Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
329/10.0TBMGL-E.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: CARLOS MOREIRA
Descritores: INSOLVÊNCIA
PLANO DE INSOLVÊNCIA
SEGURANÇA SOCIAL
Data do Acordão: 10/25/2011
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: MANGUALDE - 2º J
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTS.194, 215, 216 CIRE, LEI Nº 110/2009 DE 16/9
Sumário: 1. Esclarecida, num dos dois sentidos possíveis, pelo próprio declarante, a dúvida suscitada pelos declaratários, o tribunal não pode, posteriormente, interpretar a declaração optando pelo sentido oposto.

2. O preenchimento da previsão da al. a) do nº1 do artº 216º do CIRE importa a alegação e demonstração, pelo credor, de factos atinentes não apenas à afectação do seu crédito pelo plano de insolvência, mas, outrossim, concernentes à sua previsível situação/afectação decorrente da liquidação universal do património do devedor segundo o modelo legal supletivo.

3. O plano de insolvência pode afectar os créditos da Segurança Social se tal for impetrado pelo insolvente/contribuinte e como pressuposto para permitir a sua viabilização económica – artº 190º nºs 1 e 2 al.a) dos Regimes Contributivos do Sistema Previdencial de Segurança Social, aprovado pela Lei n.º 110/2009 de 16 de Setembro.

Decisão Texto Integral: ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE COIMBRA

1.

A (…)e Filhos, Lda apresentou-se à insolvência tendo esta sido declarada.

No seguimento do processo foi pela devedora apresentado plano de insolvência.

O qual foi aprovado pela legal maioria dos credores.

2.

Após o que foi proferido despacho que, nos termos dos artºs 215º e 216º al. a) do CIRE, recusou a homologação do plano de insolvência.

3.

Inconformada recorreu a devedora:

Rematando as suas alegações com as seguintes conclusões:

I -  a  IX – Meramente descritivos.

X - O plano de insolvência aprovado não viola o princípio da igualdade contido no artigo 194º do CIRE.

XI - Conforme decorre das alterações ao plano de insolvência, que fazem expressa referência e salvaguardam o que estava contido na primeira proposta de plano apresentada em Julho de 2010, os credores comuns iriam ser pagos nos moldes constantes naquela primeira proposta, ao passo que os credores privilegiados iriam ser pagos nos moldes expressos naquelas alterações assim apresentadas.

XII - No que diz respeito aos seus créditos de natureza comum, o Instituto da Segurança Social, que é credor comum quanto a determinados créditos, recebê-los-á, de acordo com o plano aprovado, da mesma forma que o receberão os restantes credores comuns, em idêntica posição (conforme artigo 5º das alterações apresentadas ao plano de insolvência); ao passo que os créditos privilegiados que é detentor, ocupando quanto a eles posição de credor privilegiado, o Instituto da Segurança Social recebê-los-á, de acordo com o plano aprovado, da mesma forma que o receberão os restantes credores privilegiados (porque detentores de créditos privilegiados), em idêntica posição (conforme artigo 6º das alterações apresentadas ao plano de insolvência.

XIII - Nunca foi intenção da insolvente, nem isso decorre do plano que foi aprovado, conferir um tratamento diferenciado, no que diz respeito ao seu pagamento, a situações creditícias que estivessem em igualdade de posições.

XIV - Naquele artigo 6º estão incluídos os créditos privilegiados detidos pelo Instituto da Segurança Social e pelos trabalhadores e ainda pelo Estado.

XV - Naturalmente que ao referir-se, naquele artigo, a credores privilegiados a ora recorrente referia-se aos credores que ocupassem essa posição por deterem créditos privilegiados.

XVI - Credores privilegiados são os que detêm créditos privilegiados e na estrita medida dos mesmos e credores comuns são os que detêm créditos comuns e na estrita medida dos mesmos.

XVII - Não é pelo facto do Instituto de Segurança Social deter uma parte de créditos privilegiados e de créditos comuns que aquela posição se sobrepõe a esta, por forma a que aquele Instituto se passe a considerar credor privilegiado em todo o seu crédito reclamado, sem qualquer distinção dentro do mesmo.

XVIII - E tanto assim se pode concluir que na última alínea do mesmo artigo 6º se faz referência aos créditos dos trabalhadores, querendo isso significar que o âmbito deste artigo 6º não se restringia a um pretenso crédito global do Instituto da Segurança Social.

XIX - Só por mero lapso não se referiu expressamente em determinada alínea do referido artigo 6º que a data de vencimento da primeira prestação do pagamento dos créditos privilegiados dos trabalhadores era igual à do Instituto da Segurança Social e de quaisquer outros créditos que fossem privilegiados,

XX- Pelo que, sempre fazendo jus a uma interpretação global do plano da insolvência, se deverá considerar que na alínea do artigo 6º referente ao pagamento da primeira prestação se encontram englobados os créditos dos trabalhadores e outros créditos privilegiados.

XXI - Poderíamos fazer a graduação dos créditos dos autos, quanto aos bens móveis apreendidos (onde se incluem o direito ao arrendamento e trespasse do estabelecimento, segundo jurisprudência) da seguinte forma:

1. Os créditos dos trabalhadores, que beneficiem de privilégio mobiliário geral (artigo 333º Cód. Trabalho);

2. Os créditos do estado que beneficiem de privilégio mobiliário geral;

3. O crédito do Instituto de Segurança Social que beneficie de privilégio mobiliário geral;

4. Os créditos comuns, na proporção dos seus créditos, se a massa for insuficiente para a respectiva satisfação integral (artigo 176º CIRE);

5. Os créditos subordinados, pela ordem prevista no artigo 48º CIRE, na proporção dos respectivos montantes, quanto aos que constem na mesma alínea (artigo 177º/1 CIRE).

XXII - Pelas disposições do CIRE e de acordo com a ordem também estabelecida no Cód. Civil (que estabelece quais o privilégios mobiliários e imobiliários) e em legislação avulsa que estabelece a existência de outros daqueles privilégios, será esta a ordem dos pagamentos a efectuar pelos credores da insolvência, de acordo e respeitando a sua diferente natureza.

XXIII - Foi tendo em conta esta diferente natureza, que acima se deixou exposta, que se elaborou o plano de insolvência que veio a ser aprovado nos presentes autos, composto pela primeira proposta apresentada em Julho de 2010 e as suas posteriores alterações, tendo iguais créditos recebido igual tratamento.

XXIV - E aquela diferente natureza, pelas próprias designações e conceitos inerentes aos diferentes créditos, não se altera através do recurso a uma qualquer teoria de impressão do destinatário, como fez o tribunal a quo.

XXV - A qualificação de um credor como privilegiado, comum ou subordinado depende do crédito que o mesmo detém, e, repete-se, não é um só desses créditos, por uma qualquer consumpção, que não existe, que determinará uma designação unitária desse credor.

XXVI - O plano de insolvência, aparece, assim, como um meio de auto-regulação de interesses, competindo aos credores decidir se o pagamento se obterá por meio da liquidação universal do património do devedor, a realizar de acordo com o modelo supletivo definido no CIRE, e consequente repartição do produto obtido pelos credores, ou pela forma prevista no plano de insolvência, caso o mesmo venha a ser aprovado.

XXVII - Para além daquele fundamento, apontado pelo tribunal a quo, assente na violação, pelo plano de insolvência, do princípio da igualdade de credores, mais diz o tribunal a quo que a posição da Caixa ... (circunstância por esta invocada no requerimento onde suscita a questão da recusa de homologação do plano) no plano é-lhe menos favorável do que aquela que resulta da ausência de qualquer plano, ou seja, com a homologação do plano a Caixa perderá metade do seu crédito de capital; sem o plano, o seu crédito mantém-se incólume, pelo que, diz o tribunal a quo, recusa a homologação do plano nos termos do disposto no artigo 216º/1, a) CIRE.

XXVIII - A Caixa ..., no requerimento onde suscita a questão, não demonstrou em termos plausíveis que a sua situação ao abrigo do plano de insolvência é previsivelmente menos favorável do que a que interviria na ausência de qualquer plano.

XXIX - A prova de eventualidade de ocorrência da circunstância referida naquela alínea a) do n.º 1 do artigo 216º CIRE pressupõe necessariamente um exercício intelectual de prognose, que se traduz em comparar o que é previsto resultar do plano para o credor reclamante com aquilo que aconteceria na ausência de qualquer plano e, portanto, no caso de se concretizar a liquidação universal do património do devedor, segundo o modelo legal supletivo.

XXX – Atente-se no património existente da insolvente e apurado nos autos, composto unicamente por bens móveis e pelo direito ao arrendamento e trespasse do estabelecimento, tendo lhes sido atribuído o valor de €7.176,00 e de €5.000,00 e facilmente se pode concluir tendo em conta o total dos créditos reconhecidos nos autos, que aquele património, manifesta e clamorosamente, é insuficiente para satisfazer todos aqueles créditos, não sendo, por isso, previsível que a sua liquidação, por recurso ao modelo supletivo previsto no CIRE, possa angariar proventos suficientes para aquele pagamento.

XXXI - Antes da Caixa ... encontram-se graduados, de acordo com o que vem enunciado no CIRE, muitos outros credores, não pode ela, por isso, esperar, porque tal é manifestamente impossível pelo exposto, ver o seu crédito satisfeito de acordo com uma liquidação imposta pelo modelo supletivo do CIRE, e não pode, portanto, alegar que a sua posição no plano de insolvência é menos favorável que a que interviria sem o mesmo, porque efectivamente a sua posição no plano é claramente mais favorável, com a segura perspectiva de vir a recuperar uma parte significativa do seu crédito.

XXXII - Pelo que, o fundamento assente no dito dispositivo 216º/1, a) CIRE não se mostra verificado.

XXXIII - Por tudo o exposto, deveria o tribunal a quo ter homologado o plano de insolvência aprovado em assembleia de credores, porquanto o mesmo não viola qualquer princípio da igualdade entre credores, nem coloca nenhum credor em situação menos favorável àquela que teria se não houvesse qualquer plano.

XXXIV - Permitindo-nos aqui referir, ademais, que o próprio Instituto da Segurança Social votou favoravelmente o plano de insolvência, só tendo vindo, posterior e extemporaneamente, dizer o dito por não dito e alegar que agora já era contra o plano.

XXXV - Assim, com a decisão proferida o tribunal a quo violou as disposições conjugadas dos artigos 192º, 194º, 215º e 216º do CIRE, conforme referido supra, devendo a mesma ser revogada e substituída por outra que homologue o plano de insolvência aprovado.

Contra-alegou o credor Instituto de Segurança Social IP Centro Distrital de Viseu pugnando pela manutenção do decidido.

Com os argumentos de que:

- ou a devedora se propõe pagar os créditos da SS sem destrinça entre créditos de natureza privilegiada  e créditos de natureza comum e então o plano de insolvência não pode ser homologado por violação do princípio da igualdade dos credores;

- ou se propõe pagar os créditos de natureza comum da SS nos mesmos termos que propõe para os restantes credores comuns e então o plano não pode ser homologado por violação do princípio da legalidade ex vi do artº 190º do Código dos Regimes Contributivos dos Sistema previdencial de Segurança Social, 30º nºs 2 e 3 da Lei Geral Tributária e 125º da Lei do Orçamento de Estado de 2011.

 4.

Sendo que, por via de regra: artºs 684º e 685º-A do CPC - de que o presente caso não constitui excepção - o teor das conclusões define o objecto do recurso, a questão essencial decidenda é a seguinte:

(I)legalidade da decisão de recusa da homologação do plano de insolvência.

5.

Os factos a considerar são os seguintes:

A assembleia de credores aprovou o plano de insolvência de “A(…)& Filho, Lda” (ver fls. 346 a 348).

O plano foi apresentado pela devedora 21.07.2010 (ver fls. 95 a 97), nos seguintes termos:

“Daí que, se propõe pagar aos credores metade do capital reclamado e reconhecido, com o perdão da outra metade e dos juros de mora vencidos e vincendos, salvo regresso de melhor fortuna.

Tal pagamento ocorrerá em 10 prestações anuais e iguais, vencendo-se a 1ª no dia 15 de Janeiro de 2013 e as demais em igual data dos anos subsequentes.”

Posteriormente, em 06.10.2010, o plano foi modificado da seguinte forma (ver fls. 306 e 307):

“Assim, a devedora propõe-se pagar aos credores comuns da forma já relatada no requerimento de 2010-07-21

A dívida dos credores privilegiados será liquidada da seguinte forma:

- o pagamento das contribuições mensais e respectivos juros de mora, vencidas posteriormente à data da declaração de insolvência, até à data de aprovação do plano de insolvência;

- o pagamento da dívida em 150 prestações mensais, iguais e sucessivas, sendo as primeiras 24 primeiras prestações reduzidas a metade das restantes, sem períodos de carência;

- a primeira prestação do acordo de pagamento da dívida à segurança social vence-se no mês seguinte à data da sentença homologatória;

- exigibilidade total de juros vencidos, excepto se comprovada a sua indispensabilidade para a viabilidade da sociedade ( pela sra administradora de insolvência), situação que terá que ser exigido, no mínimo 20% do total dos juros vencidos recalculados à data da declaração de insolvência, bem como tendo em conta o cálculo de renúncias de créditos a efectuar;

- para o cumprimento do plano de pagamento proposto, a prestação de garantia idónea, constituída pelo penhor mercantil de todos os bens móveis, máquinas e utensílios da devedora apreendidos nos autos, ficando a devedora autorizada ao seu uso e manuseamento;

- a taxa de juros vincendos será de 6% ao ano;

- a dívida aos trabalhadores não contempla qualquer indemnização a título de antiguidade, na medida em que os seus contratos de trabalho se manterão activos e não resolvidos.”

Posteriormente à Assembleia de Credores, a Caixa ... requereu a não homologação do plano de insolvência (ver fls. 350 a 354), o mesmo tendo sucedido com os credores (…) (fls. 359 a 365), a Fazenda Nacional, representada pelo Ministério Público (ver fls. 380 a 391), o B...(fls. 421) e a Segurança Social (no caso de se entender que o plano de insolvência, no tratamento previsto para a chamada “dívida dos credores privilegiados”, não abrange a totalidade do seu crédito, mas apenas a parte privilegiada do seu crédito – ver fls. 427 e ss.).

Também a Sr.ª Administradora de Insolvência opinou a fls. 440 e 441 que o plano de insolvência não deve ser homologado.

A devedora respondeu a tais requerimentos(fls. 371, 424 e 470).

Na presente insolvência, na lista definitiva de credores reconhecidos figuram, entre outros, os seguintes credores:

- Caixa ..., S.A. - Total reclamado: €32.592,59; Montante reclamado: capital - €32.251,30, juros - €341,29; Montante reconhecido: €32.592,59; Fundamento do crédito: comum; Natureza do crédito: conta corrente; % dos Créditos Reconhecidos-subordinados: 8,0%.

- Instituto de Segurança Social - I.P. - centro Distrital de Viseu - Total reclamado: €123.770,34; Montante reclamado: capital - €89.304,84, juros - €34.465,50; Montante reconhecido: €123.770,34; Fundamento do crédito: privilegiados; Natureza do crédito: Contribuições e juros se constituiram/venceram nos doze meses antes da entrada da PI; % dos Créditos Reconhecidos-subordinados: 30,3%.

- Realizada assembleia de credores, a 10.01.2011, para apreciação e votação do plano de insolvência, foi o mesmo aprovado, pelos votos favoráveis dos credores (…) que no conjunto representavam 68,47% dos créditos (€295.022,31), tendo os restantes credores presentes votado contra.

Posteriormente veio a credora Caixa ... apresentar, a 11.01.2011, requerimento aos autos onde refere que do plano de insolvência, contra o qual votou, resultava, “de modo evidente, tratamento totalmente díspar entre créditos de natureza comum do credor Instituto da Segurança Social e os demais créditos de natureza como (queria dizer-se comum) reconhecidos nestes autos.”, sendo violador do princípio da igualdade previsto no artigo 194º, n.º1 do CIRE, razão pela qual deveria o tribunal a quo recusar a homologação do plano, mais referindo que, de todo o modo, nos termos do artigo 216º, n.º 1 do CIRE, a Caixa ... ficava, de modo manifesto, numa situação menos favorável do que a que interviria na ausência de qualquer plano, pois veria o ser crédito em capital reduzido em metade com perdão da totalidade dos juros vencidos e vincendos.

 Veio a senhora administradora da insolvência esclarecer que o crédito reclamado pelo Instituto de Segurança Social, I.P., no montante global de €123.770,34, se decompunha da seguinte forma:

- montante reclamado: capital - €6.817,66, juros - €682,34; montante reconhecido: €7.500,00; Fundamento do Crédito: privilegiados; Natureza do Crédito: Contribuições e Juros vencidos nos doze meses antes da entrada da PI;

- montante reclamado: juros - €9.862,24; montante reconhecido: €9.862,24; Natureza do Crédito: Juros de mora vencidos do total das contribuições vencidas para além dos 12 meses referentes ao período de privilégios juros que se venceram nesse período;

- montante reclamando: capital - €82.185,33, capital - €21.798,10; montante reconhecido: €103.983,43; Fundamento do Crédito: comuns; Natureza do Crédito: Contribuições e Juros vencidos há mais de doze meses da entrada da PI;

- subordinado: €2.424,66; Total reconhecido subordinado: €2.424,66; Fundamento do Crédito: subordinados; Natureza do Crédito: Contribuições e Juros vencidos entre a PI e Declaração de Sentença,

- concluindo que “os créditos privilegiados são no valor global de €17.362,54 (capital no valor de €6.817,66, acrescidos de juros no valor de €10.544,58); Créditos comuns são no valor global de €103.983,43 (capital no valor de €82.185,33, acrescidos de juros no valor de €21.798,10) e o valor remanescente são créditos subordinados no valor de €2.424,68.

6.

Apreciando.

6.1.

Tal como alega a recorrente, o despacho ora posto  sub sursis fundamentou a decisão no seguinte discurso argumentativo:

«Começo por notar que os credores Caixa ..., (…) B...e a Segurança Social efectuam interpretação do plano de insolvência diversa da pugnada pela devedora.

Isto é, aqueles entendem que nos termos do plano de insolvência o crédito da Segurança Social beneficia do regime manutenção integral e pagamento, seja na parte privilegiada, seja na parte não privilegiada, a devedora entende que tal regime de pagamento só abrange a parte privilegiada do crédito da Segurança Social.

Como vários credores observam, o plano de insolvência não é claro.

Ora, a declaração negocial vale com o sentido que um declaratário normal, colocado na posição do real do declaratário, possa deduzir do comportamento do declarante (teoria da impressão do destinatário – art. 236.º, n.º 1 do Código Civil.

Na verdade, no plano de insolvência escreveu-se “A dívida dos credores privilegiados será liquidada” e não “A dívida privilegiada dos credores privilegiados será liquidada”.

Previu-se ainda a “ exigibilidade total de juros vencidos …”, não se restringindo aos juros relativos a créditos vencidos nos 12 meses anteriores à entrada da petição inicial de insolvência [que gozam de privilégio mobiliário, não extinto pelo disposto no art. 97.º, n.º 1, al. a) do CIRE].

Estabeleceu-se ainda que a “primeira prestação do acordo da dívida à segurança social vence-se no mês …”, não se efectuando qualquer restrição ou especificação entre dívida privilegiada e dívida não privilegiada.

Assim sendo, aplicando aquele critério legal ao caso dos autos, entendemos que a referência efectuada no plano de insolvência à dívida dos credores privilegiados abrange todo o crédito da Segurança Social, privilegiado, comum ou subordinado.

O plano de insolvência deve obedecer ao princípio da igualdade dos credores da insolvência, sem prejuízo das diferenciações justificadas por razões objectivas – art. 194.º, n.º 1 do CIRE.

Ora, o crédito da Segurança Social tem o valor total de € 123.770,35, sendo que apenas € 7.500,00 goza de privilegiado mobiliário geral (ver o esclarecimento da AI a fls. 394 e 395) sobre os bens móveis da massa insolvente, nos termos do art. 10.º, n.º 1 e 2 do DL n.º 103/80 de 9 de Maio [porquanto vencido nos 12 meses que antecederam o pedido de declaração de insolvência – art. 97.º, n.º 1, al. a) do CIRE].

Ou seja, grande parte do crédito da Segurança Social, justamente aquele que não é privilegiado ou garantido, vai receber tratamento igual aos créditos com tal qualidade, prejudicando assim os credores comuns que, por identidade de razão, merecem o mesmo tratamento mas não o vão ter. Isto é, nos termos do plano de insolvência, metade do valor de capital dos créditos comuns são perdoados e totalidade dos juros são perdoados. Não assim a parte comum do crédito da Segurança Social, que deverá ser paga na íntegra.

Este tratamento diferenciado não tem justificação material bastante, designadamente jurídica, pelo que foi violado o princípio da igualdade de credores.

A Caixa ... é credor comum e, além de ter votado contra o plano de insolvência (ver fls. 346 a 348), requereu ainda que o mesmo não seja homologado pelo juiz (ver fls. 350 a 354).

Por outro lado, a posição da Caixa no plano é-lhe menos favorável do que aquela que resulta da ausência de qualquer plano. Isto é, com a homologação do plano, a Caixa perderá metade do seu crédito de capital. Sem o plano, o seu crédito mantém-se incólume.»

(realce e sublinhado nossos)

6.2.

Vejamos.

A sentença não homologou o plano sufragada em dois fundamentos, a saber: 1º -que ele viola o princípio  da igualdade de credores; 2º que o credor CGD fica numa situação menos favorável do que aquela que resultaria da aplicação do regime suplectivo.

6.2.1.

Quanto ao primeiro há que dizer que a questão é simples e que nem se compreende que tenha sido decidido como foi.

Na verdade a alteração ao plano operada pela devedora parece ter suscitado alguma dúvida e celeuma quanto ao facto de ele abranger todos os créditos da SS ou apenas os seus créditos privilegiados.

Mas, conforme se pode retirar do teor da decisão, aquela dúvida foi esclarecida e dissipada pela própria devedora ainda antes de ter sido prolactada a sentença.

Pois que nesta se expendeu, adrede e inequivocamente «entendem (alguns credores) que nos termos do plano de insolvência o crédito da Segurança Social beneficia do regime manutenção integral e pagamento, seja na parte privilegiada, seja na parte não privilegiada, a devedora entende que tal regime de pagamento só abrange a parte privilegiada do crédito da Segurança Social.»

Ou seja, foi a própria devedora/declarante, fonte da declaração então interpretanda, que veio, oportunamente, indicar qual era o verdadeiro e real sentido e alcance da sua própria declaração.

Estamos pois, perante uma interpretação efectivada pela própria fonte da declaração, que não deixou margem para dúvidas, e que, assim equivale, mutatis mutandis, a uma verdadeira interpretação autêntica que deve ser respeitada.

Não se alcançando, assim, que na sentença estas dúvidas ainda se tivessem colocado e tivessem constituído o thema decidendum da decisão, com as consequências decorrentes da interpretação tida por melhor, (o sentido de que os créditos da SS abrangidos eram não apenas os privilegiados como também os comuns)  quando, afinal,  repete-se, tal interpretação já tinha sido operada pelo próprio declarante e no sentido diametralmente oposto ao encontrado na sentença (ou seja, que apenas quis abranger os créditos privilegiados).

Temos, pois, que os créditos da SS abrangidos pela alteração ao plano eram apenas os privilegiados.

Assim sendo como necessariamente tem de entender-se que é – pois que a própria devedora que apresentou o plano assim o disse em esclarecimento – queda inadmissível a conclusão da sentença de que o plano viola o princípio da igualdade entre credores

6.2.2.

Quanto ao segundo.

Nos termos do artº 216º do CIRE, no que ao caso interessa:

1 - O juiz recusa ainda a homologação do plano de insolvência se tal lhe for solicitado …por algum credor ou sócio, associado ou membro do devedor cuja oposição haja sido comunicada nos mesmos termos, contanto que o requerente demonstre em termos plausíveis, em alternativa, que:

a) A sua situação ao abrigo do plano é previsivelmente menos favorável do que a que interviria na ausência de qualquer plano, designadamente face à situação resultante de acordo já celebrado em procedimento extrajudicial de regularização de dívidas.

Quanto à aplicação deste segmento normativo expendem L.Carvalho Fernandes e João Labareda, CIRE, Anotado, 2º, 2006, p.124:

«A prova da eventualidade referida…pressupõe um exercício intelectual de prognose, frequentes vezes complexo, que se traduz em comparar o que é previsto resultar do plano para o reclamante com aquilo que aconteceria…no caso de se concretizar a liquidação universal do património do devedor segundo o modelo legal suplectivo.

Quanto aos credores isto reconduz-se a cotejar quanto recebem com o plano e quanto se estima que receberiam sem ele…

Ora é exactamente a concretização da comparação que muitas vezes se revelará de extrema dificuldade, exactamente porque importa averiguar a priori o que a massa insolvente pode render no caso de venda universal.

Casos haverá em que a prova não será difícil…quando se aprove um plano que prevê a redução de um crédito assistido de garantia real ou de privilégio incidente sobre bens que seriam suficientes para assegurar a totalidade do pagamento ou…um reembolso superior ao estabelecido no plano».

(sublinhado nosso)

In casu.

Vista a dificuldade de consecução de factos consubstanciadores da previsão do segmento em análise, constata-se que nem o credor reclamante – CGD –que pugna pela não homologação do plano, nem o tribunal a quo, que assim decidiu, a conseguiu ultrapassar.

Na verdade aquele, no seu requerimento afim limitou-se a alegar tal previsão com o único e singelo argumento de que «verá o seu crédito reduzido a metade com perdão da totalidade dos juros vencidos e vincendos».

Mas tal não basta para preencher a exigência de demonstração plausível plasmada na lei.

Pois que, e desde logo, se reporta apenas a uma das vertentes do problema, qual seja, a consagrada no plano.

Ficando por demonstrar a outra, ou seja, a que se reporta à previsível situação da credora decorrente da liquidação universal do património do devedor segundo o modelo legal suplectivo.

Quanto a esta a credora CGD disse nada. E deveria dizer. O que passaria, vg., por concretizar e demonstrar  a natureza e os valores do activo da insolvente, a sua posição na hierarquia dos credores, bem como a do seu crédito relativamente aos dos restantes credores.

Pois que só assim se poderia operar a legal  e exigível comparação entre o que recebe com o plano e quanto receberia (ou, pelo menos, muito possivelmente receberia)  sem ele.

E, como se viu, no mesmo lapso lavrou a sentença, pois que nela apenas vaga, genérica e algo abstractamente se expende que «a posição da Caixa no plano é-lhe menos favorável do que aquela que resulta da ausência de qualquer plano. Isto é, com a homologação do plano, a Caixa perderá metade do seu crédito de capital. Sem o plano, o seu crédito mantém-se incólume».

Certo é que o crédito se mantém, para já, incólume. Mas o que importa saber, porque tal é que constitui o quid legalmente relevante, é a medida da satisfação do mesmo, a concretizar oportunamente, em sede de pagamentos após liquidação do activo existente e a graduação dos créditos admitidos.

E, neste particular, outrossim a sentença não esmiúça.

Pelo que, aqui e agora, nada nos permite concluir que o plano acarrete para o crédito da CGD um prejuízo atendível por comparação com o ressarcimento que, sem ele, obteria.

6.2.3.

Diga-se ainda, apesar de tal não constituir objecto do recurso, que não é  admissível o argumento da contra-alegante Segurança Social  de que, se a devedora se propuser pagar os créditos de natureza comum da SS nos mesmos termos que propõe para os restantes credores comuns e então o plano não pode ser homologado por violação do princípio da legalidade ex vi do artº 190º do Código dos Regimes Contributivos do Sistema Previdencial de Segurança Social, 30º nºs 2 e 3 da Lei Geral Tributária e 125º da Lei do Orçamento de Estado de 2011.

Na verdade, e desde logo, ao seu crédito não é aplicável o disposto no artº30º nºs 2 e 3 da Lei Geral Tributária, o qual rege para o crédito tributário, tout court, mas antes e como ela alega, o disposto no artº 190º do Código dos Regimes Contributivos do Sistema Previdencial de Segurança Social, aprovado pela Lei n.º 110/2009 de 16 de Setembro.

Assim, estatui este preceito:

1 — A autorização do pagamento prestacional de dívida à segurança social, a isenção ou redução dos respectivos juros vencidos e vincendos, só é permitida nos termos do presente artigo, sem prejuízo das regras aplicáveis ao processo de execução fiscal.

2 — As condições excepcionais previstas no número anterior só podem ser autorizadas quando, cumulativamente, sejam requeridas pelo contribuinte, sejam indispensáveis para a viabilidade económica deste e desde que o contribuinte se encontre numa das seguintes situações:

a) Processo de insolvência ou de recuperação;

b) Procedimento extrajudicial de conciliação;

c) Contratos de consolidação financeira e ou de reestruturação empresarial, conforme se encontram definidos no Decreto -Lei n.º 81/98, de 2 de Abril;

d) Contratos de aquisição, total ou parcial, do capital social de uma empresa por parte de quadros técnicos, ou por trabalhadores, que tenham por finalidade a sua revitalização e modernização.

3 — Para efeitos do disposto no número anterior, o incumprimento do pagamento das contribuições mensais desde a data de entrada do requerimento constitui indício da inviabilidade económica do contribuinte.

Ora no caso vertente encontramo-nos perante um processo de insolvência  em que é a própria insolvente, contribuinte, a qual se encontra em situação económica difícil, a impetrar, para permitir a sua viabilização económica - o que deve considerar-se estar pressuposto em tal pedido - e quanto aos créditos sobre si existentes, rectius o da SS, nos temos previstos no plano de insolvência por si apresentado.

Estão pois preenchidos os requisitos de tal normativo que permitem o condicionamento dos créditos comuns da SS pelo Plano de Insolvência.

Procede o recurso.

7.

Sumariando:

I- Esclarecida, num dos dois sentidos possíveis, pelo próprio declarante, a duvida suscitada pelos declaratários, o tribunal não pode, posteriormente, interpretar a declaração optando pelo sentido oposto.

II – O preenchimento da previsão da al. a) do nº1 do artº 216º do CIRE importa a alegação e demonstração, pelo credor, de factos atinentes não apenas à afectação do seu crédito pelo plano de insolvência, mas, outrossim, concernentes  à  sua previsível situação/afectação decorrente da liquidação universal do património do devedor segundo o modelo legal suplectivo.

III –O plano de insolvência pode afectar os créditos da Segurança Social se tal for impetrado pelo insolvente/contribuinte e como pressuposto para permitir a sua viabilização económica – artº 190º nºs 1 e 2 al.a) dos Regimes Contributivos do Sistema Previdencial de Segurança Social, aprovado pela Lei n.º 110/2009 de 16 de Setembro.

8.

Deliberação.

Termos em que se acorda conceder provimento ao recurso e, consequentemente, revogar a sentença que recusou a homologação do plano de insolvência e seguindo os autos a sua legal tramitação decorrente do presente aresto.

Custas pela massa.

Carlos Moreira ( Relator )

Moreira do Carmo

Alberto Ruço