Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
11/14.9 TBCTB-D.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: MARIA DOMINGAS SIMÕES
Descritores: INSOLVÊNCIA
EXONERAÇÃO DO PASSIVO RESTANTE
RENDIMENTO DISPONÍVEL
SUSTENTO MINIMAMENTE DIGNO
Data do Acordão: 07/10/2014
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DE CASTELO BRANCO 2º J
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ART. 239º Nº3 DO CIRE
Sumário: I. O rendimento disponível do devedor objecto da cessão ao fiduciário é integrado por todos os rendimentos que, naquele período, advenham, por qualquer título, ao devedor (art.º 239 nº 3, corpo, do CIRE), excluindo-se porém “o que seja razoavelmente necessário, designadamente para o sustento digno do devedor e do seu agregado familiar, que, contudo, não deve exceder, salvo decisão fundamentada em contrário do juiz da insolvência, três vezes o salário mínimo nacional” (art.º 239 n.º 3 b), i) do CIRE).

II. A dedução em causa alicerça-se no princípio da dignidade humana e entre o interesse legítimo, mas conflituante, do credor na satisfação do seu crédito, e o direito do devedor a manter um rendimento que lhe permita viver com ressalva da dignidade mínima, a lei consagra o recuo do primeiro.

III. Todavia, o critério legal dá claro acolhimento ao princípio de que ao sacrifício financeiro dos credores terá de corresponder o sacrifício do insolvente, através da compressão das suas despesas, de modo que só as necessárias à sua sobrevivência com salvaguarda de um mínimo de dignidade poderão ser consideradas.

Decisão Texto Integral: I. Relatório
No Tribunal Judicial de Castelo Branco,
A... e B..., casados entre si, a residir na (...), em Castelo Branco, vieram, ao abrigo do disposto nos art.ºs 3.º, n.º 1, 18.º, 23.º e 264.º, n.º 1 do CIRE, requerer fosse declarada a sua insolvência, aí tendo declarado pretenderem beneficiar da exoneração do passivo restante, para o que disseram reunir os legais requisitos.
Alegaram, em síntese, ser o seu agregado familiar constituído pelos requerentes e uma filha menor, nascida a 12 de Junho de 2000, constituindo único rendimento disponível o salário auferido pelo requerente como trabalhador por conta de outrem, no valor de €690,00 líquidos x 12 meses.
Os requerentes suportavam uma prestação mensal no valor de € 500,00 para amortização do empréstimo contraído para aquisição de habitação própria, tendo todavia entrado em incumprimento, dada a manifesta impossibilidade de continuarem a suportar tal encargo. Para além da dívida contraída junto da D... com a apontada finalidade, e cujo montante ascende globalmente a valor superior a € 100 000,00, são ainda devedores à E..., sociedade de titularização de créditos, do montante de € 11 711,45; € 600,00 ao condomínio do lote 78, correspondente ao (...), com origem em quotas de condomínio vencidas e não pagas, e € 500,00 ao F..., quantia proveniente da utilização de cartão de crédito.
Deduziu oposição a credora CCG, com fundamento no facto do incumprimento dos requerentes exceder o prazo previsto no n.º 2 do art.º 231.º do CIRE, mas a Mm.ª juíza “a quo”, com os fundamentos constantes do despacho exarado de fls. 40 a 44, admitiu liminarmente o pedido de exoneração do pedido restante, determinando que durante os cinco anos posteriores ao encerramento do processo de insolvência, o rendimento disponível que os insolventes venham a auferir, qualquer que seja a sua fonte, com exclusão do valor de € 700,00, seja cedido à Sr.ª C..., assim nomeada fiduciária.
Inconformados com o decidido na parte em que fixou no aludido valor de € 700,00 o rendimento subtraído à cessão, apelaram os declarados insolventes B... e A... e, tendo apresentado alegações, remataram-nas com as seguintes necessárias conclusões:
“1 – A quantia fixada de 700,00 Euros para sustento dos insolventes e do seu agregado familiar é insuficiente atendendo à composição do agregado familiar e às despesas do mesmo,
2 – Com efeito, o agregado familiar dos insolventes é constituído pelos insolventes marido e mulher, bem como pela filha de ambos de 13 anos de idade e estudante.
3 – As despesas dos insolventes são as seguintes: agua, luz, gás, comunicações, renda de casa que irão suportar em montante não inferior a 300,00 Euros, atendendo a que a casa que era casa de morada de família se encontra apreendida para ser vendida, alimentação, vestuário, material escolar, despesas medicamentosas, e outras.
4 – Segundo a escala da OCDE também apelidada de “Escala de Oxford”, as necessidades de um agregado familiar não são integradas por necessidades iguais para todos os seus membros, porque tem que se tomar em consideração que o custo marginal de uma pessoa extra varia na medida em que o tamanho da família aumenta, ou na medida em que as necessidades dos diferentes membros podem ser distintas.
5 - Assim, para determinação da capitação dos rendimentos de um agregado familiar temos que o índice um é atribuído ao primeiro adulto do agregado familiar e o índice 0,7 aos restantes adultos do agregado familiar, enquanto às crianças se atribui sempre o índice 0,5.
6 – Entendimento sufragado no douto Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, proferido no processo nº 1254/12.5 TBLRA.FC1, proferido em 12/03/2013, e disponível em www.dgsi.pt.
7 - Nesta senda, considerando que o sustento minimamente digno de um requerente é assegurado com o montante de 485,00 Euros e considerando que é de 0,7 o peso dos restantes adultos e de 0,5 o peso da menor no aumento das necessidades do agregado familiar deverá o rendimento mínimo disponível para os requerentes ser aumentado para 1067,00 Euros.
8 - Assim, deverá o presente recurso ser admitido e julgado procedente e consequentemente deve o despacho proferido ser substituído por outro que exclua do rendimento disponível que os insolventes venham a auferir o equivalente 1067,00 Euros,
9 - Caso assim não se entenda deve o sustento mensal minimamente digno dos requerentes ser fixado em quantia correspondente a dois ordenados mínimos nacionais”.
       
Não foram apresentadas contra alegações.
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Assente que pelo teor das conclusões se define e delimita o objecto do recurso, a única questão submetida à apreciação deste Tribunal de recurso consiste em indagar se a quantia de € 700,00, que na decisão apelada foi considerado como mínimo indispensável à sobrevivência condigna dos devedores, se revela insuficiente, devendo tal montante ser fixado em € 1 067,00 por aplicação da denominada escala de Oxford ou, pelo menos, em valor equivalente a dois salários mínimos nacionais.
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II. Fundamentação
De facto
Embora não enunciados na decisão apelada, encontram-se assentes nos autos, com relevo para a questão a decidir, os seguintes factos:
1- Os requerentes A...e B..., casados entre si, foram declarados insolventes por sentença proferida em 16 de Janeiro de 2014, transitada em julgado, certificada de fls. 33 a 37 dos presentes autos.
2. O agregado familiar dos declarados insolventes é constituído pelos próprios e uma filha nascida a 12 de Junho de 2000, estudante.
3. A requerente mulher encontra-se desempregada, sendo o único rendimento do agregado constituído pelo salário do requerente marido, no valor líquido de € 697,25 tendo por referência o mês de Setembro de 2013, tendo-lhe sido debitada a quantia de € 62,50 sob o discriminativo “reembolso à empresa”.
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De direito
A exoneração do passivo restante, privativa das pessoas singulares, “traduz-se na liberação definitiva do devedor quanto ao passivo que não seja integralmente pago no processo de insolvência ou nos cinco anos posteriores ao seu encerramento, nas condições fixadas no incidente”[1], exceptuadas as dívidas elencadas no n.º 2 do art.º 245.º (cf. art.º 235.º do CIRE). Com a apontada excepção, a exoneração constitui um facto extintivo de todos os créditos sobre a insolvência não satisfeitos à data em que for concedida.
Com a exoneração visou-se proporcionar ao devedor pessoa singular um recomeço (fresh start) em condições que lhe permitam reintegrar-se plenamente na vida económica. Todavia, visando harmonizar tal reconhecido interesse do devedor com aquela que é a finalidade última do processo insolvencial, a saber, a satisfação dos credores do insolvente (cf. art.º 1.º. 1.ª parte do referido diploma legal), previu-se a cedência ao fiduciário nomeado, durante o aludido prazo, do rendimento disponível do devedor, quantia destinada ao pagamento das custas do processo de insolvência, dos reembolsos do dispêndio do Cofre Geral dos Tribunais com as remunerações e despesas do administrador e fiduciário, da remuneração vencida e das despesas deste último, e à distribuição do remanescente pelos credores da insolvência (cf. artºs 235.º e 241.º, als. a) a d) do CIRE).
O rendimento disponível objecto da cessão ao fiduciário é integrado por todos os rendimentos que, naquele período, advenham, por qualquer título, ao devedor (art.º 239 nº 3, corpo, do CIRE), excluindo-se porém “o que seja razoavelmente necessário, designadamente para o sustento digno do devedor e do seu agregado familiar, que, contudo, não deve exceder, salvo decisão fundamentada em contrário do juiz da insolvência, três vezes o salário mínimo nacional” (art.º 239 n.º 3 b), i) do CIRE).
Conforme já tivemos oportunidade de referir[2], a dedução aqui prevista alicerça-se no princípio da dignidade humana, expressamente referido no art.º 1.º da DDH e acolhido na nossa Constituição (vide art.ºs 1.º e 59.º, n.º 1, al. a). Entre o interesse legítimo, mas conflituante, do credor na satisfação do seu crédito, e o direito do devedor a manter um rendimento que lhe permita viver com ressalva da dignidade mínima que, como pessoa, lhe é reconhecida, a lei consagra o recuo do primeiro. Todavia, o critério legal dá claro acolhimento ao princípio de que ao sacrifício financeiro dos credores terá de corresponder o sacrifício do insolvente, através da compressão das suas despesas, porquanto só as necessárias à sobrevivência do devedor com salvaguarda de um mínimo de dignidade poderão ser consideradas.
A densificação do enunciado legal -“o razoavelmente necessário ao sustento minimamente digno do devedor e seu agregado”- apela assim, e por um lado, a um critério objectivo fornecido pela lei quando estabelece um limite máximo -não pode, salvo excepção especialmente fundamentada, exceder o equivalente a três SMN- e à análise casuística por outro, impondo-se ao Tribunal que atenda às circunstâncias concretas e peculiares de cada devedor e respectivo agregado. No entanto, cumpre advertir que “[o] que releva para a questão que estamos a analisar é aquilo que é razoável gastar para prover ao seu sustento com o mínimo de dignidade, já que apenas isso lhe pode e deve ser garantido, dada a situação de insolvência em que se encontra.
De facto, o que está aqui em causa não é assegurar ao devedor o padrão de vida que tinha antes da insolvência, mas apenas garantir que disponha da quantia necessária para prover ao seu sustento com o mínimo de dignidade, já que, como é evidente, não seria admissível que o devedor – que incorreu em situação de insolvência – pudesse beneficiar da exoneração do passivo restante e, ao mesmo tempo, ver assegurado, à custa dos credores, o padrão de vida que tinha antes. A satisfação dos direitos dos credores por via do património do devedor apenas pode e deve ceder perante a necessidade de satisfação das necessidades básicas do devedor, não sendo legítimo pretender que os credores devam sofrer o prejuízo inerente à impossibilidade de satisfação dos créditos (por não ser possível utilizar, para esse efeito, uma larga fatia do rendimento do devedor), apenas para que o devedor pudesse continuar a usufruir de um determinado padrão de vida que tinha antes da insolvência (que até poderia ser muito elevado e que, eventualmente, até poderia corresponder a um padrão de vida muito acima das reais possibilidades do devedor)”[3].
Assim colocados, como nos parece que devem ser, os termos da questão, logo se vê que o apelo à denominada escala de Oxford - utilizada para apurar a capitação dos rendimentos do agregado familiar e não para determinar o que é razoavelmente necessário para garantir o sustento minimamente digno do devedor e do seu agregado familiar- não é critério que a nossa lei tenha acolhido[4].
Por outro lado, se o montante fixado a título de SMN poderá ser uma referência a atender, o que é determinante é o apuramento do montante necessário à satisfação das necessidades básicas de um agregado composto de três pessoas, um casal e uma adolescente em idade escolar, sem que tenha sido feita prova de encargos especiais. Com efeito, e embora em sede de alegações os apelantes invoquem a insuficiência do montante de € 700,00 para custear os despesas com água, luz, gás, comunicações, renda de casa que irão suportar e que estimam em montante não inferior a € 300,00 (isto atendendo a que aquela que era a casa de morada de família se encontra apreendida para ser vendida), alimentação, vestuário, material escolar, despesas medicamentosas e outras, a verdade é que nenhuma prova foi feita no sentido da demonstração do montante de tais despesas.
Por outro lado, o que se verifica é que o montante em causa é até ligeiramente superior ao rendimento de que o agregado actualmente dispõe -sendo certo que, segundo os próprios requerentes alegaram, procederam durante meses ao depósito da quantia de € 300,00 na D... tendo em vista a amortização do empréstimo contraído, então na expectativa de uma renegociação da dívida que não se veio a concretizar, sem que tenham trazido aos autos qualquer facto tendente à demonstração que da afectação dessa quantia tenha resultado inviabilizada a satisfação das demais necessidades básicas.
Deste modo, não sendo de atender a argumentação pelos recorrentes expendida no recurso, desde logo porque sem suporte na factualidade que resulta assente dos autos, mantém-se a decisão apelada.
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III Decisão
Em face a todo o exposto, e na improcedência do recurso, acordam os juízes da 1.ª secção cível deste Tribunal da Relação de Coimbra em manter a decisão apelada.
Custas pelos apelantes.

Maria Domingas Simões (Relatora)

Nunes Ribeiro

Helder Almeida


[1] Carvalho Fernandes e João Labareda, CIRE anotado, 2.ª edição, pág. 894.
[2] Em aresto de 5/2/2013, proferido no processo 2046/10.1 TBVIS.C1, acessível em www.dgsi.pt, relatado pela ora relatora.
[3] Do acórdão desta Relação de 24/3/2014, proferido no processo n.º 3284/13.4 TBVIS-C.C1, acessível em www.dgsip.pt, que a ora relator subscreveu como 2.ª adjunta.
[4] Assim, também o acórdão desta Relação de 17 de Junho de 2014, processo n.º 2030/11.8 TBFIG, que a ora relatora subscreveu como 1.ª adjunta.