Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
198/03.6GAFIG-A.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: FREDERICO CEBOLA
Descritores: PENA PRISÃO
SUBSTITUIÇÃO MULTA
PAGAMENTO PARCIAL
Data do Acordão: 02/09/2011
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DA FIGUEIRA DA FOZ – 3º J
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 43º, 49º CP
Sumário: O cumprimento parcial da pena de multa que resultou da substituição da pena de prisão, deve determinar não o cumprimento da totalidade da pena de prisão, mas a redução proporcional da pena de prisão a cumprir.
Decisão Texto Integral: I – Relatório
Nos autos de processo comum com intervenção do tribunal colectivo, com o n.º 198/03.6gafig-A, que corre termos no Tribunal Judicial da Figueira da Foz, 3º Juízo, por despacho de 21/01/2010, certificado de fls. 30/32, o M.mo Juiz a quo decidiu que não tendo o arguido (condenado numa pena de prisão substituída por pena de multa, e tendo-lhe sido concedida a faculdade de proceder ao pagamento da pena substitutiva em prestações), pago a totalidade das prestações, terá que cumprir a pena de prisão na sua totalidade.
De tal decisão interpôs recurso o Ministério Público, formulando as seguintes conclusões (transcrição):
«1- O Tribunal a quo decidiu que, não obstante o arguido MG... ter pago 8 das 10 prestações da multa de substituição em que foi condenado, terá, caso não prove que a situação de incumprimento não lhe é imputável, que cumprir integralmente a pena de prisão principal de 150 dias aplicada na sentença.
2 - Isto porque considera que esta é a posição que melhor se coaduna com a letra e o espírito inserto no artigo 43.°, n.° 2, do Código Penal, já que desta forma não há possibilidade de confusão dogmática entre a natureza e as finalidades da pena de multa enquanto pena de substituição e a prisão subsidiária.
3 - Porém, considera o Ministério Público, tal como havia promovido nos autos, que tal não será a intenção do legislador, não devendo o Tribunal desconsiderar a pena de multa já paga no momento em que renova a pena de prisão principal.
4 - No nosso ordenamento jurídico a pena de prisão não superior a um ano é obrigatoriamente substituída por pena não privativa da liberdade, apenas podendo o julgador decidir de forma diferente se a prisão se mostrar necessária face ás exigências de prevenção especial de socialização.
5 - Esta imposição decorre da reconhecida necessidade de combater o cumprimento efectivo de penas curtas de prisão, posto que as mesmas acarretam uma danosidade pessoal e social superior ao seu efeito dissuasor.
6 - A pena de multa surge como uma das penas de substituição possíveis da qual o julgador se pode socorrer no momento da substituição da pena de prisão não superior a um ano.
7 - Mas a pena de multa de substituição não se confunde com a pena de multa original.
8 - Apesar de se aplicarem à pena de multa de substituição os mesmos critérios e princípios subjacente à sua determinação, no que concerne aos limites de duração e quantitativo diário, e à possibilidade conferida ao condenado de proceder ao seu pagamento fraccionado.
9 - As diferenças entre a pena de multa principal e a pena de multa substitutiva notam-se ao nível do incumprimento de cada uma delas.
10 - A pena de multa principal não cumprida pode ser cobrada coercivamente e não sendo possível a sua satisfação por esta via, o condenado tem que cumprir pena de prisão subsidiária de duração igual a 2/3 do tempo da pena de multa (artigo 49.°, n.° l, do Código Penal).
11 - Porém, o condenado pode a todo o tempo obstar ao cumprimento da prisão subsidiária, pagando o valor da pena de multa, no todo ou em parte, sendo que se for pago apenas em parte será feito o respectivo desconto na pena de prisão subsidiária (artigo 49.°, n.° 2, do Código Penal).
12 - Outra via possível para não cumprir a prisão subsidiária é provar que o cumprimento não é imputável ao condenado e aceitar a suspensão da pena de prisão condicionada ao cumprimento de deveres ou regras de conteúdo não económico ou financeiro (artigo 49.°, n.° 3, do Código Penal).
13 - Na pena de multa de substituição o não pagamento implica o cumprimento da pena aplicada na sentença, a menos que se verifique o condicionalismo do artigo 49.°, n.° 3, do Código Penal, para o qual o artigo 43.°, n.° 2, remete expressamente.
14 - O facto de não se remeter para os demais números do artigo 49.° do Código Penal não implica que não se proceda ao desconto da pena de multa já paga no momento em que se determina o cumprimento da pena de prisão.
15 - Entendemos pois que entendimento diverso não respeita os princípios da igualdade e da proporcionalidade que também disciplinam a determinação das penas.
16 - Por outro lado, a razão da não remissão integral para o artigo 49.° visa evitar, como sucedia no regime anterior à alteração decorrente do Decreto-Lei 48/95, de 15 de Março, que o condenado que não cumpra a pena de multa de substituição possa vir a beneficiar da redução de 1/3 do tempo de prisão.
17 - Mas esta não remissão não impede que não se tenha em consideração o valor da multa já paga pelo condenado.
18 - E o Tribunal ao descontar este tempo na pena de prisão não contende com a natureza e finalidades da pena curta de prisão, nem anula as diferenças das duas penas de multa.
19 - Na verdade as diferenças são mantidas porque neste caso, de multa de substituição, não há qualquer redução na duração de pena de prisão e o condenado não pode a todo o tempo proceder ao pagamento da multa e, desta forma, obstar ao cumprimento da pena de prisão.
20 - A coerência do próprio modelo de penas de substituição impõe que se faça esse cômputo da quantia já paga, pois que também na pena de substituição criada com a revisão do Código de 2007, a pena de proibição do exercício de profissão, função ou actividade, se tem que atender, no momento de revogar a pena e determinar o cumprimento da pena principal, ao tempo cumprido de pena de substituição (artigo 43.°, n.° 7 e 8 do Código Penal).
21 - A posição que aqui se defende é secundada na doutrina pelo Dr. Paulo Pinto de Albuquerque que, no Comentário do Código Penal, em análise ao artigo 43.°, diz expressamente "6. Portanto, se a multa que substitui a prisão não for paga na totalidade, o condenado cumpre a pena de prisão por inteiro. Mas se a multa não for paga em parte, o condenado cumpre a pena de prisão correspondentemente reduzida dos dias de multa já cumpridos".
22 - E na Jurisprudência pelo Supremo Tribunal de Justiça que, no processo
513/06.0GTEVR-A, por acórdão proferido a 21 de Julho de 2009, decidiu, num
caso em tudo semelhante ao dos autos, julgar procedente a providência de
Habbeas Corpus e restituir de imediato o condenado à liberdade, por entender
que as prestações de multa de substituição que o mesmo havia pago deveriam ser
consideradas e descontadas aquando da determinação do tempo de prisão a
cumprir.
23 - O Tribunal deverá assim ter em consideração, no momento em que seja
determinado o cumprimento da pena de prisão principal, as 8 prestações de multa
que o arguido já pagou, o que implica que o mesmo cumpra apenas 30 dias de
prisão e já não os iniciais 150 dias.

V. Ex.as, porém,
e como sempre, farão
Justiça!»

O arguido não apresentou resposta.


O recurso foi admitido por despacho certificado de fls. 54.

Nesta Relação, o Ex.mo Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer, acompanhando a posição da sua Ex.ma colega da 1ª instância, entendendo que o recurso merece provimento.

Cumprido o disposto no n.º 2 do art.º 417.º, do Código de Processo Penal, o arguido nada disse.

Efectuado o exame preliminar determinou-se que, ao abrigo do disposto no art.º 419.º, n.º 3, al. b), do Código de Processo Penal, na sua actual redacção introduzida pela Lei n.º 48/2007, de 29/08, o recurso fosse julgado em conferência.

Colhidos os vistos legais e tendo os autos ido à conferência cumpre apreciar e decidir.

II – Fundamentação

Conforme jurisprudência fixada pelo acórdão do Plenário das Secções do STJ de 19 de Outubro de 1995, publicado in D.R. Série I-A de 28 de Dezembro de 1995, o âmbito do recurso define-se pelas conclusões que o recorrente extrai da respectiva motivação, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso, como sejam as de nulidade da sentença e as previstas no art.º 410.º, nº. 2, do Código de Processo Penal – v. ainda, entre outros, o acórdão do STJ de 3.2.99, em BMJ n.º 484, pág. 271; o acórdão do STJ de 25.6.98, em BMJ n.º 478, pág. 242; o acórdão do STJ de 13.5.98, em BMJ n.º477, pág. 263; Simas Santos/Leal Henriques, in “Recursos em Processo Penal”, pág. 48; Germano Marques da Silva, em “Curso de Processo Penal”, III, pág. 320 e 321.
Tendo presente as conclusões do recorrente, a questão suscitada consiste em saber se o não pagamento de parte da pena de multa que resultou da substituição da pena de prisão, deve determinar o cumprimento da totalidade da pena de prisão, ou se o cumprimento parcial da pena de multa deve determinar a redução da pena de prisão a cumprir como pretende o recorrente.

O despacho recorrido é do seguinte teor:
«Veio a fls. 460 destes autos o Ministério Público promover a revogação da pena de multa de substituição que foi aplicada ao arguido MG… e que o mesmo cumpra o remanescente de 30 dias de prisão, devendo, após trânsito, serem passados mandados de detenção com vista ao cumprimento pelo arguido da pena de 30 dias de prisão.
Factos a considerar:
1. O arguido MG... foi condenado nos presentes autos, por acórdão transitado em julgado, na pena de 150 dias de prisão, substituída pela pena de 150 dias de multa à razão diária de € 3,00, perfazendo o montante global de € 450,00.
2. O arguido requereu o pagamento da pena de multa em dez prestações, o que lhe foi concedido, tendo apenas pago oito prestações, no montante global de € 360,00.
3. O arguido foi notificado pessoalmente para se pronunciar sobre a situação, tendo sido advertido de que o não pagamento das duas prestações em falta poderia ter como consequência o cumprimento da pena principal, sendo que nada disse, nem procedeu ao pagamento do remanescente em falta.





*






Cumpre decidir.
Entende o Ministério Público que o arguido terá de cumprir o remanescente da pena principal de 150 dias de prisão, que se cifra em 30 dias, em conformidade com o disposto no artº 43º, nº 2 do Código Penal, cuja redacção é idêntica à do artº 44º, nº 2 do mesmo diploma, vigente à data da prática dos factos.
Salvo o devido e merecido respeito, não concordamos com tal posição.
Com efeito, o artº 44º, nº 2 do CP - vigente à data dos factos e cuja redacção se manteve com a Lei nº 59/2007 de 4 de Setembro, apenas se tendo procedido à alteração do número do artigo, sendo presentemente o artº 43º, nº 2 - regula a substituição da pena de prisão, estabelecendo que: "Se a multa não for paga, o condenado cumpre a pena de prisão aplicada na sentença. É correspondentemente aplicável o disposto no nº 3 do artigo 49.º"
O artº 49º, nº 3 do mesmo diploma preceitua que: " Se o condenado provar que a razão do não pagamento da multa lhe não é imputável, pode a execução da pena subsdiária ser suspensa, por um período de 1 a 3 anos, desde que a suspensão seja subordinada ao cumprimento de deveres ou regras de conduta de conteúdo não económico ou financeiro. Se os deveres ou as regras de conduta não forem cumpridos, executa-se a prisão subsidiária; se o forem, a pena é declarada extinta".
A este propósito, expende Maia Gonçalves, in Código Penal Anotado, Almedina, 16ª edição, 2004, págs. 185-186: " A disposição do nº 2 significa em primeiro lugar que se a multa aplicada em substituição da prisão não for paga, o condenado cumprirá, em regra, a prisão aplicada na sentença, como se esta não tivesse decretado a substituição(...). A remissão para o nº 3 do art. 49º, parece não ser total, pois se assim fosse ficaria em contradição com a 1ª parte do nº 1, que exige o cumprimento total da pena de prisão aplicada na sentença, enquanto que o nº 3 do art.º 49.º, por se referir à pena subsidiária, imporia a redução a 2/3. Cremos que a solução a perfilhar é a do cumprimento total, não só porque é isso que se impõe na 1ª parte do nº 2 do artº 44, como também devido ao uso do advérbio correspondentemente. Significa isto que a remissão para o nº 3 do art.º 49º é tão só para a possibilidade de suspensão condicionada e para a declaração de extinção da pena quando os deveres e as regras de conduta forem cumpridos".
Esta linha de interpretação é também comungada pelo Prof. Figueiredo Dias, in Revista de Legislação e Jurisprudência, Ano 125.º, no que tange à pena de multa de substituição (vide nota 27, pág. 206).
Significa isto que o arguido não tendo pago integralmente a pena de multa de substituição, seja de uma só vez ou em prestações, tem que cumprir na totalidade a pena de prisão - pena principal - que lhe foi aplicada na sentença.
Cremos que esta é a posição que mais se coaduna com a letra e o espírito da lei inserta no artº 43º, nº 2 do CP, pois entendendo-se assim não há possibilidade de confusão dogmática entre a natureza e as finalidades da pena de multa enquanto pena de substituição e a prisão subsidiária.
*

Termos em que, e ao abrigo do disposto no artº 49º, nº 3 "ex vi" do artº 43º, nº 2 do Código Penal, ordeno a notificação do arguido para, no prazo de 10 dias, esclarecer nos autos, querendo, as razões ou fundamentos que o impossibilitam de poder pagar as duas prestações em falta, sob a cominação expressa de nada dizendo ou não liquidar tais prestações, em tal prazo, ter que cumprir a pena de prisão que lhe foi aplicada no acórdão, ou seja, 150 dias de prisão.
Notifique pessoalmente o arguido, através do opc competente.
Notifique igualmente a defensora oficiosa.»

Apreciando.
Sustenta o recorrente que as prestações de multa substitutiva devem ser computadas na pena de prisão e que, consequentemente, o arguido deverá apenas cumprir o remanescente da pena de prisão.
Diga-se, desde já, que assiste razão ao recorrente.
Com efeito, o art.º 43.º, n.º 2, do Código Penal dispõe que “Se a multa não for paga, o condenado cumpre a pena de prisão aplicada na sentença. É correspondentemente aplicável o disposto no n.º 3 do artigo 49.º.”
Parece-nos, contudo, manifesto que tal artigo tem que ser interpretado no sentido de que, ocorrendo cumprimento parcial da pena de multa, deve a pena de prisão a cumprir ser reduzida na devida proporção.
Com efeito, não existe na Lei Penal nenhuma situação em que o cumprimento parcial de uma pena não deva ser relevado. E até mesmo as medidas de coacção devem ser objecto de redução da pena a cumprir, nos termos do art.º 80.º do Código de Processo Penal.
E se assim é e devendo o intérprete na fixação do sentido e alcance da lei ter especialmente em consideração o conjunto de normas em que se integra a norma a interpretar, outra interpretação não é possível extrair senão aquela que o recorrente defende, o que significa que se o arguido procedeu ao apagamento de 360,00 €, terá que cumprir tão-somente 30 dias de prisão [450,00-360,00=90,00:3=30].
Em abono desta posição e tal como refere o Ministério Público na 1ª instância, cita-se na doutrina Paulo Pinto de Albuquerque, in Comentário do Código Penal, em análise ao art.º 43.º «6. Portanto, se a multa que substitui a prisão não for paga na totalidade, o condenado cumpre a pena de prisão por inteiro. Mas se a multa não for paga em parte, o condenado cumpre a pena de prisão correspondentemente reduzida dos dias de multa já cumpridos.».
E na Jurisprudência o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça proferido, a 21 de Julho de 2009, no âmbito do processo 513/06.0GTEVR-A, disponível em www.dgsi.pt, que em decisão de Habbeas Corpus determinou o desconto na prisão correspondente às prestações que haviam sido pagas.
Por tudo o que se deixa dito o recurso procede.


III – Decisão

Nos termos expostos, concede-se provimento ao recurso e, em consequência, revoga-se o despacho recorrido, determinando que o arguido cumpra 30 dias de prisão, sem prejuízo do disposto no art.º 49.º, n.º 3, do Código Penal.

Sem custas.

FREDERICO CEBOLA (RELATOR)
JORGE JACOB