Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
533/09.3TAMMV.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: MARIA JOSÉ NOGUEIRA
Descritores: CONSTITUIÇÃO DE ASSISTENTE
LEGITIMIDADE DO PROPRIETÁRIO DO BEM A EXPROPRIAR
Data do Acordão: 03/07/2012
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DE MONTEMOR-O-VELHO
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ART.º 68º, N.º 1, AL. A), DO C. PROC. PENAL
Sumário: A denunciante, pelo facto de ter visto comprimido, com a publicação da declaração de utilidade pública, o direito de livre disposição do bem, continuou, não obstante, a ser do mesmo titular, conservando, naturalmente, todo o interesse em defendê-lo de agressões externas que pudessem contribuir para a sua desvalorização, ou seja, “em que a coisa mantenha o seu valor económico, que não haja prejuízo para o seu estado ou para a sua substância”.

Não tendo ainda ocorrido, à data dos factos denunciados, quer a vistoria ad perpetuam rei memoriam (destinada a registar o estado dos bens a expropriar, antes da investidura da entidade beneficiária da expropriação na sua posse, designadamente os elementos susceptíveis de desaparecimento, relevantes para o julgamento da causa, ou seja, em última análise, para determinar a justa indemnização), quer a efectivação da posse administrativa, tal significa que a expropriada, para além da qualidade de proprietária, detinha relativamente ao bem expropriado, embora com a restrição apontada, os demais direitos que conformam o direito de propriedade, conferindo-lhe os mesmos legitimidade para, sendo o bem alvo de ofensa, o defender em juízo, designadamente na sua integralidade, já como proprietária, já como possuidora, em suma, como «titular dos interesses que a lei especialmente quis proteger com a incriminação» (estando em causa, no caso, o crime de “furto”).
Decisão Texto Integral: I. Relatório

1. No âmbito do processo n.º 533/09.3TAMMV do Tribunal Judicial de Montemor-O-Velho, que se iniciou com a denúncia contra desconhecidos por parte de A..., finda a fase de Inquérito o Ministério Público, por despacho de 14.06.2011, considerando que não foram recolhidos indícios suficientes, quer da prática do crime – furto qualificado - quer dos seus agentes, determinou o arquivamento dos autos – [cf. fls. 454 a 462].

2. Inconformada com o assim decidido, requereu, em simultâneo, a denunciante a sua constituição como assistente e a abertura da Instrução – [cf. fls. 471 a 479].

3. Pretensão que foi objecto do despacho judicial de 02.09.2001, que indeferiu a requerida constituição como assistente e, em consequência, a abertura da fase de Instrução.

4. Inconformada com a decisão recorreu A... , extraindo da respectiva motivação as seguintes conclusões [o que fez na sequência da notificação que, para o efeito, lhe foi dirigida ao abrigo do disposto no artigo 417º, nº 3 do CPP]:

1. A Requerente, à data dos factos, era ainda proprietária da parcela de terreno em causa, como, aliás, foi reconhecido em Douto Despacho, gozando por tal, de direito de propriedade sobre a mesma;
2. Consequentemente, por ser proprietária e gozar do direito de propriedade, a Requerente é titular do interesse «especialmente protegido» pela incriminação, podendo, assim, considerar-se como ofendida;
3. Por não terem sido verificados os pressupostos/condições de efectivação da posse administrativa, constantes do Art.º 20.º, nº 1, do C. E., nomeadamente, por falta de verificação das alíneas b) e c), sendo a Requerente proprietária, tem o direito de se constituir ofendida e assim, tem igualmente, legitimidade para se constituir Assistente;
4. Gozando dessa qualidade processual, pode requerer a abertura da Instrução como é seu intento. Pelo que,
5. A MM.ª Juíza violou com o seu despacho o disposto no Artº 20.º, n.º 1, do Código das Expropriações.

Termos em que e nos demais de direito requer a V.ª Ex.ª que:

I. Seja admitida a sua intervenção no processo como Assistente nos presentes autos e,
II. Seja declarada a abertura de Instrução e, consequente produzida a prova indicada, devendo, a final, ser proferido despacho de pronúncia.

5. Ao recurso respondeu o Ministério Público, concluindo:

1. A recorrente não cumpriu o ónus de especificação constante dos n.ºs 3 e 4 do art.º 412º do Código de Processo Penal já que as alegações de recurso não contêm conclusões pelas quais se conheça, em resumo, as razões do pedido.
2. Assim, nos termos do n.º 3 do art.º 417º do Cód. de Proc. Penal, deverá a recorrente ser convidada a apresentar as conclusões do recurso no prazo de dez dias.
3. No art.º 68º, n.º 1, al. a) do Cód. de Processo penal consagrou-se um conceito estrito, imediato ou típico de ofendido, revelando uma clara intencionalidade do legislador estabelecer o equilíbrio possível entre o interesse dos particulares em intervir no processo penal e a necessidade de proteger as finalidades do processo.
4. A definição de ofendido em processo penal reconduz-se à individualização do objecto jurídico do crime, do bem protegido por cada incriminação.
5. No caso do tipo legal do crime de furto, conclui Faria da Costa que “é absolutamente lógico poder afirmar-se que o bem jurídico protegido é a disponibilidade da fruição das utilidades da coisa com um mínimo de representação jurídica” pelo que o titular do interesse protegido pela norma é “aquele que tem […] a disponibilidade da fruição das utilidades da coisa com um mínimo de representação jurídica”.
6. Nos termos do disposto nos art.ºs 15º e 20º do Código das Expropriações, a declaração de utilidade pública e a atribuição de carácter urgente à expropriação do prédio da recorrente conferiu de imediato à entidade expropriante a posse administrativa do prédio.
7. Com efeito, atribuído carácter de urgência à expropriação para obras de interesse público acto administrativo da expropriação é imediatamente eficaz, não carecendo de nenhum outro que o venha concretizar, e define a título definitivo os direitos da recorrente, conformando-os em termos de os restringir.
8. Neste enquadramento jurídico, embora formalmente ainda seja proprietária do bem, conferida à Câmara Municipal de Montemor-o-Velho a posse administrativa do prédio, a recorrente viu os seus poderes de fruição do bem e das suas utilidades totalmente conformados e restringidos, não podendo assim reagir aos actos materiais de disposição praticados sobre aquele.
9. Assim, o interesse particular da recorrente na determinação do valor das areias extraídas do prédio para efeitos de fixação da indemnização pela expropriação não pode merecer a tutela da norma incriminadora já que, em momento anterior à data da prática dos factos, em consequência da posse administrativa do bem, a recorrente, e utilizando a terminologia de Faria da Costa, tinha perdido de forma inequívoca a disponibilidade da fruição das utilidades da coisa com um mínimo de representação jurídica, não sendo assim titular do interesse especialmente protegido pela norma.
10. Motivo pelo qual, por falta de legitimidade, não poderá a recorrente ser admitida a intervir no qualidade de assistente nos autos.

Termos em que deverá ser indeferido o recurso interposto, assim se fazendo Justiça!

6. Admitido o recurso, fixado o regime de subida e efeito, foram os autos remetidos a este tribunal.

7. Na Relação o Ilustre Procurador – Geral Adjunto apôs o seu visto.
8. Realizado o exame preliminar e colhidos os vistos foram os autos à conferência, cumprindo, agora, decidir.

II. Fundamentação

1. Delimitação do objecto do recurso

De harmonia com o disposto no n.º 1 do artigo 412.º do CPP e conforme jurisprudência pacífica do Supremo Tribunal de Justiça o âmbito do recurso é delimitado em função do teor das conclusões extraídas pelo recorrente da respectiva motivação só sendo lícito ao tribunal ad quem apreciar as questões desse modo sintetizadas, sem prejuízo das que importe conhecer oficiosamente, como são os vícios da sentença previstos no artigo 410.º do CPP, mesmo que o recurso se encontre limitado à matéria de direito – [cf. acórdão do Plenário das Secções Criminais do STJ de 19.10.1995, DR, I Série – A, de 28.12.1995].

No caso em apreço o que urge decidir traduz-se em saber se a recorrente A... tem legitimidade para se constituir assistente nos presentes autos – os quais tiveram início com a denúncia da sua parte - onde imputa a desconhecidos a prática de factos susceptíveis de integrar os crimes de furto e/ou dano qualificados no prédio rústico, melhor identificado nos autos, do qual, à data dos mesmos, era proprietária, ocorridos em momento posterior à publicação da declaração de utilidade pública com carácter de urgência da expropriação do aludido prédio rústico, mas anterior à realização da vistoria ad perpetum rei memoriam, e, bem assim, ao depósito ou pagamento da indemnização à expropriada – a dita denunciante.

2. A decisão recorrida

Ficou consignado no despacho recorrido:

“Requerimento de fls. 471 e segs.:
A..., veio a fls. 417, requerer a sua constituição como assistente, bem como a abertura de instrução por não se conformar com o despacho de arquivamento proferido nos autos.
*
O Digno Magistrado do Ministério Público promoveu o indeferimento do requerido, por a requerente não ter legitimidade para se constituir assistente.
*
Apreciando e decidindo:

Dispõe o art. 68º nº 1 a) do Código de Processo Penal (CPP) que podem constituir-se assistentes no processo penal “os ofendidos, considerando-se como tais os titulares dos interesses que a lei especialmente quis proteger com a incriminação, desde que maiores de 16 anos”.
De acordo com a generalidade da doutrina, consagrou-se nesta norma um conceito estrito imediato ou típico de ofendido, no seguimento aliás do que já vem sendo uma longa tradição no nosso direito processual penal.
Com efeito, diz-nos o Prof. Figueiredo Dias – opinião que recolhe actualmente a unanimidade da nossa doutrina e jurisprudência – “ (…) a nossa lei parte do conceito estrito de ofendido na determinação do círculo de pessoas legitimadas para intervir como assistentes em processo penal” (Processo Penal, Vol. I., Coimbra Editora, pág. 513).
E acrescenta ainda, que desde há longo tempo que a nossa legislação vem usando fórmulas como “partes particularmente ofendidas”, “cidadãos directa e pessoalmente ofendidos”, “pessoas directamente ofendidas”, por forma a restringir o âmbito das pessoas que se podem constituir assistentes no processo penal (ob. e loc. cit., págs. 505 e segs.).
Também Cavaleiro de Ferreira, in Curso de Processo Penal, Vol. I., págs. 129 e 130, refere-se a esta questão nos seguintes termos: “Não é ofendido qualquer pessoa prejudicada com a perpetração da infracção; ofendido é somente o titular do interesse que constitui o objecto jurídico imediato da infracção. O objecto jurídico mediato é sempre de natureza pública. O objecto imediato, que aliás serve fundamentalmente de base à classificação das infracções, pode ter por titular um particular (…)”.
Germano Marques da Silva, in Curso de Processo Penal, Vol. I., págs. 302 a 303, a propósito do conceito de ofendido, apelando aos ensinamentos de Cavaleiro de Ferreira, faz igualmente notar que “(…) só se considera ofendido, para os efeitos do art. 68º nº 1 al. a) do C.P.P., o titular do interesse que constitui objecto jurídico imediato do crime, e que, por isso, nem todos os crimes têm ofendido particular, só o tendo aqueles em que o objecto imediato da tutela jurídica é um interesse ou direito de que é titular um particular”.
E considera este mesmo Autor, in Processo Penal Preliminar, págs. 425 e segs., que um conceito restritivo de ofendido corresponde a uma clara intencionalidade do legislador, a uma tentativa de estabelecer o equilíbrio possível entre o interesse dos particulares em intervir no processo penal e a necessidade de proteger este processo – que deve ser dominado por critérios de objectividade e imparcialidade – dessa intervenção, na medida em que se pode revelar um factor de perturbação.
No sentido de um conceito estrito de ofendido, podem citar-se, entre muitos outros, o Acórdão da Relação de Coimbra de 29 de Janeiro de 1992, in C.J. (1992), Tomo I., págs. 111 e segs., onde se lê: “I. Não é ofendido, para efeitos de constituição como assistente, qualquer pessoas que tenha sido prejudicada com a prática do delito, mas apenas aquele que seja titular do interesse que constitui «o objecto jurídico imediato desse delito». Acórdão da Relação do Porto de 24 de Outubro de 1990, in BMJ. 400, pág. 735: I. Só tem legitimidade para se constituir assistente o titular do interesse «especialmente protegido» pela incriminação”.
Assim, para sabermos quem pode ser considerado ofendido em determinado crime, e portanto quem poderá constituir-se assistente num processo por esse crime, há que fazer uma interpretação do respectivo tipo incriminador, por forma a averiguar se existe ou não uma pessoa concreta cujos interesses são protegidos através dessa incriminação.
Partindo agora, com base nas considerações tecidas, para a análise do caso em apreciação, temos que nos presentes autos se investigaram factos susceptíveis de integrarem a prática de um crime de furto qualificado e de um crime de dano qualificado, porquanto, em Novembro de 2009, foram efectuadas movimentações de terras e extracção de areias no prédio rústico sito no lugar da Ínsua do Bico, inscrito na matriz da freguesia de Santo Varão sob o artigo … , e inscrito na Conservatória do registo Predial de Montemor-o-Velho sob o nº … da referida freguesia de que a requerente é proprietária.
Conforma resulta dos autos, por despacho, publicado no D.R. n.º 170, II série, de 02 de Setembro de 2009, foi declarada a utilidade pública, com carácter de urgência da expropriação de uma parcelea de terreno do prédio rústico supra identificado, propriedade da requerente, para ampliação da Pista de Remos e Centro Náutico, parcela essa na qual foram praticados os actos denunciados, tendo a declaração de utilidade pública (DUP) sido notificada à requerente.
Mais resulta dos que em Novembro de 2009, ainda não tinha sido realizada a vistoria ad perpetum rei memoriam, nem depositada ou paga a indemnização devida à expropriada, ora requerente.
Certo é que a extinção do direito de propriedade por parte da expropriada só se efectiva com a adjudicação da propriedade plena, que só ocorrerá a partir do momento em que seja depositada ou paga a indemnização acordada ou efectuado o depósito fixado pelos árbitros (cfr. Ac. STJ de 13.10.2009, in www.dgsi.pt).
Por sua vez, a posse administrativa da parcela só pode ocorrer após a realização da vistoria ad perpetum rei memoriam (artigos 19º a 21º e 22º do Código das Expropriações).
Todavia, conforme se explana no Ac. TRP de 30.05.2011, in www.dgsi.pt: «Conforme é consabido o processo expropriativo desdobra-se em duas fases distintas: uma fase administrativa, promovida pela entidade expropriante, que se inicia com a DUP e termina com a remessa dos autos a tribunal (artigo 51.º do CE), e uma fase judicial que é da competência do juiz e na qual a entidade expropriante assume a posição de parte, em igualdade de armas com o expropriado.
A DUP é concretizada através de um acto administrativo, conforme expressamente estipula o artigo 13º, n.º 2 do CE, publicada no DR e notificada aos expropriados (artigo 17.º, n.º 1 do CE), e visa determinados efeitos jurídicos numa situação individual e concreta, consubstanciando-se num acto normativo emanado pelo organismo ministerial competente (artigos 13.º, n.º 2 e 14º, nº 1 do CE).
Na DUP são identificadas as parcelas através das menções das descrições e inscrições em vigor, sem prejuízo, nomeadamente, do recurso a plantas parcelares contendo as coordenadas dos pontos que definem os limites das áreas a expropriar, reportadas à rede geodésica (artigo 10.º, n.º 2 do CE).
(…)
Por sua vez, o auto de posse administrativa da parcela relata a investidura administrativa na posse do bem e tem um conteúdo meramente descritivo, assentando a sua legalidade na DUP e só pode ocorrer após a realização da vistoria ad perpetum rei memoriam (artigos 19.º a 21º e 22.º do CE).
Esta, tal como prescreve o artigo 21.º, n.º 1 e 4 do CE, consiste numa descrição pormenorizada do local, socorrendo-se para o efeito dos elementos a que aludem as alíneas a) a d) do nº 1 do artigo 10.º do CE, ou seja, da descrição predial e inscrição matricial, bem como de todos os elementos susceptíveis de influenciarem na determinação da indemnização.
Da natureza e finalidade destes actos extrai-se que a identificação concreta da parcela expropriada, juridicamente válida, radica no conteúdo e na natureza da DUP.
É através da DUP, acto materialmente administrativo, impugnável contenciosamente, que o Estado cria uma relação jurídica administrativa com os expropriados, enquanto sujeitos do processo expropriativo, com vista á produção de determinados efeitos jurídicos, ou seja, o proprietário do bem expropriado fica vinculado ao dever de transferir, mediante o recebimento de uma indemnização, para a entidade expropriante, a favor de quem a declaração é feita, cessando para ele o direito de livre disposição, direito este que caracteriza o direito de propriedade.».
Temos, pois, que é através da DUP, acto materialmente administrativo, que o proprietário do bem expropriado fica vinculado ao dever de transferir, mediante o recebimento de uma indemnização, para a entidade expropriante, a favor de quem a declaração é feita, cessando para ele, o direito de livre disposição, direito este que caracteriza o direito de propriedade.
Assim sendo, resulta que à data da prática dos factos denunciados, ocorridos em Novembro de 2009, após a declaração de utilidade pública da parcela de terreno onde os mesmo foram cometidos, havia já cessado para a ora requerente, ainda proprietária de tal parcela, o direito de livre disposição da mesma, que caracteriza o direito de propriedade e, como tal, não se pode considerar a mesma como ofendida, pois à data da prática dos factos denunciados e investigados, não era a mesma a titular do interesse «especialmente protegido» pela incriminação.
Temos, pois, que a ora requerente não tem legitimidade para se constituir assistente nos autos.
Pelo exposto, e por falta de legitimidade para tal, não admito a requerente, A... Barcelos Soares Mendes Godinho, a intervir nos autos como assistente.
Notifique.
*
Nos termos do disposto no art. 287º, nº 1, al. b) do C.P.P., a abertura de instrução apenas pode ser requerida pelo arguido, nos casos previstos na al. a) do nº 1 do citado preceito legal, ou pelo assistente, se o procedimento não depender de acusação particular, relativamente a factos pelos quais o Ministério Público não tiver deduzido acusação, nos termos prescritos na al. b) do mesmo preceito.
Ora, no caso em apreço, a requerente da abertura de instrução não detém a qualidade processual de assistente (nem é arguida), pelo que não tem a mesma legitimidade para requerer a abertura de instrução.
Assim, e pelo exposto, rejeito o requerimento de abertura de instrução.
(…)”.

3. Apreciando

Ressalta do despacho em crise ter a ora recorrente participado criminalmente, contra desconhecidos, por factos ocorridos, em Novembro de 2009, no prédio rústico sito no lugar da Ínsua do Bico, ali melhor identificado – de que é proprietária -, factos, esses, susceptíveis de fazer incorrer os seus autores na prática de um crime de furto e/ou dano qualificados.
Também resulta da decisão que à data dos mesmos [Novembro de 2009], já havia sido declarada a utilidade pública, com carácter de urgência da expropriação de uma parcela do terreno supra identificado – parcela onde terão sido realizadas as denunciadas movimentações de terras e extracções de areias –, o que se verificou com o despacho publicado no D.R. n.º 170, II série, de 02.09.2009.
Mais decorre que em Novembro de 2009 ainda não havia sido realizada a vistoria ad perpetum rei memoriam, nem depositada ou paga a indemnização devida à expropriada.
Donde ser pacífica, à data dos factos denunciados, a qualidade de proprietária da dita parcela de terreno por parte da, ora, recorrente - [cf., vg. o acórdão TRE de 29.05.2008, proc. n.º 3128/07 – 3]
Contudo, o tribunal a quo, transcrevendo o acórdão do TRP de 30.05.2011, designadamente o segmento onde refere: É através da DUP, acto materialmente administrativo, impugnável contenciosamente, que o Estado cria uma relação jurídico administrativa com os expropriados, enquanto sujeitos do processo expropriativo, com vista à produção de determinados efeitos jurídicos, ou seja, o proprietário do bem expropriado fica vinculado ao dever de transferir, mediante o recebimento de uma indemnização, para a entidade expropriante, a favor de quem a declaração é feita, cessando para ele, o direito de livre disposição, direito este que caracteriza o direito de propriedade, concluiu: Assim sendo, resulta que à data da prática dos factos denunciados, ocorridos em Novembro de 2009, após a declaração de utilidade pública da parcela de terreno onde os mesmos foram cometidos, havia já cessado para a ora requerente, ainda proprietária de tal parcela, o direito de livre disposição da mesma, que caracteriza o direito de propriedade e, como tal, não se pode considerar a mesma como ofendida, pois à data da prática dos factos denunciados e investigados, não era a mesma titular do interesse «especialmente protegido» pela incriminação.

Uma primeira observação para expressar que o “proprietário” para além do direito de disposição goza dos direitos de uso e fruição sobre a coisa que lhe pertence, dentro dos limites da lei e com a observância das restrições por ela impostas – [cf. artigo 1305º do C. Civil].
Por outro lado, não se nos afigura curial extrair da circunstância de a denunciante, ora recorrente, ter visto comprimido, pela declaração de utilidade pública, o seu direito de propriedade sobre o bem - na medida em que dele deixou de poder livremente dispor - a conclusão de não ser a mesma titular do interesse «especialmente protegido pela incriminação».
Com efeito, quer no crime de furto, quer no crime de dano o bem jurídico protegido pela incriminação é a propriedade, podendo, contudo, defender-se que ofendidos, nos mesmos, tanto são os proprietários, como os possuidores ou detentores legítimos da coisa, conferindo a lei processual penal aos «ofendidos», considerando como tais os titulares dos interesses que a lei especialmente quis proteger com a incriminação, o direito de se constituírem assistentes no processo penal – [cf. al. a), do n.º 1, do artigo 68º do CPP].
A propósito do crime de dano, pronunciou-se o Supremo Tribunal de Justiça no acórdão n.º 7/2011, de 27.04.2011, fixando jurisprudência no sentido de que No crime de dano, previsto e punido no artigo 212.º, n.º 1, do Código Penal, é ofendido, tendo legitimidade para apresentar queixa, nos termos do artigo 113.º, n.º 1, do mesmo diploma, o proprietário da coisa “destruída no todo ou em parte, danificada, desfigurada ou inutilizada”, e quem, estando por título legítimo no gozo da coisa, for afectado no seu direito de uso e fruição.
Na verdade, ficou ali consignado: se em muitas circunstâncias na afectação de uma coisa, com ou sem des-apropriação, é a simples relação de propriedade que é ofendida pelo crime, porquanto coincidem no ofendido as qualidades de proprietário e fruidor do gozo (posse e mera posse) atinente às utilidades da coisa, não é menos certo verificar-se, em outros casos, uma separação ou um corte, juridicamente aceite e até tutelado, entre aquelas duas qualidades» (…)
A relação de gozo pode, pois, ser considerada como uma inequívoca realidade susceptível de protecção penal no âmbito de crime «contra a propriedade», ao lado ou concomitantemente com a relação típica ou jurídica formal de propriedade.
(…)
A execução de actos de destruição, de desfiguração ou de inutilização de coisa alheia representa, por via de regra, um prejuízo patrimonial, uma diminuição do valor ou da utilidade económica da coisa, tanto para o proprietário como para todos aqueles que sobre ela têm a disponibilidade de fruição das suas utilidades…
Com a incriminação do dano, a lei penal procura assegurar a plena disponibilidade da coisa contra ingerências ou intromissões de sujeitos em relação aos quais seja «alheia», pretendendo que a coisa mantenha a sua integridade, o seu valor económico, o seu aspecto estético, a sua funcionalidade.
(…)
Por regra, na normalidade dos casos, o detentor ou o possuidor ficará, de modo mais directo, afectado pela perda ou pela diminuição da funcionalidade da coisa, já que a sua interacção com as utilidades da coisa, do seu uso e da sua fruição é directa e com intensidade de primeira linha. Por seu turno, o proprietário, enquanto titular do poder de disposição, estará mais interessado em que a coisa mantenha o seu valor económico, que não haja prejuízo para o seu estado ou para a sua substância.

No caso concreto a denunciante pelo facto de ter visto comprimido, com a publicação da declaração de utilidade pública, o direito de livre disposição do bem continuou, não obstante, a ser do mesmo titular, conservando, naturalmente, todo o interesse em defendê-lo de agressões externas que pudessem contribuir para a sua desvalorização, ou como se diz no citado acórdão de fixação de jurisprudência “em que a coisa mantenha o seu valor económico, que não haja prejuízo para o seu estado ou para a sua substância” – [destaque nosso].
Como tal, com respeito por opinião em contrário, não se nos afigura sustentável defender que a denunciante, enquanto proprietária do bem, não é titular do interesse que a lei especialmente quis proteger com a incriminação não podendo, em consequência, constituir-se assistente nos autos.

Por outro lado, radicando, embora, em diferente “fonte” podem, como vimos, proprietário, possuidor e/ou detentor legítimo, coexistir na titularidade do interesse que a lei «especialmente quis proteger com a incriminação».
E, nesta frente, também não parece rigoroso extrair do carácter urgente atribuído à expropriação a conclusão de que o expropriado fica, por força da declaração de utilidade pública, imediatamente privado da posse do bem.

Vejamos.

Dispõe o artigo 15º do Código das Expropriações:

1. No próprio acto declarativo de utilidade pública, pode ser atribuído carácter de urgência à expropriação para obras de interesse público.
2. A atribuição de carácter urgente à expropriação deve ser sempre fundamentada e confere de imediato à entidade expropriante a posse administrativa dos bens expropriados, nos termos previstos nos artigos 20º e seguintes, na parte aplicável.
3. A atribuição de carácter urgente caduca se as obras na parcela não tiverem inicio no prazo fixado no programa de trabalhos, salvo ocorrendo motivo devidamente justificado.
4. à declaração de caducidade aplica-se, com as necessárias adaptações, o disposto no n.º 4 do artigo 13º.
5. A caducidade não obsta à ulterior autorização da posse administrativa nos termos dos artigos 19.º e seguintes.

Acerca do n.º 2 deste preceito lê-se no acórdão do STJ de 13.10.2009, proferido no proc. n.º 3438/07.9TBVCT.G1.S1 [citado, aliás, no despacho recorrido]: “A referência “a atribuição imediata da posse” deve por isso ler-se, não com um sentido desgarrado, isolado, mas em associação com o art. 20º.
Ora o artigo 20.º impõe condições prévias para a investidura na posse dos bens, ou seja, só se verifica depois de o Tribunal ter verificado, designadamente, a observância dos pressupostos seguintes:
a) a notificação aos interessados dos actos de declaração de utilidade pública e de autorização de posse administrativa;

c) a realização da vistoria ad perpetuam rei memoriam destinada a fixar os elementos de facto susceptíveis de desaparecerem e cujo conhecimento seja de interesse ao julgamento do processo (cfr. n.º 1 do citado art. 20.º).
A sindicalização desses requisitos é no entanto um acto formal, que só se completa materialmente com a investidura, que se consubstancia com o auto de posse administrativa – art. 21.º - 9.
Pois bem:
Como ensinava Marcelo Caetano …, o objectivo da declaração de utilidade pública é o de sujeitar o bem à expropriação, da qual resultam duas consequências:
a) a submissão do expropriado ou do interessado … à imposição do Estado, e que leva a que estes venham a ficar vinculados à perda da posse ou titularidade sobre o bem ou direito;
b) o direito a serem indemnizados justamente pelos bens ou direitos de que se vejam privados.
A conferência da posse administrativa corresponde, por outro lado, ao objectivo de estabilizar desde logo a relação expropriativa, ou seja:
a) desconsiderar, por um lado, as benfeitorias voluptuárias ou úteis ou as mais valias que os expropriados ou outros interessados porventura introduzam nos respectivos bens ou direitos;
b) garantir aos expropriados ou outros interessados o direito a indemnização actualizado tendo como referência como ponto de partida para essa determinação o valor do bem à data da d.u.p. – art. 23.º
c) fazer com que se torne subsistente a declaração de expropriação, nos exactos termos em que foi determinada, mesmo que porventura ocorram vicissitudes subjectivas quanto à titularidade dos bens ou direitos atingidos.
A efectivação da posse administrativa só se consuma, no entanto, com o auto de posse administrativa e sua notificação aos expropriados e outros interessados – art. 21.º - 9 e 22.º - 3 do CE/99..
É com o auto de posse administrativa que se transforma o direito reconhecido à posse e sua validação procedimental, como acto jurídico, em acto material de desapossamento efectivo, porque é a partir dele que a entidade expropriante poderá utilizar o prédio para os fins da expropriação, dando início aos trabalhos previstos – art. 21.º - 9.
Há, por fim, um terceiro momento que só se consuma com a adjudicação da propriedade plena a favor da entidade expropriante, o que só ocorre com a atribuição da indemnização definitiva”.

Ora, resulta do despacho em crise não ter à data dos factos denunciados, ainda, ocorrido, quer a vistoria ad perpetum rei memorian – destinada a registar o estado dos bens a expropriar, antes da investidura da entidade beneficiária da expropriação na sua posse, designadamente os elementos susceptíveis de desaparecimento, relevantes para o julgamento da causa, ou seja, em última análise, para determinar a justa indemnização[cf. Salvador da Costa, “Código das Expropriações e Estatuto dos peritos Avaliadores”, 2010, Almedina, pág. 126], quer a efectivação da posse administrativa, o que significa que a expropriada, ora, recorrente, para além da qualidade de proprietária, detinha relativamente ao bem expropriado, embora com a restrição apontada, os demais direitos que conformam o direito de propriedade, conferindo-lhe os mesmos legitimidade para, sendo, o bem, alvo de ofensa, o defender em juízo, designadamente na sua integralidade, já como proprietária já como possuidora, em suma como titular do direito que a lei quis «especialmente proteger» com a incriminação.
Não tem o proprietário – ainda que limitado no poder de livre disposição do bem -, enquanto tal, designadamente numa fase prévia à efectivação da vistoria destinada, também, a avaliar todas as circunstâncias susceptíveis de influenciar no valor do bem, o direito de defendê-lo de agressões externas que possam contribuir para a sua desvalorização? Ou, conforme referido no acórdão do STJ n.º 7/2011, interesse em que a coisa mantenha o seu valor económico, que não haja prejuízo para o seu estado ou para a sua substância?
Por não nos suscitar dúvida a resposta, conclui-se no sentido de, à luz do artigo 68º, n.º 1, al. a) do CPP, assistir legitimidade à recorrente para se constituir assistente nos presentes autos na medida em que não pode a mesma deixar de ser considerada como titular do interesse que a lei especialmente quis proteger com a incriminação.

III. Decisão

Nos termos expostos, acordam os Juízes na 5.ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Coimbra, na procedência do recurso, em revogar o despacho recorrido, o qual deve ser substituído por outro, que reconhecendo, para tanto, legitimidade à requerente, ora, recorrente, verificando-se o demais condicionalismo, a admita a intervir como assistente nos autos e, após, profira, em conformidade, decisão sobre o requerimento de abertura da instrução.

Sem tributação

Coimbra, , de , de 20
[Processado informaticamente e revisto pela relatora]


(Maria José Nogueira)


(Isabel Valongo)