Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1045/08.8TBCBR-A.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: TÁVORA VÍTOR
Descritores: PROVA PERICIAL
Data do Acordão: 06/29/2010
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COIMBRA
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTIGO 576º E SS DO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL
Sumário: 1) A prova pericial, aliás como toda a prova, está sujeita, na respectiva produção, a um determinado número de regras de direito probatório formal, perícia pode reportar-se, quer aos factos articulados pelo requerente, quer aos alegados pela parte contrária".

2) Tal não significa que tenha de haver uma coincidência absoluta entre as questões formuladas aos pe­ritos e os pontos (antigos quesitos) versados na Base instrutória;

3) O que releva fundamentalmente para a admissão da perícia é que a mesma se reporte ao núcleo fundamental da questão ou questões que se pretendem ver esclarecidas independentemente de tal esclarecimento poder pôr em causa ou não alguns pontos de um outro relatório pericial junto aos autos.

Decisão Texto Integral:        1. RELATÓRIO.

     Acordam na secção cível do Tribunal da Relação de Coimbra.

     Na acção com processo ordinário que A... move contra os RR. B...., C...., D..., E... e F..., requererem os RR. B... D... e HIH SA. a realização de uma perícia nos termos do artigo 577º do Código de Processo Civil com vista a apurar se à data em que outorgou o contrato que está referido no artigo 54º da Petição o Autor A... sofria de doença ou perturbação que tolhessem a sua capacidade de percepção, entendimento, de raciocínio ou formulação e expressão da sua vontade e notoriedade junto de terceiros.

     Para objecto da prova pericial requerida, formularam os RR. os seguintes quesitos, que aqui se dão por reproduzidos:  

     1º O diagnóstico constante dos documentos (Doc n° 3) pode considerar-se isento de dúvida clínica ou insusceptível de segunda opinião?

     2° Outros elementos complementares de observação e exame que não hajam – sido considerados poderiam levar a um diagnóstico divergente?  

     3° A documentação clínica dos autos evidencia que estava instituída uma terapêutica adequada face à patologia diagnosticada?    

     4° Quais poderiam ser os efeitos dessa medicação?

     5° Qual a probabilidade de sucesso da terapêutica instituída?    

     6° A mesma documentação evidencia que o Autor, na data em que outorgou o contrato que está referido no artigo 54º da petição, estava sob o efeito dessa terapêutica?        

     7° O diagnóstico constante dos documentos referidos evidencia que na data em que outorgou o contrato que está referido no artigo 54 da petição, o A... evidenciava sintomas segundo os quais estaria privado ou diminuído da sua capacidade de percepção en­tendimento de raciocínio ou formulação e expressão da sua vontade?   

     À admissão dos quesitos acima enunciados opôs-se o A., ora Apelante, alegando que os factos neles contidos não têm qualquer correspondência, nem nos factos alegados pelos RR. nos articulados que oportunamente apresentaram, nem, muito menos, nos factos constantes da base instrutória (não tendo os RR. identificado qualquer quesito da mesma sobre o qual a perícia deva re­cair).     

     Requereu por conseguinte o A., ora Apelante, o in­deferimento da referida prova pericial.  

     Não obstante a oposição apresentada a prova pericial foi admitida tendo decidido o despacho judicial ora em recurso que "Muito embora as questões... indicadas não estejam expressamente vertidas em artigos da Base Instrutória, estão directamente relacionadas com a matéria controvertida", determinando que "nessa medida defere-se a realização da perícia, que terá por objecto o indicado pelas/partes a fls. 545 e 525. II.

     Daí o presente recurso de apelação interposto pe­los RR. os quais no termo da sua alegação pediram que se revogue o despacho em análise.

     Foram para tanto apresentadas as seguintes,

     Conclusões.

     a) Nos quesitos 1° a 7º que pretendem submeter a prova pericial, os RR. limitam-se, tão só, a controverter o conteúdo do relatório médico junto aos autos pelo A., cujos factos já foram apreciados por um especialista com conhecimentos técnicos especiais e vão novamente ser escrutinados através de prova pericial admitida nos autos.  

     b) Em lado nenhum daqueles quesitos, os peritos são chamados a percepcionar os factos do foro psiquiátrico do Autor, juridicamente relevantes na decisão da presente causa, mas apenas são solicitados a emitir um juízo crítico sobre o conteúdo do mencionado relatório médico já elaborado, concretamente sobre o mérito do diagnóstico e a possibilidade de diagnósticos divergentes, sobre a adequação e sucesso da terapia aplicada e sobre os efeitos da medicação ministrada ao A ..

     c) Afigura-se, por conseguinte, ao Apelante, que o que os RR. verdadeiramente pretendem é uma perícia ao referido documento, através da prestação de esclarecimentos periciais complementares, o que não só não se insere no âmbito do conceito legal de perícia, como se revela perfeitamente inútil, dado que, conforme referido, os factos constantes daquele relatório vão ser submetidos a prova pericial.

     d) Não podem, por isso os RR., ao abrigo de uma pretensa prova pericial, suscitar a apreciação de questões que não cabem no seu âmbito legal, motivo pelo qual devem os referidos quesitos ter-se por não escritos.

    

     Contra-alegaram os requeridos pugnando pela confirmação do decidido.

     Foram dispensados os vistos.

     Cumpre decidir.

     2. FUNDAMENTOS.

     2.1. Factos.         

    

     Os factos que interessam à decisão da causa cons­tam do despacho agravado.

     Assim, não tendo sido impugnada a matéria de facto nem havendo tão pouco qualquer alteração a fazer-lhe, nos termos do preceituado no artº 713º nº 6 do Código de Processo Civil, dá-se aqui a mesma por reproduzida.

                           *

     2.2. O Direito.

     Nos termos do preceituado nos artsº 660º nº 2, 684º nº 3 e 690º nº 1 do Código de Processo Civil, e sem prejuízo das questões cujo conhecimento oficioso se imponha, as conclusões da alegação de recurso delimitam os poderes de cognição deste Tribunal. Nesta conformidade e considerando também a natureza jurídica da matéria versada, cumpre focar os seguintes pontos:

    

     - A prova pericial sua finalidade e concretização.  - O caso vertente.

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     2.2.1. A prova pericial; sua finalidade e concretização.

     A prova pericial tem como finalidade, diz-nos o artigo 388º do Código Civil, "a percepção ou apreciação de factos por meio de peritos, quando sejam necessários conhecimentos especiais que os julgadores não possuem, ou quando os factos, relativos a pessoas, não devam ser objecto de inspecção judicial". E o artigo seguinte refere que o valor da prova pericial está também sujeito à livre apreciação do juiz. A prova em causa é realizada, a partir da reforma de 1995/1996, por um único perito, abandonando-se também a distinção que se fazia acerca das várias subespécies de arbitramento (exame: quando tinha por fim a averiguação em coisas móveis ou em pessoas; vistoria quando se destinava a averiguar factos em coisas imóveis que aí tivessem deixado vestígios ou fossem susceptíveis de inspecção ou exame ocular.

     A prova pericial, aliás como toda a prova, está sujeita na respectiva produção a um determinado número de regras de direito probatório formal, previstas nos artigos 576º ss do Código de Processo Civil. Nomeadamente o artigo 577º nº 2 estatui que "a perícia pode reportar-se, quer aos factos articulados pelo requerente, quer aos alegados pela parte contrária". Todavia tal não significa que tenha de haver uma coincidência absoluta entre as questões formuladas aos peritos e os pontos (antigos quesitos) versados na Base instrutória[1]; Entendemos também que o que releva fundamentalmente para a admissão da perícia é que a mesma se reporte ao núcleo fundamental da questão ou questões que se pretendem ver esclarecidas. Esta solução é a nosso ver a que está mais de acordo com o espírito do novo processo civil e ao mesmo tempo a que viabiliza a descoberta da verdade material com ampla igualdade de armas para todas as partes intervenientes na lide, já que igualmente é dado esclarecer a problemática em análise na multiplicidade de facetas de que pode revestir-se.

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     2.2.2. O caso vertente.

     Esboçadas as considerações que acima deixámos expendidas vejamos qual a sorte do recurso face às mesmas.

     O Autor intentou acção com processo ordinário contra os RR. pedindo que:

     - Seja julgada procedente e assim anulado na totalidade o contrato de aumento de capital e alteração do pacto social da sociedade Ré HIH SA celebrado em 10 de Agosto de 2007 em que intervieram todos os sócios da referida sociedade por absoluta incapacidade de facto permanente do ora Autor no momento da sua celebração.

     Ou, se assim se não entender:

     - Seja anulado por incapacidade acidental do Autor no momento da sua celebração nos termos do artigo 257º do Código Civil.

     - Sejam os RR. condenados a restituir imediatamente ao Autor as seguintes quantias por ele realizadas:

     - € 160.000,00 a título de participação social;

     - € 640.000,00 como prémio de emissão.

     - € 700.000,00 a título de "prestações suplementares não remuneradas à sociedade bem como os respectivos juros contados à taxa legal a partir da data da citação, tudo num total de € 1.500.000,00.

     Pretendendo o Autor ver anulado o contrato por in­capacidade permanente ou acidental, apresentou parecer de um Professor de Psiquiatria junto a fls. que aponta para um diagnóstico de patologia esquizo-afectiva. Agora pretendem os RR., além do mais, pôr em causa tal diagnóstico através de uma perícia, tendo para tanto junto os respectivos quesitos que são os que acima vêm apontados. O Sr. Juiz entendeu admitir tal exame pericial que agora o Autor coloca em causa.

     Após ponderar a natureza e finalidade do aludido exame, concluímos que não há razão para alterar o que se decidiu em primeira instância. Os quesitos formulados enquadram-se dentro da questão fundamental de apurar se quando celebrou o contrato a que alude o artigo 54º da Petição Inicial, o Autor se encontrava no pleno uso das suas faculdades, nada havendo que impeça que se coloque em causa o parecer médico supracitado; e isto é tanto mais razoável quanto é certo que aquele não tem juridicamente um valor absoluto e o Autor tem a possibilidade de usar em relação aos RR. e em prol da prova da sua tese, os meios a que se reporta o disposto no artigo 578º do Código de Processo Civil.

     Nesta conformidade entendemos não alterar o decidido em primeira instância.                

     Poderá assim assentar-se à guisa de sumário e conclusões:

     1) A prova pericial, aliás como toda a prova, está sujeita, na respectiva produção, a um determinado número de regras de direito probatório formal, perícia pode reportar-se, quer aos factos articulados pelo requerente, quer aos alegados pela parte contrária".

     2) Tal não significa que tenha de haver uma coincidência absoluta entre as questões formuladas aos pe­ritos e os pontos (antigos quesitos) versados na Base instrutória;

     3) O que releva fundamentalmente para a admissão da perícia é que a mesma se reporte ao núcleo fundamental da questão ou questões que se pretendem ver esclarecidas independentemente de tal esclarecimento poder pôr em causa ou não alguns pontos de um outro relatório pericial junto aos autos.

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     3. DECISÃO.

     Pelo exposto acorda-se em julgar a apelação improcedente confirmando a decisão apelada.

     Custas pelo apelante.


Relator: Paulo Távora Vítor
Exmos. Desemb. Adjuntos:
Drs. Nunes Ribeiro e Hélder Almeida

      [1] Como refere Antunes Varela "os quesitos podem obviamente não incidir de modo directo sobre os factos seleccionados no questionário mas sobre factos instrumentais (que permitam com base nos dados da experiência comum ou dos conhecimentos especializados dos peritos, tirar ilações acerca deles). Cfr. A. citado e Outros "Ma­nual de Processo Civil", Almedina, pags. 579.