Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
3969/09.6TBLRA-A.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: SÍLVIA PIRES
Descritores: ASSUNÇÃO DE DÍVIDA
DECLARAÇÃO NEGOCIAL
DECLARAÇÃO TÁCITA
Data do Acordão: 04/16/2013
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DE LEIRIA – 4º JUÍZO CÍVEL
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTºS 217º E 595º, Nº 1 DO C. CIVIL.
Sumário: I – A assunção de dívida consiste no acto pelo qual um terceiro (assuntor) se vincula perante o credor a efectuar a prestação devida por outrem. A assunção de dívida pode comportar ou não a exoneração do devedor, mas exige sempre o assenti­mento do credor, prevalecendo a regra de que, em princípio, a ninguém pode ser imposto um benefício sem a colaboração da vontade própria (artigo 595º, n.º 1, do C. Civil).
II - Não se tendo provado a existência de qualquer declaração negocial expressa nesse sentido, só poderá concluir-se pela verificação de uma assunção de dívida através de uma declaração tácita, isto é quando é dedutível de factos que com toda a probabilidade a revelam (art.º 217º, n.º 1, do C. Civil).

III - Para haver declaração tácita basta que o declarante tenha praticado factos dos quais se possa deduzir, com segurança, a vontade provável de ele emitir certa declaração. Os factos de que a vontade se deduz, na declaração tácita, chamam-se factos concludentes ou significativos.

Decisão Texto Integral: Acordam na 3ª secção cível do Tribunal da Relação

A Exequente moveu contra a Executada execução comum para pagamento de quantia certa, visando obter o pagamento da quantia de € 12.642,48, referente a capital e juros de mora.
Como títulos executivo apresentou os cheques sobre o Banco… emitidos por S…:
n.º …, emitido em 16.1.1995, no valor de 750.000$00,
n.º …, emitido em 30.3.1995, no valor de 609.313$00.
Alegou o seguinte no requerimento executivo:
- tais cheques, após terem sido apresentados a pagamento, foram devolvi­dos por falta de provisão, com indicação de cancelados, respectivamente em 18.1.95 e 31.3.95.
- os cheques destinavam-se ao pagamento pela executada do fornecimento de calçado feito pela exequente à sociedade I…, L.da, da qual aquela é sócia, não tendo a executada pago o valor deles constante.
- os mencionados cheques, por terem desaparecido, foram reformados por sentença transitada em julgado.
A Executada deduziu oposição à execução, alegando, em síntese:
Ø        Nada deve à Exequente, devendo ser julgada parte ilegítima.
Ø        Os cheques juntos à execução não valem como título executivo, pois, pela sua entrega à Exequente não foi reconhecida a existência de qualquer dívida, tendo o mesmo servido para pagar uma dívida de terceiro.
Ø        O cheque está prescrito por ter sido apresentado a pagamento fora dos 8 dias a que alude o art.º 29º da LUCh.
Ø        A devedora é uma sociedade comercial por quotas, não podendo os sócios serem responsabilizados por pagamentos que são apenas da responsabilidade daquela.
Conclui pela extinção da execução.
Após dispensa da audiência preliminar, veio a ser proferido saneador-sen­tença que julgou:
 - a Executada parte legítima,
- improcedente a excepção da prescrição dos cheques enquanto títulos executivos cambiários e,
-  improcedente a oposição.
A executada interpôs recurso, formulando as seguintes conclusões:

Não foi apresentada resposta.
1. Do objecto do recurso
Encontrando-se o objecto do recurso delimitado pelas conclusões das ale­gações da Recorrente cumpre apreciar as seguintes questões:
a) A executada é parte ilegítima na execução?
b) Os cheques dados à execução encontram-se prescritos, pelo que não podem ser utilizados como título executivo?
c) O estado dos autos não permitia conhecer do mérito da oposição no despacho saneador?
c) A entrega à Exequente de cheques emitidos pela Executada não permite concluir pela existência de qualquer acordo, entre ambas, no sentido do pagamento da dívida de terceiro?
2. Os factos
Os factos provados são os seguintes:
I – Na acção especial de reforma de documentos que correu seus termos com o n.º … do 5º Juízo Cível foi proferida decisão declarando reforma­dos os cheques sacados sobre a conta da Ré, cheques esses com o nº …, sacado em 16.01.95 sobre a agência de …, no valor de 750.000$00; e com o n.º … sacado em 30.03.95 sobre a agência de …s, no valor de 609.313$00 (os quais, após terem sido apresentados a pagamento, vieram devolvidos com a indicação de cance­lados, respectivamente em 18.01.95 e 31.03.95.
II – O requerimento executivo deu entrada em juízo em 14 de Julho de 2009.
III – Os cheques referidos em I destinavam-se ao pagamento de forneci­mentos feitos pela Exequente, no exercício da sua actividade comercial, à sociedade I…, L.da (facto confessado pela oponente no art. 9º da oposição).
3. O direito aplicável
Em primeiro lugar, cumpre referir que a execução à qual foi deduzida a presente oposição deu entrada em juízo a 14 de Julho de 2009, pelo que lhe é aplicá­vel o regime da acção executiva resultante da reforma operada pelo Decreto-Lei n.º 226/2008, de 20 de Novembro, por força do disposto no seu art.º 22º, n.º 1.
  3.1. Da prescrição dos cheques
A opoente invoca a prescrição dos cheques entregues à Exequente, como fundamento da sua inexequibilidade.
 Esta defesa foi apreciada no despacho saneador, tendo sido verificada a prescrição invocada.
Contudo, entendeu-se que, apesar dos referidos cheques não titularem a respectiva obrigação cambiária, por já se encontrarem prescritos, não deixavam de poder funcionar como títulos executivos, relativamente à obrigação alegada pela Exequente no requerimento inicial, como estando subjacente à emissão desses cheques, funcionando aí como meros documentos particulares, nos termos do art.º 46.º, n.º 1, c), do C. P. Civil.
Aderindo integralmente à fundamentação da decisão recorrida relativa­mente a esta questão, deve o recurso ser julgado improcedente nesta parte.
3.2. Da ilegitimidade da Executada
Vem a Executada neste recurso defender a sua ilegitimidade, alegando, em síntese que a oposição nos cheques que integram o título dado à execução é efectuado num contexto de pagamento de uma dívida comercial de um terceiro e não dela própria.
Os títulos dados à execução são dois cheques emitidos pela Executada a favor da Exequente, acompanhados da alegação no requerimento executivo de que os mesmos, apresentados a pagamento, foram devolvidos com a indicação de cancelados e que se destinavam ao pagamento de fornecimentos de calçado feitos pela Exe­quente, no exercício do seu comércio, à sociedade I…, L.da, da qual a Executada é sócia.
Sendo, de acordo com o disposto no art.º 55º, n.º1, do C. P. Civil, parte legítima na execução aquele que no título figurar como devedor, conclui-se pela legitimidade da opoente uma vez que nos títulos apresentados consta, no lugar destinado à assinatura, o seu nome.
É, deste modo, a Executada, parte legítima na presente execução.
3.3. Do conhecimento do mérito da oposição no despacho saneador
Invoca ainda a Executada como fundamento deste recurso a prematuridade da decisão que conheceu do mérito da sua defesa, alegando que o estado do processo não permitia sem necessidade de mais provas, nomeadamente, em que circunstâncias foram entregues os cheques em questão à Exequente, uma vez que em momento algum assumiu lhe ter entregue os cheques, concluindo que a prolação da decisão sem julgamento a impossibilitou de produzir outras provas, designadamente documental e testemunhal que suportariam as circunstâncias em que os cheques foram parar à posse da Exequente, bem como quem os preencheu.
Dispõe o art.º 508º, n.º 1, b), do C. P. Civil:
Findos os articulados, se não houver que proceder à convocação de audiência preliminar, o juiz profere, no prazo de vinte dias, despacho saneador destinado a conhecer imediatamente do mérito da causa, sempre que o estado do processo o permitir, sem necessidade de mais provas, a apreciação total ou parcial, do ou dos pedidos deduzidos ou de alguma excepção peremptória.
No caso que nos ocupa, o juiz, após conhecimento das excepções invoca­das pela Executada na sua oposição entendeu, face aos factos alegados, que não havia necessidade da produção de mais provas, uma vez que os factos provados por acordo das partes se revelavam suficientes para conhecer do mérito da oposição.
Este juízo é feito com base na posição das partes manifestada nos articula­dos, sendo também com base nessa mesma posição que o tribunal, nesse momento, há-de aferir, da necessidade da elaboração de base instrutória.
Assim, apreciando os articulados constata-se que pela Executada não foram alegados quaisquer factos que, com interesse para a decisão da causa, pudes­sem vir a ser quesitados e, consequentemente, sujeitos à produção de prova. Não consta da oposição deduzida pela Recorrente a alegação de quaisquer factos relativos às invocadas circunstâncias em que os cheques foram entregues à Exequente. Não tendo sido alegados quaisquer factos, com interesse para a decisão da causa, que se encontrassem controvertidos, não poderia o juiz ter deixado de conhecer do mérito da oposição, pois nada havia a quesitar.
Improcede, pois, este fundamento do recurso.
3.4. Da responsabilidade da Executada
Invoca a Executada, com vista à procedência do recurso, que não resultou provada a existência de qualquer acordo entre si e a Exequente, relativamente ao pagamento de qualquer dívida, e que do facto desta ser sócia da devedora e dos cheques entregues para pagamento das dívidas desta estarem por si assinados e serem de conta bancária da sua titularidade, não permite essa conclusão.
Efectivamente dos factos provados não consta a celebração de qualquer acordo expresso entre a Exequente e a Executada que tenha por base o pagamento da dívida da sociedade por esta mediante a entrega dos cheques.
Está provado, somente, que os cheques emitidos pela Executada a favor da Exequente se destinavam ao pagamento de fornecimentos feitos por esta, no exercício da sua actividade comercial, à sociedade I…, L.da., e que esta, após proceder à sua reforma, os apresentou como título executivo.
 A decisão recorrida entendeu que o facto da Executada ter entregue à Exequente cheques por si emitidos para pagamento de fornecimentos efectuados pela Exequente à sociedade de que aquela é sócia traduz uma declaração negocial tácita, de sentido inequívoco: a executada quis assumir a dívida contraída pela sociedade I…, L.da.
Efectivamente, em situações idênticas já assim tem concluído decisões anteriores dos tribunais [1].
A assunção de dívida consiste no acto pelo qual um terceiro (assuntor) se vincula perante o credor a efectuar a prestação devida por outrem. A assunção de dívida pode comportar ou não a exoneração do devedor, mas exige sempre o assenti­mento do credor, prevalecendo a regra de que, em princípio, a ninguém pode ser imposto um benefício sem a colaboração da vontade própria (artigo 595º, n.º 1, do C. Civil).
Não se tendo provado a existência de qualquer declaração negocial expressa nesse sentido, só poderá concluir-se pela verificação de uma assunção de dívida através de uma declaração tácita, isto é quando é dedutível de factos que com toda a probabilidade a revelam (art.º 217º, n.º 1, do C. Civil). 
Para haver declaração tácita basta que o declarante tenha praticado factos dos quais se possa deduzir, com segurança, a vontade provável de ele emitir certa declaração. Os factos de que a vontade se deduz, na declaração tácita, chamam-se factos concludentes ou significativos.
Sendo a declaração a expressão objectiva da vontade do autor do acto, os factos concludentes devem revelar, com probabilidade plena, a vontade do decla­rante.
 Na declaração tácita, a partir daqueles factos deduz-se uma vontade e dá-se como verificada uma declaração imputável a certa pessoa, existindo entre aqueles factos e a declaração um nexo de presunção, juridicamente lógico-dedutivo.
A declaração não é formada pelos factos concludentes, deduz-se deles, cabendo ao julgador apurar se de certo comportamento se pode deduzir, de modo indirecto, mas com toda a probabilidade, certa vontade negocial.
Neste caso, provou-se que a Executada emitiu dois cheques a favor da Exequente, destinados ao pagamento de fornecimentos feitos pela Exequente, no exercício da sua actividade comercial, à sociedade I…, L.da, e que esses cheques foram colocados na disponibilidade da Exequente, nada tendo sido alegado e consequentemente provado, quanto às circunstâncias em que os mesmos lhe foram entregues.
Apesar deste vazio factual, a circunstância da Executada ter emitido os cheques a favor da Exequente, com a finalidade de liquidar a dívida de I…, L.da, relativa a fornecimentos que a Exequente havia efectuado a essa sociedade, no exercício da sua actividade comercial, revela, num juízo objectivo de probabilidade, que a Executada pretendeu assumir a dívida daquela sociedade, assim como a apresentação desses cheques à Execução revela que a Exequente aceitou essa assunção da dívida por terceiro, pelo que estamos perante comporta­mentos suficientemente concludentes da outorga de uma assunção de dívida, nos termos e com os efeitos do art.º 595.º, n.º 1, b), do C. Civil.
Por estas razões deve o recurso ser julgado improcedente, confirmando-se a decisão recorrida.
Decisão
Pelo exposto, julgando-se improcedente o recurso confirma-se a decisão recorrida.
Custas pela Recorrente.


Sílvia Pires (Relatora)
Henrique Antunes
José Avelino


[1] Acórdão do S.T.J., de 13.10.2009, relatado por Salazar Casanova;
  Acórdão da Relação de Lisboa, de 12.10.2010, relatado por Gouveia de Barros;
  Acórdão da Relação de Coimbra, de 12.6.2012, relatado por Francisco Caetano, todos acessíveis em www.dgsi.pt.