Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1170/18.7T8LRA.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: FELIZARDO PAIVA
Descritores: IMPUGNAÇÃO DA DECISÃO DE FACTO
PODERES DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO
SEGURANÇA NO LOCAL DE TRABALHO
VIOLAÇÃO DAS REGRAS DE SEGURANÇA
NEXO CAUSAL
Data do Acordão: 11/13/2020
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE LEIRIA – JUÍZO DO TRABALHO DE LEIRIA – JUIZ 1
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTºS 640º DO NCPC; 281º, NºS 1 E 3 DO C. TRABALHO; 44º E 45º DO DECRETO 41821, DE 11 DE AGOSTO DE 1958; 7º E 14º, NºS 1 E 5 DO DECRETO-LEI 273/2003, DE 29 DE OUTUBRO; E ARTS 15º, NºS 2 A 5 E 20º DA LEI 102/2009, DE 10 DE SETEMBRO; ARTº 18º DA LAT.
Sumário: I – A reapreciação da matéria de facto por parte do tribunal superior não pode nem deve constituir um segundo julgamento do objeto do processo, como se a decisão da 1ª instância não existisse, mas sim, e apenas, remédio jurídico que se destina a despistar e corrigir erros in judicando ou in procedendo, a indicar expressamente pelo recorrente.

II - Em princípio, a alteração da decisão da matéria de facto só deve ocorrer quando se configure o denominado erro de julgamento, ou seja, quando possa ser detetada uma flagrante discrepância entre os elementos de prova e a decisão sobre a matéria de facto, devendo o tribunal de recurso apenas controlar a convicção do julgador de 1ª instância quando tal convicção se mostre contrária às regras da experiência, da lógica e dos conhecimentos científicos.

III - E dizemos em princípio porque a possibilidade da modificação da decisão da matéria de facto não deve estar limitada de forma absoluta à verificação de erros manifestos de reapreciação pois “desde que a Relação acabe por formar uma diversa convicção sobre os pontos de facto impugnados, ainda que por interferência de presunções judiciais extraídas a partir de regras da experiência deve reflectir esse resultado em nova decisão” - Abrantes Geraldes “in” Recursos no Processo do Trabalho, novo regime, 2010, págª 67.

IV - Assim, sempre sem prejuízo desta convicção, em princípio, só quando os elementos dos autos conduzam inequivocamente a uma resposta diversa da dada em 1ª instância é que deve o tribunal superior alterar as respostas que ali foram dadas, situação em que estaremos perante erro de julgamento, sendo ainda de referir que, em caso de depoimentos testemunhais contraditórios, deve dar-se prevalência ao decidido em 1ª instância, atendendo ao princípio da livre convicção do julgador.

V - Para que se preencha o quadro normativo previsto no nº 1 do artº 18º da LAT (Lei 98/2009, de 04/09) é necessário que:

a) ocorra a violação de uma regra ou norma concreta sobre segurança no trabalho (não bastando a violação de regras genéricas ou programáticas sobre esta segurança para que se dê como preenchida a previsão do nº 1 do artº 18º da LAT).

No que respeita à questão da violação das regras de segurança é preciso ter em conta que os acidentes acontecem, na quase totalidade da maioria dos casos, porque alguém fez algo que não devia ou omitiu algo que devia fazer; a isto acrescem circunstâncias imprevisíveis ou dificilmente previsíveis que alteram o curso dos acontecimentos. Mas isto não significa, designadamente em matéria de acidentes de trabalho, que se possa sempre falar em culpa, em culpa que fundamente o agravamento da pensão nos termos previstos no art.º 18.º, nºs 1 e 4 da da LAT. No nosso entendimento, a única forma de culpa que a lei admite é a violação de regras de segurança pois que a falta de observância dessas regras é a omissão de um dever especial de cuidado. Por isso deve afastar-se, como fundamentador do agravamento da pensão, a violação de um dever genérico de cuidado. Esta faz parte do risco do trabalho, como do risco da vida, e é absorvida pela regulamentação desta responsabilidade por acidentes de trabalho como responsabilidade objectiva.

b) se possa estabelecer um nexo de causalidade entre essa violação ou inobservância e o acidente.

VI - Adoptando o nosso ordenamento jurídico a teoria da causalidade adequada na sua formulação negativa, é necessário demonstrar que se tivessem sido adoptadas as medidas de prevenção o acidente não teria ocorrido.

VII - E a causalidade adequada não se refere ao facto e ao dano isoladamente considerados, mas ao processo factual que, em concreto, conduziu a este, pressupondo que o facto cuja causalidade se discute tenha sido uma das condições do dano, ou seja, que esse facto integre o processo causal que conduziu ao dano.

VIII - Nos trabalhos em altura deve dar-se prevalência ou prioridade às medidas de proteção coletiva em relação às medidas de proteção individual (artº 15º nº 2 al. h) da Lei 102/2009, de 10/09, artº 36º, nº 2 do DL 50/2005, de 25/02, e artº 11º da Portaria 101/96, de 03/04) e que na interpretação do “velho” regulamento da construção civil deve ser considerada a evolução técnica que, naturalmente, tiveram os equipamentos de proteção coletiva e individual nos últimos cerca de 62 anos.

IX - A enumeração feita no citado artº 44º é meramente exemplificativa como resulta da utilização na redação do preceito da expressão “tais como…”.

Decisão Texto Integral:

Acordam, em conferência, no Tribunal da Relação de Coimbra:

I Frustrando-se a tentativa de conciliação, veio A... instaurar a presente acção para a efectivação de direitos resultantes de acidente de trabalho contra COMPANHIA DE SEGUROS A..., S.A. e contra S... – OBRAS E REPARAÇÕES CIVIS, LDA, pedindo que a acção seja julgada procedente e, em consequência, as rés condenadas:

a) A pagar-lhe um capital de remição de uma pensão anual, no montante de €2.782,30, calculada com base em 30% da remuneração anual auferida pelo sinistrado, no montante total de €9.274,34, reportada a 20.03.2018, dia imediato ao da morte, sendo da responsabilidade da entidade seguradora o montante de €2.436,00, calculado com base no salário transferido de €8.120,00, e da responsabilidade da entidade empregadora o montante de €346,30, calculado com base no salário anual não transferido de €1.154,34, nos termos do disposto no art 72º, nºs 1 e 2, da Lei nº 98/2009, de 04 de Setembro, ou valor que lhe couber por lei;

b) Serem a 1ª e a 2ª rés condenadas a pagar-lhe a quantia de €5.661,48 a título de subsídio por morte, nos termos do art 65º, nº 2 alínea b) da Lei nº 98/2009, de 04 de Setembro;

c) Serem a 1ª e a 2ª rés condenadas a pagar-lhe a quantia de €1.541,16 a título de subsídio por despesas de funeral, nos termos do art 66º, nºs 1 e 2 da da Lei nº 98/2009, de 04 de Setembro;

d) Serem a 1ª e 2ª rés condenadas a pagar-lhe a quantia de €15,00 referente a despesas com deslocações obrigatórias a este tribunal;

e) Serem a 1ª e 2ª rés condenadas a pagar-lhe os juros de mora à taxa legal, desde o dia seguinte ao da morte até integral pagamento.

            Alegou, para o efeito, em síntese tal como consta sentença impugnada, que que seu marido foi vítima de acidente de trabalho, ocorrido em 20.03.2018, numa obra onde trabalhava por conta da 2ª ré, e que consistiu numa queda em altura, que lhe determinou a morte. Que a entidade empregadora tinha a sua responsabilidade emergente de acidentes de trabalho transferida para a ré seguradora pelo salário total anual ilíquido de €8.120,00. Porém seu marido auferia efectivamente a quantia total anual ilíquida de €9.274,34, pelo que se não encontrava transferido o salário de €1.154,34.


+

Citadas as rés para contestarem a acção vieram alegar, tal como consta da sentença impugnada, que:

A ré seguradora aceitou a caracterização do evento que vitimou o sinistrado, no dia 20.03.2018, como acidente de trabalho, aceitou o nexo de causalidade entre o acidente e as lesões que foram causa da morte do sinistrado, aceitou a existência de um contrato de seguro de acidentes de trabalho pelo qual a 2ª ré transferiu a responsabilidade infortunística pelo salário total anual ilíquido de €8.120,00.

Não aceitou a responsabilidade pela reparação do acidente, uma vez que considera ter o acidente ocorrido devido à inobservância das regras de segurança e saúde no trabalho pela entidade empregadora, nomeadamente, deficiente planificação dos trabalhos, uma vez que inexistiam linhas de vida, de acordo com o Regulamento de Segurança no Trabalho da Construção Civil, as quais eram necessárias e adequadas à realização da tarefa desempenhada – arts 44º e 45º do Decreto 41821, de 11 de agosto de 1958, arts 7º e 14º, nºs 1 e 5 do Decreto Lei 273/2003, de 29 de Outubro, e arts 15º nºs 2 a 5 e 20º da Lei 102/2009, de 10 de Setembro.

Pelo que, nos termos do art 18º da Lei nº 98/2009, de 04 de Setembro, deve a 2ª ré ser considerada como única responsável pela reparação, inclusive devendo responder por pensões agravadas, sendo a ré seguradora absolvida na parte que exceda a sua responsabilidade subsidiária.

A ré entidade empregadora aceitou a caracterização do evento como acidente de trabalho e que do mesmo resultou a morte do sinistrado. Aceitou a responsabilidade pelo salário anual não transferido de €4,77x22diasx11meses, num total anual ilíquido de €1.154,34.

Aceitou, assim, a responsabilidade pelo pagamento da pensão correspondente à quota-parte do salário anual ilíquido não transferido.

Não aceitou qualquer outra responsabilidade pela reparação do acidente, uma vez que, ao contrário da posição assumida pela seguradora, entende que não violou quaisquer regras de segurança.

Pede que seja a acção julgada improcedente excepto na parte em que a ré assumiu a responsabilidade por não ter transferido para a seguradora o valor do subsídio de alimentação.


+

Respondendo à contestação oferecida pela seguradora manteve a sua posição de não ter violado qualquer norma de segurança.

II – Findos os articulados, foi proferido despacho saneador, seleccionou-se a matéria de facto considerada assente e a considerada controvertida.

Após realização do julgamento, veio a ser proferida sentença, constando do respectivo dispositivo o seguinte:

“Pelo exposto declara o Tribunal que:

a) O sinistrado J... sofreu acidente de trabalho em 19.03.2018, do qual resultou a sua morte;

b) A autora A... é beneficiária legal do sinistrado;

c) Em consequência condeno a entidade empregadora, S... – Obras e Reparações Civis, Lda, como responsável a título principal, a pagar à autora o seguinte:

c.1. uma pensão anual e vitalícia no montante de €9.274,34, reportada a 20.03.2018, dia imediato ao da morte, nos termos do art 18º, nºs 1 e 4 alínea a) da LAT, a pagar no seu domicílio em duodécimos no valor de 1/14 da pensão, sendo os subsídios de férias e de natal também no valor de 1/14 da pensão e a pagar nos meses de Junho e Novembro; e actualizável segundo os coeficientes de actualização das pensões por acidente de trabalho que anualmente sejam alvo de publicação.

c.2. a quantia de € 5.661,48 a título de subsídio por morte, nos termos do art 65º, nº 2 alínea b) da LAT;

c.3. a quantia de € 1.541,16 a título de subsídio por despesas de funeral, nos termos do art 66º, nºs 1 e 2, todos da LAT;

c.4. a quantia de € 15,00 referente a despesas com deslocações obrigatórias ao tribunal;

c. 5. Acrescidos dos juros de mora à taxa legal, desde o dia seguinte ao da morte até integral pagamento.

d) A entidade seguradora, Companhia de Seguros A..., S.A., responde, conforme já determinado e notificado, nos termos do art 79º, nº 3 da LAT/2009, sem prejuízo do direito de regresso sobre a entidade empregadora, pelo pagamento imediato de:

d.1. um capital de remição de uma pensão anual, no montante de € 2.436,00, calculado com base no salário transferido de € 8.120,00;

d.2. a quantia de € 5.661,48 a título de subsídio por morte, nos termos do art 65º, nº 2 alínea b) da Lei nº 98/2009, de 04 de Setembro

d.3. a quantia de € 1.541,16 a título de subsídio por despesas de funeral, nos termos do art 66º, nºs 1 e 2 da da Lei nº 98/2009, de 04 de Setembro;

d.4. a quantia de € 15,00 referente a despesas com deslocações obrigatórias a este tribunal;

d.5. os juros de mora à taxa legal de 4%, desde o dia seguinte ao da morte até integral pagamento”.

III – Inconformada, veio a empregadora apelar alegando e concluindo:

...

Contra alegou a seguradora concluindo que não pode ser acolhida a pretensão da apelante quanto à alteração da matéria de facto julgada provada, uma vez que resulta de toda a prova produzida que a decisão proferida quanto à matéria de facto não merece qualquer censura, não merecendo também qualquer censura a decisão de mérito, pelo que deverá manter-se integralmente a douta decisão recorrida.

Nesta Relação o Exmº PGA emitiu parecer no sentido da confirmação do julgado.

IV – Da 1ª instância vem assente a seguinte matéria de facto:

...

V - Considerando que o objecto do recurso é delimitado pelas respectivas conclusões as questões a decidir:

1. Se há lugar à alteração da matéria de facto.

2. Se o acidente correu em virtude da inobservância de regras de segurança por parte da empregadora.

Da alteração da matéria de facto:

Pretende a recorrente que esta Relação dê como não provada a matéria das alíneas M), Q), S), T), U), AA) e BB) dos factos considerados provados.

Mais refere a recorrente não se conformar com a decisão na parte em que deu como provados os seguintes factos: - “A entidade patronal não efectuou análise prévia dos riscos que os trabalhadores corriam de queda em altura” e “não implementou medida destinada a evitar aquele risco de queda em altura por parte dos trabalhadores, sendo certo que os depoimentos gravados contradizem essa matéria.”

Ora, esta matéria não consta da dada como provada pelo que impugnação se cingirá à matéria das alíneas acima elencadas pois que, relativamente a ela, nada obsta à sua reapreciação considerando ter a recorrente dado cumprimento ao disposto no artº 640º do CPC.

Antes de entrar propriamente na análise da impugnação cumpre relembrar, ainda que de forma breve, os critérios que devem presidir à reapreciação factual por parte do tribunal da Relação.

Assim, a reapreciação da matéria de facto por parte do tribunal superior não pode nem deve constituir um segundo julgamento do objecto do processo, como se a decisão da 1ª instância não existisse[1], mas sim, e apenas, remédio jurídico que se destina a despistar e corrigir erros in judicando ou in procedendo, a indicar expressamente pelo recorrente.

Em princípio, a alteração da decisão da matéria de facto só deve ocorrer quando se configure o denominado erro de julgamento, ou seja, quando possa ser detectada uma flagrante discrepância entre os elementos de prova e a decisão sobre a matéria de facto, devendo o tribunal de recurso apenas controlar a convicção do julgador de 1ª instância quando tal convicção se mostre contrária às regras da experiência, da lógica e dos conhecimentos científicos.

E dizemos em princípio porque a possibilidade da modificação da decisão da matéria de facto não deve estar limitada de forma absoluta à verificação de erros manifestos de reapreciação pois “desde que a Relação acabe por formar uma diversa convicção sobre os pontos de facto impugnados, ainda que por interferência de presunções judiciais extraídas a partir de regras da experiência deve reflectir esse resultado em nova decisão” - Abrantes Geraldes “in” Recursos no Processo do Trabalho, novo regime, 2010, págª 67[2].

Assim, sempre sem prejuízo desta convicção, em princípio, só quando os elementos dos autos conduzam inequivocamente a uma resposta diversa da dada em 1ª instância é que deve o tribunal superior alterar as respostas que ali foram dadas, situação em que estaremos perante erro de julgamento sendo ainda de referir que, em caso de depoimentos testemunhais contraditórios deve dar-se prevalência ao decidido em 1ª instância atendendo ao princípio da livre convicção do julgador.

Por outro lado, como se escreveu no acórdão desta Relação de 02.06.17, procº 2280/16.0T8LRA.C1, aliás, no seguimento de outros anteriormente proferidos, “ … a reapreciação da matéria de facto por parte do Tribunal da Relação, na base de uma reapreciação de meios de prova sem força probatória vinculativa, deve ser levada a efeito com especiais cautelas tendo em conta os princípios da oralidade, da imediação e da livre apreciação da prova, sendo de relevar que aquela imediação assiste este se produzem e só por ele são apreensíveis um conjunto de circunstâncias que relevam para efeitos de se aferir da credibilidade de depoimentos orais (v.g., reacções do próprio depoente ou de outros, hesitações, pausas, gestos, expressões, gestos corporais, trocas de olhares, ruboridades …), circunstâncias essas que são insusceptíveis de captação pela simples gravação áudio dos depoimentos.

Aliás, é sabido que: i) a comunicação não se estabelece apenas por palavras e que estas devem ser apreciadas no contexto da mensagem em que se integram; ii) numa situação de comunicação, só 7% da capacidade de influência decorre do uso das palavras, correspondendo ao tom de voz e à fisiologia, respectivamente, 38% e 55% desse poder.

Justamente por causa do que vem de referir-se, cabe principalmente ao juiz da primeira instância o poder de avaliar a credibilidade dos depoimentos produzidos na sua presença, sujeitando-os continuadamente a uma apreciação racional e crítica à face das regras comuns da lógica e da razão, bem como das máximas de experiência e dos conhecimentos científicos, sem perder de vista as razões de ciência reveladas, as certezas e lacunas evidenciadas, as contradições, as hesitações, as inflexões de voz, a serenidade, a objectividade, o grau de convicção e capacidade de sustentação, o distanciamento de interesses em relação ao objecto do litígio, a coerência de raciocínio e de atitude, a seriedade e sentido de responsabilidade manifestados, as coincidências e inverosimilhanças registadas.

Como ensina Enrico Altavilla, “O … testemunho está sujeito à crítica do juiz, que poderá considerá-lo todo verdadeiro ou todo falso, mas poderá também aceitar como verdadeiras certas partes e negar crédito a outras.”.

Um testemunho não é necessariamente infalível nem necessariamente erróneo, devendo ter-se sempre bem presente, a máxima de Bacon segundo a qual “Os testemunhos não se contam, pesam-se.” .

Importa ter em conta, igualmente, que as provas produzidas devem ser objecto de análise e valoração conjuntas e globais, e não de forma individualizada e descontextualizada ou fraccionada.

Assim sendo, em sede de reapreciação fáctica, cabe ao Tribunal da Relação aferir se a matéria de facto decidida pelo tribunal recorrido padece de erro evidenciável e/ou se tem suporte razoável nas provas produzidas e nas regras da lógica, experiência e conhecimento comuns, não sendo suficiente para alterar aquela matéria a diferente avaliação que os impugnantes fácticos façam da prova oral produzida”.

Por último, deve ainda dizer-se que a impugnação da matéria de facto não se basta com a simples transcrição dos depoimentos das testemunhas e com a indicação do início e o fim das passagens constantes da gravação.

Tal impugnação exige, por parte do impugnante, uma análise crítica da prova[3] de maneira a justificar as alterações ou os porquês da alteração solicitada.

E, estando em causa a credibilidade de certo depoimento, há que demonstrar concretamente as razões em que assenta a falta de credibilidade, não bastado a mera alegação genérica de que a prova foi apreciada, v.g., sem apelo ao bom senso ou às regras da experiência.

No caso que nos ocupa, porque não se podem olvidar as razões que estiveram na base da formação da convicção do tribunal, para uma melhor compreensão do “iter” lógico-dedutivo que levou a 1ª instância a dar como provada certa factualidade, passamos a transcrever, apesar da sua extensão, o despacho de fundamentação da decisão sobre a matéria de facto.

Lê-se nesse despacho: “- fls 40 a 42: informação por óbito elaborada pela GNR, que compareceu no local logo após o acidente, e onde consta como os agentes desta força aí se deslocaram, após comunicação de que tinha havido um acidente cerca das 11h 45m; que foi verificado que o sinistrado se encontrava com o arnês de segurança colocado; aí se refere a hora a que os srs inspectores do trabalho compareceram no local – 14h15m (2horas e 30 minutos após a ocorrência); (…)- relatório do Inquérito de Acidente de Trabalho, a fls 72 a 85, elaborado pelo Inspetor do Trabalho, ..., ouvido em audiência e que confirmou tal relatório na íntegra, e documentos anexos; refere-se nesse relatório que, das diligências efetuadas pelo sr inspector (ida ao local, notificações para apresentação de documentos e respostas fornecidas às mesmas, inquérito a testemunhas), resulta que o sinistrado não tinha a formação adequada; aí se descreve o local do acidente, com as medições feitas, trabalhos que se encontravam a ser feitos no telhado do armazém e modo de execução; como o agente da GNR, chegado ao local tirou fotografias, conforme nomeadamente a de fls 104 – doc 4 do relatório – de onde se pode constatar que na água nascente não havia tábuas de rojo; referiu o modo como terá ocorrido o acidente em face dos depoimentos de quem estava no local (sócio-gerente da ré e 2 outros trabalhadores, também ouvidos em audiência final) e do depoimento do Guarda do GNR que compareceu no local, conforme fls 128 a 129; - do depoimento colhido pelo sr Inspetor ao Guarda da GNR, conforme fls 128 a 129, resulta que o mesmo chegou ao local 5 a 10 minutos após a comunicação da ocorrência do sinistro, ainda viu o sinistrado no local, EP´s que o mesmo tinha colocado (arnês com mosquetões presos, sem estar ligado a corda ou linha de vida); que subiu ao andaime colocado no local e tirou fotos, tendo visto que na “zona destelhada” não havia corda ou linha de vida; que quando chegou ao local os trabalhadores se encontravam no exterior do pavilhão, aparentando estarem em pânico, de onde se conclui que, atendendo ao pequeno lapso de tempo entre o acidente e a chegada dos agentes da GNR, ao facto de os 3 trabalhadores se encontrarem no exterior, em pânico, e às fotos tiradas à cobertura, não existiam tábuas de rojo na água nascente onde o sinistrado caiu. Assim, é nossa convicção que, atendendo ao estado emocional das testemunhas após o acidente e ao tempo decorrido, não teriam estas retirado tábuas de rojo do telhado após o evento encontrando-se o telhado na mesma situação; com efeito apesar de tentarem convencer o tribunal de que o sinistrado tinha pelo menos esse EPC à disposição não mereceu o seu depoimento qualquer credibilidade; assim, concluiu o tribunal que o sinistrado andava sobre as telhas sem protecção e sem estar ligado a linha de vida, o que determinou a sua queda em altura após colapso da telha, do que resultou a sua morte. - email de fls 146, enviado por de ... a ..., também ouvida em audiência, onde é informado que não existiu formação para trabalhos em altura naquela obra, nem comprovativo de ter sido dado ao sinistrado qualquer formação adequada sobre a utilização de equipamentos de proteção anti-queda e linhas de vida naquele estaleiro. Refere ainda a testemunha nesse email que não existe comprovativo da comunicação do procedimento de segurança ao sinistrado (o ónus da prova da sua existência era da entidade empregadora nos ternos do art 342º do CCivil). Referiu esta testemunha em depoimento colhido em audiência que houve formação dada numa outra obra de remoção de telhas de fibrocimento em 2017, e que se havia procedido do mesmo modo; no entanto não existe comprovativo de formação ministrada ao sinistrado sobre trabalhos em altura e equipamentos de protecção adequados para esse risco, nem comprovativo da comunicação do procedimento de segurança ao sinistrado; o documento/certificado de formação ao sinistrado a fls 379 não respeita ao risco de queda em altura em questão e data de 21 de Abril de 2016; - avaliação de riscos constante do plano de trabalhos de fls 109 a 115, de onde consta também como medida preventiva e de segurança a adoptar a instalação de linha de vida, ancorada em elementos estruturais do edifício, que não foi implementada; - (….)- Quanto aos depoimentos, teve-se em conta o seguinte: - o inspector do trabalho, ..., relatou as diligências a que procedeu e confirmou relatório sobre o acidente de trabalho existente nos autos; referiu como compareceu no local pouco tempo (2/3horas) após o acidente; que ainda viu 2 cordas esticadas no telhado e confirmou que o sinistrado tinha um arnês certificado e mosquetão tal como fato de protecção; que existiam tábuas de rojo na água poente e a Manitu se encontrava na água nascente; que as cordas “não eram uma linha de vida como à data se entende”; que o sinistrado se encontrava a cumprir as normas de segurança que a entidade empregadora havia definido, “que eram um bocado arcaicas”; confrontado com a foto de fls 103 referiu como a água a tracejado não tinha tábuas de rojo no dia do acidente (que chegaram ao local cerca de 2 horas após a ocorrência e “acha” que ninguém mexeu na cobertura); confrontado com a foto de fls 104 ( a de cima) referiu como também foi tirada 2horas após o acidente e que neste momento não havia tábuas de rojo. Referiu, ainda, que com aquele sistema, mesmo arcaico, se tivesse a corda presa a arnês o sinistrado não caía. Porém, conforme resulta dos depoimentos dos restantes trabalhadores e do sócio-gerente da ré, certo é que o sinistrado tinha que se desamarrar da corda para efetuar o percurso de descida do telhado para o solo e que, pelo menos nessa altura, teria de se deslocar através de tábuas de rojo que, como concluímos, não existiam naquela água pelo que o percurso sempre teria de ser feito por cima das telhas de fibrocimento, por natureza muito frágeis. Assim, mesmo que o sistema arcaico das cordas e arnês pudesse evitar a queda no momento dos trabalhos, caso o sinistrado o tivesse colocado, o certo e seguro é que no momento da descida para o solo o sinistrado se encontrava sem sistema de segurança (corda, linha de vida ou outro, nomeadamente tábuas de rojo) pelo que a queda foi consequência da deslocação por cima das telhas sem qualquer protecção – inexistente no momento como aliás o sócio-gerente da ré bem sabia dado que também se encontrava a descer da cobertura. - ..., inspetora da ACT que acompanhou ... na ida ao local do acidente, descreveu o local, os trabalhos que estavam a ser executados; referiu os equipamentos que se encontravam no local nomeadamente uma máquina Manitu do lado nascente e um andaime entre os dois pavilhões; que o relatório elaborado por ... é um “retrato fiel” do que viu no local; que os trabalhos só foram retomados depois de implementadas medidas de segurança; que se estivessem implementadas medidas de segurança – linha de vida - o trabalhador não teria caído ou, mesmo que caísse, não teria morrido; referiu as medidas que deveriam ter sido implementadas pela ré e que evitariam o sinistro; que a única medida “se é que a podemos chamar assim” (ao que compreendemos queria referir-se aos sistemas actualmente entendidos como adequados) era o andaime através de qual se fazia o acesso. - ..., fez a averiguação do sinistro para a ré seguradora, conforme fls 340vº a 351vº, que foi ao local 15 a 20 dias após o acidente, referiu as diligências por si realizadas e as conclusões a que chegou, que não existia linha de vida, a corda que estava ligada ao arnês estava amarrada a 1 ponto fixo da estrutura do telhado; que a corda teria cerca de 10 metros de comprimento, mas quando amarrada ao ponto fixo ficava com 4 metros de comprimento “útil”, que na altura da queda o arnês não estava ligado a nenhuma corda, se estivesse não estava ligado ao corpo; que se o sinistrado estivesse com um arnês ligado a 1 linha de vida ficaria suspenso e jamais colidiria com o chão (“sendo a altura de 8 metros sempre ficaria suspenso”). - ..., directora de obra na ré desde 2017, que elaborou o Plano de Trabalhos entregue na ACT para autorização; referiu como numa obra idêntica, em 2017, na localidade de (...) , utilizaram os mesmos métodos e meios de protecção e que ficaram convictos de que estavam a proceder correctamente; que nessa obra havia sido dada formação ao contrário daquela onde ocorreu o evento infortunístico; que foi à obra com os srs inspetores do trabalho dois dias após a ocorrência e ao que “acha” não haviam sido retiradas tábuas de rojo; que escreveu no Plano que o preferível era utilizar uma linha de vida; Referiu esta testemunha que lhe foi dito que naquela cobertura não era possível colocar uma linha de vida, porém não só tal não é referido pelos trabalhadores da empresa ou pelo seu sócio-gerente como a afirmação não é corroborada pelos srs inspectores do trabalho, que disseram como as medidas adotadas eram “arcaicas”, nomeadamente ... que enumerou as medidas adequadas e necessárias a prevenir a queda de trabalhadores; aliás uma empresa no ramo de negócios da ré tinha de ter a noção e conhecimento sobre quais as medidas mais adequadas para protecção dos seus trabalhadores, não sendo credível, face à informação hodiernamente existente, que desconhecesse medidas como a linha de vida; Por sua vez as testemunhas que se encontravam no local referiram a hora do evento, modo de execução dos trabalhos, como se aperceberam da queda do trabalhador apesar de não terem visto o mesmo a cair ao solo do local onde se encontravam; Nomeadamente ... referiu que já se encontrava em baixo, na caleira, para ir almoçar, enquanto o sócio gerente e o sinistrado ainda se encontravam no telhado; ao referir que as tábuas de rojo estavam colocadas em todo o telhado, de um extremo ao outro, nomeadamente do lado da Manitu, onde se encontrava o sinistrado, não falou com verdade atendendo ao depoimento das restantes testemunhas e ao depoimento vertido a escrito do agente da GNR que compareceu ao local pouco tempo após a ocorrência que não viram tábuas de rojo na água onde o acidente ocorreu; não é crível que face ao estado emocional das testemunhas e à hora em que compareceram no local o agente da GNR e os inspectores do trabalho, que não visionaram qualquer tábua de rojo naquela água, as testemunhas tivessem tido o sangue frio para subirem ao telhado para retirarem tábuas de rojo. Aliás, não existe qualquer explicação plausível para que isso fosse feito. Referiu a testemunha ... como, para realizarem os trabalhos, se amarravam a pontos fixos do telhado com arnês e cordas de 3 ou 4 metros de comprimento, que iam mudando ao longo do telhado, pelo que iam desamarrando e amarrando as cordas  conforme necessário (de onde se conclui que existiria algum momento em que não estavam protegidos); referiu que andavam sempre em cima das tábuas que iam mudando de sítio quando tinham que se deslocar para outro ponto do telhado e há medida que iam amarrando a corda noutro ponto fixo (ora na água nascente tal não seria possível dado não existirem tábuas de rojo como concluímos); que depois do acidente começaram a fazer os trabalhos do interior do pavilhão com uma máquina com cesto, o que leva a que se ponha a questão: se era mais seguro utilizar este método por que motivo não foi utilizado antes? - ..., encarregado, encontrava-se no solo a manobrar a Manitu; referiu as medidas de segurança adoptadas (arnês e corda) que já haviam sido utilizadas noutra obra, em (...) , sem reparo; que colocaram as cordas e andavam em cima de tábuas; referiu como se amarravam as cordas em pontos fixos da estrutura na cumeeira e que havia a necessidade de, de 4 em 4 metros, passar a corda para outra viga; que colocavam tábuas de rojo como fizeram na água poente onde colocaram 2 tábuas (quanto a esta declaração levantamos as mesmas objecções, conforme supra, entendendo que o mesmo, para beneficiar a sua entidade empregadora, não falou com verdade); que para esta obra em concreto não houve formação. Confundiu o que é uma linha de vida com o método de corda e arnês que tinha sido utilizado; questionado de novo sobre a utilização de tábuas de rojo acabou por confessar que não as havia visto colocadas de onde estava (no solo); Por último, das declarações de parte do legal representante, apreciadas de forma livre e de acordo com a restante prova produzida, resultou que ainda se encontrava no telhado quando o sinistrado caiu (“ouvi o estrondo”); referiu o modo de execução dos trabalhos; a obra em (...) onde usaram as mesmas medidas sem qualquer reparo das entidades responsáveis; que “se andassem em cima das tábuas as telhas não partiam”; que a certa altura tinham de andar sem tábua ou outra protecção; que o ... “andou nas telhas sem tábua” “teve de andar”; que viu ainda o ... a desamarrar-se no cume. Os depoimentos das testemunhas foram avaliados de acordo com os documentos supra, sobretudo o relatório do sr Inspector do Trabalho e respectivo depoimento, fotografias tiradas ao local, depoimento da inspectora que acompanhou aquele, dos quais resulta que não foi implementada a medida de segurança linha de vida que impediria a queda do trabalhador e  sua morte, medida que era a protecção adequada para este risco em face das características do local e da espécie de trabalho a realizar. Com efeito, as cordas de amarração presas na estrutura não acompanhavam toda a zona de trabalhos e de 4 em 4 metros o trabalhador tinha de se desamarrar e amarrar de novo noutro ponto a fim de se poder deslocar ao longo do telhado, pelo que haveria sempre algum período de tempo em que não estaria amarrado. Por outro lado, conforme resulta das declarações de parte do sócio-gerente da ré haveria sempre um momento, aquando da descida do telhado, em que o trabalhador teria de se desamarrar e andar sobre tábuas de rojo (inexistentes naquela água), deslizando sobre as mesmas, pelo que sempre estaria desprotegido nessa altura, o que potenciaria a sua queda, nomeadamente se se desequilibrasse ou se colocasse o pé em cima de uma telha, frágil por natureza, e esta colapsasse como aconteceu. Assim, as medidas que foram efectivamente implementadas na cobertura pela ré não protegiam o trabalhador do risco de queda em altura, aliás as próprias tábuas de rojo que os trabalhadores e sócio-gerente alegaram existirem no local não impediriam a queda do sinistrado. Outras medidas poderiam ter sido adoptadas, como as que posteriormente ao acidente foram, nomeadamente através da realização dos trabalhos pela parte interior do armazém. Assim, é de concluir que a ré entidade empregadora omitiu medidas de segurança essenciais para que os seus trabalhadores executassem o serviço de forma segura, seja utilizando linha de vida seja executando os trabalhos por baixo da estrutura como posteriormente vieram a fazer, prevenindo o risco de queda em altura”[4].

Sufragamos inteiramente esta circunstanciada, pormenorizada e exaustiva fundamentação.

Na verdade, depois de apreciarmos os elementos probatórios em que a recorrente se baseia para fundamentar o seu desacordo quanto à decisão da matéria facto, em parte alguma, e frisamos em parte alguma, resulta infirmado o decidido pelo tribunal a quo.

Concretizemos.

Relativamente à existência ou inexistência de tábuas de rojo na água nascente, água esta onde se encontrava o porta paletes da “manitou” de braço telescópico no qual eram depositadas as placas de fibrocimento retiradas da cobertura da nave do armazém para serem deslocadas para fora dessa cobertura.

Todas as testemunhas ligadas à recorrente vieram dizer que nessa água nascente, na qual cedeu a placa de fibrocimento por onde o sinistrado caiu para o interior do pavilhão, existiam duas tábuas de rojo.

Acontece, porém, que esses depoimentos são frontalmente contrariados pelas fotografias do local onde ocorreu o sinistro, fotografias estas captadas logo a seguir ao acidente, quer pelo elemento da GNR que acorreu ao local, quer pelos elementos da ACT que chegaram a esse local 2 horas e 30 minutos após a eclosão daquele

Desses elementos fotográficos (doc. 3-A e doc. 4 do anexo ao relatório do acidente elaborado pela ACT) vê-se que na água nascente não existem tábuas de rojo ou passagem, não sendo crível que essas tábuas tivessem sido retiradas no espaço de tempo que mediou entre a hora do acidente e a hora da tiragem das fotografias.

É verdade que as referidas testemunhas vieram apresentar uma razão para a inexistência dessas tábuas.

Contudo, a razão apresentada não se nos afigura verosímil na medida em que não vemos qual a necessidade operacional de fazer deslocar as tábuas para a cumeeira da nave, retirando-as da sua água nascente, aquando da mudança dessas tábuas determinada pela necessidade de iniciar uma nova fila de destelhamento.

Mas mais importante ainda é o facto de nas declarações que prestou à ACT o representante legal da recorrente ... ter afirmado que na água onde ocorreu a queda do sinistrado não existiam tábuas (fls 1402 do processo electrónico).

Os depoimentos das ditas testemunhas revelaram-se “acomodados” aos interesses da recorrente não merecendo por isso credibilidade por parte desta Relação, aliás no seguimento daquilo que já havia entendido a 1ª instância.

Isto tudo para dizer que a prova produzida está longe de infirmar minimamente a convicção criada em 1ª instância razão pela qual se mantém integralmente a matéria das alíneas M) e Q) dos factos considerados provados.

O mesmo se diga relativamente à matéria das alíneas S), T) e U).

Nenhum dos depoimentos das testemunhas apreciados foi de molde a contrariar ou infirmar a matéria vertida nas referidas alíneas.

Aliás o acerto da decisão resulta até da visualização das fotografias a que se fez referência que, sublinhe-se, foram tiradas logo a seguir à ocorrência do sinistro, quando ainda o infeliz sinistrado se encontrava no local, estatelado no interior do pavilhão.

A matéria alínea AA) resulta provada do depoimento do Inspector da ACT e bem assim do depoimento da testemunha ... (responsável pela empresa se segurança) dos quais decorre de forma inequívoca que na obra que estava ser executada e onde ocorreu evento infortunístico não tinha sido previamente ministrada a formação a que se alude na dita alínea.

O que se provou foi que, anteriormente, numa obra em (...) , destinada à remoção das chapas de fibrocimento com amianto, tinha sido ministrada essa formação; mas não na obra a que reportam os autos.

Daí que seja de manter a matéria da referida alínea.

A alínea BB) contém em nosso entender matéria conclusiva na medida em que, só por si, resolve a questão da verificação no nexo de causalidade entre a falta de observância de regras sobre a segurança no trabalho e o acidente, nexo aquele cuja verificação se exige para se poder responsabilizar a empregadora pela reparação infortunística.

Pelo que parte do thema decidendum da acção encontra-se dependente e localizado no significado das expressões utilizadas na redacção da alínea BB); o objecto da acção gira em parte à volta dessas expressões; saber se a existência de uma “linha de vida” evitaria a queda do sinistrado do telhado para interior do pavilhão é questão que deve ser deduzida de outro ou outros factos concretos provados.

Por imposição do artº 646º, nº 4, do anterior CPC tinham-se por não escritas as respostas do tribunal sobre questões de direito ou, o que é o mesmo, conclusivas. O mesmo deve considerar-se no quadro do actual CPC, na medida em que o juiz deve considerar apenas os factos que considera provados ou não provados (artº 607º, nºs 3, 4 e 5 do Novo CPC), do que resulta dever ser afastada a matéria notoriamente conclusiva ou de direito. Se apenas a matéria de facto releva para a decisão final, ela deve apresentar-se isenta de considerações jurídicas ou conclusivas que apenas devam ter leitura na apreciação de direito.

Assim, decide-se considerar não escrita a alínea BB) dos factos provados.

Da inobservância das regras sobre segurança:

Como temos vindo a decidir em acórdãos em que temos sido relator, para que se preencha o quadro normativo previsto no nº 1 do artº 18º da LAT (Lei 98/2009 de 04/09) é necessário que:

a) ocorra a violação de uma regra ou norma concreta sobre segurança no trabalho (não bastando a violação de regras genéricas ou programáticas sobre esta segurança para que se dê como preenchida a previsão do nº 1 do artº 18º da LAT.

No que respeita à questão da violação das regras de segurança, é preciso ter em conta, que os acidentes acontecem, na quase totalidade da maioria dos casos, porque alguém fez algo que não devia ou omitiu algo que devia fazer; a isto acrescem circunstâncias imprevisíveis ou dificilmente previsíveis que alteram o curso dos acontecimentos. Mas isto não significa, designadamente em matéria de acidentes de trabalho, que se possa sempre falar em culpa, em culpa que fundamente o agravamento da pensão nos termos previstos no art.º 18.º nºs 1 e 4 da da LAT. No nosso entendimento, a única forma de culpa que a lei admite é a violação de regras de segurança pois que a falta de observância dessas regras é a omissão de um dever especial de cuidado.

Por isso deve afastar-se, como fundamentador do agravamento da pensão, a violação de um dever genérico de cuidado. Esta faz parte do risco do trabalho, como do risco da vida, e é absorvida pela regulamentação desta responsabilidade por acidentes de trabalho como responsabilidade objectiva. A entender-se que a violação de um dever geral de cuidado, mesmo que não tenham sido violadas específicas disposições legais relativas à segurança no trabalho, permite imputar à entidade patronal, a título de culpa, o acidente, significa terminar com a responsabilidade objectiva nesta matéria. Não se pode tomar como bom, o raciocínio que simplisticamente se traduz na seguinte frase “há acidente, logo há culpa”!.

b) se possa estabelecer um nexo de causalidade entre essa violação ou inobservância e o acidente.

Adoptando o nosso ordenamento jurídico a teoria da causalidade adequada na sua formulação negativa[5], é necessário demonstrar, que se tivessem sido adoptadas as medidas de prevenção o acidente não teria ocorrido)[6].

Podemos ainda acrescentar que conforme se lê no AC. STJ de 28-03-2007, procº 06S3956 “inwww.dgsi.pt/jstj, o artº 563º do Cód.Civil “consagra a vertente mais ampla da causalidade adequada, ou seja, a sua formulação negativa, não exigindo a exclusividade do facto condicionante do dano.

Neste contexto, é configurável a concorrência de outros factos condicionantes, contemporâneos ou não, do mesmo passo que se admite também a causalidade indirecta, bastando que o facto condicionante desencadeia um outro que suscite directamente o dano.

Apesar disso, o facto condicionante já não deve ser havido como causa adequada do efeito danoso, sempre que o mesmo, pela sua natureza, se mostre de todo inadequado para a sua produção. É o que sucede quando o dano só tenha ocorrido por virtude circunstâncias anómalas ou excepcionais de todo imprevisíveis no contexto do trajecto causal”.

E a causalidade adequada não se refere ao facto e ao dano isoladamente considerados, mas ao processo factual que, em concreto, conduziu a este, pressupondo que o facto cuja causalidade se discute tenha sido uma das condições do dano, ou seja, que esse facto integre o processo causal que conduziu ao dano.

No caso que nos ocupa encontra-se em causa a pretensa violação pela entidade empregadora das normas constantes dos arts 44º e 45º do Decreto 41821, de 11 de agosto de 1958, arts 7º e 14º, nºs 1 e 5 do Decreto-Lei 273/2003, de 29 de Outubro, e arts 15º nºs 2 a 5 e 20º da Lei 102/2009, de 10 de Setembro.

Por outro lado, há ainda que chamar à colação o preceituado no art 281º, nºs 1 a 3 do C.T. segundo o qual o trabalhador tem o direito a prestar trabalho em condições de segurança e saúde, devendo empregador assegurar aos trabalhadores condições de segurança e saúde em todos os aspectos relacionados com o trabalho, aplicando as medidas necessárias tendo em conta princípios gerais de prevenção, devendo ainda mobilizar os meios necessários, nomeadamente nos domínios da prevenção técnica, da formação, informação e consulta dos trabalhadores e de serviços adequados, internos ou externos à empresa.

Há ainda a atentar no que estabelece o art 282º do mesmo código (“informação, consulta e formação dos trabalhadores”), nos termos do qual o empregador deve informar os trabalhadores sobre os aspectos relevantes para a protecção da sua segurança e saúde e a de terceiros, e deve assegurar formação adequada, que habilite os trabalhadores a exercer de modo competente as respectivas funções.

Essencialmente, os artºs 15º e 20º da Lei 102/2009 de 10/10 contêm meras normas genéricas ou programáticas sobre segurança do trabalho e não regras concretas dirigidas à forma como deve ser executado o trabalho em cima de telhados como é o caso.

A mesma natureza de comandos contém o art 7º do Decreto-Lei 273/2003, de 29 de Outubro (diploma que regulamenta a condições de segurança e de saúde no trabalho em estaleiros temporários ou móveis), ao estipular que “o plano de segurança e saúde deve ainda prever medidas adequadas a prevenir os riscos especiais para segurança e saúde dos trabalhadores decorrentes, nomeadamente de trabalhos” “que exponham os trabalhadores a risco de (…) queda em altura (…).”.

Mas já os arts 44º e 45º do Decreto 41821, de 11 de agosto de 1958 (Regulamento De Segurança No Trabalho Da Construção Civil) estabelecem formas concretas ou práticas de executar o trabalho em cima de telhados em cima de telhados.

Assim:

Art 44º: “No trabalho em cima de telhados que ofereçam perigo pela inclinação, natureza ou estado da sua superfície, ou por efeito de condições atmosféricas, tomar-se-ão medidas especiais de segurança, tais como a utilização de guarda-corpos, plataformas de trabalho, escadas de telhador e tábuas de rojo.

§ 1º As plataformas terão a largura mínima de 0,40m e serão suportadas com toda a segurança. As escadas de telhador e as tábuas de rojo serão fixadas solidamente.

§ 2º Se as soluções indicadas no corpo do artigo não forem praticáveis, os operários utilizarão cintos de segurança providos de cordas que lhes permitam prender-se a um ponto resistente da construção.”

Art 45º: “Nos telhados de fraca resistência e nos envidraçados usar-se-á as prevenções necessárias para que os trabalhos decorram sem perigo e os operários não se apoiem inadvertidamente sobre pontos frágeis.”

De salientar que nos trabalhos em altura deve dar-se prevalência ou prioridade às medidas de protecção colectiva em relação às medidas de protecção individual (artº 15º nº 2 al. h) da Lei 102/2009 de 10/09,artº 36º nº 2 do DL 50/2005[7] de 25/02 e artº 11º da Portaria 101/96 de 03/04[8]) e que na interpretação do “velho” regulamento da construção  civil deve ser considerada a evolução técnica que, naturalmente, tiveram os equipamentos de protecção colectiva e individual nos últimos cerca de 62 anos.

De acrescentar ainda que a enumeração feita no citado artº 44º é meramente exemplificativa como resulta da utilização na redacção do preceito da expressão “tais como…

As telhas ou placas de fibrocimento, ainda que sejam novas, são por natureza frágeis, não suportando grandes pesos até porque são placas de significativa dimensão (no caso tinham 1,53m de comprimento por 1 metro de largura) encontrando-se fixadas espaçadamente à estrutura de sustentação (armação) em comparação com as telhadas cerâmicas comummente utilizadas nas coberturas das casa de habitação.

Daí que, neste tipo de coberturas, os espaços entre os pontos de fixação das placas à estrutura de sustentação do telhado tenham uma dimensão que permitem a passagem de uma pessoa caso a placa se quebre.

Por outro lado, e mais concretamente no caso em apreciação, tratava-se da remoção de chapas de fibrocimento que continham amianto, cuja colocação, com toda a certeza, tinha ocorrido há vários anos, encontrando-se as ditas chapas deterioradas ou enfraquecidas por acção dos agentes climatéricos, apresentando a superfície do telhado riscos de quebra.

A recorrente utilizava na remoção das placas tábuas de rojo.

Todavia, não utilizava essas tábuas em toda a extensão que os trabalhadores tinham necessidade de percorrer na execução da operação de transporte das chapas desde o local onde estas eram desaparafusadas até ao local do seu depósito nos garfos da “manitou”.

Na verdade, só em parte deste percurso (feito na água poente onde as chapas estavam a ser retiradas) é que se encontravam colocadas tábuas de rojo, sendo que em parte alguma se demonstrou ser inviável em termos técnicos ou práticos a colocação das referidas tábuas na água nascente onde se encontravam os garfos da “manitou”.

Ou seja, a recorrente, ao não utilizar as tábuas de rojo na referida água, violou uma regra de segurança no trabalho concretamente estabelecida no artº 44º do Regulamento da Construção Civil.

É verdade que o sinistrado se encontrava equipado com arnês, mosquetão e corda.

Contudo na execução da tarefa de remoção das placas de fibrocimento não se encontrava permanentemente seguro ou ancorado a um ponto fixo da estrutura.

Como resulta do facto Z) (não impugnado) amarrava-se e desamarrava-se a pontos fixos à medida que avançava nos trabalhos da cobertura, ou seja, sempre que tinha de se desamarrar e amarrar havia um período de tempo, considerando até que tinha de procurar um ponto de ancoragem, em que se encontrava desprotegido, verificando-se nesses espaços de tempo um real perigo de queda em altura (recorde-se que do solo à cumeeira o pavilhão tinha uma altura de 7,07 metros).

Ou seja, ocorrendo um desequilíbrio, caso o sinistrado tivesse de pisar uma das placas a remover, a queda seria inevitável considerando que o equipamento de protecção individual não estava preso a qualquer parte sólida da estrutura.

Por outro lado (facto Y não impugnado) havia pontos fixos na estrutura onde podiam ser amarradas redes de retenção ou redes anti-queda, não sendo de descartar totalmente a possibilidade das placas de fibrocimento serem retiradas pelo interior da nave com auxilio de plataformas de elevação[9].

Seja como for, a verdade é que, no local da queda, não estavam a ser usadas tábuas de rojo nem o cinto de segurança estava ser correctamente utilizado (quiçá pelas razões atrás referidas), por não se encontrar permanentemente ancorado ou preso a uma parte sólida da estrutura do telhado.

Com as tábuas de rojo colocadas na água nascente as placas de fibrocimento não quebrariam ou se quebrassem sempre essas tábuas evitariam a abertura de um buraco no telhado e, naturalmente a queda do infeliz sinistrado para o interior da nave; e bem assim a corda com mosquetão devidamente presa a uma parte sólida da estrutura (ou a uma linha de vida) evitaria que o sinistrado, por ficar suspenso, se estatelasse no solo.

Temos, assim, que a inobservância das concretas regras de segurança por parte da empregadora recorrente a que temos vindo a fazer referência foi causal em relação ao evento infortunístico porquanto se as mesmas tivessem sido observadas o acidente não teria ocorrido.

Diga-se ainda que, não obstante não serem os juízes especialistas em questões de segurança, o que se nos afigura depois de ouvida e apreciada a prova, é que a solução correcta seria a de ter sido utilizada uma linha de vida (que era possível instalar no local - factoY) ao longo de toda a cumeeira da nave ou pavilhão (linha horizontal) a qual incorporando um cabo metálico flexível ao qual é ancorado o mosquetão, que faz parte do arnês ou cinto de segurança, permitiria ao trabalhador liberdade de movimentos e evitaria, na hipótese de queda, que o aquele trabalhadora atingisse o solo e sofresse lesões corporais ou a morte.

Concluímos, tal como concluiu a 1ª instância, estar verificada a previsão do artº 18º da LAT pelo que a apelação não pode proceder.

VI – Termos em que se delibera julgar a apelação totalmente improcedente com integral confirmação da sentença impugnada.

Custas a cargo da recorrente.


Coimbra, 13 de Novembro de 2020

(Joaquim José Felizardo Paiva)

(Paula Maria Mendes Ferreira Roberto)

(Jorge Manuel da Silva Loureiro)

***


[1] Daí que na reapreciação da matéria de facto pelo tribunal superior seja sempre de ponderar na fundamentação daquela feita pela 1ª instância de modo a perceber o“iter” lógico-dedutivo que levou à conclusão encontrada e a permitir o controlo da razoabilidade da decisão alcançada.
[2] No domínio do novo Cód. Proc. Civil escreve este autor in Recursos no Novo Cód.Proc. Civil, 2013, págª 224 que “quando esteja em causa a impugnação de determinados factos cuja prova tenha sido sustentada em meios de prova submetidos a livre a apreciação, a Relação deve alterar a decisão da matéria de facto sempre que, no seu juízo autónomo, os elementos de prova que se mostrem acessíveis determinem uma solução diversa, designadamente em resultado da reponderação dos documentos, depoimentos e relatórios periciais, complementados ou não pelas regras da experiência
[3]A omissão, a insuficiência ou a suficiência da análise crítica, pelo recorrente, das provas a reapreciar é questão que tem a ver com o mérito da impugnação, com a procedência ou improcedência do recurso, mas não com a sua liminar rejeição ou aceitação.” – Acórdão do STJ de 22/2/2018, proferido no processo 8948/15.1T8CBR.C1.S1, cujo sumário poderá consultar-se em http://www.stj.pt/ficheiros/jurisp-sumarios/social/Mensais/Fevereiro_2018.pdf, no qual se lê que “Na verdade, ao recorrente ao dizer que determinado facto não devia ser dado como provado pelo confronto da prova testemunhal com a documental fazendo uma transcrição da primeira, não está a fazer uma análise critica da prova, nem sequer a fornecer os elementos necessários para permitir que o tribunal a faça, deixando nas mãos do tribunal uma actividade “recolectora” de todos os documentos e dos depoimentos identificados, não sendo assim possível ao tribunal de recurso refazer o percurso/raciocínio lógico-jurídico que o próprio recorrente fez para concluir de forma diferente daquilo que a instância inferior decidiu.
               Uma correta impugnação que cumpra o ónus previsto no art. 640º do Código de Processo Civil, passaria por identificar que determinado facto provado foi incorrectamente julgado, enunciando-o e apresentando o porquê de tal incorreção, isto é, dever-se-ia apresentar uma análise crítica dos elementos de prova de que o julgador deveria retirar uma conclusão diferente da que retirou, e apresentar o facto tal como deveria ter sido dado como provado e não provado”..

[4] Sublinhados e negritos nossos
[5] Artº563º do Cód. Civil. Segundo P. de Lima e A. Varela “in” Cód. Civil anotado, Vol. I, 4º edição, págº 579 “ a fórmula usada no artº 563º deve interpretar-se no sentido de que não basta que o evento tenha produzido (naturalística ou mecanicamente) certo efeito para que este, do ponto de vista jurídico se possa considerar causado ou provocado por ele; para tanto, é necessário ainda que o evento danoso seja uma causa provável, como que quem diz adequada desse efeito”.
[6]A averiguação no nexo causal, conquanto se ponha ex post do evento lesivo, deve demandar ao julgador a efectivação de um juízo de prognose, embora póstuma” – Ac STJ de 21/06/2007, procº 07S534 “in” www.dgsi.pt/jstj
[7] Prescrições mínimas de segurança e de saúde para a utilização pelos trabalhadores de equipamentos de trabalho.
[8] Prescrições mínimas de segurança e de saúde nos locais e postos de trabalho dos estaleiros temporários ou móveis.
[9] Pela prova que apreciamos tudo leva a crer ou indica que após o acidente terá sido este último método o utilizado para retirar as placas de fibrocimento restantes.