Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
160074/11.0YIPRT.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ANTÓNIO BEÇA PEREIRA
Descritores: PAGAMENTO
ÓNUS DA PROVA
RECURSO DA MATÉRIA DE FACTO
PRESSUPOSTOS
Data do Acordão: 05/29/2012
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: CANTANHEDE 1º J
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTS. 342º Nº2 DO CC, 685º-B Nº1 A) E 712º Nº1 A) DO CPC
Sumário: I - Nos termos do artigo 342.º n.º 2 do CC é ao réu, por se tratar de um facto extintivo do direito invocado pelo autor, que cabe o ónus de provar os factos relativos à excepção de pagamento que deduziu. O autor não tem, por isso, que provar que ainda não se encontra pago, pois, por força do n.º 1 daquele artigo, cabe-lhe somente a prova dos factos constitutivos do direito que afirma assistir-lhe.

II - A parte que, nos termos do artigo 685.º-B n.º 1 a) CPC, pretenda impugnar a decisão proferida sobre a matéria de facto tem que, "sob pena de rejeição", especificar "os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados", o que significa que deve indicar o quesito da base instrutória, ou, na ausência desta, o artigo dos articulados, onde se encontra a matéria de facto objecto de erro no seu julgamento, pois é nessas peças processuais que estão os factos que, tendo sido alegados, foram submetidos a julgamento.

III - Não se tendo procedido à gravação dos depoimentos prestados pelas testemunhas na audiência de julgamento, não é possível colocar em crise o julgamento da matéria de facto que assenta nessa prova testemunhal, pois, nesse caso, não se mostram preenchidos os pressupostos da alínea a) do n.º 1 do artigo 712.º CPC, visto que sem tal gravação não se pode conhecer o conteúdo desses depoimentos e sem este conhecimento não é possível formular qualquer juízo quanto ao que, face a essa prova, o tribunal a quo julgou provado e não provado. E, na ausência daquela gravação, é evidente que o recorrente não cumpre o que lhe é imposto pela alínea b) do n.º 1 do artigo 685.º-B CPC relativamente à prova testemunhal.

Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra


I

A... L.da apresentou requerimento de injunção, que veio a correr termos na comarca de Cantanhede, contra B... , pedindo a condenação deste a pagar-lhe € 7 734,58.

Alegou, em síntese, que, em Setembro de 2009, no exercício da sua actividade de comércio de artefactos de ourivesaria em ouro, forneceu ao réu as mercadorias constantes da factura n.º 0558, pelo preço total de € 6 600,16, que este ainda não pagou.

O réu contestou dizendo, em suma, que ainda devia € 1 900,00, mas que a restante parte da dívida já tinha sido paga.

Realizou-se julgamento e proferiu-se sentença em que se decidiu:

"Pelo exposto, julga-se a acção parcialmente procedente, em consequência se condenando B... a pagar a “ A..., L.da”, a quantia de € 6 600,16 (seis mil e seiscentos euros e dezasseis cêntimos), acrescido de juros à taxa de juros comerciais, desde 15.11.2009 quanto a € 2 200,16, 15.12.2009 quanto a € 2 200,00 e 15.07.2010 quanto aos remanescentes € 2 200,00, até efectivo e integral pagamento. "

Inconformado com tal decisão, o réu dela interpôs recurso, que foi admitido como de apelação, com subida imediata, nos próprios autos e efeito meramente devolutivo, findando a respectiva motivação com as seguintes conclusões:

1.ª- Em sede de oposição à Injunção, o recorrente invocou o pagamento parcial da quantia peticionada, confessando-se devedor apenas da quantia de 1.900,00€, constituindo o alegado pagamento matéria de excepção.

2.ª- E, face a esta posição processual do requerido, deveria a requerente, nos termos do preceituado no artigo 3.º, n.º 4 do CPC, responder à matéria da excepção invocada pelo requerido, o que não fez.

3.ª- Efectivamente, estabelece tal normativo o seguinte: “Às excepções deduzidas no último articulado admissível pode a parte contrária responder na audiência preliminar ou, não havendo lugar a ela, no início da audiência final.”

Deste modo, atenta a natureza do presente processo, deveria a requerente ter tomado posição, respondendo, no início da audiência final à referida matéria de excepção invocada pelo requerido.

O que não se verificou.

Assim sendo, temos de ter em conta o estatuído no artigo 490.º, n.º 2 do CPC que prescreve: “ Consideram-se admitidos por acordo os factos que não forem impugnados, …”

E, mais estabelece o artigo 505.º do CPC que: “A falta de algum dos articulados de que trata a presente secção ou a falta de impugnação, em qualquer deles, dos novos factos alegados pela parte contrária no articulado anterior tem o efeito previsto no artigo 490.º.”

4.ª- Por conseguinte, perante a falta de impugnação da requerente quanto à matéria de excepção (pagamento parcial da quantia peticionada), teria necessariamente de dar-se como assente que o cheque n.º 1874464089, datado de 15/12/2009, no valor de 2.200,00 € e o cheque n.º 1874464962, datado de 15/07/2010, no valor de 2.200,00 €, já se encontram pagos, tendo a requerente, ora recorrida, entregue os dois cheques em causa ao requerido, cujos originais foram juntos aos autos em sede de audiência de julgamento. Do mesmo modo, e pelos mesmos motivos, teria necessariamente de dar-se como assente que o requerido, ora recorrente, fez entregas parciais para abatimento do débito a que se refere o cheque n.º 1874464477, datado de 15/11/2009, no valor de 2.200,16 €, ficando o requerido em débito do valor de 1.900,00 €, sendo que tal cheque (original) ainda se encontra em poder da requerente e que apenas seria entregue ao requerido com a sua liquidação total, como sucedeu com os dois cheques acima referidos.

5.ª- Apesar da já relatada falta de impugnação da matéria de excepção invocada pelo requerido, (pagamento parcial do valor peticionado), e não tendo o Meritíssimo Juiz do Tribunal “a quo” aplicado o devido efeito cominatório - o que configura violação de lei - há que ter em consideração o seguinte:

Aquando da junção dos meios de prova no início da audiência de julgamento, entre os quais o requerido juntou os originais dos cheques cujo pagamento já havia invocado, a requerente não impugnou o requerimento então efectuado de que os mesmos se destinavam a fazer prova de que já se encontravam pagos. Pelo que, e uma vez mais, dão-se aqui por reproduzidas as considerações atrás expostas quanto às consequências jurídicas do ónus da impugnação e do efeito cominatório da sua falta.

Mas, se quisermos ater-nos no próprio depoimento da testemunha da requerente, D... , técnico oficial de contas da mesma, tal testemunha foi peremptória em afirmar que tem perfeito conhecimento que os cheques só são entregues aos clientes depois de pagos.

6.ª- O que foi o que sucedeu com o caso dos dois referidos cheques, pois, também de acordo com as regras da experiência comum, nada justificaria que requerente tivesse entregue aqueles dois cheques de 2.200,00 € cada ao requerido sem que os mesmos tivessem sido pagos. E, a corroborar tal facto, é que a requerente não entregou, e bem, ao requerido o cheque n.º 1874464477, datado de 15/11/2009, no valor de 2.200,16 €, uma vez que o requerido confessa-se devedor ainda de 1.900,00 € relativa a tal cheque.

7.ª- Tal testemunha da requerente, reforça ainda que o procedimento da empresa (requerente) é só entregar os cheques aos clientes após serem pagos.

Ora, caso tal pagamento não tivesse ocorrido, a requerente teria retido em seu poder todos os cheques (3), e não apenas um cheque.

8.ª- Da conjugação deste depoimento com o depoimento da testemunha apresentada pelo requerido, C... , e de acordo com as regras da experiência comum, jamais também o Meritíssimo Juiz do tribunal “a quo”, poderia ter condenado o recorrente da forma como o fez, por errada valoração da prova e, consequentemente, a sua errada subsunção ao direito que lhe deveria ter sido aplicável.

9.ª- Por fim, cumpre referir que, contrariamente ao que se escreve na douta decisão recorrida, face à excepção deduzida pelo requerido de pagamento parcial da quantia peticionada, o ónus da prova de que tal pagamento não teria ocorrido, incumbia à requerente, não recaindo sobre o requerido qualquer ónus de pagamento, uma vez que esse já havia sido invocado. E, dada a falta de impugnação de tal pagamento pela requente, só se concebe a sua admissão por acordo, com os efeitos cominatórios do artigo 490.º, n.º 2 do CPC ou, no mínimo, a inversão do ónus da prova, incumbindo á requerente provar tal falta de pagamento, o que não se conseguiu lograr provar (excepção, obviamente para a parte confessada).

10.ª- Deste modo, jamais poderia ter sido dado como provado o ponto 5 dos factos provados da douta decisão recorrida e como não provado o facto único constante dos factos não provados da mesma decisão.

11.ª- Deste modo, a douta decisão recorrida violou o disposto no artigo 490.º, n.º 2 e 505.º do CPC, conjugado com o disposto no artigo 3.º, n.º 4 do mesmo diploma legal.

Sem prescindir, sempre terá de considerar-se que a mesma decisão violou o disposto nos artigos 342.º, n.º 1, 344.º, n.º 1 e 346.º do C.C., incorrendo a douta decisão recorrida em nítido, flagrante e grave erro de julgamento.

Termina afirmando que "deverá a douta decisão da 1.ª instância ser revogada e, em consequência, ser a acção julgada totalmente improcedente por não provada, condenando-se o requerido, ora recorrente, ao pagamento apenas da quantia confessada de 1.900,00 € que, efectivamente, ainda se encontra em débito".

A autora contra-alegou sustentando que se deve julgar improcedente o recurso.

Face ao disposto nos artigos 684.º n.º 3 e 685.º-A n.os 1 e 3 do Código de Processo Civil[1], as conclusões das alegações de recurso delimitam os poderes de cognição deste Tribunal e, considerando a natureza jurídica da matéria versada, as questões a decidir consistem em saber se:

a) "perante a falta de impugnação da requerente quanto à matéria de excepção (pagamento parcial da quantia peticionada), teria necessariamente de dar-se como assente que o cheque n.º 1874464089, datado de 15/12/2009, no valor de 2.200,00 € e o cheque n.º 1874464962, datado de 15/07/2010, no valor de 2.200,00 €, já se encontram pagos"[2];

 b) não podia "ter sido dado como provado o ponto 5 dos factos provados da douta decisão recorrida e como não provado o facto único constante dos factos não provados da mesma decisão"[3], averiguando-se previamente se estão reunidos os pressupostos da impugnação da decisão da matéria de facto;

c) "face à excepção deduzida pelo requerido de pagamento parcial da quantia peticionada, o ónus da prova de que tal pagamento não teria ocorrido, incumbia à requerente, não recaindo sobre o requerido qualquer ónus de pagamento".[4]


II

1.º


Foram considerados provados os seguintes factos:

1. A A. dedica-se ao fabrico e posterior comercialização de artefactos de ourivesaria em ouro.

2. Em 19 de Setembro 2009 forneceu e entregou ao R. as mercadorias constantes da factura n.º 0558 que se dão aqui por integralmente reproduzidas, no valor total de € 6.600,16, já acrescido de I.V.A.

3. Para pagamento do valor da factura, o requerido em idênticas circunstâncias de tempo, entregou os seguintes cheques:

a) - n.º 187 446 4477, datado de 15.11.2009, no valor de € 2.200,16.

b) - n.º 187 446 089, datado de 15.12.2009, no valor de € 2.200,00.

c) - n.º 1874464962, datado de 15.07.2010, no valor de € 2.200,00.

4. Os cheques referidos em 3., apresentados que foram a pagamento, foram devolvidos por falta de provisão.

5. Interpelado para o efeito o Réu não pagou o montante em dívida.


2.º

Na sua oposição o requerido alegou que ter entregue à requerente os cheques n.º 1874464089, datado de 15/12/2009, no valor de € 2 200,00 e n.º 1874464962, datado de 15/07/2010, no valor de € 2 200,00 e que "o valor correspondente" a estes "cheques já foi pago".[5]

Com esta afirmação não há qualquer dúvida de que o requerido deduziu a excepção de pagamento (parcial) da dívida reclamada.

Significa isso que o artigo 3.º n.º 4 concedia à requerente a faculdade de, no início do julgamento, responder a tal excepção, o que esta, no entanto, não fez.

Face a esse silêncio o requerido considera que, dado o disposto nos artigos 505.º e 490.º n.º 2, "teria necessariamente de dar-se como assente que o cheque n.º 1874464089, datado de 15/12/2009, no valor de 2.200,00 € e o cheque n.º 1874464962, datado de 15/07/2010, no valor de 2.200,00 €, já se encontram pagos".[6]

O artigo 505.º dispõe que "a falta de algum dos articulados de que trata a presente secção ou a falta de impugnação, em qualquer deles, dos novos factos alegados pela parte contrária no articulado anterior tem o efeito previsto no artigo 490º" e o n.º 2 do artigo 490.º estabelece que "consideram-se admitidos por acordo os factos que não forem impugnados, salvo se estiverem em oposição com a defesa considerada no seu conjunto[7], se não for admissível confissão sobre eles ou se só puderem ser provados por documento escrito."

"Devem, assim, considerar-se impugnados os factos alegados pelo réu (v. g., excepção peremptória do pagamento) que forem incompatíveis com os factos que constam da petição inicial (…)", pelo que "a falta de impugnação pelo autor dos factos alegados na contestação, que dão forma a excepções peremptórias, nem sempre conduz á procedência destas excepções em prejuízo do direito invocado pelo autor."[8]

A requerente, no seu requerimento inicial, depois de alegar os factos de onde emerge o crédito que afirma ter contra o requerido, conclui afirmando que "apesar das interpelações para pagamento, até à data, o requerido nunca o fez."

É, portanto, pacífico que a requerente alega que o requerido ainda não lhe pagou a quantia cujo pagamento reclama nos autos. Aliás, difícil era que assim não fosse, pois se se pede a condenação de alguém a pagar certa quantia é porque esta, segundo o credor, ainda não foi paga.

Aqui chegados, conclui-se que perante a alegação do requerido, na sua oposição, de que parte do crédito da requerente estava pago, se esta não respondesse a tal excepção não estava, com o seu silêncio, a aceitar ou confessar esse pagamento, pois ele está manifestamente em oposição com a posição assumida no requerimento inicial; isso é quanto basta para que, nos termos do n.º 2, segunda parte, do artigo 490.º se considere desnecessário responder à excepção deduzida, pois, neste cenário, não recaía sobre a requerente o ónus de impugnar.

Deste modo, a circunstância de a requerente não ter respondido à excepção deduzida pelo requerido, contrariamente ao sustentado por este, não implica que se tenham por assentes os factos relativos a tal excepção.


3.º

O requerido censura a decisão recorrida por defender que nela não se podia ter "dado como provado o ponto 5 dos factos provados (…) e como não provado o facto único constante dos factos não provados da mesma decisão"[9].

Para o efeito, lembra que apresentou no julgamento os "originais dos cheques cujo pagamento já havia invocado" e que "a requerente não impugnou o requerimento então efectuado de que os mesmos se destinavam a fazer prova de que já se encontravam pagos"[10] e salienta que dos depoimentos prestados pelas testemunhas D... e C... "jamais também o Meritíssimo Juiz do tribunal “a quo”, poderia ter condenado o recorrente da forma como o fez, por errada valoração da prova"[11].

O artigo 685.º-B n.º 1 a) obriga o recorrente a, "sob pena de rejeição", especificar "os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados."

"O ónus imposto ao recorrente que impugna a decisão proferida sobre a matéria de facto traduz-se, deste modo, na necessidade de circunscrever ou delimitar o âmbito do recurso, indicando claramente qual a parcela ou segmento -o ponto ou pontos da matéria de facto- da decisão  proferida que considera viciada por erro de julgamento"[12]. Estas "exigências devem ser apreciadas à luz de um critério de rigor, próprio de um instrumento processual que visa pôr em causa o julgamento da matéria de facto efectuado por outro tribunal em circunstâncias que não podem ser inteiramente reproduzidas na 2.ª instância"[13]. É, pois, certo que se impõe "ao recorrente um ónus rigoroso"[14]

O recorrente "tem de concretizar um a um quais os pontos de factos que considera mal julgados, seja por terem sido dados como provados, seja por não terem sido considerados como tal. (…) Se um dos fundamentos do recurso é o erro de julgamento da matéria de facto, compreende-se que os concretos pontos de facto sobre que recaiu o alegado erro de julgamento tenham de ser devidamente especificados nas conclusões do recurso. Na verdade, sendo o objecto do recurso delimitado pelas conclusões formuladas pelo recorrente, importa que os pontos de facto que ele considera incorrectamente julgados sejam devidamente concretizados nas conclusões, pois se aí não forem indicados o tribunal de recurso não poderá tomar conhecimento deles"[15].

Por outro lado, "a fim de desincentivar claramente possíveis manobras dilatórias, este preceito não previu o convite ao aperfeiçoamento da alegação que versa sobre a matéria de facto que se pretende impugnar e que, desde logo, não satisfaça minimamente, o estipulado nos n.ºs 1 e 2"[16].

Então, salvo melhor juízo, há que, não sendo elaborada base instrutória, especificar o artigo dos articulados cuja matéria de facto se considera mal julgada, pois é aí que o facto alegado, efectivamente, se encontra e é esse o facto que se entende ter sido objecto de erro de julgamento.

No caso dos autos, o requerido identifica como mal julgados o facto do ponto 5 dos factos provados e o facto dado como não provado, que se encontra nos factos não provados. Mas na verdade, se bem se interpreta o seu pensamento, o facto que terá sido objecto de um errado julgamento é o que figura no artigo 6.º da sua oposição, conjugado com o que se encontra no artigo 5.º dessa mesma peça.

Eram, por isso, estes os factos que deviam ser especificados para os efeitos artigo 685.º-B n.º 1 a) e não os que o requerido identificou, pelo que, no mínimo, não é pacífico que tenha observado o exigido por esta norma.

Mas, de qualquer forma, segundo o requerido, o erro de julgamento em causa assenta numa inadequada valoração dos depoimentos das testemunhas D... e C....

Ora, o artigo 712.º n.º 1 consagra que:

"1 - A decisão do tribunal de 1.ª instância sobre a matéria de facto pode ser alterada pela Relação:

a) Se do processo constarem todos os elementos de prova que serviram de base à decisão sobre os pontos da matéria de facto em causa ou se, tendo ocorrido gravação dos depoimentos prestados, tiver sido impugnada, nos termos do artigo 685.º-B, a decisão com base neles proferida;

b) Se os elementos fornecidos pelo processo impuserem decisão diversa, insusceptível de ser destruída por quaisquer outras provas;

c) Se o recorrente apresentar documento novo superveniente e que, por si só, seja suficiente para destruir a prova em que a decisão assentou."

Acontece que no caso dos autos não se procedeu à gravação[17] dos depoimentos prestados pelas testemunhas na audiência de julgamento, pelo que é evidente que se não mostram preenchidos os pressupostos da alínea a) deste n.º 1, visto que sem tal gravação não se pode conhecer o conteúdo desses depoimentos, nomeadamente os das testemunhas D... e C..., e sem tal conhecimento não é possível formular qualquer juízo quanto ao que, face à prova testemunhal e à demais prova produzida, se deve ter por provado e por não provado. Acresce que para se impugnar a decisão sobre a matéria de facto é ainda necessário observar o exigido pelo artigo 685.º-B b) do n.º 1, o que, na ausência daquela gravação, é, no que se refere à prova testemunhal, de todo impossível. Por outro lado, é também pacífico que a situação em apreço não preenche a previsão das alíneas b) e c) do citado n.º 1 do artigo 712.º, visto que, na tese do réu, é nos depoimentos prestados pelas testemunhas e na respectiva valoração que radica o fundamento para, nos pontos em crise, se decidir de forma diversa.

Então, resta concluir que não se mostram verificados os pressupostos processuais necessários para que o tribunal da Relação possa reapreciar a matéria de facto[18], o mesmo é dizer que, por essa via, não se pode alterar a decisão do tribunal a quo quanto aos factos provados e não provados.


4.º

O requerido considera ainda que face à excepção deduzida "de pagamento parcial da quantia peticionada, o ónus da prova de que tal pagamento não teria ocorrido, incumbia à requerente, não recaindo sobre o requerido qualquer ónus de pagamento".[19]

O n.º 1 do artigo 342.º do Código Civil determina que "àquele que invocar um direito cabe fazer a prova dos factos constitutivos do direito alegado", acrescentando o seu n.º 2 que "a prova dos factos impeditivos, modificativos ou extintivos do direito invocado compete àquele contra quem a invocação é feita."[20]

Como é sabido, nos termos do artigo 762.º n.º 1 do Código Civil, "o devedor cumpre a obrigação quando realiza a prestação a que está obrigado", pelo que, na situação em apreço, o pagamento de parte do preço dos produtos vendidos, tal como foi alegado pelo requerido, consiste, na medida do respectivo pagamento, num facto extintivo da obrigação que sobre ele recaía, que era, justamente, o de o realizar[21].

"Assim, na acção de condenação destinada a obter o pagamento de uma dívida pecuniária, cabe ao autor alegar e provar a existência dos factos constitutivos do crédito, cuja titularidade se arroga e que afirma estar sendo violado, provando nomeadamente a realização do facto jurídico (…) donde o crédito nasceu. Ao réu competirá, por seu turno, provar os factos (…) extintivos (o pagamento, a remissão, etc.) do crédito do autor"[22]

Cabia, então, ao requerido provar os factos relativos à excepção de pagamento que deduziu, uma vez que os mesmos correspondem a um facto extintivo do direito invocado pelo requerente. Este não tem, por isso, que provar que ainda não se encontra pago, pois, cabe-lhe somente o ónus da prova dos factos constitutivos do direito que afirma assistir-lhe.

A tese sustentada pelo requerido nesta matéria é manifestamente contrária ao que resulta do citado artigo 342.º, não lhe assistindo qualquer razão quando afirma que "o ónus da prova de que tal pagamento não teria ocorrido, incumbia à requerente" e que não recaia sobre ele "qualquer ónus de pagamento".


III

Com fundamento no atrás exposto, julga-se improcedente o recurso, mantendo-se a decisão recorrida.

Custas pelo requerido.

António Beça Pereira (Relator)

Nunes Ribeiro

Hélder Almeida


[1] São deste código todas as normas adiante mencionadas sem qualquer outra referência.
[2] Cfr. conclusão 4.ª.
[3] Cfr. conclusão 10.ª.
[4] Cfr. conclusão 9.ª.
[5] Cfr. artigos 5.º e 6.º da oposição.
[6] Cfr. conclusão 4.ª.
[7] Sublinhado nosso.
[8] Remédio Marques, Acção Declarativa à Luz do Código Revisto, 2.ª Edição, pág.490.
[9] Cfr. conclusão 10.ª.
[10] Cfr. conclusão 5.ª. É oportuno sublinhar que os documentos são meios de prova e não de alegação. O pagamento em causa, como já se disse, tinha sido alegado na oposição do requerido e atrás já nos pronunciámos quanto aos efeitos decorrentes da requerente não ter respondido a essa excepção. A não impugnação de um documento não é sinónimo de confissão do facto que com a sua apresentação se pretende provar.
[11] Cfr. conclusão 8.ª.
[12] Lopes do Rego, Código de Processo Civil Anotado, 2.ª Edição, Vol. I, pág. 584, referindo-se à redacção que o artigo 690-A n.º 1 a) tinha antes da reforma introduzida pelo Decreto-Lei 303/2007 de 24 de Agosto, que era praticamente igual à do actual artigo 685.º-B n.º 1 a)
[13] Abrantes Geraldes, Recursos em Processo Civil, pág. 142.
[14] Lebre de Freitas e Ribeiro Mendes, Código de Processo Civil Anotado, 2.ª Edição, Vol. III, pág.61.
[15] Acórdão do STJ de 8-3-06, Proc. 05S3823. Ver ainda neste sentido Ac. Rel. Coimbra de 12-5-09, Proc. 2546/06.8TBAVR.C1 e de 3-6-08, Proc. 245-B/2002.C1, da Rel. Lisboa de 26-3-09, Proc. 301-1997.L1.2 e Ac. Rel. Guimarães de 23-9-2010, Proc. 2139/06.0TBBRG-A.G1, todos em www.gde.mj.pt.
[16] Lopes do Rego, obra citada, pág. 585. Neste sentido pode ver-se também Abrantes Geraldes, obra citada, pág. 141, Fernando Amâncio Ferreira, Manual dos Recursos em Processo Civil, 9.ª Edição, pág. 181, nota 357 e o Ac. STJ de 8-3-06 acima citado.
[17] Nem as partes a requereram, nem o Meritíssimo Juiz a ordenou oficiosamente.
[18] Neste sentido veja-se Remédio Marques, obra citada, pág. 620 a 622.
[19] Cfr. conclusão 9.ª.
[20] Segundo o artigo 1900.º do Código Civil Espanhol, "La prueba del pago incumbe al que pretende haberlo hecho." Já o artigo 2697.º [2] do Código Civil Italiano dispõe que "Chi eccepisce l'inefficacia di tali fatti ovvero eccepisce che il diritto si è modificato o estinto deve provare i fatti su cui l'eccezione si fonda."

[21] Cfr. 879.º c) do Código Civil.
[22] Antunes Varela, Miguel Bezerra e Sampaio e Nora, Manual de Processo Civil, 2.ª Edição, pág. 453.