  se  passa  no  plano  da  recolha  de  indícios  de  uma  infracção  de  que  o  OPC  acaba  de  ter  notícia,  nada  legalmente  obstando  a  que,  no  seu  depoimento,  em  audiência  de  julgamento,  o  agente  de  autoridade  até  pudesse  relatar  o  conteúdo  de  diligências  de  investigação  e,  concretamente,  o  conteúdo  dessa  conversa.

As posições em confronto reflectem aliás discordância bem presente na jurisprudência desde logo neste Tribunal em que se contrapõem os acórdãos 7.10.2015 relatado pelo Exmº Desembargador Vasques Osório (admitindo a valoração do depoimento indirecto quando a testemunha de que se ouviu dizer recusa depor validamente) e de 19.9.2012, relatado pelo Exmº Desembargador Eduardo Martins, ora Adjunto (em sentido contrário) ambos publicados em www.dgsi.pt ou na Relação de Évora em que se confrontam o acórdão citado na decisão recorrida e o acórdão de 5.6.2015, relatado pelo Exmº Desembargador Pedro Vaz Pato, ambos publicados no mesmo sítio.

Começando pelo texto legal que versa sobre o depoimento indirecto; artigo 129º do Código de Processo Penal, ele é do seguinte teor:

l - Se o depoimento resultar do que se ouviu dizer a pessoas determinadas, o juiz pode chamar estas a depor. Se o não fizer, o depoimento produzido não pode, naquela parte, servir como meio de prova, salvo se a inquirição das pessoas indicadas não for possível por morte, anomalia psíquica superveniente ou impossibilidade de serem encontradas.

2 - O disposto no número anterior aplica-se ao caso em que o depoimento resultar da leitura de documento de autoria de pessoa diversa da testemunha.

3 - Não pode, em caso algum, servir como meio de prova o depoimento de quem recusar ou não estiver em condições de indicar a pessoa ou a fonte através das quais tomou conhecimento dos factos.

A interpretação deste preceito terá de ser articulada, antes de mais, com o disposto no artigo 128º, nº 1 do CPP que define a regra de que “a testemunha é inquirida sobre factos de que possua conhecimento directo e que constituam objecto da prova”.

O artigo 129º contém excepções a esta regra. A primeira que é total, no sentido de que o depoimento indirecto pode servir como meio de prova se a inquirição da pessoa de que se ouviu dizer não for possível por morte, anomalia psíquica superveniente ou impossibilidade de ser encontrada. A segunda, no pressuposto de que a inquirição é possível e a testemunha foi chamada a depor.

As diferentes interpretações a que conduz a leitura do preceito resultam certamente da sua redacção não inteiramente clara porque a propósito da primeira excepção de validade do depoimento de ouvir dizer utiliza a expressão “inquirição não possível” e a propósito da segunda excepção utiliza a expressão “chamar estas a depor”.

Ou seja, na segunda excepção elencada, a interpretação meramente literal do preceito levaria à conclusão de que o depoimento indirecto apenas não seria válido se a pessoa de que se ouviu dizer não fosse chamada, sendo sempre válido quando o fosse, independentemente de esta prestar ou não depoimento.

Certo é que então não faria sentido no primeiro segmento excepcional mencionado (segundo da norma) apelar à impossibilidade de inquirição e não apenas à impossibilidade de chamar a testemunha a depor.

Não cremos, porém, que a utilização das palavras inquirição não possível por morte, anomalia psíquica ou impossibilidade de a testemunha ser encontrada para densificar as situações em que o depoimento indirecto é válido seja apenas casual e fruto de menor rigor de linguagem.

Antes concluímos que em todas as situações em que a testemunha é chamada a depor e, no entanto, não presta depoimento, estando em condições de o fazer, o depoimento indirecto não pode ser considerado válido.

Mas vejamos. O principio fundamental que determina a regra de que a prova testemunhal deve ser directa e incidir apenas sobre factos de que a testemunha tenha conhecimento pessoal porque a eles assistiu é o do contraditório que deriva directamente da noção que se tenha do processo equitativo e das suas implicações em processo penal. No horizonte do legislador e do intérprete estará sempre o equacionamento destes princípios em confronto com as necessidades da acção penal e de perseguição criminal, conflito de interesses difícil de dirimir (cfr. artigo 18º, nº 2 da CRP) e que se ressume a questionar até que ponto o direito de contradizer do arguido pode de alguma forma ser comprimido em nome da necessidade colectiva de perseguição criminal e em que medida essa compressão não pode desvirtuar a finalidade do processo que é um meio através do qual se pretende alcançar a justiça (assim também expôs o Tribunal a quo).

No equacionar deste conflito não será despiciendo acentuar que o Tribunal Europeu dos Direitos do Homem vem produzindo jurisprudência no sentido de que a valoração de depoimentos indirectos como único meio de prova para alcançar a condenação viola o disposto no artigo 6º, nº 1 da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, na dimensão em que exige que o processo seja equitativo e 6º, nº 3 ,alínea d) que exige que o arguido possa interrogar as testemunhas de acusação, o que no seu entender só se alcançará com o interrogatório da testemunha de que se ouviu dizer. É o caso do acórdão P.S. versus Alemanha de 20.12.2001 que pode ser consultado no site do Gabinete de Documentação e Direito Comparado (www.gddc.pt) ou na base de dados do próprio TEDH (http://hudoc.echr.coe.int/eng#{"documentcollectionid2":["GRANDCHAMBER","CHAMBER"]}). E trata-se de caso em que vítima de ofensa sexual nunca foi ouvida no decurso do processo, baseando-se a condenação do Tribunal Alemão no depoimento de agentes policiais que ouviram relato da vítima logo após a prática do crime (citado por Paulo Pinto de Albuquerque no seu Comentário do Código de Processo Penal em anotação ao artigo 129º).

Claro que neste caso a vítima não foi sequer chamada a depor, mas nada de substancial muda em termos do que o TEDH considera “a fair trial – processo justo” que impõe que o arguido em alguma medida tenha tido a oportunidade de contraditar no julgamento, ou em momento anterior, o depoimento directo, o que impunha que tivesse sido prestado.

Não só o artigo 6º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem vigora na ordem jurídica interna por ter sido ratificada por Portugal como a própria Constituição da República consagra princípios semelhantes nos artigos 20º, nº 4 (exigência de que o processo seja equitativo) e 32º, nºs 1 e 5 (exigência de que o processo penal, nomeadamente na fase de julgamento, se subordine ao princípio do contraditório).

Paulo Pinto de Albuquerque no seu Comentário do CPP pronuncia-se no sentido de que o depoimento indirecto só é admissível se a testemunha de que se ouviu dizer prestar depoimento (salva a excepção do segundo segmento do artigo 129º de impossibilidade de ouvir a testemunha).

Quanto a nós e segundo a linha de pensamento que vislumbramos na interpretação efectuada pelo TEDH, não só se impõe concluir que o depoimento indirecto apenas é admissível se a testemunha de que se ouviu dizer for chamada a depor e prestar depoimento sobre os factos em causa, como pode ser questionada a conformidade constitucional da possibilidade de valoração do depoimento indirecto nos casos em que não é possível ouvir a testemunha de que se ouviu dizer, porque também neste caso se afronta do mesmo modo a noção de processo justo e equitativo que está na base da citada interpretação.

Sendo certo que a jurisprudência do TEDH não vincula neste caso (apenas nos casos de reenvio prejudicial para interpretação normativa) os Tribunais Portugueses, nem mesmo que o caso citado fosse em tudo semelhante ao presente, certo é que não deixa de ser um elemento interpretativo a ter em conta, até porque a assunção de decisão contra a sua jurisprudência pode fundamentar processo para condenação do Estado Português por violação da Convenção.

Retomando, porém, a nossa primeira linha de raciocínio com base exclusivamente no texto legal, sem, contudo, o desligar dos princípios que norteiam a configuração das normas jurídicas, entendemos que do próprio texto legal já resulta com alguma evidência que não basta chamar a testemunha de que se ouviu dizer a depor para que o depoimento de ouvir dizer possa ser valorado, necessário é também que a testemunha preste depoimento. De outro modo não se entenderia a referência à impossibilidade de inquirição para justificar a segunda excepção legal que permite a valoração do depoimento indirecto.

E para esta interpretação converge a densidade que deve ser dada ao princípio do processo equitativo e suas implicações na configuração do princípio do contraditório sem ofensa do artigo 6º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem.

Transportando a presente conclusão para o caso dos autos em que a ofendida, embora chamada para ser ouvida em audiência, prestou apenas declarações sobre factos não directamente relacionados com a acusação e sobre estes remeteu-se ao silêncio, a conclusão que se impõe é que os depoimentos das testemunhas que ouviram o relato dos factos da acusação da própria ofendida não podem ser valorados.

Aliás, acresce que sendo a ofendida filha do arguido, não estava obrigada a prestar depoimento – cfr. artigo 134º, nº 1, alínea a) do CPP – sendo indiferente como bem resulta do exposto se essa recusa foi ou não formal.

Não esqueceu o Tribunal a quo de salientar o fim de proteção de tal norma, pretendendo-se evitar o conflito de consciência que resultaria de o depoimento da testemunha poder contribuir para a condenação de um seu familiar e por outro lado salvaguardar as relações de confiança e solidariedade no seio da família, aceitando-se sacrificar nesses casos o interesse da descoberta da verdade. E se assim é, admitir nesses casos o depoimento de quem ouviu dizer seria, para além do mais, negar por outra via o que se pretendeu consagrar.

Ainda que se entendessem injustificados os primeiros argumentos sempre por este último haveria que concluir pela impossibilidade de valoração do depoimento indirecto quando a pessoa de quem se ouviu dizer se recusou a depor com o mencionado fundamento legal, sob pena de flagrante conflito entre o disposto no artigo 134º e o artigo 129º, nº 1, sendo suposto que as normas sejam complementares e não conflituantes (cfr. o Acórdão desta Relação acima citado de 19.9.2012).    

Na tese do recorrente ainda deviam os depoimentos indirectos ser valorados porque a ofendida não depôs em razão de anomalia psíquica superveniente e, portanto, ao abrigo da excepção legal do segundo segmento do artigo 129º.

Porém essa tese esbarra com a circunstância de a perícia realizada e incidente sobre a capacidade de a testemunha prestar depoimento ser expressa no sentido de que a tomada de decisão de não prestar depoimento pode ser consciente ou pode resultar de um bloqueio cognitivo emocional inconsciente, não concluindo, portanto, pela existência de afectação das faculdades mentais.

Saliente-se ainda que para nós são os mesmos argumentos legais que ditam que não possa ser usado como meio de prova quer o depoimento indirecto da inspectora da Polícia Judiciária quer das restantes testemunhas que ouviram o relato da ofendida (nisso se divergindo em relação ao que consta da decisão recorrida) porque em relação ao primeiro depoimento referido não é aplicável o regime do artigo 356º do CPP, cuja previsão se dirige a declarações como tal formalizadas no processo e não àquelas que tinham sido colhidas pela entidade policial informalmente, no âmbito da previsão do artigo 249º, nº 1 do CPP, ou seja, no âmbito da prática de actos cautelares necessários e urgentes para assegurar os meios de prova em acto seguido à notícia do crime, como ocorreu com a audição que a inspectora logo que teve notícia do crime efectuou à ofendida. Nada obstava a que tal fosse transmitido em audiência, não fora o facto de a ofendida não ter prestado declarações e de, por consequência, não poder relevar esse depoimento indirecto.

Pese embora a perplexidade que inquietou o Tribunal a quo e que nos inquieta, existirão sempre momentos em que o prosseguimento e defesa dos princípios legais que estão na base do Estado de direito conduzirão a resultados que possam considerar-se menos justos, mas que visam em última instância evitar que a justiça possa ser feita a qualquer preço e que esse preço inclua a possibilidade (eventualmente inversa à presente) de condenar inocentes, o que conforma de modo significante os pratos da balança do conflitos de interesses do artigo 18º, nº 2 da CRP em matéria de processo penal.

Se os dois depoimentos já referidos não podem ser valorados, menos ainda o da testemunha que não ouviu o relato dos factos directamente da ofendida mas de pessoa a quem a ofendida os havia relatado e que não cabe sequer na categoria legal de depoimento indirecto.

O recorrente impugnou a decisão proferida sobre matéria de facto pretendendo que sejam considerados provados os factos descritos na acusação e considerados como não provados relativos a práticas de sexo oral do arguido com a ofendida e a prática de outros actos sexuais de relevo do arguido, também com a ofendida, com a sua consequente condenação por dois crimes agravados de abuso sexual de criança.

No seu entender impõem decisão diversa da recorrida a conjugação dos seguintes meios de prova:

- o depoimento de M... , mãe da menor J... , sobre o que ouviu relatar à filha sobre os factos que vitimizaram a ofendida e sobre o relacionamento entre os pais da ofendida;

- o depoimento da inspectora P... sobre o que a ofendida lhe contou;

- o relatório da perícia médico-legal de observação psicológica da menor;

- os relatórios de psicologia subscritos pela Drª Q... e Prof. Doutora R... ;

- as declarações do arguido que não deixam de constituir uma admissão objectiva dos actos sexuais praticados com a filha.

Como decorre do anteriormente exposto são meios de prova proibidos e insusceptíveis de valoração os depoimentos da menor J... , da sua mãe M... e da inspectora P... na parte em que efectuaram relato dos factos da acusação por deles terem tido conhecimento através de relato que lhes foi feito pela ofendida (no caso da testemunha M... através da sua filha o que lhe confere a categoria de indirecto em segundo grau – categoria que a lei nem contempla).

Na impossibilidade de valoração desses meios de prova, na parte indirecta, fica sem qualquer suporte a possibilidade de imputação ao arguido dos actos concretos que vem descritos na acusação, incidindo a restante prova sobre aspectos circunstâncias que constituem meros indícios de eventual  abuso sexual mas que estão longe de o poder concretizar, como bem reflecte a decisão recorrida para cuja motivação remetemos nos termos do artigo 425º, nº 5 do Código de Processo Penal.

Cabe apenas  salientar que, ao contrário do recorrente, não podemos vislumbrar nas declarações do arguido admissão dos factos que lhe foram imputados porque, tal como consta expresso com rigor na motivação do Tribunal a quo, efectivamente negou a prática dos factos em audiência e apenas no primeiro interrogatório judicial tinha admitido ter feito qualquer coisa à menor como resultado de ter o sono pesado e a filha ter por hábito deitar-se na sua cama, declaração de conteúdo vago que não corresponde efectivamente à admissão da prática dos concretos actos imputados.

Por consequência, importa manter a decisão de facto do tribunal a quo e a decisão de direito no sentido da absolvição do arguido.


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IV. Decisão

Nestes termos acordam em negar provimento ao recurso interposto pelo Ministério Público e, em consequência, manter integralmente o douto acórdão recorrido.

Não há lugar a custas em razão do recurso por delas estar isento o recorrente.


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Coimbra, 20 de Abril de 2016 

(Texto elaborado e revisto pela relatora; a primeira signatária)

(Maria Pilar de Oliveira - relatora)

(José Eduardo Martins - adjunto)