Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
15/09.3TASBG.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ALBERTO MIRA
Descritores: CONSTITUIÇÃO DE ASSISTENTE
Data do Acordão: 11/30/2011
Votação: DECISÃO SUMÁRIA
Tribunal Recurso: COMARCA DE SABUGAL
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ART.º 68º, DO C. PROC. PENAL
Sumário: As decisões judiciais genéricas declarando a legitimidade, no âmbito da constituição de assistente, não têm valor de caso julgado formal, podendo tal questão ser reapreciada até final.
Decisão Texto Integral: Decisão sumária [artigo 417.º, n.º 6, alínea c), do CPP]

I. Relatório
1. No âmbito do inquérito registado sob o n.º 15/09.3TASBG que correu termos nos Serviços do Ministério Público do Tribunal Judicial de Sabugal, iniciado com a denúncia que consta de fls. 2/5, 7/15, apresentada por A... contra B... e marido C..., devidamente identificados nos autos, o Ministério Público proferiu, em 6 de Abril de 2010, ao abrigo do disposto no art. 277.º, n.º 1, do Código de Processo Penal (doravante designado apenas por CPP), despacho de arquivamento.
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2. Inconformado com esse despacho, o denunciante A... requereu, em 4 de Maio de 2010, a sua constituição como assistente e, simultaneamente, a abertura de instrução, nos termos do estatuído pelo art. 287.º, n.º 1, al. b) do CPP, para que, a final:
- fosse declarada a nulidade do inquérito, por omissão de diligências reputadas essenciais para a descoberta da verdade, ao abrigo do disposto no artigo 120.º, n.º 2, alínea d), do CPP;
- realizadas as diligências instrutórias sugeridas pelo requerente e outras que, no decurso das anteriores se reputassem pertinentes, fossem os denunciados constituídos arguidos e, em momento oportuno, pronunciados pelo crime de furto, p. e p. pelo artigo 203.º, do CP, qualificado pela alínea a) do n.º 1 do artigo 204.º, do referido Código, em concurso real com um crime de maus tratos, p. e p. pelo artigo 152.º-A, ainda do mesmo diploma legal;
- sem prescindir, caso se apurasse a existência de documento idóneo que habilitasse a denunciada a movimentar/administrar o património de D..., fossem os denunciados pronunciados, em momento processual adequado, pela prática de um crime de abuso de confiança, p. e p. pelo artigo 205.º do CP, e/ou de um crime de infidelidade, p. e p. pelo artigo 224.º do indicado corpo normativo.
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3. Em despacho de 18 de Maio de 2010, a Sr.ª Juíza afecta à Instrução Criminal admitiu, genericamente, a constituição de assistente do denunciante.
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Ainda no mesmo despacho, ao abrigo das disposições conjugadas dos artigos 58.º, n.º 1, al. a), 61.º, n.º 1, al. g), 120.º, n.ºs 2, al. d), e 3, 122.º, n.ºs 1, 2 e 3 e 272.º, n.º 1, todos do CPP, julgou-se verificada a nulidade de insuficiência do inquérito e, em consequência, foi declarado nulo o despacho de fls. 71 a 75 dos autos, que determinou o arquivamento do inquérito, bem como todos os actos posteriores, com excepção do requerimento de constituição de assistente e do despacho que se pronunciou sobre o mesmo.
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4. Realizadas diligências de inquérito, consistentes na constituição dos denunciados como arguidos, o Ministério Público proferiu novo despacho de arquivamento, ao abrigo da disposição legal acima indicada (artigo 277.º, n.º 1, do CPP).
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5. O denunciante, admitido como assistente, requereu novamente a abertura da instrução, nos termos e com os fundamentos constantes de fls. 191/212.
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6. Admitida a abertura da instrução, teve lugar o respectivo debate, tendo sido, a final, proferido despacho de não pronúncia.
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7. O denunciante, constituído arguido, interpôs recurso da referida decisão, tendo formulado na respectiva motivação as seguintes (transcritas) conclusões:
1.ª - Findo o inquérito, o Ministério Público proferiu, a fls. 158 a 163, despacho de arquivamento nos presentes autos.
2.ª - Não se conformando com o despacho de arquivamento, o ofendido, com a qualidade de Assistente, requereu a abertura da instrução, alegando que os factos denunciados são susceptíveis de indiciar a prática pelos arguidos de pelo menos um crime de furto, p. e p. pelo artigo 203.º do Código Penal, qualificado pela alínea a) do n.º l do artigo 204.º, em concurso real com um crime de maus tratos, p. e p. pelo artigo 152.º-A, e, caso se confirme a existência de um documento idóneo capaz de habilitar a arguida a movimentar o património de seu pai, entendeu o assistente que os factos denunciados são susceptíveis de indiciar a prática de um crime de abuso de confiança, p. e p. no artigo 205.º do C.P. e/ou um crime de infidelidade, p. e p. no artigo 224.º do mesmo diploma legal.
3.ª - Foi decretada a abertura da instrução, no decurso da qual se procedeu à inquirição de D..., E..., F... e G... e realizadas as demais diligências instrutórias sugeridas pelo assistente.
4.ª - Os autos foram instruídos com a seguinte prova documental: os pagamentos efectuados pelo instituto de Financiamento da Agricultura e Pescas, I.P. - IFAP, I.P. - a D... desde 01/01/1998 até 10/02/2011 (cfr. fls. 305 a 337 dos autos); certidão da decisão de avaliação da matéria colectável com recurso a métodos indirectos (Direcção de Finanças da Guarda) dos arguidos, que deu origem ao inquérito n.º 3/10.7TASBG, que corre termos no Tribunal a quo (cfr. fls. 400 a 405 do autos), sendo posteriormente junta certidão do parecer elaborado pela Direcção de Finanças da Guarda no âmbito do mesmo inquérito (cfr. fls. 875 a 888 dos autos); extractos das seguintes contas bancárias do Banco Santander Totta, S.A., desde o ano de 2000, e identificação dos respectivos titulares; pelo Instituto de Gestão de Tesouraria e do Crédito PC I.P., os movimentos realizados desde o ano de 200 nas seguintes contas de aforro; cópia autenticada dos talões de resgate e dos talões das subscrições às contas de aforro identificadas (cfr. fls. 931 a 965).
5.ª - Encerrada a instrução, a Exma. Juíza a quo proferiu despacho de não pronúncia.
6.ª - Entende o Assistente que da prova documental produzida, corroborada pela prova testemunhal, resultam indícios suficientes para a pronúncia dos arguidos pela prática de crime de furto qualificado, p. e p. pelo artigo 203.º do Código penal, qualificado pela al. a) do n.º l do artigo 204.º do mesmo diploma legal, de um crime de maus tratos, p. e p. pelo artigo 152.º-A do Código Penal, de um crime de abuso de confiança qualificado, p. e p. pelo artigo 205.º do Código Penal e de um crime de infidelidade, p. e p. pelo artigo 224.º do Código penal;
7.ª - Nomeadamente se tivesse sido levado em conta o depoimento da testemunha F... e da testemunha G....
8.ª - Confrontando tais depoimentos com a informação constante da prova documental e da qual resulta o seguinte:
9.ª - Que efectivamente os arguidos adquiriram dois imóveis (cfr. com as respectivas certidões das escrituras de compra e venda);
10.ª - Dos extractos bancários resulta que os arguidos auferem mensalmente cerca de l.000,00 € do trabalho prestado na empresa WW.... (cfr. fls. 635 a 766 dos autos);
11.ª - Do parecer emitido pela Direcção de Finanças de Guarda (cfr. fls. 401 a 405 e 876 a 888), resulta que os arguidos “declararam um rendimento líquido total de 10.736,19 €; adquiriram, pelo preço de € 86.000,00, um prédio urbano sito em Almada sem recurso a crédito bancário”;
12.ª - E que houve uma transferência de numerário da conta de E..., sogra de C..., que foi utilizada na compra de imóvel;
13.ª - Que foram subscritos certificados de aforro, entre 2001 e 2010, na conta aforro titulada pelo arguido C..., no valor global de €36.995,62; em 2008, na conta de aforro titulada pela arguida B...., no valor de €5.000,00; em 2009, na conta de aforro titulada por H..., no valor de €29.900,00; em 2009 e 2010, na conta de aforro titulada por J..., no valor de €24.950,00.
14.ª - “Constata-se que os arguidos detêm património e quantias monetárias que não podem ter sido adquiridos apenas com os rendimentos provenientes da actividade laboral que exercem na empresa WW...e, já que os seus salários têm um valor muito inferior ao necessário para a aquisição dos imóveis e dos certificados de aforro de que são titulares os arguidos e as suas filhas que ainda não têm rendimentos” (in decisão instrutória).
15.ª - Entende o recorrente que, das diligências instrutórias, é possível cabalmente identificar a proveniência de tais quantia monetárias.
16.ª - Resulta que, das contas dos ofendidos, foi transferido (no mínimo) para a titularidade e domínio de facto dos arguidos o valor global de € 92.700,994.
17.ª - Resulta ainda do ofício enviado pelo Instituto de Financiamento da Agricultura e Pescas, I.P. (IFAP) que foi pago o valor global de € 46.008,53, a título de subsídios para a agricultura, no período entre 01/01/1998 a 22-02-2011 (cfr. fls. 605 a 337 dos presentes autos).
18.ª - Ainda assim, entendeu a Juíza a quo que não foram colhidos elementos suficientes capazes de “ultrapassar a dúvida razoável quanto ao facto de os arguidos terem procedido à apropriação ilegítima de dinheiro dos ofendidos, entendemos que a mesma deve ser resolvida de acordo com o principio in dubio pro reo, que irá necessariamente aproveitar aos arguidos, impondo ao Tribunal que decida no sentido que lhes é mais favorável, ou seja, dando como não indiciados os factos sobre que recai se os mesmos forem desfavoráveis aos arguidos”.
19.ª - Considerou que, não resultam indiciados os fachos imputados aos arguidos no requerimento de abertura de instrução, com excepção da compra dos imóveis, dos rendimentos auferidos pelos arguidos na empresa WW...e e da existência de contas bancárias e de contas de aforro de que são titulares os arguidos e as suas filhas.
20.ª - Todavia, entende o recorrente que, conjugando todos os elementos de prova referidos e fazendo a sua análise crítica, com meridiana facilidade se pode concluir que os autos contêm indícios suficientes de que a conduta dos arguidos consubstancia a prática do crime de furto qualificado, p. e p. pelo artigo 203.º do Código penal, qualificado pela al.) a) do n.º l do artigo 204.º do mesmo diploma legal.
21.ª - No caso em concreto, não podemos, senão, deixar de concluir que, da prova recolhida, resultam indícios que revelam uma possibilidade particularmente qualificada ou probabilidade elevada de que aos arguidos venha a ser aplicada uma pena, porquanto, por apelo a um juízo de prognose, com base em critérios de normalidade e mantendo-se em julgamento os elementos probatórios existentes;
22.ª - Isto é, da factualidade existente nos autos resulta, inequivocamente, que as condutas dos arguidos preenchem quer os elementos objectivos quer os elementos subjectivos dos tipos de ilícito em questão, pelo que se impõe a conclusão de que o cometimento dos crimes em causa se encontra suficientemente indiciado.
23.ª - O Tribunal a quo errou ao proferir despacho de não pronúncia; julgou mal a factualidade recolhida em sede de instrução.
24.ª - Note-se que, da análise da prova colhida em sede de instrução, resulta que, pelo menos mais de 100.000,00 € foram retirados do domínio dos ofendidos; e se verificarmos os saldos actuais das contas bancários titulados pelos ofendidos, não lhes resta mais do que alguns euros; o seu património foi claramente dissipado pelos arguidos.
25.ª - Analisada criticamente a prova recolhida quer no decurso do inquérito, quer da instrução, impõe-se a conclusão de que foram recolhidos indícios suficientes que permitem «formar a convicção da forte probabilidade ou possibilidade razoável» de que os arguidos sejam responsáveis pelos factos narrados no requerimento de abertura de instrução.
26.ª - Consequentemente, o despacho recorrido não pode manter-se.
27.ª - Nos termos do art. 286.º, n.º l do CPP, “A instrução visa a comprovação judicial da decisão de deduzir acusação ou de arquivar o inquérito, em ordem a submeter ou não a causa a julgamento”.
28.ª - A referência que o art. 301.º, n.º 3, faz à natureza indiciária da prova para efeitos de pronúncia inculca a ideia de menor exigência, de mero juízo de probabilidade.
29.ª - Na pronúncia o juiz não julga a causa; verifica se se justifica que, com as provas recolhidas no inquérito e na instrução, o arguido seja submetido a julgamento pelos factos da acusação.
30.ª - A lei só admite a submissão a julgamento desde que da prova dos autos resulte uma probabilidade razoável de ao arguido vir a ser aplicada, por força dela, uma pena ou uma medida de segurança (art. 283.º, n.º 2); não impõe a mesma exigência de verdade requerida pelo julgamento final.
31.ª - O n.º l do artigo 283.º refere que, “se durante o inquérito tiverem sido recolhidos indícios suficientes de se ter verificado crime e de quem foi o seu agente, o Ministério Público (...) deduz acusação contra aquele”.
32.ª - O n.º l do artigo 308.º, por seu turno, estabelece que “se, até ao encerramento da instrução, tiverem sido recolhidos indícios suficientes de se terem verificado os pressupostos de que depende a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, o juiz, por despacho, pronúncia o arguido pelos factos respectivos”.
33.ª - Os indícios já são suficientes quando deles resulte uma mera possibilidade, ainda que diminuta ou ínfima, de condenação.
34.ª - Entende a doutrina Portuguesa que, para haver despacho de pronúncia, basta que a submissão do arguido a julgamento não constitua «um acto manifestamente inútil e clamorosamente injusto».
35.ª - É efectivamente comum entender-se que a formulação do juízo indiciário é compatível com uma natural margem de dúvida razoável. Mesmo havendo essa dúvida, pode ser possível concluir pela maior probabilidade de condenação do que de absolvição, situação em que os indícios deveriam ser considerados suficientes. Só na condenação final qualquer dúvida razoável teria de ser afastada, por força do in dubio pro reo.
36.ª - A nossa jurisprudência tem vindo a advogar esta solução, afirmando, seca e recorrentemente, que o princípio in dubio pro reo não tem aplicação na fase da pronúncia.
37.ª - Face à prova produzida em sede de Instrução e, pese embora a posição do Sr. Procurador junto deste TIC, entende o recorrente existirem indícios suficientes para efeitos de prolação do despacho de pronúncia.
38.ª - Pois que, as testemunhas ouvidas nesta fase com conhecimento directo dos factos e que nos mereceram credibilidade foram peremptórias em afirmar que os ofendidos não tem conhecimento da delapidação do seu património.
39.ª - A dissipação do património dos ofendidos é rigorosamente comprovada pelos documentos juntos aos presentes autos.
40.ª - Da factualidade existente nos autos resulta, inequivocamente, que a conduta dos arguidos preenche quer os elementos objectivos quer os elementos subjectivos dos tipos de ilícito em questão, pelo que se impõe a conclusão de que o cometimento dos crimes em causa se encontra suficientemente indiciado.
41.ª - Ao ser proferido despacho de não pronúncia, por falta de indícios da prática dos arguidos de crime de furto qualificado, p. e p. pelo artigo 203.º do Código Penal, qualificado pela al. a) do n.º 1 do artigo 204.º do mesmo diploma legal, e/ou de um crime de maus tratos, p. e p. pelo artigo 152.º-A do Código Penal, e/ou de um crime de abuso de confiança qualificado, p. e p. pelo artigo 205.º do Código Penal e/ou de um crime de infidelidade, p. e p. pelo artigo 224.º do Código penal,
42.ª - o despacho de não pronuncia violou os arts. 283.º, n.º 2, aplicável ex vi art. 308.º, n.ºs l e 2, ambos do C. Processo Penal.
43.ª - Da prova produzida nos presentes autos resulta, de forma inabalável, que os arguidos cometeram os crimes em questão.
44.ª - O Tribunal a quo errou no julgamento que fez à prova recolhida e ao concluir ponderados os elementos de prova constantes dos autos e, atendendo às considerações (...), se repetidos em julgamento, permitem que se conclua pela probabilidade razoável de que aos arguidos B... . e C... não vir a ser aplicada, por força delas, uma pena, nos termos do artigo 283.º, n.º 2 ex vi artigo 308.°, n.ºs l e 2 do Código de processo penal,
45.ª - o que justifica, necessariamente, a pronúncia pelos factos constantes do requerimento de abertura de instrução.
Nestes termos, e nos superiores de Direito que Vossas Excelências superiormente suprirão, deverá o presente recurso proceder e, consequentemente, ser revogada a decisão recorrida e ser proferido despacho que pronuncie os arguidos da prática dos crimes em questão, para que sejam submetidos a julgamento, realizando a melhor e vossa acostumada Justiça.
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7. O Ministério Público sintetizou a sua resposta ao recurso nos termos infra transcritos:
1. O Ministério Público acompanha a decisão proferida pelo Tribunal a quo.
2. Da conjugação da prova testemunhal com a prova documental produzida em sede dos presentes autos não resultam indícios suficientes da prática por parte dos arguidos de um crime de furto qualificado p. e p. pelo artigo 203.º do Código Penal e pela al. a) do n.º l do artigo 204.º do mesmo diploma legal, e, em concurso real, um crime de maus tratos, p. e p. pelo artigo 152.º-A do Código Penal, ou um crime de abuso de confiança, p. e p. pelo artigo 205.º do Código Penal e/ou um crime de infidelidade, p. e p. pelo artigo 224.º do mesmo Código.
3. Quanto ao crime de maus tratos, p. e p. pelo artigo 152.º-A do Código Penal, ou um crime de abuso de confiança, p. e p. pelo artigo 205.º do Código Penal e/ou um crime de infidelidade, p. e p. pelo artigo 224.º do mesmo Código o recorrente nada alegou no sentido de afastar o decidido pelo tribunal a quo quantos a estes.
4. Motivou sim no sentido da pronúncia dos arguidos pela prática de um crime de furto qualificado p. e p. pelo artigo 203.º do Código Penal e pela al. a) do n.º l do artigo 204.º do mesmo diploma legal.
5. E sustentou tal conclusão pois considerou que a transmissão patrimonial verificada da esfera dos ofendidos para a dos arguidos, na ordem de €92.700,994, conjugada com os depoimentos das testemunhas F... e G..., e aos quais devem ainda acrescer o silêncio dos ofendidos e a idade avançada dos mesmos, são suficientes para criar no julgador a convicção da presença de um crime de furto uma vez que tal enriquecimento no património dos arguidos ocorreu de forma ilegítima, ou seja contra a vontade e à revelia do conhecimento dos seus legítimos titulares.
6. E, por conseguinte, o tribunal a quo errou ao não pronunciar os arguidos pela prática do mencionado ilícito criminal dado, com base na prova produzida, não ter contemplado tal entendimento.
7. Ora, os movimentos patrimoniais, por si só, não demonstram nada, senão que há um empobrecimento do património dos ofendidos e um enriquecimento do património dos arguidos. Quanto à natureza de tal operação nada demonstra.
8. Os ofendidos, ao abrigo da faculdade concedida pelo art. 134.º do CPP, recusaram prestar depoimento.
9. Os arguidos não confessaram a co-autoria dos factos denunciados.
10. Nos autos existe somente a versão dos factos do recorrente.
11. As testemunhas inquiridas em sede de instrução prestaram depoimentos indirectos, na medida em que depuseram sobre aquilo que ouviram dizer ao ofendido Manuel Pereira, pelo que face ao silêncio do mesmo, assim como o da ofendida, o que disseram não deve nem pode valo no sentido de formar a convicção do julgador - tribunal a quo - ter existido uma apropriação ilegítima do valor referente à transmissão patrimonial acima descrita.
12. Assim, andou bem o tribunal a quo ao considerar não terem sido recolhidos indícios suficientes da prática do crime de furto qualificado p. e p. pelo artigo 203.º do Código Penal e pela al. a) do n.º l do artigo 204.º do mesmo diploma legal, dado não ter sido produzida prova quanto aos elementos subjectivos deste tipo legal de crime, designadamente o especial direccionamento do dolo.
13. Pelo exposto, não deverá ser dado provimento ao recurso do assistente, mantendo-se na íntegra a decisão proferida pelo tribunal a quo.
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8. Nesta Relação, o Exmo. Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer no sentido da improcedência do recurso.

Cumprido o art. 417.º, n.º 2 do CPP, o recorrente exerceu o seu direito de resposta, reiterando, mutatis mutandis, o alegado nas conclusões do recurso.
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Cumpre apreciar e decidir.
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II. Fundamentação:
1. Conforme Jurisprudência constante e pacífica, são as conclusões extraídas pelos recorrentes das respectivas motivações que delimitam o âmbito dos recursos.
No presente caso, as conclusões apresentadas pelo recorrente circunscrevem o recurso à única questão de saber se existem indícios suficientes da prática pelos arguidos de um crime de furto qualificado, p. e p. pelos artigos 203.º e 204.º, n.º 1, al. a), do CP; e/ou de um crime de maus tratos, p. e p. pelo artigo 152.º-A, do CP, e/ou de um crime de abuso de confiança, p. e p. pelo artigo 205.º, do CP, e/ou de um crime de infidelidade, p. e p. pelo artigo 224.º, do CP.
No entanto, como ficou dito o despacho preliminar a que se reporta o n.º 1 do artigo 417.º do CPP, verifica-se uma causa extintiva do procedimento criminal, traduzida na falta de uma condição de prosseguibilidade do processo, como de seguida se demonstrará.
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2. Elementos relevantes à decisão:
A) Em 11 de Fevereiro de 2009, A... participou criminalmente contra B... . e marido D..., com base nos factos que se passam a reproduzir:
«O denunciante é filho de D... e de E..., sendo sua irmã B... ..
Vem aos autos denunciar eventuais levantamentos ilegítimos de quantias avultadas de dinheiro, efectuados das contas bancárias tituladas pelo seu pai e mãe, por parte da sua irmã e cunhado, acima identificados.
Esclarece que a sua irmã, com o dinheiro retirado das contas dos seus pais, terá adquirido dois apartamentos, um no Algarve e outro em Almada, segundo sabem pagos a pronto e ter uma filha a estudar em Lisboa, sem que tenha rendimentos que lhe permitam fazer face a estes encargos, uma vez que tanto ela como o seu marido auferem ambos rendimentos aproximados ao valor do salário mínimo nacional, trabalhando na fábrica de vestuário “WW...” no …. Sobre esse assunto, foi-lhe confirmado, em Agosto de 2008, pelo empreiteiro da firma “ …., Limitada”, que vendera a casa no Algarve à sua irmã e que esta lhe pagou “em nota” e que o declarou em dez mil contos.
O denunciante desconfia que este valor não corresponde ao valor real pelo qual o apartamento foi adquirido, uma vez que na respectiva escritura se encontra declarado pelo valor de 77.000,00€, bem como pelo facto de, em 2000 ou 2001, o mesmo empreiteiro lhe ter dito que os preços dos apartamentos no mesmo prédio do da sua cunhada rondarem os vinte e seis mil contos.
Nesse ano, em 2000 ou 2001, na sequência desta conversa com o empreiteiro e sabendo da intenção da sua irmã em comprar um apartamento no Algarve, o denunciante desconfiou que esta o iria pagar com dinheiro do seu pai, tendo esta, depois de ser confrontada com estes factos, dito que não o iria comprar porque o banco não lhe tinha emprestado o dinheiro.
Já em 2007, o denunciante veio a constatar que a escritura do apartamento por parte da sua irmã fora efectuada em 2004, pensando que esta o terá de facto adquirido em 2001, declarando-o apenas em 2004 para não levantar suspeitas.
A sua irmã, depois de novamente confrontada, confirmou-lhe que era verdade, que tinha comprado apartamento do Algarve logo em 2001, na altura em que se falou nesse assunto pela primeira vez.
Tendo estranhado estes investimentos e uma vez a sua irmã ser muito próxima dos seus pais, residindo muito próximo da residência destes, o denunciante suspeita que a sua irmã terá de alguma forma tido acesso às contas bancárias e ao dinheiro pertencente aos seus pais, aproveitando-se da sua idade avançada e da confiança que estes depositam nela.
O denunciante, tendo várias vezes confrontado o seu pai com estes factos, este respondeu-lhe sempre que nunca deu ou doou qualquer montante à sua irmã, recusando-se a acreditar naquela situação e nem sequer querer averiguá-la junto das entidades bancárias.
O denunciante sente-se prejudicado, uma vez considerar ter direitos iguais ao da sua irmã, e a confirmar-se a sua conduta, esta está a lesar os interesses dos seus pais, os seus e os da sua família.
Esclarece que confrontou a sua irmã acerca deste assunto, tendo esta confirmado que comprara os apartamentos com dinheiro dos seis pais, tendo feito “as coisas muito bem feitas e que nem a Judiciária, nem os Tribunais, nem as finanças a apanhavam”, porque desde 1989 tinha retirado o nome do seu pai das contas bancárias e por isso ele não tinha acesso às contas.
(…)».

B) Em 4 de Maio de 2010, a fls. 79 dos autos, em simultâneo com o requerimento de abertura da instrução, o denunciante A... solicitou a sua constituição como assistente.
Essa pretensão foi acolhida, por despacho exarado nos autos a fls. 126, datado de 18 de Maio de 2010, do seguinte teor:
«Por ter legitimidade, estar em tempo, estar representado por Advogado (cfr. fls. 42 a 54) e ter procedido ao pagamento da taxa de justiça devida pela constituição de assistente (fls. 80 a 81), admito a intervenção, nestes autos, de A... na qualidade de assistente, nos termos dos artigos 68.º, 69.º, 70.º e 519.º, todos do Código de Processo Penal.
(…)».

C) Para além do segmento decisório relativo ao conhecimento de nulidade de inquérito suscitada no requerimento de abertura da instrução, do excurso dogmático em redor da ratio da instrução e do conceito jurídico relativo à suficiência de indícios, é do seguinte teor a decisão de não pronúncia:
«Findo o inquérito, o Ministério Público proferiu, a fls. 158 a 163, despacho de arquivamento nos presentes autos, em que são arguidos B... . e C....
Foi proferido despacho de arquivamento pelos factos constantes de fls. 7 a 13, susceptíveis de consubstanciar a prática de um crime de furto qualificado, p. e p. pelo artigo 204.º, n.º 2, al. a), do Código Penal, ou de um crime de abuso de confiança qualificado, p. e p. pelo artigo 205.º, n.ºs 1 e 2, al. b), do Código Penal.
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Não se conformando com o despacho do Ministério Público, veio o assistente A... requerer a abertura de instrução por entender que existe nulidade do inquérito por omissão de diligências que se reputam essenciais para a descoberta da verdade, é admissível o impulso processual do assistente para proceder criminalmente contra os arguidos e existem indícios suficientes de que os arguidos praticaram um crime de furto, p. e p. pelo artigo 203.º do Código Penal, qualificado pela al. a) do n.º 1 do artigo 204.º do mesmo diploma legal, e em concurso real, um crime de maus tratos, p. e p. pelo artigo 152.º-A do Código Penal, ou um crime de abuso de confiança, p. e p. pelo artigo 205.º do Código Penal e/ou um crime de infidelidade, p. e p. pelo artigo 224.º do mesmo Código.
Alega o assistente que o Ministério Público não lançou mão dos diversos meios de obtenção de prova que tinha ao seu dispor com vista a identificar os agentes e os factos criminosos em concreto praticados, tendo apenas procedido à inquirição de D... e de E... e à constituição e inquirição dos arguidos, que declararam não desejar prestar quaisquer declarações quanto aos factos denunciados. O assistente veio aos autos aconselhar a averiguação dos extractos e movimentos bancários, bem como a identificação de quem os realizou nas contas bancárias dos progenitores do assistente, e veio identificar a carteira de certificados de aforro dos CTT da titularidade de E..., por entender que a análise dos movimentos efectuados nas contas bancárias e na carteira de certificados de aforro poderia contribuir para a averiguação dos factos participados. No entanto, o Ministério Público não obteve nenhuma dessas informações, tendo violado o disposto no artigo 262.º do Código de Processo Penal.
Mais alega o assistente que existem factos bastantes que indiciam a prática de crime pelos arguidos, porquanto estes têm um elevado nível de vida manifestamente incompatível com os seus rendimentos, já que cada um dos arguidos aufere mensalmente o salário mínimo nacional, mas não deixaram de comprar dois apartamentos (um no ano de 2004 e outro no ano de 2007) e dois veículos automóveis, sem recorrer a qualquer tipo de crédito bancário. Se tivesse sido ordenado, em sede de inquérito, a análise e o cruzamento dos dados constantes dos movimentos das contas bancárias e dos movimentos das carteiras de certificados de aforro, verificar-se-ia que os arguidos movimentaram quantias muito superiores às que provêm das suas actividades profissionais, apropriando-se ilegitimamente de dinheiro do pai do assistente, o qual sempre disse ao filho que jamais quis dar, emprestar ou colocar sob a administração dos arguidos qualquer quantia.
Pugna ainda o assistente que tem legitimidade para apresentar queixa pelos factos denunciados, ao abrigo do disposto no artigo 113.º, n.º 4, do Código Penal, uma vez que o pai do denunciante tem 80 anos e está convencido que a filha não se apropriou de qualquer quantia pecuniária, não lhe permitindo o seu baixo grau de instrução compreender simples questões burocráticas relacionadas com instituições bancárias ou questões relacionadas com a aquisição de imóveis ou de bens móveis. Verificando o assistente que o seu pai estava a ser vítima de maus tratos e que não possui actualmente discernimento para avaliar a gravidade da situação e a delapidação de que o seu património tem sido alvo por parte dos denunciados, apresentou queixa-crime, na qualidade de descendente de D....
Refere ainda o assistente que desde o ano de 2000 a arguida se apropriou de parte dos rendimentos dos seus pais (cerca de €250.000,00), utilizando esse dinheiro em proveito próprio, do arguido e das filhas de ambos, designadamente na aquisição de dois imóveis, de bens móveis e na aplicação de certificados de aforro nos CTT, bem como na abertura de contas bancárias tituladas quer pelos arguidos quer pelas filhas de ambos.
Conclui o assistente que devem os arguidos ser pronunciados pela prática de um crime de furto, p. e p. pelo artigo 203.º do Código Penal, qualificado pela al. a) do n.º 1 do artigo 204.º do mesmo diploma legal, e em concurso real, um crime de maus tratos, p. e p. pelo artigo 152.º-A do Código Penal, ou um crime de abuso de confiança, p. e p. pelo artigo 205.º do Código Penal e/ou um crime de infidelidade, p. e p. pelo artigo 224.º do mesmo Código.
*
Foi decretada a abertura da instrução, no decurso da qual se procedeu à inquirição de D..., E..., F... e G....
Foram também juntas pelo assistente duas cartas (uma delas assinada pelo assistente e outra pela sua esposa) a fls. 214 a 223, dirigidas à Associação Portuguesa de Apoio à Vítima.
Foi junta uma listagem de pagamentos efectuados pelo Instituto de Financiamento da Agricultura e Pescas, I.P. – IFAP, I.P. - a D... desde 01/01/1998 até 10/02/2011 (cfr. fls. 305 a 337).
Foi ainda junta certidão da decisão de avaliação da matéria colectável com recurso a métodos indirectos (Direcção de Finanças da Guarda) dos arguidos, que deu origem ao Inquérito n.º 3/10.7TASBG, que corre termos neste Tribunal (cfr. fls. 400 a 405), sendo posteriormente junta certidão do parecer elaborado pela Direcção de Finanças da Guarda no âmbito do mesmo inquérito (cfr. fls. 875 a 888).
Foram também juntos aos autos os extractos das seguintes contas bancárias do Banco Santander Totta, S.A., desde o ano de 2000, e identificação dos respectivos titulares:
- conta n.º …, titulada por E... e D... (cfr. fls. 422 a 482);
- conta n.º … , titulada por E..., D... e B... . (cfr. fls. 483 a 630);
- conta n.º … , titulada por C... e B... . (cfr. fls. 631 a 769);
- conta n.º … , titulada por H... e C... (cfr. fls. 770 a 828);
- conta n.º … , titulada por J..., C... e B... . (cfr. fls. 829 a 834);
Foram juntos pelo Instituto de Gestão de Tesouraria e do Crédito Público, I.P. os movimentos realizados desde o ano de 2000 nas seguintes contas aforro:
- conta aforro n.º … , titulada por E... (cfr. fls. 836 a 842);
- conta aforro n.º … , titulada por H... (cfr. fls. 843 a 846);
- conta aforro n.º … , titulada por J... (cfr. fls. 847 a 850);
- conta aforro n.º … , titulada por C... (cfr. 851 870);
- conta aforro n.º … , titulada por B... . (cfr. fls. 871 a 874).
O Instituto de Gestão de Tesouraria e de Crédito Público, I.P. enviou ainda cópias autenticadas dos talões de resgate e dos talões das subscrições referentes às contas aforro supra identificadas (cfr. fls. 931 a 965).
*
O debate instrutório decorreu com integral observância de todas as formalidades legais, nos termos do disposto nos artigos 298.º, 301.º e 302.º, do Código de Processo Penal.
II.
O Tribunal é competente.
O processo é próprio e válido.
(…).
Da Admissibilidade do Assistente em proceder criminalmente contra os arguidos:
Veio o assistente requerer que seja declarada a admissibilidade em proceder criminalmente contra os denunciados, alegando que, na qualidade de descendente de D..., apresentou legitimamente a queixa-crime que despoletou os presentes autos, nos termos do disposto no n.º 4 do artigo 113.º do Código Penal.
Sucede que esta questão já se mostra solucionada por despacho proferido em 18 de Maio de 2010, nos termos do qual se considera que não tem razão de ser o arquivamento do inquérito com o fundamento na inadmissibilidade legal de procedimento criminal por falta de queixa dos legítimos titulares, uma vez que os crimes denunciados – atento serem de valor não inferior a €250.000,00 – assumem a natureza de crime público e, por isso, não carecem de queixa nos termos do disposto nos artigos 48.º e 49.º a contrario do Código de Processo Penal.
Assim, estando em causa nestes autos a prática de um crime de furto qualificado ou de um crime de abuso de confiança na forma agravada, não é necessário o exercício do direito de queixa por parte dos titulares que a lei quis especialmente proteger com a incriminação (cfr. artigo 113.º do Código Penal e 49.º do Código de Processo Penal), não se colocando sequer a questão da (i)legitimidade do assistente em proceder criminalmente contra os arguidos.
Não existem nulidades ou outras questões prévias ou incidentais de que cumpra conhecer e que obstem à apreciação do mérito da acção penal e ao normal prosseguimento dos autos.
III.
Cumpre, então, proceder ao exame crítico das provas recolhidas durante o inquérito conduzido pelo Ministério Público e durante a instrução que se lhe seguiu, para o efeito de ajuizar da probabilidade ou improbabilidade de condenação dos arguidos em sede de julgamento pela prática dos crimes (ou de algum dos crimes) que lhes são imputados no requerimento de abertura de instrução.
IV.
Do crime de furto qualificado:
Pratica o crime de furto “Quem com ilegítima intenção de apropriação para si ou para outrem subtrair coisa móvel alheia.”
(…)
Do crime de abuso de confiança qualificado:
Nos termos do disposto no n.º 1 do artigo 205.º do Código Penal, comete o crime de abuso de confiança “Quem ilegitimamente se apropriar de coisa móvel que lhe tenha sido entregue por título não translativo da propriedade”, estabelecendo o n.º 4 que o agente é mais gravemente punido se a coisa referida no n.º 1 for de “valor elevado” ou de “valor consideravelmente elevado”.
(…).
Do crime de maus tratos:
Estabelece o artigo 152.º-A do Código Penal que comete o crime de maus tratos “Quem, tendo ao seu cuidado, à sua guarda, sob a responsabilidade da sua direcção ou educação ou a trabalhar ao seu serviço, pessoa menor ou particularmente indefesa, em razão de idade, deficiência, doença ou gravidez, e:
a) Lhe infligir, de modo reiterado ou não, maus tratos físicos ou psíquicos, incluindo castigos corporais, privações da liberdade e ofensas sexuais, ou a tratar cruelmente;
b) A empregar em actividades perigosas, desumanas ou proibidas; ou
c) A sobrecarregar com trabalhos excessivos.”
(…).
Do crime de infidelidade:
Comete este ilícito criminal “Quem, tendo-lhe sido confiado, por lei ou por acto jurídico, o encargo de dispor de interesses patrimoniais alheios ou de os administrar ou fiscalizar, causar a esses interesses, intencionalmente e com grave violação dos deveres que lhe incumbem, prejuízo patrimonial importante.”
(…).
V.
Cumpre analisar os eventuais indícios presentes nos autos no que diz respeito a cada um dos crimes que são imputados aos arguidos no requerimento de abertura de instrução.
No que diz respeito aos crimes de furto e de abuso de confiança, o bem jurídico protegido é a propriedade, havendo que averiguar, em primeiro lugar, se os ofendidos - D... e E..., proprietários do dinheiro alegadamente subtraído - deixaram de exercer o domínio de facto sobre quantias monetárias que aos mesmos pertenciam, passando os arguidos a exercer o domínio de facto sobre as mesmas quantias.
Importa, assim, analisar os meios de prova que permitam aferir da situação económica dos ofendidos e dos arguidos, bem como a existência/inexistência de transferências de dinheiro do património dos ofendidos para o domínio de facto dos arguidos.
No que diz respeito aos rendimentos de D... e de E..., declararam o assistente A... (cfr. fls. 40 e 41), filho daqueles, e a testemunha F..., sua esposa (cfr. fls. 1008 a 1010), que os seus pais e sogros, respectivamente, são pessoas idosas (com 80 e 78 anos), muito poupadas, que têm rendimentos avultados provenientes de poupanças adquiridas quando estiveram em França como emigrantes. Mais declararam que D... aufere uma pensão de reforma de França e uma pensão de reforma portuguesa e E... aufere uma pensão de reforma portuguesa. Além disso, têm uma exploração agrícola (uma quinta), pelo que fabricam e vendem queijos (obtendo como produto das vendas de queijos o valor de cerca de €500,00 por mês) e ao longo da sua vida venderam sempre produtos agrícolas (como castanhas) e ovelhas.
Resulta ainda do ofício enviado pelo Instituto de Financiamento da Agricultura e Pescas, I.P. (IFAP) que foi pago o valor global de €46.008,53, a título de subsídios para a agricultura, no período entre 01-01-1998 a 22-02-2011 (cfr. fls. 305 a 337).
Quanto aos rendimentos auferidos pelos arguidos, declararam o assistente e a testemunha F... que cada um dos arguidos sempre auferiu de vencimento montante igual ao salário mínimo nacional, já que trabalham como operários na empresa “WW...”.
Analisando os extractos da conta bancária n.º … , do Santander Totta, titulada por ambos os arguidos, verifica-se que a arguida auferia de vencimento mensal a quantia de €320 a €470 no período de 01/02/2000 a 31/01/2010, e o arguido auferia de vencimento mensal a quantia de €600 a €730 no mesmo período (cfr. fls. 635 a 766).
Verifica-se também através da análise desses extractos que os arguidos têm vindo a receber prestações da Segurança Social entre €40,00 a €50,00 mensais.
Foram também juntas aos autos duas certidões de escrituras de compra e venda de imóveis:
- certidão de escritura de compra e venda do Primeiro Cartório Notarial de Loulé, datada de 12/08/2004, através da qual os arguidos declararam comprar, pelo preço de €77.000,00 (já recebido pelo vendedor), a fracção autónoma designada pela letra E, no 2.º andar direito, destinada a habitação, de um prédio urbano designado por lote n.º 2, situado na Urbanização …, Loulé (cfr. fls. 16 a 20);
- certidão de escritura de compra e venda do Cartório Notarial de …, datada de … , através da qual H... (filha dos arguidos) declarou comprar, pelo preço de €86.000,00 (já recebido pelo comprador), a fracção autónoma designada pela letra H, destinada a habitação, correspondente ao …, Almada (cfr. fls. 21 a 25).
Referiram ainda o assistente e a testemunha F... que os arguidos têm um estilo de vida “faustoso”, possuindo três veículos automóveis - um Hyundai, um Opel e uma carrinha - tinham uma das filhas a estudar numa escola privada, pagando de mensalidade entre €180 a €200, passeiam todos os fins-de-semama, frequentam diversos centros comerciais, usam roupa e sapatos de marca.
Através da análise das contas de certificados de aforro tituladas pelos arguidos e pelas suas filhas, verifica-se que os mesmos subscreveram entre 2000 e 2010 vários certificados:
- Subscrições na Conta Aforro n.º … titulada por H... (filha dos arguidos): em 09/10/2009 €14.950 (cfr. fls. 932) e em 14/10/2009 €14.950 (cfr. fls. 933);
- Subscrições na Conta Aforro n.º … , titulada por J... (filha dos arguidos): em 14/10/2009 €14.950 (cfr. fls. 934) e em 27/10/2010 €10.000 (cfr. fls. 935);
- Subscrições na Conta Aforro n.º …, titulada pela arguida B...: em 06/11/2008 €5000 (cfr. fls. 872 e 951);
- Subscrições na Conta Aforro n.º …, titulada pelo arguido C...: em 28/12/2001 €997,6 (cfr. fls. 937); em 12/08/2002 €2498,98 (cfr. fls. 938); em 06/09/2002 €2498,98 (cfr. fls. 939); em 03/03/2003 €498,8; em 23/12/2003 €2501,47 (cfr. fls. 940); em 12/01/2004 €501,29 (cfr. fls. 941); em 17/08/2004 €2498,98 (cfr. fls. 942); em 04/11/2004 €498,8 (cfr. fls. 943); em 11/11/2004 €2498,98 (cfr. fls. 944); em 16/08/2005 €501,29 (cfr. fls. 945); em 15/11/2006 €5000,45 (cfr. fls. 946); em 27/08/2008 €500 (cfr. fls. 947); em 01/09/2008 €5000 (cfr. fls. 948); em 20/01/2009 €4000 (cfr. fls. 949); em 10/08/2009 €500 (cfr. fls. 950); em 15/10/2010 €500 (cfr. fls. 952); em 15/10/2010 €6000 (cfr. fls. 953).
Resulta, assim, fortemente indiciado que os arguidos têm vindo a receber de salário a quantia global de cerca de €1.050,00 por mês, tendo a testemunha F... declarado que são os seus únicos rendimentos (o que não significa que efectivamente os arguidos não tenham outra fonte de rendimentos, que a testemunha desconhece).
Por outro lado, resulta também fortemente indiciado que os arguidos compraram, em 12/08/2004, uma fracção autónoma de prédio urbano sito na Quarteira, pelo preço de €77.000,00, e em 13/03/2007, uma fracção autónoma de prédio urbano sito em Almada, pelo preço de €86.000,00.
A propósito desta última compra e venda, foi junta aos autos certidão de cópia da decisão da Direcção de Finanças da Guarda de avaliação da matéria colectável com recurso a métodos indirectos dos arguidos, que deu origem ao Inquérito n.º 3/10.7TASBG, que corre termos nos Serviços do Ministério Público deste Tribunal. Resulta da decisão das Finanças que foi fixado o rendimento tributável dos arguidos em €86.000,00, uma vez que a informação constante dos extractos bancários referentes à conta do Banco Santander Totta com o n.º … não justifica a proveniência dos rendimentos utilizados no ano de 2007 para aquisição do imóvel de Almada (cfr. fls. 401 a 405).
Veio a Direcção de Finanças da Guarda juntar ao supra mencionado Inquérito parecer segundo o qual, pese embora a proveniência daqueles rendimentos não esteja justificada, não existem indícios da prática pelos arguidos de qualquer crime de natureza fiscal (cfr. fls. 876 a 888).
Resulta ainda fortemente indiciado que foram subscritos certificados de aforro, entre 2001 e 2010, na conta aforro titulada pelo arguido C..., no valor global de €36.995,62; em 2008, na conta aforro titulada pela arguida B...., no valor de €5.000,00; em 2009, na conta aforro titulada por H..., no valor de €29.900,00; em 2009 e 2010, na conta aforro titulada por J..., no valor de €24.950,00.
Constata-se que os arguidos detêm património e quantias monetárias que não podem ter sido adquiridos apenas com os rendimentos provenientes da actividade laboral que exercem na empresa WW...e, já que os seus salários têm um valor muito inferior ao necessário para a aquisição dos imóveis e dos certificados de aforro de que são titulares os arguidos e as suas filhas (que ainda não têm rendimentos).
A primeira questão que se coloca é a de saber se os arguidos adquiriram os imóveis e o dinheiro depositado nas contas de aforro e nas contas bancárias de que são titulares “à custa” dos rendimentos de D... e de E....
Analisadas as contas de aforro e as contas bancárias de que são titulares os arguidos, as suas filhas e os ofendidos D... e E..., verifica-se o seguinte:
1 - Em primeiro lugar, existem transferências conta a conta:
a) Da conta bancária do Santander Totta, S.A. n.º …, titulada por E... e por D..., saiu, em 02/10/2006, como “ …...” o montante de €17.772,77 (cfr. fls. 481); na conta bancária do Santander Totta, S.A. n.º …, titulada por C... e por B... ., entrou, em 02/10/2006, como “TRF ” o mesmo montante de €17.772,77 (cfr. fls. 726);
b) Da conta bancária do Santander Totta, S.A. n.º …, titulada por E..., por D... e por B... ., saiu, em 24/11/2004, como “Transferência” o montante de 6.000.000$00 (cfr. fls. 510); na conta bancária do Santander Totta, S.A. n.º …, titulada por C... e por B... ., entrou, em 24/11/2004, como “Transferência” o mesmo montante de 6.000.000$00 (cfr. fls. 645).
2 - Em segundo lugar, existem resgates de contas aforro e depósito no mesmo montante na conta dos arguidos:
a) Da conta aforro n.º …, titulada por E..., foram resgatados (pela arguida, movimentadora da conta aforro - cfr. fls. 936), em 19/02/2007, certificados no valor de €45.000,35 (cfr. fls. 837 e 954); da conta aforro n.º 15750825, titulada por C..., foram resgatados, em 19/02/2007, certificados no valor de €30.526,95 (cfr. fls. 960 e 961); por outro lado, na conta bancária do Santander Totta, S.A. n.º … , titulada por C... e por B... ., entrou, em 22/02/2007, como “Depósito Múltiplo” o montante de 75.526,95 (cfr. fls. 730), correspondente à soma de €45.000,00 com €30.526,95.
3 - Em terceiro lugar, existem resgates de contas aforro e subscrições de certificados de aforro em montantes semelhantes noutras contas aforro:
a) Da conta aforro n.º … , titulada por E..., foram resgatados, em 14/09/2009, certificados no valor de €14.004,94 (cfr. fls. 957), em 18/09/2009, certificados no valor de €14.624,51 (cfr. fls. 958), em 25/09/2009, certificados no valor de €14.258,24 (cfr. fls. 959); por outro lado, na conta aforro n.º …, titulada por H..., foram subscritos, em 09/10/2009, certificados no valor de €14.950,00 (cfr. fls. 844), e em 14/10/2009, certificados no valor de €14.950,00 (cfr. fls. 845); na conta aforro n.º … , titulada por J..., foram subscritos, em 14/10/2009, certificados no valor de €14.950,00 (cfr. fls. 848).
4 - Em quarto lugar, existem valores debitados de contas bancárias e subscrições de certificados de aforro em montantes semelhantes àqueles débitos:
a) Da conta bancária do Santander Totta, S.A. n.º … , titulada por E..., por D... e por B... ., foi debitado um cheque, em 21/10/2010, no valor de €9.900,00 (cfr. fls. 628); na conta aforro n.º … , titulada por J..., foram subscritos, em 27/10/2010, certificados no valor de €10.000,00 (cfr. fls. 850);
b) Da conta bancária do Santander Totta, S.A. n.º … , titulada por E... e por D..., foi debitado um cheque, em 23/08/2004, no valor de €459,00, e foi debitado um cheque, em 21/10/2004, no valor de €2050,00 (cfr. fls. 466 e 468); na conta aforro n.º … , titulada por C..., foram subscritos, em 19/11/2004, certificados no valor de €2.498,98 (cfr. fls. 944);
c) Da conta bancária do Santander Totta, S.A. n.º .. , titulada por E..., por D... e por B... ., foi levantado o montante de €3.970,00 em 28/10/2008, e foi levantado o montante de €868,71 em 31/10/2008 (cfr. fls. 604); na conta aforro n.º … , titulada por B... ., foram subscritos, em 06/11/2008, certificados no valor de €5.000,00 (cfr. fls. 951).
5 - Por último, existem valores debitados de contas bancárias e valores semelhantes creditados noutras contas bancárias:
a) Da conta bancária do Santander Totta, S.A. n.º … , titulada por E... e por D..., foi debitado um cheque, em 06/08/2002, no valor de €307,00, foi debitado um cheque, em 30/08/2002, no valor de €361,00 e foi debitado, em 26/09/2002, um cheque no valor de €176,00 (cfr. fls. 446 e 447) - valor total de €844,00; na conta bancária do Santander Totta, S.A. n.º …, titulada por C... e por B... ., entrou, em 15/10/2002, como “Depósito Múltiplo” o montante de €837,00 (cfr. fls. 678);
b) Da conta bancária do Santander Totta, S.A. n.º … , titulada por E..., por D... e por B... ., foi levantado o montante de €3.135,00 em 09/08/2006 (cfr. fls. 579); na conta bancária do Santander Totta, S.A. n.º … , titulada por C... e por B... ., entrou, em 14/09/2006, como “Depósito Num” o montante de €4.000,00 (cfr. fls. 725).
Do esquema supra exposto resulta que efectivamente o valor de €17.772,77 foi transferido de uma conta bancária titulada por D... e por E... para uma conta bancária titulada pelos arguidos.
Quanto à transferência do valor de 6.000.000$00 (cfr. ponto 1. b) supra), tratando-se de uma saída da conta dos ofendidos e de uma entrada na conta dos arguidos do mesmo valor, na mesma data, resulta fortemente indiciado que aquele montante foi transferido da conta dos ofendidos para a conta dos arguidos.
O mesmo se diga relativamente ao resgate de €45.000,35 da conta aforro n.º …, titulada por E... e ao resgate de €30.526,95 da conta aforro n.º 15750825, titulada por C..., em 19/02/2007, cuja soma corresponde ao valor do depósito múltiplo de €75.526,95, em 22/02/2007, na conta bancária do Santander Totta, S.A. n.º …, titulada por C... e por B... . (cfr. ponto 2. a) supra).
Quanto às demais saídas e entradas de valores monetários (pontos 3, 4 e 5 supra), tendo em conta que os montantes que saem das contas dos ofendidos e os montantes que entram nas contas dos arguidos não são exactamente coincidentes, nem são coincidentes as datas das saídas e das entradas, não se pode concluir com segurança que houve transferência do domínio de facto dos ofendidos das quantias monetárias indicadas para os arguidos.
Resulta, assim, fortemente indiciado que das contas dos ofendidos foi transferido para a titularidade e domínio de facto dos arguidos o valor global de €92.700,994 (29.927,874+17.772,77+45.000,35).
Cumpre, agora, verificar se dos elementos probatórios constantes dos autos resulta indiciada a ilegítima apropriação pelos arguidos do referido montante, ou seja, importa analisar se os arguidos adquiriram aquelas quantias monetárias com autorização e conhecimento dos ofendidos ou contra a sua vontade.
A prova documental junta aos autos - certidões de escrituras de compra e venda de imóveis, listagem de pagamentos efectuados pelo IFAP ao ofendido, certidão da decisão da Direcção de Finanças da Guarda de avaliação da matéria colectável com recurso a métodos indirectos dos arguidos e certidão do parecer da mesma Direcção de Finanças, extractos de contas bancárias, extractos de contas aforro, talões das subscrições e talões de resgate de certificados de aforro - não permite aferir a existência de ilegítima apropriação, uma vez que apenas demonstra que os arguidos adquiriram bens e quantias monetárias de valor muito superior aos rendimentos que obtêm do seu trabalho na empresa “WW...”, tendo ocorrido transferências de dinheiro das contas dos ofendidos para as contas dos arguidos.
No que diz respeito à restante prova, cumpre realçar que os arguidos usaram do seu direito ao silêncio (cfr. fls. 146 e 147, 152 e 153), não se podendo do silêncio tirar qualquer conclusão.
Também os ofendidos D... e E..., pais da arguida e sogros do arguido, se recusaram a depor como testemunhas em sede de inquérito (cfr. fls. 47 e 48) e em sede de instrução (cfr. fls. 387 e 388, 409 e 410), usando da faculdade que a lei lhes concede por serem ascendentes e afins dos arguidos (cfr. artigo 134.º, n.º 1, al. a), do Código de Processo Penal).
É óbvio que também não poderá o Tribunal valorar o silêncio neste caso, dele retirando quaisquer conclusões ou consequências, porquanto estaríamos a subverter a faculdade de recusa a depor prevista pela lei e correríamos o risco de interpretar erradamente o silêncio (que pode significar muitas coisas, como a vontade de proteger os arguidos ou a necessidade de ocultar comportamentos da própria testemunha que, por exemplo, beneficiou um filho em detrimento de outro ou a simples recusa de se intrometer num conflito existente entre dois filhos).
Também não pode o direito de recusa de depor como testemunha ser subvertido pelo depoimento indirecto de uma testemunha sobre o que ouviu dizer à testemunha que recusa depor, quer a testemunha que recusa a depor tenha feito as anteriores declarações de forma voluntária fora do processo ou no âmbito de uma diligência de prova anterior à audiência de julgamento.
No caso dos presentes autos foram inquiridas em sede de instrução as testemunhas F..., esposa do assistente e cunhada dos arguidos, G..., amigo do assistente e do ofendido D... (cfr. fls. 1008 a 1010).
A testemunha F...declarou que o Sr. D... lhe disse que não havia emprestado nem dado qualquer dinheiro aos arguidos para compra de qualquer apartamento nem os arguidos lhe tiraram dinheiro. Também a testemunha G... afirmou que ouviu dizer ao Sr. D... que não autorizou ninguém a mexer no seu dinheiro e que o dinheiro está nas contas, não havendo motivo para preocupação nem para desavenças, porque ele pretende dar aos dois filhos por igual.
Ora, ambos estes depoimentos são depoimentos indirectos, pelo que não podem ser valorados como meio de prova à luz do disposto no artigo 129.º do Código de Processo Penal.
Resulta desta norma que se o depoimento resultar do que a testemunha ouviu dizer a pessoas determinadas, a autoridade judiciária competente deve chamar estas a depor e vale o depoimento por estas prestado em tribunal. Se a autoridade judiciária não chamar as ditas pessoas, o depoimento indirecto da testemunha não pode, naquela parte, ser utilizado, salvo se a inquirição das pessoas indicadas não for possível por morte, anomalia psíquica superveniente ou impossibilidade de serem encontradas.
No caso concreto, o Sr. D... esteve presente em tribunal para ser inquirido, podendo, assim, confirmar ou negar as declarações das testemunhas acima identificadas. No entanto, usou da faculdade de se recusar a depor que lhe é conferida pelo artigo 134.º do Código de Processo Penal, pelo que, conforme já se referiu, o depoimento daquelas testemunhas é depoimento indirecto, que não pode ser valorado, sob pena de se subverter o princípio da imediação e o direito de recusa a depor consagrados na lei processual penal.
Também o assistente declarou em sede de inquérito (cfr. fls. 4) que o seu pai lhe disse que nunca doou qualquer montante à arguida. Ora, não vale como meio de prova o depoimento indirecto de assistente sobre o que ouviu dizer a uma testemunha, tanto mais se a referida testemunha se recusa a depor, como é o caso.
Declararam o assistente e a testemunha F... que a arguida lhes confirmou que havia comprado os apartamentos com dinheiro dos pais e que ninguém podia fazer nada contra isso. Ora, também estas declarações são manifestamente insuficientes para que resulte fortemente indiciada a ilegítima apropriação de dinheiro pelos arguidos, uma vez que, por um lado, a arguida remeteu-se ao silêncio, e por outro lado, o assistente e a sua esposa têm um interesse pessoal no processo, estando demasiado envolvidos na situação, ficando a sua imparcialidade abalada, não sendo, aliás, crível, que a arguida tenha dado à testemunha …, por telefone, os números das suas contas bancárias e contas aforro, bem como das do seu marido e filhas, como declarou a mesma testemunha, cujo depoimento foi pautado por grande ansiedade e “avidez” em dar respostas, acabando por responder àquilo que nem sequer lhe era perguntado.
A testemunha F...declarou que ouviu o sogro dizer que havia dado uma procuração à arguida. No entanto, além de este depoimento indirecto não poder valer como meio de prova, o certo é que não se mostra junta aos autos qualquer procuração, resultando apenas indiciado que a arguida era titular, desde 13/09/2006, em regime de solidariedade com os ofendidos, da conta bancária do Santander Totta, S.A. com o n.º … e podia movimentar a conta aforro n.º …, de que era titular E....
Assim, ponderando todos os elementos probatórios coligidos, não pode o tribunal retirar a conclusão de que existiu ilegítima apropriação de dinheiro pelos arguidos. Na verdade, várias hipóteses permanecem em aberto, não havendo prova que permita pender com forte probabilidade para uma delas.
Na verdade, é possível que os ofendidos D... e E... tenham, de comum acordo, dado aos arguidos algumas quantias monetárias, por serem os filhos residentes em Portugal e, portanto, mais próximos; é também possível que E..., sem o conhecimento do marido D..., tenha dado dinheiro à sua filha e genro (uma vez que as contas bancárias estavam também na sua titularidade, podendo movimentá-las sozinha, e era a única titular da conta aforro n.º …; além disso, nos seus depoimentos, quer o assistente, quer as testemunhas F...e G... Carvalheira, se referiram sempre àquilo que ouviram dizer de D... e nunca de E...); também se coloca a hipótese de os arguidos, mormente a arguida, se terem apropriado do dinheiro dos ofendidos contra a sua vontade, aproveitando-se da titularidade em regime de solidariedade da conta bancária n.º … e da qualidade de movimentadora da arguida da conta aforro n.º … .
Ora, estando em aberto estas hipóteses e não havendo elementos probatórios que permitam ultrapassar a dúvida razoável quanto ao facto de os arguidos terem procedido à apropriação ilegítima de dinheiro dos ofendidos, entendemos que a mesma deve ser resolvida de acordo com o princípio in dubio pro reo, que irá necessariamente aproveitar aos arguidos, impondo ao Tribunal que decida no sentido que lhes é mais favorável, ou seja, dando como não indiciados os factos sobre que recai se os mesmos forem desfavoráveis aos arguidos.
Não resulta, assim, indiciada a prática pelos arguidos do crime de furto ou do crime de abuso de confiança ou do crime de infidelidade.
De facto, não resulta indiciado que tenha sido confiado à arguida ou aos arguidos a administração do património dos ofendidos e, por outro lado, não resulta indiciado que os arguidos tenham obtido dinheiro dos ofendidos contra a sua vontade e sem a sua autorização.
Não resultam, por isso, indiciados os factos imputados aos arguidos no requerimento de abertura de instrução, com excepção da compra dos imóveis, dos rendimentos auferidos pelos arguidos na empresa WW... e da existência de contas bancárias e de contas de aforro de que são titulares os arguidos e as suas filhas.
No que diz respeito ao crime de maus tratos, também pelos fundamentos já expostos não resulta indiciada a prática de factos subsumíveis aos tipos objectivo e subjectivo do crime.
De facto, verifica-se através das cartas juntas aos autos a fls. 214 a 223, dirigidas à Associação Portuguesa de Apoio à Vítima, que o assistente e a sua esposa fizeram queixa àquela Associação acerca da situação em que vive o Sr. D..., dizendo que a arguida o explora economicamente e o obriga a trabalhar.
Ora, estas cartas não servem, por si só, para provar que o ofendido D... é explorado e sofre maus tratos por parte dos arguidos, não resultando dos autos quaisquer indícios nesse sentido. É de realçar que os factos descritos nas cartas podem corresponder a uma percepção errada por parte do assistente e da sua esposa, que vivem em França e não presenciaram quaisquer maus tratos físicos ou psicológicos perpetrados pelos arguidos aos ofendidos.
Atento o exposto, ponderados os elementos de prova constantes dos autos e, atendendo às considerações supra expostas, concluímos que, se repetidos em julgamento, permitem que se conclua pela probabilidade razoável de aos arguidos B... . e C... não vir a ser aplicada, por força delas, uma pena, nos termos do artigo 283.º, n.º 2, ex vi artigo 308.º, n.ºs 1 e 2, do Código de Processo Penal, o que justifica, necessariamente, a sua não pronúncia pelos factos constantes do requerimento de abertura da instrução.
Decisão:
Em face do exposto, declaro encerrada a instrução e decido não pronunciar os arguidos B... . e C..., pela prática de um crime de furto, p. e p. pelo artigo 203.º do Código Penal, qualificado pela al. a) do n.º 1 do artigo 204.º do mesmo diploma legal, de um crime de maus tratos, p. e p. pelo artigo 152.º-A do Código Penal, de um crime de abuso de confiança, p. e p. pelo artigo 205.º do Código Penal e de um crime de infidelidade, p. e p. pelo artigo 224.º do mesmo Código.
(…)».
*
3. Existe uma questão prévia que obsta, desde logo, ou seja, sem necessidade de indagar a existência de indícios suficientes da prática pelos arguidos dos crimes denunciados e referidos no requerimento de abertura da instrução, à pronúncia dos arguidos. O denunciante A... não tem legitimidade para se constituir assistente nos presentes autos, relativamente a esses ilícitos penais.
O denunciante foi admitido como assistente, já na fase da instrução, sem especificação dos crimes a que essa admissão respeitava e tem vindo a exercer todos os direitos inerentes a essa assistência, tendo requerido, inclusive, perante o arquivamento do inquérito pelo Ministério Público, a abertura da instrução, em virtude de lhe ter sido genericamente reconhecida a correspondente legitimidade.
Não pode, porém, considerar-se definitivo esse reconhecimento, na medida em que se afigura dever entender-se, até por analogia com a situação contemplada no Acórdão n.º 2/95, de 16 de Maio de 1995, publicado no D.R. n.º 135, de 12 de Junho do mesmo ano «A decisão judicial genérica transitada e proferida ao abrigo do artigo 311.º do Código de Processo Penal sobre legitimidade do Ministério Público não tem valor de caso julgado formal, podendo até final ser dela tomado conhecimento»., que as decisões genéricas declarando a legitimidade não têm valor de caso julgado formal, podendo tal questão ser reapreciada até final Cfr, neste sentido, entre outros, os Acs. do STJ, de 31-01-2002, proc. n.º 4453/01, sumariado no Boletim Interno; da Relação de Lisboa, de 25-06-2002 e 06-07-2005, ambos publicados na CJ, tomos III e IV, págs. 147 e 130, respectivamente; da Relação do Porto de 09-07-1997, in CJ, tomo IV, pág. 229..
Efectuando essa reapreciação, constata-se que o denunciante A... não tem legitimidade para se constituir assistente pelos imputados crimes de furto qualificado, abuso de confiança, infidelidade ou maus tratos.
Como decorre dos autos, mais concretamente da participação crime, o denunciante é filho de D... e de E..., sendo sua irmã a arguida B... ..
Segundo o descrito nessa peça processual, os arguidos terão procedido a levantamentos de quantias avultadas em dinheiro pertencentes aos progenitores do denunciante e da arguida , com as quais adquiriram, inter alia, dois imóveis.
No requerimento de abertura da instrução, a par de outras questões, invoca A... que “seu pai estaria a ser sujeito a maus tratos e a ser vítima de abuso económico por parte da denunciada que, aproveitando-se da sua avançada idade e da sua débil condição física, o impede de usar e controlar o seu próprio dinheiro”, tendo apresentado, por isso, duas queixas junto do Gabinete de Apoio à Vítima de Coimbra.
Na revisão constitucional de 1997 Lei Constitucional n.º 1/97, de 20 de Setembro., a nossa lei fundamental passou a consagrar a tutela do ofendido, estipulando que este “tem o direito de intervir no processo, nos termos da lei” (artigo 32.º, n.º 7, da CRP).
Reconhece-se, pois, ao ofendido o direito de participar no processo, relegando ao legislador ordinário a indicação do conteúdo de uma tal intervenção.
“A norma constitucional não especifica o conteúdo do direito de intervenção do ofendido, remetendo para a lei ordinária a sua densificação. O que a lei não pode é retirar ao ofendido, directa ou indirectamente, o direito de participar no processo que tenha por objecto a ofensa de que foi vítima” Cfr. Jorge Miranda e Rui Medeiros, Constituição Portuguesa Anotada, tomo I, pág. 361..
Ora, em sede processual, no domínio da nossa lei ordinária, a intervenção do ofendido pode assumir as formas de assistente e/ou demandante civil.
Postergando esta última vertente, porque manifestamente irrelevante no caso em apreciação, no cotejo legal infraconstitucional, o ofendido/assistente assume-se como um dos sujeitos processuais, com papel principal enquanto acusador nos crimes particulares e com intervenção activa, embora, em regra, subordinada, nas fases de instrução, julgamento e recursos, em crimes semi-públicos e públicos.
Tal posição insere-se, aliás, na nossa tradição jurídico-processual, sendo que também como esta o regime legal actual não explicita uma noção de ofendido/assistente.
Efectivamente, dispõe o artigo 68.º do Código de Processo Penal (versão anterior à da Lei 26/2010, de 30-08):
«1 - Podem constituir-se assistentes no processo penal, além das pessoas e entidades a quem leis especiais confiram esse direito:
a) Os ofendidos, considerando-se como tais os titulares dos interesses que a lei especialmente quis proteger com a incriminação, desde que maiores de 16 anos;
b) As pessoas de cuja queixa ou acusação particular depender o procedimento;
c) No caso de o ofendido morrer sem ter renunciado à queixa, o cônjuge sobrevivo não separado judicialmente de pessoas e bens ou a pessoa, de outro ou do mesmo sexo, que com o ofendido vivesse em condições análogas às dos cônjuges, os descendentes e adoptados, ascendentes e adoptantes, ou, na falta deles, irmãos e seus descendentes, salvo se alguma destas pessoas houver comparticipado no crime;
d) No caso de o ofendido ser menor de 16 anos ou por outro motivo incapaz, o representante legal e, na sua falta, as pessoas indicadas na alínea anterior, segundo a ordem aí referida, salvo se alguma delas houver comparticipado no crime;
e) Qualquer pessoa nos crimes contra a paz e a humanidade, bem como nos crimes de tráfico de influência, favorecimento pessoal praticado por funcionário, denegação de justiça, prevaricação, corrupção, peculato, participação económica em negócio, abuso de poder e de fraude na obtenção ou desvio de subsídio ou subvenção.
(…)».
O legislador ordinário consagrou, para efeitos de constituição de assistente, um conceito de “ofendido” em sentido restrito. Não pode ser considerado “ofendido” qualquer pessoa prejudicada com a comissão do crime, mas unicamente o titular do interesse que constitui o objecto imediato do crime. Ou seja, o assistente só pode ser o directamente ofendido com a violação da norma, sendo que, havendo uma pluralidade de pessoas que o sejam, qualquer delas pode constituir-se assistente sempre que a ofensa àquele esteja compreendida na esfera de protecção da incriminação Cfr. Ac. de Fixação de Jurisprudência n.º 8/2006, de 12-10-2006, publicado no D.R., 1.ª série, n.º 229, de 28-11-2006..
Como refere Germano Marques da Silva Curso de Processo Penal, vol. I, Editorial Verbo, 2000, pág. 264., «não é ofendido qualquer pessoa prejudicada com o crime; ofendido é somente o titular do interesse que constitui objecto da tutela imediata pela incriminação do comportamento que o afecta. O interesse jurídico mediato é sempre o interesse público, o imediato é que pode ter por titular um particular».
Tomando como ofendidos apenas os titulares dos interesses que a lei quis proteger consagrou-se, ou melhor, manteve-se consagrado o conceito estrito de ofendido que a lei e a jurisprudência formularam sem divergências de maior no domínio do CPP de 1929 Cfr., v.g., na doutrina, Beleza dos Santos, Partes Particularmente Ofendidas em Processo Criminal, RJJ, ano 57; Figueiredo Dias, Direito Processual Penal, 1.º vol., págs. 505/506 e 512/513; Cavaleiro de Ferreira, Curso de Processo Penal, vol. I, pág. 129..
É verdade que a circunstância de ser protegido um interesse de ordem pública não afasta, sem mais, a possibilidade de, ao mesmo tempo, ser também imediatamente protegido um interesse susceptível de ser corporizado num concreto portador, assim se afirmando a legitimidade material do ofendido para se constituir assistente. Todavia, para esse efeito, impõe-se interpretar o tipo incriminador em ordem a aferir se há uma pessoa concreta cujos interesses são protegidos com a incriminação. De facto, a consideração de que o crime ofende primacialmente interesses da comunidade não determina, por si só, que não possa ofender interesses de um concreto particular.
Partindo destas premissas dogmáticas, analisando os crimes referenciados nos autos, vemos que:
- relativamente aos crimes de furto, abuso de confiança e infidelidade, p. e p., respectivamente, pelos artigos 203.º/204.º, 205.º e 224.º do Código Penal, o bem jurídico protegido tutelado por qualquer um dos referidos normativos é o património do(s) visado(s), in casu de D... e E...;
- quanto ao crime de maus tratos, é a protecção da pessoa individual afectada pela conduta lesante e a sua dignidade humana ou, dito por outras palavras, a protecção da saúde, bem jurídico complexo que abrange a saúde física, psíquica e mental, o qual pode ser ofendido por toda a multiplicidade de comportamentos que afectam a dignidade pessoal da vítima Taipa de Carvalho, Comentário Conimbricense do Código Penal, tomo I, pág. 332, a propósito do crime de maus tratos na lei antiga. No mesmo sentido, no domínio da lei nova, Plácido Conde Fernandes, Violência Doméstica, Novo quadro penal e processual penal, Revista do CEJ, n.º 8, 1.º semestre, pág. 305..
Daí que, na situação revelada pelos autos, só os pais do denunciante, D... e E..., e não este, sejam titulares do interesse que a lei especialmente quis proteger com a incriminação do furto, abuso de confiança e infidelidade. Em relação ao crime de maus tratos, a titularidade do referido interesse pertence a D....
Invoca, é certo, o denunciante, apenas no requerimento de abertura da instrução, a avançada idade e debilidade física de seu pai D..., mas afastando expressamente qualquer estado de incapacidade do mesmo, de querer e entender, relativamente ao qual, diga-se, não existe o mínimo indício nos autos. Aliás, o próprio denunciante declarou, na fase de inquérito: «o seu pai tem 80 anos e sua mãe 78 anos; ao que o depoente sabe, nem o seu pai nem a sua mãe sofrem de algum problema de saúde física ou mental que os impeça de se regerem a si próprios e aos seus bens»; «os seus pais vivem de forma independente e autónoma, em casa própria, não tendo tido, até agora, qualquer necessidade de apoio ou ajuda de terceiras pessoas (…)» (cfr. fls. 40/41). Acrescem ainda as declarações, já na fase de instrução, de F..., cônjuge do denunciante (fls. 1008/1010), totalmente omissas em relação ao estado físico/mental de seu sogro, e de G..., o qual, neste conspecto, apenas adiantou ser sua opinião que D... terá dificuldades em “saber coisas relativas a contas bancárias”.
Em face de todo o exposto, e em síntese conclusiva, não detendo o denunciante legitimidade para se constituir assistente no âmbito dos presentes autos e tão pouco para o exercício do direito de queixa em relação ao crime, semi-público, de infidelidade (cfr. artigos 224.º, n.º 3 e 113.º, n.º 1, ambos do CP, no caso concreto que se evidencia, em que aquele reagiu ao despacho de arquivamento do inquérito requerendo, sem poderes para o efeito, a abertura da instrução (cfr. artigo 287.º, n.º 1, do CPP), não é legalmente possível a prolação de despacho de pronúncia contra os arguidos, por inexistência de um dos pressupostos relativos ao prosseguimento do processo.
Por haver, assim, causa extintiva do procedimento criminal, fica prejudicado o conhecimento do recurso.
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III. Dispositivo:
Posto o que precede, decido julgar extinto o procedimento criminal dos autos, por o denunciante A... não dispor de legitimidade para o exercício do direito de queixa, quanto ao crime de infidelidade, e para a constituição de assistente, no âmbito deste processo, relativamente aos demais crimes, e, assim, para requerer a abertura da instrução perante o despacho de arquivamento do Ministério Público, tendo em vista a pronúncia dos arguidos B... . e C....
Sem tributação.
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Alberto Mira