Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
57/09.9GBSCD-B.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ABÍLIO RAMALHO
Descritores: RECUSA
MOTIVO
REQUISITOS
INCIDENTE
FUNDAMENTAÇÃO
REJEIÇÃO
Data do Acordão: 02/15/2012
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: 1.º J.º DO T. J. DE SANTA COMBA DÃO
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: REJEIÇÃO
Legislação Nacional: ARTIGOS 32º Nº 9 CRP, 43º E 45º CPP
Sumário: 1.- A intervenção de um juiz no processo pode ser recusada ou escusada quando houver considerável risco de ser considerada suspeita, por existir motivo sério e grave adequado a gerar desconfiança sobre a sua imparcialidade;

2.- A seriedade e gravidade do motivo ou motivos causadores do sentimento de desconfiança sobre a imparcialidade do juiz devem ser apreciadas num plano objetivo, de acordo com o senso e a experiência comuns.

3.- Repetindo o requerente a argumentação expendida em anterior incidente de recusa da mesma Ex.ma magistrada judicial, que foi objeto de indeferimento, impõe-se a sua rejeição, por manifestamente ilegal e infundado.

Decisão Texto Integral: I – INTRODUÇÃO


         1 – Pela segunda vez no espaço temporal de um ano e três meses, as cidadãs A... e B..., assistentes processuais no âmbito do processo criminal n.º (nuipc) 57/09.9GBSCD, do 1.º Juízo do Tribunal Judicial da comarca de ... – de que este é incidental, de natureza urgente (posto ter por objecto a indagação/responsabilização de/por indiciado comportamento típico-criminal de violência doméstica, entre outros –, respectivamente ex-cônjuge e filha do cidadão aí arguido C..., pelo seu Ex.mo mandatário, advogado D...[1], também aí sujeito processual, na qualidade de demandante cível, peticionam o afastamento da Ex.ma Juíza de Círculo (do Círculo Judicial de …) F... da incumbência legal de presidência do órgão colegial Tribunal Colectivo convocado para a realização do referente julgamento – já sucessivamente projectado para 21/10/2010 e 23/01/2012, e entretanto desmarcado por efeito de tais incidências –, repetindo argumentação expendida no anterior incidente de recusa da mesma Ex.ma magistrada judicial[2], (vide, máxime, fls. 42/52), pretensamente significante da respectiva suspeição de comprometimento da sua imparcialidade na concernente resolução, essencialmente fundada em alegado azedume relacional-funcional entre o senhor advogado da própria peça (de recusa) signatário e a id.ª Juíza de Círculo, originado/criado no âmbito de distinto processo civilístico [Acção Ordinária n.º 445/04.1TBSCD, do 1.º J.º do T. J. de ..., julgada já na longínqua época de meados de 2006 (!), cuja decisão foi, aliás, essencial/nuclearmente confirmada por acórdão desta Relação de 15/04/2008, (junto por cópia a fls. 334/342)] que, sendo-lhes (a si, assistentes) estranho, aquele Ex.mo causídico teve como mandatário duma das respectivas partes[3], e de cujo desenvolvimento resultou uma participação da mesma Ex.ma Juíza à Ordem dos Advogados e decorrente instauração de processo disciplinar ao próprio advogado D..., (vide peça processual de fls. 2/27, cujos dizeres nesta sede se têm por reproduzidos).

2 – A visada magistrada exerceu o direito conferido pelo n.º 3 do art.º 45.º do CPP, confirmando – como havia feito no anterior incidente de recusa –, no que ora importa, o desconhecimento pessoal/funcional de qualquer das id.as requerentes, e esclarecendo haver pautado o próprio desempenho no âmbito do referido (e há muito julgado) processo-cível por estritos critérios de objectiva observância da pertinente legalidade, (vide peça de fls. 270/273, cujo conteúdo identicamente se tem por integrado).


II – AVALIAÇÃO


1 – De harmonia com o princípio do juiz natural consagrado na Constituição (art.º 32.º, n.º 9), nenhuma causa pode ser subtraída ao tribunal cuja competência esteja fixada em lei anterior.

Porém, em conformidade com o postulado nos ns. 1, 2 e 4 do 43.º normativo do CPP, a intervenção de um juiz no processo pode ser recusada ou escusada quando houver considerável risco de ser considerada suspeita, por existir motivo sério e grave adequado a gerar desconfiança sobre a sua imparcialidade, que, a par da própria independência, constitui exigência constitucional, (cfr. arts. 203.º e 216.º, da CRP).
A organização judiciária está estruturada na busca da independência dos juízes e tutela do direito de defesa em ordem a assegurar as máximas garantias de objectiva imparcialidade da jurisdição.
Quando a imparcialidade da jurisdição possa ser posta em causa, em razão da ligação do juiz com o processo ou porque nele já teve intervenção noutra qualidade ou porque tem qualquer relação com os intervenientes que faça legitimamente suspeitar da sua imparcialidade, há necessidade de o afastar do processo[4].

O direito a que uma causa seja decidida por um tribunal imparcial está expressamente consagrado na Convenção Europeia dos Direitos do Homem (art.º 6.º, §1.º).

A jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem vem no sentido de a imparcialidade dever ser apreciada segundo critérios subjectivos e objectivos. No primeiro caso, a questão circunscreve-se a saber se a convicção pessoal do julgador, em dada ocasião, oferece garantias suficientes para excluir qualquer dúvida legítima; no segundo, se independentemente da atitude pessoal do juiz, certos factos verificáveis autorizam a suspeitar da sua imparcialidade[5].
Dominam aqui as aparências, que podem afectar, não rigorosamente a boa justiça, mas a compreensão externa sobre a garantia da boa justiça que seja, mas também pareça ser. […]. A gravidade e a seriedade do motivo hão-de revelar-se, assim, por modo prospectivo e externo, e de tal sorte […] que um homem médio colocado na posição do destinatário da decisão possa razoavelmente pensar que a massa crítica das posições relativas do magistrado e da conformação concreta da situação, vistas pelo lado do processo, ou pelo lado dos sujeitos, seja de molde a suscitar dúvidas ou apreensões quanto à existência de algum prejuízo ou preconceito do juiz sobre a matéria da causa ou sobre a posição do destinatário da decisão[6].

Deste modo, a seriedade e a gravidade do motivo causador do sentimento de desconfiança sobre a imparcialidade do juiz, necessariamente correlacionado com a comprovada existência dalgum seu caracterizado preconceito ou pressuposição acerca da matéria da causa ou da posição do destinatário da decisão, devem ser apreciadas num plano objectivo, de acordo com o senso e a experiência comuns.

2 – Todavia, no avaliando contexto, para além de nenhum objectivo circunstancialismo indiciariamente representativo de qualquer ponderável ligação vivencial, intelectual, emocional, afectiva ou doutra qualquer significativa natureza, entre a id.ª Ex.ma Juíza de Círculo e alguma – ou todas – as pessoas ora assistentes-requerentes e/ou arguido, e/ou com o concreto retalho-de-vida em causa no referido processo-crime, empírica/inescapavelmente dotada de virtual/potencial adequação ao comummente convergente sentimento de desconfiança de comprometimento do seu (dela, Juíza de Círculo) distanciamento e objectividade na condução do realizando julgamento e no sequente compartilhamento sufragário no respectivo acto deliberativo[7] haver sido minimamente alegado ou sequer aflorado – a tanto obviamente irrelevando os supostos incómodos intelectivos/emocionais/egóicos/jurídico-disciplinares alegadamente contraídos pelo Sr. advogado D... no decurso e na sequência do convocado processo-cível (n.º 445/04.1TBSCD, do 1.º J.º do T. J. de ...), atinente a distintos sujeitos, que, no limite, apenas hipoteticamente, num plano de mera abstracção filosófico-académica, com o seu estatuto e interesse jurídico-processual de demandante cível no ora referenciado processo-crime contenderiam (!) –, representa-se da desconcertante reiteração da mesma fundamentação já anteriormente apreciada e negativamente valorada por esta Relação (por acórdão de 30/03/2011)[8], e, como tal, no plano jurídico-processual definitivamente definida e ultrapassada por caso-julgado-formal, (cfr. art.º 672.º do C. P. Civil, aplicável por força do comando ínsito no art.º 4.º do C. P. Penal), uma assaz censurável e despudorada desonestidade (má-fé) procedimental – quiçá caprichosa e ardilosamente empreendida/materializada no intuito do consequente aproveitamento processual da álea da distribuição processual e de hipotética/virtual incúria/distracção do novo relator ou colégio julgador[9] –, com incontornáveis efeitos de intolerável e grave obstrução ou retardamento da urgente realização da justiça do caso concreto, postulada, máxime, pelo art.º 28.º da Lei n.º 112/2009, de 16/09[10].

3 – Por conseguinte, apresentando-se o avaliando incidente de recusa como axiomaticamente ilegal, por inquestionável/frontalmente desrespeitar anterior acto deliberativo (acórdão) deste Tribunal da Relação de Coimbra – para além de manifestamente infundado – impor-se-á a respectiva rejeição e o rigoroso/enérgico sancionamento das id.as requerentes, em conformidade com a estatuição normativa ínsita nos ns. 4 e 7 do art.º 45.º do Código de Processo Penal.

4 – Doutra sorte, indiciando-se bastantemente – na perspectiva deste órgão colegial – censurável comportamento infraccional-disciplinar do Ex.mo advogado D... no ilícito e infundado desencadeamento deste renovado incidente processual de recusa da Ex.ma Juíza de Círculo F…, e por consequência, no decorrentemente escusado, ilegal e sobremaneira gravoso protelamento da realização do julgamento do enunciado processo criminal[11], de natureza urgente, n.º 57/09.9GBSCD, do 1.º Juízo do T. J. da comarca de ..., por atropelo aos respectivos deveres estatutários prevenidos sob os arts. 82.º, máxime n.º 2, (mormente de honestidade, probidade, rectidão, lealdade, sinceridade)[12]; 85.º, ns. 1 e 2, al. a), (dever de propugnação pela boa aplicação das leis e pela rápida administração da justiça, e de abstenção do exercício da advocacia contra o direito, com uso de meios ou de expedientes ilegais, ou pela promoção de diligências dilatórias, inúteis ou prejudiciais para a correcta aplicação de lei)[13]; 103.º, n.º 1, (dever de actuação com diligência e lealdade na condução do processo)[14] e 105.º, n.º 1, (dever de conformação do exercício do patrocínio dentro dos limites da lei)[15], todos do Estatuto da Ordem dos Advogados (E.O.A.), aprovado pela Lei n.º 15/2005, de 26 de Janeiro, com as alterações introduzidas pelo D.L. n.º 226/2008, de 20/11, e pela Lei n.º 12/2010, de 25/06, com vista à sua eventual e pertinente responsabilização, demanda-se – em cumprimento do comando imperativo estabelecido no art.º 116.º, n.º 1, do referido E.O.A.[16]. – a respectiva participação ao Conselho de Deontologia do Conselho Distrital de Coimbra da Ordem dos Advogados, órgão para o efeito legalmente competente, [cfr. art.º 54.º, al. a), do E.O.A.].


III – DISPOSITIVO


         Destarte – sem outros considerandos, por inócuos –, o órgão colegial judicial reunido para o efeito em conferência neste Tribunal da Relação de Coimbra delibera:

1 – A rejeição, por manifestamente ilegal e infundado, do avaliando incidente de recusa de intervenção da Ex.ma Juíza de Círculo (do Círculo Judicial de …) F... no julgamento a realizar no âmbito do processo criminal (comum-colectivo) n.º (nuipc) 57/09.9GBSCD, do 1.º Juízo do Tribunal Judicial da comarca de ....

2 – A condenação de cada uma das id.as requerentes A... e B..., a título sancionatório, em conformidade com o comando normativo ínsito no n.º 7 do art.º 45.º do Código de Processo Penal, ao pagamento da importância pecuniária equivalente a 20 (vinte) UC.

3 – A determinação de imediato envio de certidão deste aresto, bem como das peças de fls. 2/27 e 42/52, ao Conselho de Deontologia do Conselho Distrital de Coimbra da Ordem dos Advogados, para os efeitos tidos por convenientes.

4 – A determinação de imediata entrega de certidão deste mesmo acórdão ao Ex.mo Presidente deste Tribunal da Relação de Coimbra, a quem respeitosamente se sugere que, caso o tenha por pertinente, visando alertar todos os Ex.mos desembargadores afectos e em serviço nas duas respectivas Secções Criminais para a hipotética renovação de similar procedimento incidental, providencie pela correspondente circulação do respectivo conteúdo.


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Abílio Ramalho( relator)

        

Luís Ramos


[1] Titular da cédula profissional n.º 3651C, (inscrito na Ordem dos Advogados desde 12/02/1997).
[2] Subordinado ao Proc. n.º 228/10.5YRCBR-C1, desta Relação, de cujo acórdão denegatório, de 30/03/2011, relatado pela Ex.ma desembargadora Alice Santos, entretanto nos inteirámos.
[3] Autora Maria José Osório Loureiro Albuquerque Gaspar.
[4] Prof. Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, I, Ed. Verbo, 2008, pág. 215, (com realces do ora relator).
[5] Ac. do STJ, de 06/11/1996, in CJ-STJ, Tomo 3, pág. 190.
[6] Ac. do STJ, de 13/04/2005, (relatado pelo Ex.mo Conselheiro Henriques Gaspar), disponível em www.dgsi.pt/jstj, (com realces do ora relator).
[7] Cujo processo interno de formação da respectiva resolução consabidamente – pelo menos de presumível conhecimento de qualquer jurista – assume natureza abstracto-normativa, impessoal e supra-individual, relativamente à vontade de cada um dos membros do respectivo órgão colegial (tribunal de júri ou tribunal colectivo, no caso), cuja pessoal opinião naturalmente nele (acto deliberativo) se diluirá, e cujo resultado haverá – acrítica e secretamente – que resultar do sufrágio previsto e disciplinado nos arts. 365.º, máxime ns. 3, 4 e 5, 367.º, 368.º e 369.º, designadamente, do C. P. Penal, em lógica decorrência, pois, do cômputo dos votos obtidos na pertinente deliberação sobre cada questão decidenda, que, óbvia e potencialmente, bem poderá condicionar solução distinta da eventualmente propugnada por algum dos individuais julgadores – inclusivamente do/a próprio/a presidente –, [rigorosamente vinculados ao dever de absoluto sigilo – quer sobre a própria opinião, quer quanto a qualquer espécie de debate acerca do sentido decisório das questões sub judice –, sob pena de incursão em responsabilização disciplinar e criminal, por violação de segredo de justiça, (cfr. citado art.º 367.º)].
[8] Vide anterior nota 2.
[9] Por insondáveis razões que à lógica jurídico-processual de todo escapam!
[10] Artigo 28.º (Celeridade processual)
1 - Os processos por crime de violência doméstica têm natureza urgente, ainda que não haja arguidos presos.
2 - A natureza urgente dos processos por crime de violência doméstica implica a aplicação do regime previsto no n.º 2 do artigo 103.º do Código de Processo Penal.
[11] Já por mais de 15 meses – desde, pelo menos, 21/10/2010, primeira data para o efeito projectada.
[12] Artigo 83.º
1 - O advogado é indispensável à administração da justiça e, como tal, deve ter um comportamento público e profissional adequado à dignidade e responsabilidades da função que exerce, cumprindo pontual e escrupulosamente os deveres consignados no presente Estatuto e todos aqueles que a lei, os usos, costumes e tradições profissionais lhe impõem.
2 - A honestidade, probidade, rectidão, lealdade, cortesia e sinceridade são obrigações profissionais.
[13] Artigo 85.º (Deveres para com a comunidade)
1 - O advogado está obrigado a defender os direitos, liberdades e garantias, a pugnar pela boa aplicação das leis, pela rápida administração da justiça e pelo aperfeiçoamento da cultura e instituições jurídicas.
2 - Em especial, constituem deveres do advogado para com a comunidade:
a) Não advogar contra o Direito, não usar de meios ou expedientes ilegais, nem promover diligências reconhecidamente dilatórias, inúteis ou prejudiciais para a correcta aplicação de lei ou a descoberta da verdade;
[…]
[14] Artigo 103.º (Dever de lealdade)
1 - O advogado deve, em qualquer circunstância, actuar com diligência e lealdade na condução do processo.
[…]
[15] Artigo 105.º (Dever de correcção)
1 - O advogado deve exercer o patrocínio dentro dos limites da lei […].
[…]


[16] Artigo 116.º (Participação pelos tribunais e outras entidades)
1 - Os tribunais e quaisquer autoridades devem dar conhecimento à Ordem dos Advogados de todos os factos susceptíveis de constituir infracção disciplinar praticados por advogados.
[…]