Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
2278/19.7T8ACB.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: VÍTOR AMARAL
Descritores: PROCESSO DE ENTREGA DE MENOR
CONVENÇÃO DE HAIA
DESLOCAÇÃO ILÍCITA
RAPTO INTERNACIONAL DE CRIANÇAS
Data do Acordão: 02/18/2020
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: JUÍZO DE FAMÍLIA E MENORES DE ALCOBAÇA
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTS. ºS 3.º, 7.º, 12.º, 13ºDA CONVENÇÃO SOBRE OS ASPETOS CIVIS DO RAPTO INTERNACIONAL DE CRIANÇAS (CONCLUÍDA EM HAIA, EM 25/10/1980)
Sumário: 1. - O processo de entrega de menor, nos termos dos art.ºs 3.º, 7.º e 12.º da Convenção sobre os Aspetos Civis do Rapto Internacional de Crianças (concluída em Haia, em 25/10/1980), reveste-se de natureza urgente, implicando uma indagação expedita, que não se compadece com um apuramento global quanto às matérias de regulação do exercício de responsabilidades parentais, para cuja definição não está vocacionado.

2. - Nesse processo de entrega de menor apenas importa apurar e decidir quanto à deslocação ou retenção ilícita de menor (art.º 3.º daquela Convenção), e, por outro lado, segundo o invocado no caso, com vista a obstar ao regresso da criança ao país de residência habitual, quanto ao risco grave decorrente de tal regresso, por sujeição a perigos de ordem física ou psíquica ou a situação qualificável como intolerável (matéria de exceção do art.º 13.º da mesma Convenção).

3. - Nesta sede, não cabe apurar de imputadas/alegadas condutas criminosas de um dos progenitores, como obstáculo ao regresso da criança ilicitamente retida, se tais condutas já foram objeto de apreciação pela Justiça do país de residência habitual, que as considerou não demonstradas por decisão tornada definitiva.

4. - Em tal caso, não demonstrada a matéria de exceção do art.º 13.º da dita Convenção, o interesse da criança materializa-se no seu regresso urgente ao país de residência habitual, onde pode ser reequacionada, se para tanto houver fundamento, a regulação do exercício de responsabilidades parentais.

Decisão Texto Integral:

Acordam na 2.ª Secção do Tribunal da Relação de Coimbra:

***


I – Relatório

M (…), com os sinais dos autos, residente na Holanda,

veio requerer, nos termos dos art.ºs 3.º, 7.º e 12.º da Convenção sobre os Aspetos Civis do Rapto Internacional de Crianças (concluída em Haia, em 25/10/1980),

contra a Requerida, R (…), também com os sinais dos autos, atualmente residente em Portugal,

processo urgente de entrega de menor, com vista ao regresso à Holanda da menor M (…), filha de ambos, nascida em 11/05/2014,

pedindo que sejam tomadas as medidas necessárias e urgentes para que a menor regresse à residência habitual, em Roterdão, Holanda, para junto do seu pai, que tem o poder paternal, cujo exercício foi devidamente regulado naquele país.

Alegou, para tanto, no essencial – quanto ao que importa à decisão do recurso interposto –, que:

- a menor nasceu na Holanda, sendo ambos os pais de nacionalidade portuguesa e residindo, então, ambos na Holanda, onde foram reguladas as responsabilidades parentais quanto a tal menor, com fixação de residência alternada;

- com fundamento na invocação de maus-tratos imputados ao progenitor, foi suscitado pela aqui Requerida incidente de alteração do regime das responsabilidades parentais, que foi julgado improcedente pela Justiça da Holanda, com confirmação em via de recurso em tribunal superior;

- porém, tendo-se deslocado para Portugal com a menor, em Julho de 2019, para gozo de férias, a Requerida não regressou à Holanda, o que comunicou em 01/09/2019 ao Requerente, assim retendo, contra a vontade deste, a filha em Portugal.

A DGRSP ([1]) recebeu da sua congénere Holandesa a mesma pretensão ora apresentada pelo progenitor, no sentido do regresso da menor à Holanda, Estado da sua residência habitual ([2]).

Determinada a audição de ambos os progenitores, estes prestaram declarações presenciais em 14/11/2019 ([3]), que foram objeto de gravação áudio, após o que a parte requerida solicitou prazo para juntar aos autos a sua resposta no âmbito da notificação recebida da DGRSP para pronúncia quanto ao eventual regresso da menor à Holanda, bem como a inquirição, em nova data, de duas testemunhas – o avô materno da menor, V (…), e um tio materno desta, R (…)–, para depoimento quanto ao “trauma” que a menor “tem e que foi descrito pela mãe”, por se tratar de pessoas com “intervenção direta no acompanhamento da M (…), desde que se encontra em Portugal”, o que lhe foi indeferido ([4]).

Foram proferidas alegações orais.

Por decisão datada de 16/11/2019, foi formulado o seguinte dispositivo:

«Considerando ilícita a deslocação e retenção em Portugal da criança M (…) ordenar o seu regresso imediato à Holanda (Estado da sua residência habitual).

Comunique a presente decisão à autoridade central (DGRS), que deverá encetar todas as diligências necessárias para o regresso da criança à Holanda, devendo nomeadamente articular com o progenitor a vinda do mesmo a Portugal para receber a criança.

Comunique ao Gabinete Sirene, nos termos do art. 97º da Convenção de Aplicação de Acordo de Schengen, para que se insiram os dados relativos à criança no Sistema de Informação Schengen.

Solicite a remessa da presente decisão às entidades competentes em matéria de menores em Roterdão – com saliência para a página 2 onde constam as alegações da Rqda. – através da autoridade central para conhecimento dos mesmos e eventual tomada de medidas que considerem adequadas ao caso.» ([5]) ([6]).

Desta sentença veio a Requerida, inconformada, interpor o presente recurso, com pedido de fixação de efeito suspensivo, apresentando alegação e as seguintes

Conclusões

«1. A recorrente juntou fotografias aos autos de regulação de poder paternal que, no mínimo, impressionam já que mostram a menor com elevados indícios de marcas de maus tratos.

2. A recorrente apresentou requerimento com o mesmo teor e com as mesmas fotos perante a DGRSP.

3. Quando foi notificada pela DGRSP para se pronunciar sobre o pedido de entrega da sua filha ao pai na Holanda, a recorrente apresentou requerimento junto da DGRSP alegando os mesmos factos já alegados perante o tribunal com as mesmas fotos de modo a fazer entender às autoridades portuguesas os motivos pelos quais a menor não podia regressar à Holanda.

4. A recorrente apresentou pedido de alteração das responsabilidades parentais, alegando que há motivos para alterar as responsabilidades parentais relativamente á menor, conforme requerimento de alteração das responsabilidades parentais supra transcrito.

5. Aquando da sua audição a recorrente alegou perante o Tribunal “a quo” os seguintes factos e elementos: Durante a constância do casamento o Requerido sempre teve uma conduta violenta para com a Requerente, nomeadamente: ameaçando a Requerente contra a sua vida, agredindo a Requerente; fazendo pressão psicológica para com a Requerente, forçava a Requerente a ter relações sexuais mesmo quando esta não se sentia disponível para o efeito e muitas vezes contra a própria vontade da Requerente; Impedia a Requerente de ver outras pessoas; Impedia Requerente de trabalhar, de modo a que esta ficasse completamente isolada sem amigos e sem familiares; O Requerido lida com substâncias psicotrópicas e estupefacientes mesmo na presença da Requerente e da filha menor, Mesmo após o divorcio, o Requerido continuava sempre a ameaçar a Requerente bem como a fazer pressão psicológica sobre a mesma, de modo a causar instabilidade psicologica e emocional na Requerente; A menor sempre que ia visitar o pai, vinha de lá com marcas de violência que lhe eram infligidas, tanto pelo Requerido como pela actual companheira deste – conforme aconteceu da última vez em Julho de 2019 cuja documentação se anexa. E no dia 9.07.2019 o Requerido exibiu uma arma à Requerente e disse “Brevemente vou matar-te e ficar com a tua filha… espera que vais ver, sabes bem que o futuro da M (…) vai ser comigo porque tu vais ficar a muitos palmos abaixo do chão, faço questão de tratar do assunto.” E no dia 20.07.2019 em conversa telefónica com o Requerido este disse-lhe “Quando voltares vais ver o que te acontece”. A Requerente ficou seriamente assustada e apreensiva com as ameaças do Requerido. A Requerente teme pela sua vida, bem como teme pela sua filha menor. Razão pela qual a Requerente, decidiu não voltar para a Holanda com a sua filha menor. Ficando em Portugal com a menor, pois aqui tem estabilidade junto da sua família materna, tem emprego já organizado e consegue dar melhores condições para a menor crescer e se desenvolver em paz. Sem ter que ser a menor sujeita a um ambiente de violência, ameaças, estupefacientes e agressões, como acontecia na Holanda quando estava junto do Requerido. Na verdade, o Requerido não oferece condições de segurança, estabilidade, sanidade, ambiente saudável, para a menor. O Requerido trafica droga e consome droga em casa. Aliás, o Requerido é consumidor de estupefacientes. Lida com pessoas que não são recomendáveis a ninguém. E procede a ameaças contra a Requerente, torturando-a a nível psicológico. Agride e permite que a menor seja agredida pela sua companheira com as marcas bem visiveis que se juntam com a presente peça processual. Ao ponto de, nota agora a Requerente, que a menor está tão traumatizada de “apanhar” que quando a mesma deixa cair qualquer coisa no chão, a primeira reacção que tem é agaixar-se a proteger a cabeça com os braços – pressupondo que vai “apanhar”. Tem sido a Requerente agora aqui em Portugal que tem vindo a debelar estes traumas com a menor. A Requerente não vê condições para poder regressar à Holanda por temer pela sua vida e por temer pela segurança e bem estar da menor. A Requerente, inclusivamente notava que a menor, quando convivia com o Requerido e com a companheira deste, apresentava características semelhantes a comportamentos depressivos, ansiedade e stress. E, desde que vieram para Portugal, a menor tem demonstrado franca recuperação a nível físico e psicológico. A menor, pode dizer-se, sente-se feliz e apoiada junto da mãe (Requerente) e junto da família materna. Não é benéfico para o desenvolvimento, para o bem-estar e até para a saúde da sua filha menor supra mencionada, que esta regresse a Holanda. A Requerente já contactou profissionais de saúde no sentido de acompanharem a menor aqui em Portugal e juntamente com a Requerente, ajudar a menor a recuperar psicologicamente dos traumas que traz da Holanda de quando estava junto do Requerido.

6. A recorrente alertou e requereu perante o tribunal “a quo”, conforme consta de fls, para a necessidade de recolher elementos importantes para a boa decisão da causa, nomeadamente: A audição de duas testemunhas; A remessa para os presentes autos dos requerimentos apresentados e respectivas fotos e meios de prova requeridos perante a DGRSP; A remessa para os presentes autos dos requerimentos apresentados e respectivas fotos e meios de prova requeridos perante o mesmo tribunal “a quo” perante os autos de regulação das responsabilidades parentais;

7. Tudo elementos que estavam ao alcance do tribual e que permitiam uma melhor apreensão e uma melhor noção de todos os elementos no presente processo.

8. A recorrente requereu a apreciação de várias questões, apresentou documentos e requereu diligências de prova. Todavia, apesar de todos estes factos e circunstâncias, o tribunal “a quo” proferiu (erradamente) a decisão de fls.

9. Conforme consta da acta de fls., o tribunal “a quo” entendeu como credíveis e não colocou em causa as declarações da recorrente. Ora, devia então o tribunal ter em conta o que disse a recorrente. E dos elementos constantes dos autos e do que foi colocado ao alcance do tribunal,

10. E ainda tendo em conta o depoimento da recorrente, que não foi colocado em causa pelo tribunal, conforme despacho já transitado de fls., devia o tribunal constatar e dar como provado que, o progenitor: é uma pessoa violenta e intimidatória, que trafica droga em casa, que consome droga, que ameaçou de morte a recorrente.

11. E daí, concluir pelo patente risco da menor em voltar para a Holanda para junto do progenitor.

12. Deveria ter sido feita outra interpretação dos elementos do processo e das normais jurídicas aplicáveis a este caso. Desde logo, o tribunal deveria ter apurado, antes de se precipitar a decidir, sobre as circunstâncias concretas da menor, de modo a poder apurar qual o seu interesse superior a defender e a preservar neste caso.

13. O tribunal não se preocupou sequer em ouvir as pessoas que lidam agora diariamente com a menor, nem se preocupou em indagar sobre os meios de prova requeridos neste processo, pela recorrente.

14. Decidiu-se sem saber quais os superiores interesses desta menor.

15. Por outro lado, decidiu-se nos termos da sentença de fls., apesar de existirem nos autos elementos suficientes para consubstanciar situações de maus-tratos levados a cabo na Holanda pelo pai sobre a menor.

16. Bem como ignorou-se o facto alegado sobre o consumo e trafico de estupefacientes pelo progenitor – conduta completamente abominada pela nossa Lei portuguesa bem como pelos costumes e valores da sociedade portuguesa.

17. E estas circunstâncias enquadram-se numa das excepções previstas no artigo 13º da Convenção de Haia, que impede o regresso imediato das crianças.

18. A al. b) do artigo 13º da referida Convenção de Haia estipula que o tribunal não é obrigado a ordenar o regresso da criança se esta ficar sujeita a perigos de ordem física e psicológica, ou de qualquer outro modo ficar numa situação intolerável.

19. Tendo em conta o que consta do processo, o que foi alegado pela mãe e os elementos que constam dos autos (por exemplo as declaraçoes da Mãe não colocadas em causa pelo tribunal).

20. Constam elementos que indicam que se esta criança regressar a Holanda para junto do pai vai ficar sujeita a perigos de ordem física e psíquica e ainda vai ficar numa situação intolerável.

21. Não é tolerável afastar esta criança da mãe e do ambiente de paz e estabilidade que estas encontraram agora junto da mãe.

22. Bem como não é tolerável que se mande uma criança para um ambiente de trafico e de consumo de droga, agressões fisicas e psicológicas.

23. Pelo menos é isto que consta dos autos e o tribunal nada fez para verificar.

24. O que, na perspectiva do superior interesse da criança, deveria ser apreciado devidamente pelo tribunal – e não foi.

25. Todos estes elementos constantes dos autos, desde logo enquadram a situação destas crianças nas excepções previstas no referido artigo 13º da Convenção, que impede o regresso imediato das crianças.

26. Seria assim sempre necessário, antes de se ter decidido nos termo da sentença recorrida, que se tomassem as medidas adequadas a garantir a protecção desta criança e apurar, no âmbito dos presentes autos sobre a existência, ou não, da situação de maus-tratos alegados.

27. Não podia assim proferir-se a sentença recorrida, sem primeiro tomar as medidas adequadas para garantir a protecção desta criança. O que deveria ter sido feito nestes autos, devendo, antes de se ordenar sumariamente a entrega da criança ao pai, apurar-se sobre a existência destes maus-tratos. E até indagar sobre as partes no sentido de se encontrar uma solução amigável para este caso, conforme aliás foi sugerido nos autos pela autoridade central.

28. O tribunal decidiu da forma que se viu, proferindo uma decisão sem ter em conta os direitos das crianças e sem se preocupar com a sua sorte.

29. O tribunal “a quo” decide e não dá qualquer justificação para não ter considerado indagar sobre a situação concreta da menor neste processo, antes de tomar qualquer decisão. Nem justifica porque não teve em conta as diligências de prova requeridas.

30. Nem justifica porque não se preocupou em recolher elementos probatórios relativos ao modo como a menor se encontrava psicologicamente

31. Esperava-se mais do tribunal “a quo”. Não uma decisão sumária, insensível aos interesses da criança.

32. Determinando que a mesma fossem entregue ao pai, sobre o qual recaem indícios suficientes de maus-tratos e de praticas contrárias à nossa Lei, conforme consta dos elementos do processo.

33. Com o devido respeito, o tribunal "a quo" não entendeu, nem soube apreciar os elementos constantes destes autos, Nem soube interpretar devidamente os elementos e circunstâncias decorrentes dos presentes, nem aplicar a Lei a este caso concreto.

34. Trata-se assim de uma decisão aberrante que decidiu sem ter em conta todos os elementos de facto e de direito aplicáveis a este caso. E sem ter tomado todas as diligências que se impunham neste caso. Em completo atropelo aos direitos desta criança.

35. Sem haver a prévia preocupação sobre em que situação esta crianças, em concreto se encontra. Sem haver a preocupação de apurar previamente sobre qual o efectivo e superior interesse desta criança neste caso. Tanto mais que, estamos perante uma sentença que, por um lado não dá como provados os factos alegados pela recorrente, mas, por outro, manda remeter certidão para as autoridades holandesas investigarem os mesmos factos alegados pela recorrente.

36. O tribunal a quo acaba por reconhecer veracidade e fundamento nos argumentos e elementos apresentados pela recorrente. Tanto assim é que manda que tais elementos sejam apurados pelas autoridades holandesas. Elementos esses que indicam factos de potencial e real risco de colocar a menor numa situação intolerável caso volte para a Holanda.

37. Devia assim, antes de decidir, ordenar-se a indagação junto da menor aqui em Portugal e apurar devidamente todos os factos, todos os elementos e todos os fundamentos. O superior interesse da menor, no minimo, exigia este cuidado.

38. A sentença recorrida não teve em conta todos os direitos da menor neste caso, nomeadamente o disposto no artigo 16º, n.º 4 da Convenção de Haia, o disposto no artigo 17º da Convenção de Haia e ainda os termos do artigo 12º e 10º n.º 1 da Convenção sobre os Direitos da Criança adoptada pela Assembleia-geral da ONU em 20-11-1989 e ratificada por Portugal em 21-09-1990.

39. O tribunal “a quo” não teve em conta as disposições legais acima indicadas, nem se preocupou em explicar porque não as considerou.

40. Estamos perante uma situação de mudança de residência habitual desta criança. Por outro lado, nos termos do artigo 10º n.º 1 da Convenção sobre os Direitos da Criança adoptada pela Assembleia-geral da ONU em 20-11-1989 e ratificada por Portugal em 21-09-1990, as crianças têm o direito de deixar qualquer país para fins de reunificação familiar.

41. E conjugada com o artigo 12º da mesma convenção, a criança tem o direito a exprimir livremente a sua opinião sobre questões que lhes digam respeito. E tem o direito de ver essa opinião tomada em consideração.

42. Nada disto foi feito ou respeitado pelo tribunal “a quo”.

43. Sofre assim a decisão recorrida de nulidade, que aqui se invoca com todos os efeitos legais (Art. 615º n.º 1, al. d) e Art. 616º n.º 2, als. a) e b) todos do CPC).

44. Não se verifica qualquer retenção ilícita destas crianças.

45. Aliás, a mãe procurou sempre agir de forma transparente neste processo, dando logo conhecimento dos factos às entidades competentes, avisando o pai das opiniões manifestadas pelas crianças, avisando a CPCJ e apresentando junto do tribunal o competente pedido de alteração das responsabilidades parentais.

46. A sentença recorrida é que não esteve à altura das circunstâncias supra referidas e não interpretou correctamente os elementos constantes dos autos, nem interpretou e aplicou devidamente as normas jurídicas aplicáveis ao caso em concreto.

47. Deverá assim revogar-se a sentença recorrida.

Termos em que, se requer a V. Ex.as. a REVOGAÇÃO da decisão recorrida, por ser de LEI, DIREITO e JUSTIÇA.» ([7]).

O M.º P.º, em resposta, pugna pela improcedência do recurso.

Contra-alegou também o Requerente, pugnando pela correção da sentença recorrida, a dever ser confirmada.


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O recurso foi admitido como de apelação, a subir imediatamente, nos próprios autos e com efeito meramente devolutivo ([8]), tendo sido ordenada a remessa dos autos a este Tribunal ad quem, onde foi mantido o regime e efeito assim fixados ([9]).

Nada obstando, na legal tramitação, ao conhecimento do mérito do recurso, cumpre apreciar e decidir.


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II – Âmbito do Recurso

Perante o teor das conclusões formuladas pela parte recorrente – as quais definem o objeto e delimitam o âmbito do recurso ([10]), nos termos do disposto nos art.ºs 608.º, n.º 2, 609.º, 620.º, 635.º, n.ºs 2 a 4, 639.º, n.º 1, todos do Código de Processo Civil em vigor (doravante, NCPCiv.), o aprovado pela Lei n.º 41/2013, de 26-06 –, importa saber ([11]):

1. - Se está verificada causa de nulidade da sentença [conclusão 43.ª da Apelante e art.º 615.º, n.º 1, al.ª d), do NCPCiv.];

2. - Se ocorreu omissão de diligências probatórias essenciais à boa decisão da causa (conclusões 6.ª a 8.ª e 41.ª da Apelante);

3. - Se foi devidamente impugnada a decisão da matéria de facto e se deve proceder, com alteração do quadro fáctico da sentença (conclusão 10.ª da Apelante);

4. - Se deve alterar-se a decisão de direito, por o Tribunal a quo, desconsiderando o superior interesse da criança, ter afastado – erradamente – o enquadramento do caso no âmbito da matéria de exceção prevista no art.º 13.º da Convenção de Haia, como impedimento do regresso imediato da criança.


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III – Fundamentação

          A) Matéria de facto

1. - Na 1.ª instância foi considerada a seguinte factualidade como provada:

«1. M (…), nascida a 11Mai2014 em Roterdão, na Holanda, é filha comum de M (…) e de R (…).

2. Os progenitores da M (…) contraíram matrimónio na Haia na Holanda em 19Ago2010, país onde residiram juntos com a M (…), até a Rqda. ter saído de casa e ido morar com a M (…) dois meses antes do divórcio ocorrido em 2016.

3. Aquando do divórcio foi fixado em 29Nov2016, por acordo de Rqte. e Rqda. um regime de guarda partilhada com residência principal da M (…)junto da Rqda. e residência alternada semanal junto de cada um dos progenitores.

4. Por decisão do Tribunal de Roterdão de 21Set2018 com o nº C/10/552939/FARK18-4811 é negada procedência ao pedido da Rqda. em mudar a sua residência junto com a M (…) para Portugal.

5. A Rqda. recorreu da decisão referenciada em 4. supra em 17Dez2018 e em 12Jun2019 no processo nº 200.251.546/01 pelo tribunal de 2ª instância em Haia, é confirmada a decisão recorrida, negando provimento ao recurso da Rqda..

6. Na decisão referenciada em 5 supra foram consideradas e ponderadas as alegações de maus tratos à M (…)pela companheira do Rqte., pessoas estranhas que visitam o pai em casa deste.

7. Em 12Jul2019 e após cessada a suspensão da instância no incidente suscitado pela Rqda. no sentido de alterar as responsabilidades parentais da M (…) para residência com a mãe e visitas ao pai em fins de semana alternados, é proferida no Tribunal de Roterdão decisão que nega provimento à pretensão da ora Rqda., recorrível nos três meses subsequentes.

8. Na decisão supra referenciada em 7. foram ponderados alegados maus tratos da companheira do Rqte. e de a M (…) não querer ir para o pai, conforme inquérito prévio da Comissão de proteção de menores (Familie Team 2 kamer F0911) a fls. 7 a 12 dos presentes autos, tendo tal comissão referido revelarem-se inconclusivas e não suficientemente indiciadas as preocupações da Rqda., sendo de parecer de que a guarda partilhada deve ser, ao invés, reforçada - através da melhoria da comunicação entre os progenitores com terapia para o efeito.

9. Em 19 de Julho de 2019, a Rqda. deslocou-se com a M (…) para Portugal onde, por combinação prévia entre ambos os progenitores, a entregaria ao Rqte. para este gozar férias com a criança durante 15 dias, o que veio a suceder.

10. Logo após a menor M (…) ter sido entregue à Rqda., o Rqte. voltou à Holanda, onde a Rqda., após esta passar com ela o seu período de férias até 1Set2019, deveria regressar com a M (…) em 2Set2019.

11. Em 1Set2019 a Rqda. enviou ao Rqte. um e-mail anunciando a sua decisão de permanecer em Portugal e não voltar mais à Holanda com a  M (...) e instando o Rqte. a contactar o seu advogado para ultrapassarem a situação, impondo que as visitas ao pai pela M (…) sejam efectuadas em Portugal na presença da Rqda. e da sua família.

12. Mais alegou, como razões para essa decisão, maus tratos à M (…) pela companheira do Rqte., contacto e convívio da M (…) com drogas e utilizadores de drogas e ameaças e terror psicológico à Rqda. por parte do Rqte.

13. A ora requerida/progenitora intentou em 3Set2019 neste Tribunal de Família e Menores de Alcobaça processo de regulação das responsabilidades parentais da M (…) proc. 1253/19.6T8CLD – o qual foi imediatamente suspenso após recebimento/conhecimento do incidente suscitado nos presentes autos.».

2. - E foi julgado, quanto a factos não provados, que “Não resultaram indiciados quaisquer factos (nem anteriores nem posteriores a 1Set2019) a partir dos quais se possa concluir que a menor tenha sido alvo de maus tratos por parte da companheira do Rqte. - e menos ainda por parte do Rqte..”.

B) Nulidade da sentença

Da omissão de pronúncia

Esgrime a Recorrente que o Tribunal a quo não tomou conhecimento devido das questões que lhe foram apresentadas.

Se bem se entende a respetiva argumentação, a Apelante entende que as questões não apreciadas serão as que se prendem com o não conhecimento da concreta situação da menor, com a não realização de diligências de prova requeridas, com o não apuramento do superior interesse desta criança, com a não audição da menor.

Nos termos do disposto no art.º 615.º, n.º 1, al.ª d), do NCPCiv., é nula a sentença quando “O juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento” (itálico aditado).

          E, como também é consabido, são as conclusões formuladas pela parte recorrente, com reporte à decisão impugnada, que definem o objeto e delimitam o âmbito do recurso, nos termos do disposto nos art.ºs 608.º, n.º 2, 609.º, 620.º, 635.º, n.ºs 2 a 4, 639.º, n.º 1, todos do NCPCiv..

          No caso dos autos, na sentença decidiu-se em matéria de facto e de direito, sobre processo urgente de entrega de menor, ao abrigo de convenção internacional, a aludida Convenção de Haia sobre Aspetos Civis de Rapto Internacional de Crianças, pelo que se impunha decidir sobre se ocorre deslocação ou retenção ilícita de criança (art.º 3.º da Convenção), e, por outro lado, com vista a obstar ao regresso da menor (de acordo com o alegado pela Requerida), se existe risco grave em caso de tal regresso, por sujeição a perigos de ordem física ou psíquica ou a situação qualificável como intolerável (matéria de exceção do art.º 13.º da mesma Convenção).

          E foi sobre isso que, em 1.ª instância, se ponderou (com fundamentação bastante) que:

          a) “tendo a progenitora in casu deslocado o filho para Portugal, onde o manteve sem o consentimento do progenitor, concluímos que tal deslocação e a retenção da menor no nosso país têm de ser considerada ilícita, sendo certo que ainda não decorreu um ano sobre a data da deslocação (cf. art. 12º da Convenção)”;

          b) “A tal conclusão não pode obstar o alegado pela progenitora, pois não logrou provar, no essencial, a factualidade por si vertida em sede de declarações, pelo que não podemos concluir, como a requerida, que o regresso da criança poderá pôr seriamente em causa o seu bem-estar, expondo-a a perigos psicológicos e físicos graves.

            Em face do exposto, não se verifica a excepção a que alude o art. 13º a) da Convenção (impeditiva do regresso da criança ao país da sua residência habitual).”.

          Não deixou, todavia, de se clarificar que “não podem aqui tecer-se considerações sobre a questão de saber qual dos progenitores dispõe de melhores condições para acautelar a criança, pois essa discussão apenas pode e deve caber no âmbito do competente processo de regulação das responsabilidades parentais no Tribunal competente para o efeito que é o da residência da criança na Holanda”.

          Assim é que foi entendido que a questão a apreciar e decidir nestes autos consiste em “saber se com o regresso da criança, esta poderá ficar exposta a perigos de ordem física ou psíquica ou numa situação intolerável”.

          Tudo para concluir que “a existência de tais perigos não resultou minimamente provada”, estando “reunidos os pressupostos legais para ser ordenado o imediato regresso do menor à Holanda (Estado da sua residência habitual)”.

          Quer dizer, não concordando com o sentido da decisão proferida, vem agora a Requerida/Apelante invocar omissão de pronúncia, a falta de decisão devida.

          Porém, como visto, a decisão foi proferida e fundamentada e o inconformismo da Apelante prende-se com o sentido, que lhe foi desfavorável, dessa decisão, o que, como é bom de ver, seria fundamento para recurso e não para arguição da nulidade da sentença.

          Acresce que, como vêm entendendo a doutrina e a jurisprudência, somente as questões em sentido técnico, ou seja, os assuntos que integram o thema decidendum, ou que dele se afastam, constituem verdadeiras questões de que o tribunal tem o dever de conhecer para decisão da causa ou o dever de não conhecer, sob pena de incorrer na nulidade prevista no aludido preceito legal.

De acordo com Amâncio Ferreira ([12]), “trata-se de nulidade mais invocada nos tribunais, originada na confusão que se estabelece com frequência entre questões a apreciar e razões ou argumentos aduzidos no decurso da demanda”.

E, segundo Alberto dos Reis ([13]), “são na verdade coisas diferentes: deixar de conhecer de questão de que devia conhecer-se e deixar de apreciar qualquer consideração, argumento ou razão produzida pela parte. Quando as partes põem ao tribunal determinada questão, socorrem-se a cada passo, de várias razões ou fundamentos para fazer valer o seu ponto de vista; o que importa é que o tribunal decida a questão posta; não lhe incumbe apreciar todos os fundamentos ou razões em que elas se apoiam para sustentar a sua pretensão”.

Já Luís Correia de Mendonça e Henrique Antunes ([14]), por sua vez, referem que “a observação da realidade judiciária mostra que é vulgar a arguição da nulidade da decisão”, sendo que “por vezes se torna difícil distinguir o error in judicando – o erro na apreciação da matéria de facto ou na determinação e interpretação da norma jurídica aplicável – e o error in procedendo, como é aquele que está na origem da decisão”.

Por seu turno, Antunes Varela ([15]) esclarece,
em termos de delimitação do conceito de nulidade da sentença, que “não se inclui entre as nulidades da sentença o chamado erro de julgamento, a injustiça da decisão, a não conformidade dela com o direito substantivo aplicável, o erro na construção do silogismo judiciário (…) e apenas se curou das causas de nulidade da sentença, deixando de lado os casos a que a doutrina tem chamado de inexistência da sentença”.

Na nulidade aludida está em causa o uso ilegítimo do poder jurisdicional em virtude de se pretender conhecer de questões de que não podia conhecer (excesso de pronúncia) ou não se tratar de questões de que deveria conhecer-se (omissão de pronúncia). São, sempre, vícios que encerram um desvalor que excede o erro de julgamento e que, por isso, inutilizam o julgado na parte afetada.

Como já se mencionou, para apuramento quanto ao vício de excesso ou omissão de pronúncia cabe perspetivar as questões em sentido técnico, só o sendo os assuntos que integram o thema decidendum, ou que dele se afastam, só esses constituindo verdadeiras questões de que o tribunal tem o dever de conhecer.

Assim, não são questões para este efeito os factos (alegados ou provados), nem os argumentos apresentados pelas partes, nem as razões em que sustentam a sua pretensão ou defesa, nem as provas produzidas, nem sequer a apreciação que delas se faça em termos de formação da convicção do Tribunal.

No horizonte deste processo – de natureza urgente e atenta a sua finalidade específica – não pode, pois, concluir-se que não houve conhecimento da concreta situação da menor ou que ficou por apurar o seu superior interesse ([16]).

Já a problemática das provas (não audição de testemunhas ou da própria menor ou hipotética omissão de requisição de documentos) não respeita, manifestamente, à nulidade da sentença por omissão ou excesso de pronúncia, não sendo questão em sentido técnico, neste plano.

Por isso, in casu, no quadro da decisão da matéria de facto e respetiva sindicância recursiva, não estaríamos perante uma questão em sentido técnico, pelo que não seria caso de nulidade do acórdão por omissão de pronúncia, omissão esta que nem sequer se verifica.

Por sua vez, como bem dito na sentença, não cabe aqui a questão de saber qual dos progenitores dispõe de melhores condições para acautelar o futuro da criança, posto essa discussão apenas caber no âmbito de autos de regulação das responsabilidades parentais – ou respetiva alteração – no Tribunal competente para o efeito, que é o da residência habitual da menor, na Holanda.

Improcedem, pois, os argumentos da parte apelante em contrário.

C) Substância do recurso

1. - Da omissão de diligências probatórias essenciais à decisão da causa

Pretende a mãe da menor, a ora Recorrente, que ocorreu manifesta omissão de diligências probatórias essenciais à boa decisão da causa, já que o Tribunal recorrido não promoveu as diligências probatórias requeridas e que o habilitariam a bem decidir de meritis, tratando-se das aludidas inquirição de duas testemunhas, audição da menor e requisição de documentos.

É certo que a Requerida mãe – como visto já – havia pedido a concessão de prazo para juntar a sua resposta no âmbito da notificação recebida da DGRSP para pronúncia quanto ao eventual regresso da menor à Holanda, bem como a inquirição, em nova data, de duas testemunhas – o avô materno da menor, V (…), e um tio materno desta, R (…) –, para depoimento quanto ao “trauma” que a menor “tem e que foi descrito pela mãe”, por se tratar de pessoas com “intervenção direta no acompanhamento da  M (...), desde que se encontra em Portugal”, o que lhe foi indeferido.

Entendeu o Tribunal a quo, quanto a documentos, que a resposta que a requerida terá oferecido quando interpelada por escrito pela Autoridade Central para se pronunciar é irrelevante, por nenhum elemento permitir acrescentar ao objeto da decisão a proferir.

A Requerida mãe apenas havia explicitado, quanto ao fim probatório pretendido, que desse expediente constavam “elementos importantes para a boa decisão da causa, não obstante essa mesma documentação ser junta por parte da DGRSP” (cfr. ata de fls. 122 v.º).

E, efetivamente, esse expediente veio depois a ser junto (em 20/11/2019) a fls. 130 e segs., dele constando diversas fotos juntas pela ora Requerida (alegadamente, referentes a ferimentos sofridos pela menor).

Porém, deve notar-se, desde logo, que a Requerida não indicou o fim probatório concreto tido em vista, isto é, quais os factos a que dessa forma pretendia fazer prova ou contraprova.

Depois, tem de admitir-se que a questão dos maus-tratos à menor – a que, presumivelmente, se reportariam as fotografias apresentadas pela Requerida – já foi objeto de apreciação pela Justiça da Holanda, na sede própria, a sede de regulação do exercício das responsabilidades parentais (como resulta dos factos dados como provados, nesta parte sem impugnação da Recorrente), pelo que não poderia pretender-se uma segunda apreciação judicial sobre a matéria, agora pela Justiça portuguesa (como se funcionasse como instância de recurso perante o decidido pela Justiça da Holanda ou a decisão desta última, embora definitiva, nada valesse em Portugal), muito menos em processo urgente de natureza específica, como é o caso destes autos, onde não pode pretender-se a regulação de matérias de responsabilidades parentais, para o que manifestamente não estão vocacionados.

Por fim, a Requerida aludiu apenas à sua “resposta”, isto é, uma peça alegatória, sem explicitar qual a respetiva pertinência e força probatória, pelo que o Tribunal entendeu que não se tratava de um elemento necessário à decisão, por a mesma Requerida ter sido ouvida em declarações (nestes autos), onde manifestou a sua posição sobre a matéria do litígio.

Nada, pois, a censurar nesta parte ao decidido pelo Tribunal a quo.

E o mesmo se diga quanto à inquirição das duas testemunhas, posto não resultar que o avô materno da menor, V (…), e um tio materno desta, R (…), soubessem esclarecer quanto ao ocorrido na Holanda, isto é, a factualidade em que se estriba a Requerida, factualidade essa que – reitera-se – já foi objeto de apreciação pela Justiça da Holanda na sede própria.

Acresce que o esclarecimento quanto a aspetos psicológicos – como o “trauma” que a menor “tem e que foi descrito pela mãe” – não se compadeceria, em derradeiro o rigoroso juízo, com uma prova que não fosse de natureza técnica, isto é, teria de ser produzida por técnicos especializados (designadamente, através de perícia médica ou psicológica), por se tratar de matéria somente ao alcance de especialistas, mormente através de prova pericial (e não testemunhal, por simples leigos).

Por fim, resta a questão da audição da menor, meio de prova que a Requerida não requereu no seu requerimento de prova em análise, apenas o fazendo já em sede de recurso.

É certo que o Tribunal recorrido decidiu sem audição da menor, fundamentando essa posição na circunstância de que “o efectivo apuramento dos factos alegados pela Rqda. e frontalmente negados pelo Rqte. ou mesmo o seu carácter superveniente nunca seriam apurados através da audição da criança, atenta a sua tenra idade e a fim de não a expor a situações constrangedoras e sem qualquer efeito determinante para a decisão a proferir-se”.

Ora, é certo ter a menor apenas 5 anos de idade, pelo que não terá maturidade bastante para se pronunciar livremente em questões desta complexidade e deste melindre, não devendo ser colocada na posição de ter de tomar partido a favor de um dos pais litigantes (e, por isso, contra o outro), havendo antes de ser protegida desta dinâmica de conflitualidade, em que está em causa a imputada subtração ilícita por um dos progenitores.

Mas ainda que assim não se entendesse, certo é que não poderia colocar-se a menor a relatar imputadas agressões ocorridas na Holanda, posto – repete-se – tratar-se de matéria já objeto de apreciação por parte da Justiça holandesa, na sede própria, a qual não deu as respetivas imputações por provadas, não sendo a Justiça portuguesa – nem estes autos serviriam para tal – uma instância de reapreciação/recurso/alteração de decisões daquela Justiça da Holanda.

Em suma, improcedem as conclusões da Apelante em contrário, não se demonstrando omissão de diligências probatórias relevantes.

2. - Impugnação da decisão da matéria de facto

Importa agora saber se foi devidamente impugnada a decisão da matéria de facto e, caso o tenha sido, se deve proceder a respetiva impugnação, com a decorrente alteração do quadro fáctico fixado pela 1.ª instância.

Sob a sua conclusão 10.ª, esgrimiu a Apelante, com base nas suas próprias declarações (o seu “depoimento” prestado perante o Tribunal, que não teria sido “colocado em causa”), que devia ter sido dado como provado que o Requerente (pai) “é uma pessoa violenta e intimidatória, que trafica droga em casa, que consome droga, que ameaçou de morte a recorrente”.

Que dizer?

Desde logo, que a Recorrente não cumpre um essencial ónus a seu cargo enquanto impugnante da decisão da matéria de facto, a saber, o de indicação exata, sob pena de imediata rejeição da impugnação, das passagens gravação áudio da prova registada em que se funda [cfr. art.º 640.º, n.º 2, al.ª a), do NCPCiv.].

Com efeito, invocando apenas as suas próprias declarações e tendo estas sido objeto de gravação (como logo resulta da respetiva ata), teria a impugnante de proceder, obrigatoriamente (por força de norma imperativa expressa), à indicação exata das passagens da gravação em que fundasse a impugnação da matéria de facto.

Não o tendo feito – nas conclusões ou na prévia alegação de recurso, nem sequer oferecendo transcrição respetiva –, logo tem de improceder a impugnação.

Acresce que a matéria que a Apelante pretende ver provada não constitui concreta matéria de facto, mas matéria meramente vaga/conclusiva: ser o pai da menor pessoa violenta e intimidatória, que trafica droga em casa, que consome droga, que ameaçou de morte a recorrente.

Teria, diversamente, que se especificar os factos concretos [cfr. art.º 640.º, n.º 1, al.ª a), do NCPCiv.], a julgar como provados, que permitissem concluir por ser o Requerente (pai) pessoa violenta e intimidatória (atitudes demonstrativas desse tipo de personalidade), traficante de droga em casa (em que ocasiões, com quem traficou e em que termos), que consome droga (quando, onde, que tipo de drogas), que ameaçou de morte a Recorrente (quando, onde, de que forma).

Doutro modo, estaria a pugnar-se pelo acolhimento no quadro fáctico da sentença – onde só devem ter assento factos concretos – de meras conclusões ou valorações que ali não podem ter lugar (cfr. art.º 607.º, n.ºs 3 a 5, do NCPCiv.), o que equivaleria a julgar a substância jurídica do caso (e a determinar a solução da causa) fora da sede própria, posto ser consabido que é na fundamentação de direito da sentença que se extraem as conclusões e se procede às necessárias valorações jurídicas.

Por fim, reitera-se, mais uma vez, que se trata de matéria já objeto de apreciação, na sede própria, pela Justiça holandesa, não podendo a Justiça portuguesa, ademais nesta específica sede processual, sindicar o já decidido pelos Tribunais da Holanda.

Termos em que improcede a argumentação da Apelante em contrário, mantendo-se inalterado – e, como tal, definitivamente fixado – o quadro fáctico da sentença.

3. - Impugnação de direito

Como visto, pretende a Recorrente a alteração da decisão de direito, entendendo ter sido desconsiderado o superior interesse da criança, argumentando, para tanto, estarmos no âmbito da matéria de exceção prevista no art.º 13.º da Convenção de Haia, como preenchido impedimento do regresso imediato da menor.

Dispõe, desde logo, o art.º 2.º desta Convenção Internacional:

«Os Estados Contratantes deverão tomar todas as medidas convenientes que visem assegurar, nos respectivos territórios, a concretização dos objectivos da Convenção.

Para o efeito, deverão recorrer a procedimentos de urgência.».

E também é certo (cfr. art.º 10.º do mesmo instrumento jurídico) que a “autoridade central do Estado onde a criança se encontrar deverá tomar ou mandar tomar todas as medidas apropriadas para assegurar a reposição voluntária da mesma”.

Sendo que (cfr. art.º 11.º) as “autoridades judiciais ou administrativas dos Estados Contratantes deverão adoptar procedimentos de urgência com vista ao regresso da criança”.

Compreendendo-se, neste âmbito (cfr. art.º 12.º), que:

«Quando uma criança tenha sido ilicitamente transferida ou retida nos termos do Artigo 3.º e tiver decorrido um período de menos de 1 ano entre a data da deslocação ou da retenção indevidas e a data do início do processo perante a autoridade judicial ou administrativa do Estado contratante onde a criança se encontrar, a autoridade respectiva deverá ordenar o regresso imediato da criança» (sic, com itálico aditado).

Só assim não ocorrendo (cfr. art.º 13.º aludido), quanto ao que aqui importa, “se a pessoa (…) que se opuser ao seu regresso provar” que “existe um risco grave de a criança, no seu regresso, ficar sujeita a perigos de ordem física ou psíquica, ou, de qualquer outro modo, a ficar numa situação intolerável” [al.ª b)].

Sendo também pacífico que, ao “apreciar as circunstâncias referidas neste Artigo, as autoridades judiciais ou administrativas deverão ter em consideração as informações respeitantes à situação social da criança fornecidas pela autoridade central ou por qualquer outra autoridade competente do Estado da residência habitual da criança” (cfr. mesmo art.º 13.º da Convenção).

Ora, vista a factualidade provada – a única a ter em conta para solução do caso/recurso –, nada mostra que ocorra o invocado “risco grave de a criança, no seu regresso, ficar sujeita a perigos de ordem física ou psíquica, ou, de qualquer outro modo, ficar numa situação intolerável”.

Na verdade, o circunstancialismo em que a mãe da menor se baseia não resultou provado.

Ao invés, foi já – repete-se de novo – objeto de apreciação pela Justiça holandesa, tendo sido julgado não provado na sede própria, considerando-se infundadas as suspeitas daquela mãe e aqui Requerida.

Assim, não pode, obviamente, ter-se por preenchida a matéria de exceção do aludido art.º 13.º da mencionada Convenção.

E nem o Tribunal a quo a deu por preenchida, apenas reconhecendo serem compreensíveis os receios da mãe da menor ([17]), o que é diferente de formular um juízo de veracidade quanto às imputações desta relativamente à pessoa do Requerente.

Simplesmente, os receios da mãe, se fundados, terão de ser concretizados na sede própria, isto é, no âmbito do processo de regulação do exercício das responsabilidades parentais, sua eventual alteração ou incumprimento, sabido, porém, que a Justiça holandesa – a competente, atenta a residência habitual da menor – já se debruçou antes sobre a matéria e não deu razão à ora Requerida, que não pode pretender obter, a posteriori, na Justiça portuguesa o que não lhe foi concedido na Justiça da Holanda, nem pode tomar decisões unilaterais que afetem outrem, mormente se ao arrepio de decisões judiciais (definitivas e, como tal, vinculativas, independentemente do Estado em que proferidas).

Em suma, não está demonstrado o requisitório fundante da atuação conformadora da exceção prevista no art.º 13.º da aludida Convenção, nem, por outro lado, os factos provados – os únicos, reitera-se, a considerar para a decisão – permitem concluir pela violação de quaisquer normas jurídicas, de direito nacional ou internacional, designadamente as Convenções Internacionais invocadas pela Recorrente, que não motivou ou não demonstrou terem sido violadas no caso.

Improcede, pois, a apelação, devendo manter-se a decisão recorrida.

***

IV – Sumário (art.º 663.º, n.º 7, do NCPCiv.):
1. - O processo de entrega de menor, nos termos dos art.ºs 3.º, 7.º e 12.º da Convenção sobre os Aspetos Civis do Rapto Internacional de Crianças (concluída em Haia, em 25/10/1980), reveste-se de natureza urgente, implicando uma indagação expedita, que não se compadece com um apuramento global quanto às matérias de regulação do exercício de responsabilidades parentais, para cuja definição não está vocacionado.
2. - Nesse processo de entrega de menor apenas importa apurar e decidir quanto à deslocação ou retenção ilícita de menor (art.º 3.º daquela Convenção), e, por outro lado, segundo o invocado no caso, com vista a obstar ao regresso da criança ao país de residência habitual, quanto ao risco grave decorrente de tal regresso, por sujeição a perigos de ordem física ou psíquica ou a situação qualificável como intolerável (matéria de exceção do art.º 13.º da mesma Convenção).
3. - Nesta sede, não cabe apurar de imputadas/alegadas condutas criminosas de um dos progenitores, como obstáculo ao regresso da criança ilicitamente retida, se tais condutas já foram objeto de apreciação pela Justiça do país de residência habitual, que as considerou não demonstradas por decisão tornada definitiva.
4. - Em tal caso, não demonstrada a matéria de exceção do art.º 13.º da dita Convenção, o interesse da criança materializa-se no seu regresso urgente ao país de residência habitual, onde pode ser reequacionada, se para tanto houver fundamento, a regulação do exercício de responsabilidades parentais.
***
V – Decisão

Pelo exposto, acordam os juízes deste Tribunal da Relação, na improcedência da apelação, em manter a decisão recorrida.

Custas do recurso pela Apelante, sem prejuízo do que for decidido em sede de apoio judiciário.

Escrito e revisto pelo Relator – texto redigido com aplicação da grafia do (novo) Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa (ressalvadas citações de textos redigidos segundo a grafia anterior).
Assinaturas eletrónicas.

Coimbra, 18/02/2020

Vítor Amaral (Relator)

          Luís Cravo

Fernando Monteiro


([1]) Autoridade central portuguesa para a Convenção de Haia sobre os Aspetos Civis do Rapto Internacional de Crianças.
([2]) Âmbito em que foram juntos documentos aos autos através de promoção do Ministério Público (M.º P.º), dos quais – como referido no relatório da decisão recorrida – consta assento de nascimento da menor, mensagem de e-mail da progenitora anunciando não voltar à Holanda com a criança, acordo de responsabilidades parentais da menor e ulteriores incidentes judiciais de alteração tramitados e decididos em tribunais holandeses, com junção pelo Requerente ainda das respetivas decisões traduzidas e de declaração de frequência da escola relativa a tal menor.
([3]) Cfr. ata de fls. 122 e seg. do processo físico.
([4]) Cfr. ata aludida, sendo o seguinte o teor do despacho de indeferimento: «A resposta que a requerida terá oferecido quando interpelada por escrito pela Autoridade Central para se pronunciar, não prejudicou em nada a sua possibilidade de contraditório quando foi hoje ouvida por este Tribunal, nem lhe foi cerceada a sua mais ampla liberdade de declarar tudo o que a preocupava e preocupa. // Assim, o teor da referida resposta acaba por se revelar irrelevante, por nenhum elemento permitir acrescentar ao objeto da decisão que cumpre proferir-se. // Quanto à audição de duas pessoas familiares da requerida para atestarem a situação atual da M (…) entende o Tribunal que também as mesmas não colocam em crise o já afirmado pela requerida. // Tais familiares vivendo em Portugal não poderão, até pelas declarações da requerida, ser testemunhas de quaisquer fatos passados na Holanda que possam ser relevantes para a decisão a proferir-se. // Por ambos estes motivos, entende-se ser dispicienda a inquirição de tais pessoas como testemunhas, tendo em conta o objeto do pedido e os fundamentos jurídicos que lhe podem subjazer. // Vão assim ambas as diligências indeferidas».
([5]) Cfr. fls. 128 v.º do processo físico, com destaque retirado.
([6]) De notar que, após a prolação da decisão final, a DGRSP (Direção-Geral de Reinserção e Serviços Prisionais) veio juntar cópia da pretendida resposta da progenitora (cfr. fls. 130 e segs. do processo físico). 
([7]) Sic, com destaques retirados.
([8]) Efeito este que foi reiterado após requerimento expresso (insistência) da Requerida mãe no sentido de ser fixado efeito suspensivo.
([9]) Por despacho do Relator, datado de 05/02/2020, foi entendido que:
«A regra a ter em conta é a que atribui efeito meramente devolutivo, como fixado pelo Tribunal a quo (cfr. art.º 32.º, n.º 4, do RGPTC).
É certo que pode o Tribunal fixar – excecionalmente – outro efeito, como o pretendido efeito suspensivo.
Porém, concorda-se que no caso não estão demonstradas razões/circunstâncias excecionais que justificassem a fixação de tal efeito suspensivo.
É que, de acordo com o que resulta dos autos, o regime de regulação de exercício de responsabilidades parentais já foi fixado na Holanda, país de residência da menor, não tendo a mãe da menor logrado alterá-lo, tendo os Tribunais daquele país já ponderado as suspeitas da mãe (aqui Requerida/Recorrente) contra o pai (aqui Requerente/Recorrido).
Assim, ante a ocorrida obstrução ao regresso da menor ao país de residência, estamos no âmbito de procedimento urgente, ao abrigo da Convenção de Haia Sobre os Aspetos Civis do Rapto Internacional de Crianças (concluída em Haia em 25/10/1980 e aprovada pelo Estado português), como decorre da leitura dos art.ºs 2.º, 11.º e 12.º de tal Convenção Internacional.
Donde que não se encontrem razões para afastar o regime regra do efeito meramente devolutivo.
Assim sendo, mantém-se o efeito meramente devolutivo já fixado pela 1.ª instância, improcedendo as razões em contrário da Recorrente.».
([10]) Excetuando questões de conhecimento oficioso, não obviado por ocorrido trânsito em julgado.
([11]) Caso nenhuma das questões resulte prejudicada pela decisão das precedentes.
([12]) Cfr. “Manual dos Recursos em Processo Civil”, 9.ª ed., p. 57.
([13]) Vide “Código de Processo Civil, Anotado”, vol. V, p. 143.
([14]) In “Dos Recursos”, Quid Júris, p. 117.

([15]) Cfr. “Manual de Processo Civil”, p. 686.
([16]) Este apenas releva aqui na perspetiva da decisão sobre o regresso, ou não, da menor ao país de residência habitual, a Holanda, e não nos moldes amplos em que deve ser aferido em sede de processo de regulação do exercício de responsabilidades parentais, âmbito este em que já foi proferida decisão, visto estar regulado aquele exercício de responsabilidades parentais.
([17]) O Julgador apenas mostrou “ser sensível às preocupações da progenitora” (alegações), sem as dar como fundadas em factos provados, e determinou a remessa de elementos documentais à competente Justiça holandesa (Tribunal de Menores de Roterdão).